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A p a j x o n a d o p e l a d a n ·a e p Ja p o i b i l i u d e t:>xpressiva do m o v i m e n t o , o b a i l a r i n o , o r e q g r a f o e ] J r o f e s o r K J a u . s V i a n n a a p r e s e n t a n e t e 1' . r o o 1·e u J t a d o d e u m t r a b a l h o d e ob e r v a ç ã o , J e r i - m e n t a ç ã.o, e s t u d o e r e f l e x ã o s o b r e o c o r p o h h l a n o P u a i m p li c a ç õ e s a n a t ô m · · a , f u n c i o n a i s }J ·ico l ' - o·i · a · a f e t i v a s e e s p i r i t u a i . . · f i n a d o com a f i l o of1a d o · g r a n d e ·· r • n o v a - dol'e::; d a d a n ç a c o n t e m p o r â n e a ( P i n a B a ch e K a z u o O h n o ) , e n i n a q u e a n t e d e e x p r i m i T 1 a ma- t é r i a a u a e x p e r i ê n c i a e x i t e n c i a l , o h o m e n i a t r a - d u z com a a j u d a d o . e u p r ó p r i o · o r p o : lm ca do a u t o · o n h e i m e n t o , t o d o , ::;em b a i la r i n o s d a v i d a . ... . C h a m . 9 2 7 . 9 2 8 V61 7 d utor : Vianna , Klaus !.. ítuJo : A dança . 111111 1111 1111111 0 0 0 6 1 8 4 3 S U B I M G - E m p 111~ o de Carvalh o A D A N Ç A K L A U S S V I A N N A !!ID c o l a b o r a ç ã o com M a r c o A n t o n i o de C a r v a l h o D a d o s d e C a t a l o g a ç ã o n a P u b l i c a ç ã o ( C I P ) I n t e r n a c i o n a l ( C â m a r a B r a s i l e i r a d o L i v r o , SP, B r a s i l ) V i a n n a , Klauss. A d a n ç a I Klauss V i a n n a e M a r c o A n t o n i o d e C a r v a l h o . - São P a u l o : S i c i l i a n o , 1990. 1. A u t o p e r c e p ç ã o 2. B a l é ( D a n ç a ) 3. E s p í r i t o e c o r p o 4. Klauss, V i a n n a I . C a r v a l h o , M a r c o A n t o n i o d e , 1 9 5 0 - 11. T í t u l o . C D D - 9 2 7 . 9 2 8 0 9 8 1 - 1 2 8 - 1 5 2 9 0 - 1 3 0 7 - 7 9 2 . 8 2 í n d i c e s p a r a c a t á l o g o s i s t e m á t i c o : 1. B a i l a r i n o s b r a s i l e i r o s : B i o g r a f i a 9 2 7 . 9 2 8 0 9 8 1 2. B a l é : D a n ç a 7 9 2 . 8 2 3. B a l é : D a n ç a : T é c n i c a 7 9 2 . 8 2 4. B r a s i l : B a i l a r i n o s : B i o g r a f i a 9 2 7 . 9 2 8 0 9 8 1 5. C o r p o e e s p í r i t o : M e t a f í s i c a : F i l o s o f i a 1 2 8 6. P e r c e p ç ã o c o r p o r a l : P s i c o l o g i a f i s i o l ó g i c a 1 5 2 © 1 9 9 0 b y Klauss V i a n n a e M a r c o A n t o n i o d e C a r v a l h o D i r e i t o s e x c l u s i v o s p a r a a l í n g u a p o r t u g u e s a c e d i d o s à A g ê n c i a S i c i l i a n o d e L i v r o s , J o r n a i s e R e v i s t a s L t d a . AI. D i n o B u e n o , 4 9 2 - C E P 0 1 2 1 7 - S ã o P a u l o - B r a s i l C a p a : P i n k W a i n e r E d i ç õ e s S i c i l i a n o , 1 9 9 0 I S B N : 8 5 - 2 6 7 - 0 3 0 0 - 5 . P ' r a vocês: A n g e l , R a i n e r , N e i d e e T a i n á . A g r a d e c i m e n t o s : F u n d a ç ã o V i t a e C o n t e ú d o A n t e s de m a i s n a d a . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9 I n t r o d u ç ã o 11 A V I D A I. B e l o H o r i z o n t e , a n o s 3 0 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17 l i . I I I . I V . v. V I . V I I . B a l é c l á s s i c o : u m a v i s ã o m i n e i r a . . . . . . . . . . . . . . . O c o m p a s s o b a i a n o . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . As p e q u e n a s m o r t e s . . . . . . . . . . . . . . . . . . O e t e r n o r e c o m e ç o . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . E s t a r n o m u n d o . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . P e l a c r i a ç ã o d e u m b a l é n a c i o n a l A T É C N I C A 2 2 2 8 35 4 2 5 4 6 8 I . A h a r m ô n i c a i n c o e r ê n c i a . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77 I l . A o r i t m o d o U n i v e r s o . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8 2 I I I . F u n ç ã o e f o r m a . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8 9 I V . A p r e n d i z a d o e e n e r g i a - n o ç õ e s . . . . . . . . . . . . . . 9 7 V. P e r c e p ç ã o c o r p o r a l a p a r t i r de m o v i m e n t o s b á s i c o s . 1 0 8 V I . N a s a l a de a u l a . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 2 0 V I I . M a g i a e t é c n i c a . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 3 2 A V I S Ã O D O O U T R O K l a u s s : e d u c a n d o os s e n t i d o s . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 139 7 E s s e t e x t o foi c n a d o a p a r t i r de e n t r e v i s t a s de A n a F r a n - c i s c a P o n z i o , Luis P e l l e g r i n i e M a r c o A n t o n i o de C a r v a l h o com K l a u s s V i a n n a . A n t e s d e ma1s n a d a Q u a n d o me a p a i x o n e i pela d a n ç a e p e l a s p o s s i b i l i d a d e s e x p r e s s i v a s do m o v i m e n t o , eu e r a quase um a d o l e s c e n t e . Ao longo dessa l i g a ç ã o , que j á d u r a mais de q u a r e n t a a n o s , p r o - c u r e i p e r c e b e r e q u e s t i o n a r os gestos e m o v i m e n t o s h u m a n o s em s u a p r o f u n d i d a d e - sempre o r i e n t a d o p o r m i n h a s i n q u i e - t a ç õ e s , em p a r t e p r o v o c a d a s pelas i n ú m e r a s l a c u n a s que um b a i l a r i n o b r a s i l e i r o e n f r e n t a em sua f o r m a ç ã o . Mas n ã o q u e r o a q u i d e m o n s t r a r um m é t o d o p r o n t o e a c a b a d o . S e m e l h a n t e à s i n f i n i t a s d e s c o b e r t a s q u e a vida nos p r o p o r c i o n a , um p r o c e s s o d i d á t i c o e c r i a t i v o é inesgotáveL P o r isso, em vez de c o n d u z i r a d a p t a ç õ e s a m a n e i r a s de d a n ç a r ou se m o v i m e n t a r que me a g r a d a m ou com as q u a i s me i d e n t i f i c o , p r e f i r o a p r e s e n t a r in- f o r m a ç õ e s e e s t i m u l a r as c o n t r i b u i ç õ e s i n d i v i d u a i s . É o q u e p r e - t e n d o a p a r t i r das reflexões - e d ú v i d a s - c o n t i d a s n e s t e livro. Q u e , e s p e r o , n ã o b u s q u e nem e s t a b e l e ç a c e r t e z a s , mas d e s p e r t e o d e s e j o p e r m a n e n t e de i n v e s t i g a ç ã o p e r a n t e a d a n ç a e a a r t e - que, p a r a mim, se c o n f u n d e m c o m a vida. K l a u s s V i a n n a I n t r o d u ç ã o E s t e é um livro de V i d a , e n ã o a p e n a s de d a n ç a . É p r o - d u t o a c a b a d o de um t r a b a l h o de o b s e r v a ç ã o , e x p e r i m e n t a ç ã o , e s t u d o e r e f l e x ã o s o b r e o c o r p o h u m a n o e s u a s i m p l i c a ç õ e s a n a - t ô m i c a s , f u n c i o n a i s , e m o c i o n a i s , p s i c o l ó g i c a s , a f e t i v a s e e s p i r i - t u a i s . T o d a essa m a s s a de c o n h e c i m e n t o c u s t o u a o a u t o r , K l a u s s V i a n n a , n ã o a p e n a s as m u i t a s h o r a s p a s s a d a s n a s s a l a s de a u l a , c o m o a l u n o e como p r o f e s s o r , eo t e m p o e m p r e g a d o n o s seus e s t u d o s t e ó r i c o s : o m a t e r i a l aqui c o n t i d o , a l é m d e t u d o isso, re- flete a p r ó p r i a e x p e r i ê n c i a e x i s t e n c i a l de K l a u s s , d e s d e os p r i - m e i r o s a n o s de vida, a t é os t e m p o s d a s u a m a t u r i d a d e c o n s o - l i d a d a . A o b r a d i v i d e - s e em d u a s p a r t e s p r i n c i p a i s . A p r i m e i r a , de c u n h o p r e d o m i n a n t e m e n t e a u t o b i o g r á f i c o , p o d e s e r l i d a c o m o um r e l a t o , uma r e p o r t a g e m , e, em a l g u m a s p a s s a g e n s , a t é m e s m o c o m o r o m a n c e . R e t r a t a a t r a j e t ó r i a e x e m p l a r de u m a i n a t a vo- c a ç ã o p a r a a d a n ç a , s u r g i d a no B r a s i l dos a n o s 3 0 , e q u e se e s t e n d e u , sem ~nterrupção, a t é o p r e s e n t e m o m e n t o , c o n f u n d i n - do-se com a p r ó p r i a h i s t ó r i a da d a n ç a n o B r a s i l no p e r í o d o . O r e l a t o é de g r a n d e u t i l i d a d e n ã o a p e n a s p a r a os p r o f i s - s i o n a i s da d a n ç a , m a s t a m b é m p a r a t o d o s a q u e l e s q u e p r e t e n d e m d e s e m p e n h a r , n a vida, a l g u m a a t i v i d a d e c r i a t i v a , s e j a n a á r e a d a s a r t e s , c o m o na da c i ê n c i a , da f i l o s o f i a , o u da r e l i g i ã o . A o r e - l a t a r o seu c a m i n h o pessoal no m u n d o , K l a u s s V i a n n a p a s s a u m a lição f u n d a m e n t a l : a c r i a ç ã o h u m a n a , n ã o i m p o r t a q u a l s e j a ela, n ã o p o d e p r e s c i n d i r da v i v ê n c i a a t e n t a , h o n e s t a e p a c i e n t e d a r e a l i - 11 d a d e . E a r e a l i d a d e c o m e ç a n o c o t i d i a n o , n a s c o i s a s m a i s sim- ples e a p a r e n t e m e n t e sem i m p o r t â n c i a c o m o , p o r e x e m p l o , e p a r a c i t a r e p i s ó d i o s do l i v r o , o s a b o r dos t o m a t e s frescos, o c o n t a t o com os seios da avó, o b a l é d a s n u v e n s no céu, os m o v i m e n t o s m u s c u l a r e s do j a r d i n e i r o no d e s e m p e n h o de suas f u n ç õ e s . É n a o b s e r v a ç ã o dos p r o c e s s o s da n a t u r e z a , m a n i f e s t a d a d e n t r o e f o r a de si mesmo, que se a c u m u l a o a c e r v o das coisas que, d e p o i s , c o n s t i t u i r ã o a m a t é r i a - p r i m a da o b r a pessoal. A s e g u n d a p a r t e d o livro é o r e s u l t a d o c o n c r e t o d a p r i m e i r a . A p r e s e n t a d o s sob o t í t u l o de " A t é c n i c a e a v i d a " , estes c a p í - t u l o s g a n h a m d i m e n s õ e s s u r p r e e n d e n t e s . O que K l a u s s V i a n n a c h a m a de " t é c n i c a " t r a n s c e n d e com l a r g u e z a os l i m i t e s d o signi- f i c a d o m a i s c o r r e n t e e t r a d i c i o n a l a t r i b u í d o ao t e r m o . E x i s t e uma " t é c n i c a K l a u s s V i a n n a " , mas ela p o u c o o u n a d a t e m a ver c o m os s i s t e m a s de r e g r a s , códigos e p r i n c í p i o s o r d e n a d o s n a c o n c e p ç ã o c o m u m da d a n ç a clássica e m o d e r n a , e n e m t a m p o u c o com os m é t o d o s de t r a b a l h o c o r p o r a l das h o j e t ã o e m m o d a t e r a p i a s d o c o r p o e similares. K l a u s s a c e i t a esses s i s t e m a s , e os r e s p e i t a e n q u a n t o b a s e h i s t ó r i c a e f o r m a l c a p a z de f o r n e c e r e l e - m e n t o s n a d a desprezíveis. Mas sua visão vai m u i t o m a i s além. P a r t i d á r i o a p a i x o n a d o d a l i b e r d a d e i n d i v i d u a l em t o d a s as s u a s f o r m a s , ele r e j e i t a o a s p e c t o de " c a m i s a de f o r ç a " em q u e esses s i s t e m a s se t r a n s f o r m a m q u a n d o a p l i c a d o s de m a n e i r a m a s s i f i c a d a , ou q u a n d o s ã o e n t e n d i d o s c o m o escalas de r e g r a s fixas e i m u - táveis. Nesse c o n t e x t o de l i b e r d a d e - q u e n ã o s i g n i f i c a c a o s n e m d e s o r d e m i n d i s c r i m i n a d a - a d a n ç a p a r a Klauss d e i x a de s e r uma p r o f i s s ã o , uma d i v e r s ã o , u m a g i n á s t i c a , d e i x a a t é d e s e r u m a a r t e no s e n t i d o mais r e s t r i t o d o t e r m o , p a r a s e r e n t e n d i d a e vi- v i d a c o m o um c a m i n h o de a u t o c o n h e c i m e n t o , de c o m u n h ã o c o m o m u n d o e de e x p r e s s ã o do m u n d o . Ao l a n ç a r - s e em vôos t ã o a m p l o s , p a r a os q u a i s usa a s a s de g r a n d e e n v e r g a d u r a , o a u t o r r e t o m a a visão d o s a n t i g o s , se- 12 g u n d o a q u a l o h o m e m é um m i c r o c o s m o que s i n t e t i z a em si o m a c r o c o s m o , o u n i v e r s o . N e s s a visão, as leis q u e r e g e m a g ê n e s e e a e v o l u ç ã o do u n i v e r s o s ã o e x a t a m e n t e as m e s m a s leis q u e regem a e x i s t ê n c i a h u m a n a . E t o d o esse s i s t e m a u n i v e r s a l de leis n ã o c o n h e c e , em s u a m a n i f e s t a ç ã o , a p e r m a n ê n c i a e s t á t i c a : t u d o a c o n t e c e em t e r m o s de uma p e r e n e d i n â m i c a c a r a c t e r i z a d a p e l o m o v i m e n t o . A vida, o m u n d o e o h o m e m m a n i f e s t a m - s e a t r a v é s d o m o - - v i m e n t o . D a n ç a r é m o v e r - s e com r i t m o , m e l o d i a e h a r m o n i a . P o r t a l r a z ã o , n a s m e t a f í s i c a s o r i e n t a i s , os d e u s e s r e s p o n s á v e i s p e l a c r i a ç ã o d o m u n d o s ã o g e r a l m e n t e a p r e s e n t a d o s c o m o os " S e n h o r e s d a D a n ç a " . E s t e é, p o r e x e m p l o , o c a s o de S h i v a N a - t a r a j a , o " S e n h o r d a D a n ç a ' ' , deus i n d i a n o d a c r i a ç ã o . N o m i t o d a c r i a ç ã o d o m u n d o p o r S h i v a N a t a r a j a , no p r i n - · c í p i o o u n i v e r s o e r a c o n s t i t u í d o de s u b s t â n c i a i n e r t e . C a n s a d o de s u a i m o b i l i d a d e , B r a m a , o A b s o l u t o , e m a n a de si m e s m o o d e u s S h i v a N a t a r a j a , que j á s u r g e d a n ç a n d o . D o c o r p o de S h i v a em m o v i m e n t o e m a n a m o n d a s s o n o r a s , v i b r a ç õ e s e e n e r g i a s que vi- vificam a m a t é r i a i n e r t e . Assim s ã o c r i a d a s as i n f i n i t a s f o r m a s d o m u n d o m a n i f e s t a d o . C a d a u m a dessas f o r m a s , p o r s u a vez, p a s s a a d a n ç a r e a v i b r a r d e n t r o d o s m e s m o s p a d r õ e s de r i t m o s , m e l o d i a s e h a r m o n i a s d a d a n ç a o r i g i n a l de Shiva. E , p o r t a n t o , e m si m e s m a s d e p o s i t á r i a s essenciais de Shiva, t o d a s as f o r m a s d a c r i a ç ã o n a t u r a l s ã o t a m b é m , p e l o m e n o s em p o t e n c i a l , c r i a d o - ras. N i s s o i n c l u i - s e o h o m e m , c r i a ç ã o n a t u r a l e c r i a d o r p o t e n c i a l . E s t a mesma i d é i a d o h o m e m e d o m u n d o s u r g i n d o e evo- l u i n d o n o e t e rn o c o n t e x t o de u m a d a n ç a c ó s m i c a q u e n ã o t e m c o m e ç o e nem fim t a l v e z s e j a a c h a v e ú l t i m a p a r a a c o m p r e e n s ã o d a p r o p o s t a d e K l a u s s V i a n n a . P a r a o b a i l a r i n o , e s t e seu l i v r o e n s i n a que a d a n ç a , a m a i s a n t i g a de t o d a s as f o r m a s de a r t e , é· u m a o p ç ã o t o t a l d e v i d a . E n s i n a q u e a n t e s de e x p r i m i r n a m a t é r i a a s u a e x p e r i ê n c i a e x i s t e n c i a l , o h o m e m a t r a d u z c o m a a j u d a d o seu p r ó p r i o c o r p o . A l e g r i a , d o r , a m o r , t e r r o r , n a s c i - m e n t o , m o r t e , t u d o , p a r a o v e r d a d e i r o b a i l a r i n o , é m o t i v o e o c a - · 13 sião de d a n ç a r . A t r a v é s dos m o v i m e n t o s da d a n ç a a p r o f u n d a - s e c a d a e x p e r i ê n c i a e realiza-se o milagre da c o m u n i c a ç ã o . P a r a os n ã o profissionais, Klauss r e s e r v a u m a r e v e l a ç ã o s u b s t a n c i a l : a de que todos somos, sem exceção, b a i l a r i n o s da vida. T o d o s nos m o v e n d o p a r a um ú n i c o e f u n d a m e n t a l o b j e t i v o : o a u t o c o n h e c i m e n t o . P e l a d a n ç a o homem m a n i f e s t a os movimentos d o seu m u n d o i n t e r i o r , t o r n a n d o - o s mais conscientes p a r a si mesmo e p a r a o e s p e c t a d o r ; pela d a n ç a ele reage ao m u n d o e x t e r i o r e t e n t a a p r e e n d e r os fenômenos do universo. Nessa t e n t a t i v a , ele se a p r o x i m a c a d a vez m a i s de seu Ser m a i s p r o f u n d o . Ou, f a z e n d o de Klauss V i a n n a as p a l a v r a s de M a r i a - G a b r i e l e Wosien em seu livro A dança sagrada, " d a mesma f o r m a que a c r i a ç ã o e s c o n d e o C r i a d o r , o i n v ó l u c r o fí,sico do homem e s c o n d e a sua e s p i r i t u a l i d a d e . D a n ç a n d o , o homem t r a n s c e n d e a f r a g m e n t a ç ã o , esse espelho p a r t i d o cujos p e d a ç o s · r e p r e s e n t a m as p a r t e s d i s p e r - sas d o t o d o . E n q u a n t o d a n ç a , ele p e r c e b e n o v a m e n t e q u e é u n o com . s e u p r ó p r i o E u e com o m u n d o exterior. Q u a n d o a t i n g e tal nível de e x p e r i ê n c i a p r o f u n d a , o homem d e s c o b r e o s e n t i d o da t o t a l i d a d e da v i d a " . Luis P e l l e g r i n i 1 4 A vida I Belo Horizonte, anos 30 Não me enquadro em nada que foi escrito a respeito do corpo. Meu trabalho também é assim: não se enquadra em ró- tulos. Desde o princípio. Eu sempre fui mais intuitivo do que estudioso. A distância e a observação foram os pontos básicos de toda a minha vida. Desde pequeno. Observava a família, como se não pertencesse àquela comunidade. Observei a morte do meu pai e de minha mãe. Não as vivenc1e1, porque nunca cheguei perto deles. Nem eles de mim. Eu era muito só, o pa- tinho feio, aquele que faz tudo errado. E esse ficar só me deu um conhecimento muito grande das pessoas, eu me afastava para me aproximar. Vivia num mundo que só existia na minha ca- beça: queria mais observar do que participar. A brincadeira de ficar horas com os olhos fechados. A comunicação com minha avó, que também observava. Alemã, minha avó era a única pessoa da casa em quem sentia força, que me conhecia, sabia de mim. Nela, o primeiro corpo de mulher. O corpo: castigado desde o princípio. Massacrado na escola. O corpo negado em tudo. Só o reino da fantasia, do faz-de-conta. Horas no galinheiro, brin- cando com as aves. Sabia o nome de todas. Também com os cachorros do pai, caçador. Com os humanos, não: distanciamento, medo. Observações. Horas observando os pés. Os meus e os dos outros. As marcas que deixavam na areia ou no cimento, quando saíam da piscina. O joelho foi o mais difícil: quase sem- 17 pre o lado escondido das pessoas. As costas, comprimento dos braços, o jeito da cabeça. A expressão, olhos, boca, nariz. As mãos. Abrir a mão para apanhar. Lembrança da dor. A casa: não só grande. Enorme. Sempre fechada. Duas crianças, eu e meu irmão. E quatro irmãs mais velhas, lindíssimas, do primeiro casamento do meu pai. Meu pai era médico: um dos quartos da casa era o laboratório, com um esqueleto e um coração de ma- deira, que eu adorava abrir e fechar. A casa: dividida como as pessoas que a habitavam. Quartos dos pais, das irmãs. Eu co- nhecia cada pedaço do assoalho, cada canto das salas e quartos. As camas, engraçadas: conversava com cada uma. Menos a grande, de casal. A piscina, cheia, me amedrontava. Mas o quin- tal era todo meu. A árvore preferida, onde escrevi meu nome, pequeno e escondido, para ninguém roubar. O gosto dos tomates na horta, os verdes e os vermelhos. Em meio a tudo isso, a descoberta do nu. O, jardineiro que trabalhava na casa. Às vezes ele tirava a camisa. Só no quintal, no meu mundo. Levei muito tempo só olhando. Um dia cheguei perto e perguntei. A desco- berta dos pêlos do corpo: pedi para passar as mãos. Deixou que tocasse. Agora, além das árvores, tinha o corpo do jardi- neiro para explorar. Pedia para que girasse os braços, levantasse as pernas. Achava engraçado o movimento dos músculos. Me excitava e dava euforia ao mesmo tempo. Mandava ele correr, pular, fechar os olhos e me procur~r. Era o meu primeiro e mais interessante brinquedo. Até o dia em que a empregada viu, contou para os meus pais e meu primeiro aluno foi posto na rua. Antes, outro brinquedo: um ônibus vermelho, cheio de bonecos, colados ao banco com goma arábica e vestidos pelo tricô da avó. Tirava a roupa deles quando estava só. Procurava saber o que havia por baixo. Só a mim não olhava: tomava banho de olhos fe- chados. Dizia que por causa do sabão. E me cobria com uma toalha cada vez que fazia xixi ou cocô. Se me perguntavam o que seria quando crescesse respondia: "vou ser papa". Nada de engenheiro, médico, advogado. Papa: era uma coisa que pairava 18 acima, uma posição etérea. Com um espaço todo seu. No corpo da avó, com quem dormia, só havia os seios: caídos, feios. Prim-eiro corpo de mulher. Um dia, ao entrar de repente no quarto, ela:.trocava as calças de baixo: achei engraçado e quis pegar nos pêlos. Tapa na mão. O primeiro. O segundo na escola: aos sete anos, procurava retribuir uma brincadeira que uma co- lega fazia com os dedos na minha coxa. De novo o castigo, o afastamento: era um monstro. Ficar no fundo da sala, sozinho, sem conversar com ninguém. Pela primeira vez, o perigo do corpo. Não tinha corpo: vivia o corpo dos outros. Os gestos do meu pai, da mi:p.ha mãe, o jeito de andar, de pisar, o movimento das mãos. E me fascinavam os ossos do esqueleto, os encaixes. E um fato inesquecível: meu corpo se tomou ausente. Só olhava nos olhos quando me ·dirigiam a palavra. Sem isso, olhar para baixo. Conheci todo o chão de minha casa. E, com muitadifi- culdade, meu corpo começou a reaparecer: do chão, da base, dos pés. Durante anos, foi a única consciência que eu tive de mim. Na escola, só fazia o que queria: me fechava em mim. Comecei a ler o que caísse na minha mão. Octávio de Faria, Lúcio Cardoso, as poesias de Vanessa Neto, a musa de Belo Horizonte naquela época. Ganhande sempre os prêmios de dis- ciplina. Eu me sentia muito próximo a tudo isso: buscava a relação entre os livros e a minha vida. Na Tragédia burguesa, de Octávio;·. na Crônica da casa assassinada, de Lúcio. Comecei a me interessar . por teatro, a dança nunca foi meu interesse: queria o teatro.Primeiro papel nas peças de escola, sempre: apesar de tudo, não era uma criança tímida. Desde pequeno escrevia textos para teatro, inventava cenários com as cadeiras: os meninos me evitavam, não queriam brincar comigo. Fui ver o espetáculo do balé da Juventude, fiquei encantado era tudo o que eu queria na vida: dança, música, teatro. Foi o primeiro espetáculo de dança: direção de Igor Schwezoff. Primeira com- panhia a dançar pelo Brasil. E importante porque foi quem veio de fora . para dar importância à dança no Brasil. Ele formou seu 19 g r u p o de d a n ç a , com B e r t a R o s a n o v a , T a m a r a K a p e l l e r , e s a í r a m d a n ç a n d o pelo país a f o r a . Mas o p r i m e i r o b a i l a r i n o d a c o m p a - n h i a , C a r l o s Leite, resolve ficar em Belo H o r i z o n t e , c o n v i d a d o p e l o D C E . F u i lá me m a t r i c u l a r : o p r i m e i r o . E me d e c e p c i o n e i : o. q u e eu t i n h a visto no p a l c o n ã o e r a o que havia n a s a l a de aula. N a m i n h a c a b e ç a n ã o e n t r a v a muito bem a q u i l o . Mas e s t u d a v a , lia, t i n h a m u i t a c u r i o s i d a d e . N ã o t i n h a livros d e d a n ç a , a b i b l i o g r a f i a sempre muito p e q u e n a : n ã o t i n h a d i n h e i r o , r o u - b a v a os livros que e n c o n t r a v a . E duvidava: " N ã o , esse b r a ç o n ã o é assim. é assim". E u q u e r i a m o v i m e n t o s q u e n ã o fossem t ã o doloridos. P a r e i t u d o p a r a fazer dança: d e p o i s de u m a n o j á d a v a a u l a e era assistente do C a r l o s Leite. Mas n ã o e s t a v a satisfeito: p r o c u r a v a ligar os p o n t o s obscuros. Assisti a filmes de d a n ç a . D e s c o b r i que t i n h a u m a deficiência t é c n i c a m u i t o g r a n d e : uma p e r n a mais c o m p r i d a que a o u t r a . Mas n i n g u é m s a b i a disso. As aulas: o p r o f e s s o r m o s t r a v a o m o v i m e n t o e p e d i a p a r a os a l u n o s r e p e t i r e m . Se t o d o s conseguem l e v a n t a r a p e r n a e você n ã o , você está a z a r a d o . E ninguém me explicava o p o r q u ê da- quilo. Ninguém p 8 r a e x p l i c a r p o r que t i n h a que l e v a n t a r a p e r n a assim. Explicações do tipo p o r q u e t e m . N u n c a aceitei as coisas ditas dessa forma. E sofri m u i t o com isso. Mas vivia t u d o i n t e r i o r - mente: n ã o falava. P r a a p r e n d e r um d e b o u l é foram a n o s : m a s um d i a ele resolveu que eu t i n h a q u e s a i r d a l i s a b e n d o fazer. A c a b o u m i n h a s a p a t i l h a e eu Já. A s o l a do pé a c a b o u e eu lá. S o f r i a , e n j o a v a , mas n ã o desistia. Tive u m a p n e u m o n i a p a r a a p r e n d e r um passo. N ã o s a b i a p a r a que servia a q u i l o . A o mesmo tempo. a e d u c a ç ã o alemã: t i n h a q u e a c e i t a r as coisas. E o m u n d o , lá fora: j á convivia com a r t i s t a s como G u i g n a r d , q u e m o r a v a p e r t o da m i n h a casa. E r a f a s c i n a d o p o r ele, p e l a m o - d e r n i d a d e , Pelo s e r h u m a n o q u e ele era. E A m í l c a r de C a s t r o , e CeschiattL Convivia com essas pessoa-: Os desenhos: p o s a v a p a r a G u i g n a r d . A c a d a dia i n v e n t a v a uma historinha: " H o j e vou s e r o o r g u l h o s o " . E observava q u e músculo a t u a v a : a r e a ç ã o mus- c u l a r a p a r t i r de uma idéia. A i n t e n ç ã o a n t e r i o r a o m o v i m e n t o . E J o t a Dângelo, J o ã o E t i e n n e Filho. F u i l e v a n d o t u d o isso p a r a 2 0 a d a n ç a . N ã o de u m a f o r m a consciente: c a o t i c a m e n t e . M a s essa e r a a m i n h a ú n i c a forma de descobrir. E M e r c i e r , em O u r o P r e t o : a r e l a ç ã o com as a r t e s p l á s t i c a s foi m u i t o forte. Mas n ã o me revoltei: p l a c i d a m e n t e b u s q u e i meu e s p a ç o , como seguir em frente. O r e s u l t a d o é q u e n ã o existo. O q u e existe é o m e u t r a b a l h o . E m i n h a s a u l a s n ã o são p a r a meus alunos: são p a r a mim. Sempre tive m u i t o m e d o de mim, da m i n h a i m a g i n a ç ã o , das idéias. Mas t e n h o u m a o b r i g a ç ã o , um c a r m a : p a s s a r esse t r a b a l h o a d i a n t e . 21 li Balé clássico: uma visão mineira No final dos anos 40 comecei a criar minhas primeiras coreografias, dançadas por mim e por minha amiga Angel, mais tarde companheira e mãe do meu filho. Esses trabalhos eram mostrados no interior mineiro, no Circuito das Águas, em hotéis e cassinos onde o jogo corria livre e havia sempre espaço para espetâculos artísticos. Como qualquer jovem bailarino, jâ me considerava o melhor do mundo - um dos melhores, pelo menos - e essa foi a forma que encontrei para me expor e ao mesmo tempo buscar uma linguagem própria. Claro que eram coisas simples, quase infantis, mas foi através desses trabalhos que comecei a descobrir meu espaço. Essas turnês duraram alguns anos, até que um dia entendi que Minas não tinha mais nada a oferecer: era tempo de seguir adiante. E, na dança clássica brasileira, só existia uma forma de buscar mais conhecimento: ir até a fonte, a russa Maria Olenewa, que vivia em São Paulo. Carlos Leite - ele próprio ex-aluno de Olenewa - jâ havia me dado o respeito pela dança, um alto nível de exigência comigo mesmo e a lição· de paciência: "Com três anos de dança você não sabe nem varrer o palco", advertia. Apesar disso, as aulas dele não eram exatamente um primor de respeito humano ou artístico: ~am brutais, com ensinamentos 22 que chegavam aos alunos através de xingamentos e varadas. E qualquer questionamento mais insistente tinha apenas uma res- posta: "Isso é segredo profissional". Em São Paulo, fiz aulas com Olenewa durante dois anos, entre 1948 e 1950, conhecendo o lado prático da dança, espe- cialmente o repertório clássico e a relação entre a arte e o mundo. Desde essa época descobri que a técnica clássica é algo muito real e que nada tem de etéreo: o misticismo do balé, se existe, está na sua corporificação. Olenewa me trouxe não apenas a técnica, mas também a necessidade de sobrevivência - não tive qualquer apoio da fa- mília ao optar pela dança - e de reflexão, uma reflexão que tem acompanhado a minha vida artística desde sempre. Foi essa observação que me levou a descobrir que aprendia mais sobre a dança com as artes plásticas. Passei a visitar museus e a observar a articulação, os músculos, o apoio dos corpos. Descobri Rafael, Da' Vinci, Modigliani e, lentamente, comecei a vislumbrar minha própria técnica. Observei, de início, a posição do dedo anular nas pinturas renascentistas e fiquei fascinado com a relação entre esses de- senhos e a postura exigida para as mãos no balé: em ambos os casos, a certeza de que o movimento parte de dentro e não pode, jamais, ser apenas forma. Vejamos: quando você aperta o dedo anular para dentro sente todo o braço reagir e é por isso que a mão tem essa postura no balé clássico. O problema é que professores e baila- rinos repetem apenas a forma e isso não leva a nada. O processo deveria ser o oposto: a forma surgir como conseqüência do trabalho. A ~erdade é que as pessoas no Brasil têm a mania de dizer que o clássico é uma técnica antianatômica, e não é assim: é a coisa mais anatômica que já foi criada na arte ocidental, é a rotação da musculatura no sentido máximo que ela pode atingir. 23 Desdee n t ã o d e s c o b r i t a m b é m que a p r e o c u p a ç ã o excessiva com a t é c n i c a é p r e j u d i c i a l , t ã o p r e j u d i c i a l q u a n t o . t e r u m a r e - l a ç ã o a f e t i v a com uma p e s s o a e n ã o l a r g á - l a n u n c a , n ã o d a r e s p a ç o , t e l e f o n a r d i a r i a m e n t e , p r o c u r a r sempre, d e p e n d e r demais: com isso, afogamos a pessoa e m a t a m o s a relação. H o j e b r i n c o dizendo que a l u n o n o t a dez é um caso s e n o , a t é sete é ótimo, é o limite. N o t a dez n ã o f u n c i o n a : é u m obsessivo, q u e r seguir as r e g r a s em d e t a l h e s e p a s s a a t e r u m a r e l a ç ã o n e u r ó t i c a com a d a n ç a . N ã o d e s c a n s a e n q u a n t o n ã o a p r e n d e um d e t e r m i n a d o p a s s o e n ã o e n t e n d e que, b u s c a n d o o u t r o s movimentos, fazendo o u t r a s coisas - na sala de a u l a o u n a rua - , o passo n a t u r a l m e n t e vai surgir, no seu t e m p o , p o r - que t u d o e s t á i n t e r l i g a d o . Sempre d i s c o r d e i da forma pela q u a l a t é c n i c a clássica chega aos b a i l a r i n o s , no Brasil. N ã o discuto a beleza e a e f i c i ê n c i a do clássico - a o c o n t r á r i o , a m o o clássico - , mas h á a l g u m a coisa que se p e r d e u na r e l a ç ã o e n t r e p r o f e s s o r e a l u n o e q u e faz d a sala de a u l a um e s p a ç o pouco saudável. A q u e s t ã o é essa: o p r o f e s s o r de balé é l i m i t a d o , e m g e r a l f r u s t r a d o p o r s e r o b r i g a d o a p a r a r de d a n ç a r cedo e assim i n c a p a z de d a r a m o r , a t e n ç ã o e i n c e n t i v o aos alunos. O p r o f e s s o r d e v e r i a s e r s e m p r e um a r t i s t a mais velho, mais sábio, com mais vivência, e que tivesse condições de c r i a r um clima de c o m p r e e n s ã o n a s a l a de a u l a . U m a s a l a de a u l a n ã o p o d e ser isso que vemos, o n d e a dis- c i p l i n a tem algo de m i l i t a r , o n d e n ã o se p e r g u n t a , n ã o se ques- t i o n a , n ã o se discute, n ã o se conversa. C o m isso, a t r a d i ç ã o d o b a l é se p e r d e em r e p e t i ç õ e s de formas, o n d e t o d o t r a b a l h o é feito a l e a t o r i a m e n t e . A c o m e ç a r pela p i a n i s t a , que t o c a sem a t e n - ç ã o , f u m a n d o um c i g a r r o e n q u a n t o folheia u m a revista o u se p r e o c u p a com q u e s t õ e s domésticas. E s s a d e s a t e n ç ã o passa p a r a o a l u n o , que, ao invés de e s t a r p r e s e n t e e o u v i r a música, inicia u m processo de a u t o - h i p n o s e 2 4 e, em p o u c o t e m p o , n ã o e s t á mais n a s a l a de aula: e s t á n a s nuvens, no espelho, n a s n o t a s d o p i a n o , m a s n ã o consigo mesmo. A s a l a de a u l a , dessa f o r m a , se t o r n a a p e n a s u m a a r e n a p a r a a c o m p e t i ç ã o de egos, o n d e ninguém se i n t e r e s s a p o r n i n g u é m a n ã o s e r como p a r â m e t r o p a r a a c o m p a r a ç ã o . Mas a c o m p a r a ç ã o é p e r d a de tempo: a filha de F u l a n o é e n g r a ç a d i n h a , d a n ç a c o m g r a ç a , t o c a p i a n i n h o , e n q u a n t o a filha de S i c r a n o é t í m i d a , d e s a j e i t a d a , vive c a i n d o . Crescemos t o d o s com essas i n f o r m a ç õ e s e, depois, d e s c o b r i m o s que a filha de f u l a n o se t r a n s f o r m o u n u m a m e d i o c r i d a d e e n q u a n t o a o u t r a se t o r n o u e q u i l i b r a d a e h a r m ô n i c a . Mas p a r a d e s c o b r i r isso é n e c e s s á r i a t o d a u m a vida. A sala de a u l a m a s s i f i c a d a t i r a a i n d i v i d u a l i d a d e do a l u n o e, se as pessoas n ã o se conhecem nem possuem i n d i v i d u a l i d a d e , n ã o h á como p a r t i c i p a r do coletivo: o c o r p o de b a i l e tem que ser c o n s t i t u í d o p o r pessoas c o m p l e t a m e n t e diferentes, p a r a que os gestos s a i a m semelhantes: a i n t e n ç ã o é o que i m p o r t a . A d a n ç a se faz n ã o a p e n a s d a n ç a n d o , mas t a m b é m p e n - s a n d o e sentindo: d a n ç a r é e s t a r i n t e i r o . N ã o posso i g n o r a r mi- nhas emoções em u m a s a l a de a u l a , r e p r i m i r essas coisas t o d a s que t r a g o d e n t r o de mim. Mas, infelizmente, é o q u e acontece: os a l u n o s se a n e s t e s i a m a o e n t r a r em u m a s a l a de a u l a . E s e r i a difícil fugir desse sono: p a r a c o m e ç a r , ficam s e m p r e nos mesmos lugares, ouvem sempre a mesma m ú s i c a , o mesmo som d i á r i o d a voz do professor, que c o r r i g e d i a r i a m e n t e as mesmas coisas nas mesmíssimas pessoas. P r o n t o : c o m c i n c o mi- n u t o s de a u l a todo m u n d o está em t r a n s e , n i n g u é m mais se e n - c o n t r a ali. Se um e l e f a n t e p a s s a r pelo meio da s a l a n i n g u é m n o t a . Mas a v e r d a d e é que a r t i s t a n a s c e a r t i s t a ; u m p r o f e s s o r p o d e no m á x i m o l e v a r esse a r t i s t a a t é um c e r t o p o n t o . O p r o - fessor t i r a de d e n t r o d o a l u n o o q u e ele t e m p a r a dar. F i c o s e m p r e i m p r e s s i o n a d o c o m a s a b e d o r i a p o p u l a r , que e x p l i c a bem m e l h o r t u d o isso: o q u e é bom j á n a s c e feito. 25 Isso sempre achei bonito: ninguém é igual a ninguém, não existe receita para se fazer arte ou dança. O professor deve apenas aviar a receita - como se fazia antigamente -, mas essa receita é pessoal, não serve para todo mundo. Em uma sala de aula é a mesma coisa: o desnivelamento existe, e cada caso é um caso. O ritmo é sempre o mesmo, mas a aptidão é de cada um. Por isso é que posso assistir vinte vezes ao Lago dos cisnes e as vinte montagens serão completamente diferentes, apesar da mesma coreografia. Um coreógrafo, por exemplo, pode usar os gestos sensuais dos personagens, outro a frieza de Odete, ou a desatenção dela, ou sua maldade. E tudo isso modifica a mus- culatura, a interpretação dos bailarinos - se eles tiverem uma individualidade. Nós, profissionais de dança, somos um pequeno exemplo de que acontece lá fora. As leis da vida são as mesmas leis da dança, não temos como fugir disso. A inconsciência é que gera a mediocridade. O bailarino tem os mesmos problemas de um sapateiro. O resultado da inconsciência é visível nos espetáculos e na formação da mentalidade do bailarino brasileiro: ele não discute, não se interessa pelo sindicato, não luta pela classe, é desunido e alienado. E isso é ensinado a ele desde o princípio: não existe o indivíduo que faz dança entre nós, o que existe é essa entidade vaga chamada bailarino. Mas a técnica clássica não é isso, não exige isso. Através do clássico é possível organizar fisicamente as emoções e co- nhecer o corpo. É uma forma de exprimir harmonicamente essas emoções. Para isso, porém, tenho que estar com os sentidos alerta. Senão minha dança se torna pura ginástica. O gesto no balé não deve ser apenas um gesto do balé: é um gesto trabalhado por um ser humano, especialista, e que envolve não apenas a memória daquele corpo mas o corpo de 26 todos os homens. É claro que tudo isso exige uma técnica e somente o aperfeiçoamento dessa técnica vai permitir ao baila- rino chegar a essa memóriae a essa emoção comum a todos os seres humanos. É milagroso o que o corpo é capaz de fazer quando o deixamos livre - após o aprendizado técnico. Infelizmente, mais uma vez, lembremos que a realidade é outra: a técnica clássica tem buscado, antes de tudo, o ego do bailarino, do professor, do coreógrafo. E da mãe da bailarina, claro. É preciso desarmar tudo isso, para que cada um possa encontrar seu próprio movimento, sua forma pessoal. A forma, repito, é conseqüência: são os espaços internos que devem criar o movimento de cada um. Por outro lado - e contra mim mesmo -, admito que exista algo de sadomasoquista no clássico: essa busca de limite, de tentar vencer as dores físicas, tentar ir sempre além. Talvez apenas as pessoas que de alguma forma se identificam com esse sadomasoquismo tenham condições de praticar a dança clássica. E eu tenho esse componente em excesso. Entra aí uma questão cultural: o homem não é treinado para ser submisso, como nossa sociedade impõe às mulheres. Por isso reage, não se sujeita a ser xingado, humilhado, dimi- nuído numa sala de aula ou num ensaio. O homem não aceita essa situação, o que talvez explique a quantidade muito maior de mulheres no balé. 27 111 O c o m p a s s o b a i a n o E m 1 9 5 9 , eu e Angel criamos o Balé Klauss V i a n n a , em Belo H o r i z o n t e , e t r ê s anos depois o g r u p o p a r t i c i p o u d o I E n c o n - t r o de E s c o l a s de D a n ç a d o Brasil, em C u r i t i b a . Levei u m a c o r e o g r a f i a onde uma b a i l a r i n a atravessava o p a l c o v e s t i d a de s a n t a b a r r o c a . E r a u m a p r o p o s t a b e m diferente: n o festival só t i n h a cisne, e r a m o r t e de cisne, solo de cisne, vôo de cisne. C e r t a m a n h ã meu c e n ó g r a f o p e r d e u a p a c i ê n c i a : " O p r i m e i r o cisne q u e eu p e g a r t o r ç o o pescoço". Esse foi meu p r i m e i r o t r a b a l h o c o r e o g r á f i c o a d u l t o , A face lívida. Usei u m a m o d i n h a i m p e r i a l c a n t a d a p e l a M a r i a L ú c i a G o d o y e nele eu buscava a síntese de uma visão m i n e i r a da d a n ç a . A n t e s de m o n t a r o t r a b a l h o fomos t o d o s a O u r o P r e t o , a n d a m o s p e l a s ruas, pisamos descalços nas p e d r a s , e n t r a m o s nos casarões. O r e s u l t a d o foi um e s p e t á c u l o com m u i t a gente v a i a n d o , g r i t a n d o - e uns p o u c o s a p l a u d i n d o . Mas o R o l f Gelewsky viu esse t r a b a l h o e ele e L i a R o b a t t o me c o n v i d a r a m p a r a d a r a u l a s na B a h i a , n a E s c o l a de D a n ç a da U n i v e r s i d a d e F e d e r a l , em S a l v a d o r . R o l f a c h a v a que m e u t r a - b a l h o t i n h a m u i t a a f i n i d a d e com o que eles b u s c a v a m lá. R o l f e r a a l e m ã o , mal falava o p o r t u g u ê s , mas t i n h a u m a visão do q u e r e a l m e n t e interessava: a busca de um g e s t u a l , u m a d a n ç a b r a s i l e i r a . E n t ã o , aceitei: R o l f p a s s o u a s e r meu vizinho de q u a r t o n a p e n s ã o e comecei a s e r v i r de i n t é r p r e t e p a r a ele. 28 Mas logo senti a B a h i a em mim e me p e r g u n t a v a : como é q u e n ã o temos a u l a de c a p o e i r a a q u i , n a E s c o l a de D a n ç a , com t o d a a q u a l i d a d e de m o v i m e n t o que tem a c a p o e i r a ? E n t ã o , fui p r o c u r a r um p r o f e s s o r de c a p o e i r a p a r a a Escola. Sugeri ao R o l f que a c a p o e i r a fosse m a t é r i a c u r r i c u l a r , p o r q u e t i n h a s e n t i d o q u e na c a p o e i r a existia uma s e q ü ê n c i a de movimen- tos igual à técnica clássica - ou às a r t e s m a r c i a i s - , p o r q u e o c o r p o h u m a n o tem uma coerência m u i t o g r a n d e de movimentos em q u a l q u e r c u l t u r a : o a q u e c i m e n t o na c a p o e i r a t a m b é m começa pelos pés, sobe pelas p e r n a s , t r o n c o , braços, até c h e g a r aos olhos. Os olhos são i m p o r t a n t í s s i m o s p a r a um c a p o e i r i s t a . Meu t r a b a l h o s e r i a c r i a r o s e t o r de d a n ç a clássica n a univer- s i d a d e , mas isso n ã o me bastava. E u j á dava a u l a descalço, e c o n h e c i t r a b a l h o s m a r a v i l h o s o s de c a p o e i r a , c o n h e c i o mestre G a t o e foi a t r a v é s dele que a p r e n d i essa técnica. A p e s a r disso, ele n ã o podia d a r a u l a s na Escola, era p e d r e i r o , m o r a v a longe, n ã o t i n h a nem o curso p r i m á r i o - mas t i n h a d o u t o r a d o em c a p o e i r a . L e n t a m e n t e , senti q u e tudo a q u i l o p o d e r i a t e r i n f l u ê n c i a no meu t r a b a l h o e passei a u s a r os movimentos de t r o n c o , o som, a música ao vivo, o pé descalço que eu j á usava, c o n h e c e r os ossos - n ã o o nome do osso, que não leva a n a d a - , como se move c a d a osso e músculo. F u i p r o c u r a r um p r o f e s s o r de o d o n t o l o g i a , A n t o n i o B r o c h a - do, que e r a c o n s i d e r a d o o m a i o r a n a t o m i s t a da B a h i a . E l e t i n h a u m a série de esqueletos n o consultório, pelos quais n u t r i a um a m o r p r o f u n d o . T r a t a v a c a d a um p o r um nome d i f e r e n t e . Ele a c e i t o u meu convite e foi d a r a u l a de a n a t o m i a n a E s c o l a de D a n ç a . Ao mesmo t e m p o , B r o c h a d o e r a do c a n d o m b l é e um dia me levou até o t e r r e i r o da Mãe Stella. Tive m u i t a d i f i c u l d a d e p a r a e n t e n d e r , e n t r a r n a q u e l a s coisas. M a s j á c o n h e c i a C a r y b é , G e n a r o , Jorge A m a d o , t o d o s b r a n c o s e p a i s de s a n t o do c a n d o m - blé, e n t ã o t i n h a uma n o ç ã o mínima s o b r e a q u i l o tudo. 2 9 Um dia convidaram a mim e a Angel para ver as moças que iam receber o santo: é uma coisa impressionante, porque elas ficam em camarinhas, pequenos quartos trancados durante seis meses, a cabeça raspada, sem conversar ou ver ninguém, sem ter relação sexual nenhuma, comendo só aquilo que deixam no quarto. Com isso essas meninas acabam conhecendo profundamente o próprio corpo, as reações do corpo, a pessoa mais idiota acaba se conhecendo numa situação dessas. Então, era uma beleza quan- do abriam a porta e vinha aquela pessoa, era uma coisa iluminada, uma musa, linda. Durava uma noite inteira - e o caminho, o movimento, o ritmo, tudo aquilo me impressionou demais. Esse era um momento político de muita efervescência no Brasil e a Universidade entrou em greve. Eu e Rolf, sem nada para fazer, se111 aula para dar, resolvemos trabalhar, montar algu- ma coisa, e fomos para uma sala de aula. Um dia estávamos ali, ensaiando, quando as moças da Escola de Dança arrombaram a porta a pontapés e disseram que não pode~íamos ficar ali, que a Universidade estava fechada e que a coisa era para valer. Levei um susto: elas nos proibiram, simplesmente. No começo fiquei chocado, irritado, puto. Eu me dizia: "Mas esperem um pouco, sou um bailarino, um artista, não tenho nada a ver com política". Não entendia como é que aquele pessoal, aquelas meni- nas que faziam aula de dança, podiam agir daquela forma. Resolvi começar a freqüentar os encontros para entender como é que era a cabeça desses alunos, como é que atuavam nesse processo político, e logo descobri que eram pessoas muito inteligentes e interessantes, fui notando queentre elas, havia urna harmonia ali, que não existia na sala de aula. Ali existia o amor por uma causa, exatamente o que faltava em relação à dança. Minha noção de arte e de dança mudou muito a partir daí: não é só dançar, é preciso toda uma relação com o mundo à nossa volta. Não adianta se isolar em uma sala de aula, isso leva 30 a um completo distanciamento da vida, de tudo o que acontece no mundo. O ser humano que existe no bailarino tem que estar atento e receber tudo lá fora, nas ruas. É impossível dissociar vida de sala de aula. Quis fazer uma coreografia que traduzisse essas descobertas todas. Mas não queria nada folclórico, nada dessa coisa de ca- poeira e candomblé baiano visto por um mineiro: queria a música de alguém de lá mesmo, mas não conhecido, e traduzir tudo isso em movimentos meus, a partir da minha vivência. · Um dia me levaram um garoto, um compositor jovem e des- conhecido que cantou uma série de canções lindíssimas para mim, onde ele criticava toda a sociedade baiana. Senti que a música dele tinha esse lado social e político, era uma coisa natural nele. Era o Caetano. Depois de um tempo ele disse: "Olha, eu tenho uma irmã que canta" e levou a Maria Bethânia até minha casa. Quando ouvi aquela mulher cantar, num apartamento de frente para o mar, quase caí duro. Descobri que eles faziam música e Bethânia cantava da mesma forma que a gente aprende a andar, como os animais se alimentam, do jeito que a gente aprende a defecar: naturalmente. Bethânia cantava porque precisava cantar, porque era um passarinho, se não cantasse morria. Mas a dança é diferente - e só então descobri isso -, a dança é um outro processo: eles gostavam muito de mim, me mostravam suas músicas, mas isso não era suficiente para que abandonassem a liberdade que o baiano tem, nem tinham como encarar a disciplina que a dança exige. Levei um longo tempo para entender que não repudiavam a mim, mas ao processo técnico da dança, a essa forma distante, a essa didática mal-resolvida. Aí a riqueza dessa vivência: a Bahia me abriu as portas para o exterior, porque até então eu vivia apenas o meu interior. 31 F i q u e i p o r l á d o i s a n o s , a t é 1 9 6 4 , q u a n d o c h e g o u a h o r a de p a r t i r m a i s u m a vez: a U n i v e r s i d a d e n ã o t i n h a v e r b a , o p a í s e s t a v a u m c a o s , eu n ã o t i n h a m a i s c a b e ç a p a r a c r i a r n a d a . A o m e s m o t e m p o , s a b i a q u e n ã o h a v i a m a i s c o m o v o l t a r p a r a M i n a s , o q u e m e fez ir p a r a o R i o , s e m e m p r e g o e s e m c a s a o n d e m o r a r . L á c o n s e g u i s o b r e v i v e r d a n d o a u l a s de d a n ç a c l á s s i c a e m e s c o l a s d e b a i r r o - de c e r t a f o r m a , u m a v o l t a à v i d a m i n e i r a - e só a n o s d e p o i s . e m 6 8 , foi q u e s u r g i u a o p o r t u n i d a d e p a r a m e a p r o x i m a r d o t e a t r o . A ú n i c a p e s s o a q u e f a z i a c o r e o g r a f i a s p a r a t e a t r o , n o R i o - n a v e r d a d e e r a m d a n c i n h a s , os a t o r e s n ã o t i n h a m a m e n o r n o ç ã o de d a n ç a . n a q u e l a é p o c a - e r a a S a n d r a D i c k e n s . U m d i a e l a m e p e r g u n t o u se eu n ã o g o s t a r i a d e f a z e r u m a c o r e o g r a f i a n o l u g a r d e l a e m u m e s p e t á c u l o de t e a t r o , p o r q u e e s t a v a d e v i a g e m m a r - c a d a p a r a a A l e m a n h a . A c e i t e i , e isso m u d o u a m i n h a v i d a : o e s p e t á c u l o e r a A ó p e r a d o s três v i n t é n s , de B e r t h o l t B r e c h t e K u r t Weill, c o m d i r e ç ã o de J_osé R e n a t o e a t o r e s c o m o D u l c i n a , M a r í l i a P e r a e O s w a l d o L o u r e i r o e a t é u m a t o r e m c o m e ç o d e c a r r e i r a , J o s é W i l k e r . E s s e t r a b a l h o i n a u g u r o u a S a l a C e c í l i a M e i r e l l e s , n o R i o , e m 6 8 . E r a m u i t o c o m u m a c o n t e c e r e m c o i s a s a s s i m , u m d i r e t o r de t e a t r o i m a g i n a r u m a m o v i m e n t a ç ã o e m u m e s p e t á c u l o e c h a m a r a l g u é m liga_do à d a n ç a p a r a c r i a r a l g u m a coisa_ M a s e r a s e m p r e e s s a danc~nha e foi nesse s e n t i d o q u e a c e i t e i o t r a b a l h o . M a s n ã o f i q u e i n i s s o e. o u t r a vez, q u i s i r m a i s l o n g e . É c l a r o q u e os a t o r e s n ã o t i n h a m a l i n g u a g e m d a d a n ç a ; p o r isso fiz a l g u m a s m a r c a ç õ e s e o r e s u l t a d o foi t ã o d i f e r e n t e d o c o m u m q u e , p e l a p r i m e i r a vez, um c r í t i c o de t e a t r o - Y a n M i c h a l s k y , n o J o r n a l d o B r a s i l - c h a m o u a a t e n ç ã o d o p ú b l i c o p a r a a e x i s t ê n c i a de u m t r a b a l h o c o r p o r a l em um e s p e t á c u l o de t e a t r o . O r e s u l t a d o foi q u e , no a n o s e g u i n t e , J o s é C e l s o M a r t i n e z C o r r e a e F l á v i o I m p é r i o m e c h a m a r a m p a r a f a z e r R o d a V i v a , d e C h i c o B u a r q u e de H o l l a n d a . P a r t i c i p e i d o e s p e t á c u l o d e s d e o s 3 2 p r i m e i r o s t e s t e s - t u d o i s s o e n q u a n t o s o b r e v i v i a d a n d o a u l a s e m e s c o l a s e c l u b e s - e a c a d a vez o u v i n d o o J o s é C e l s o : " V a i , e x p e r i m e n t a m a i s , faz m a i s , b o t a m a i s d a n ç a " . E a c a d a e n s a i o p r o p u n h a m a i s m o v i m e n t a ç ã o p a r a os a t o r e s . E s s a foi u m a é p o c a d e e n v o l v i m e n t o t o t a l c o m o t e a t r o e os a t o r e s , t a n t o q u e m e u t r a b a l h o s e g u i n t e foi a p r i m e i r a m o n t a g e m d e N a v a l h a na c a r n e , d e P l í n i o M a r c o s , c o m d i r e ç ã o d e F a u z i A r a p , c o m T ô n i a C a r r e r o , N e l s o n X a v i e r e E m i l i a n o Q u e i r o z , t a m b é m e m 1 9 6 9 , o n d e d i r i g i o q u e c o m e ç a v a m a c h a m a r d e e x p r e s s ã o c o r p o r a l . T u d o i s s o e r a d e u m a r i q u e z a e n o r m e , p o r q u e m e u t r a b a l h o c o m os a t o r e s m o d i f i c a v a m i n h a s a u l a s c o m os b a i l a r i n o s n o d i a s e g u i n t e . A o m e s m o t e m p o , e s s a s a u l a s i n f l u e n c i a v a m a c o r e o g r a f i a q u e f a r i a p a r a o t e a t r o , m a i s t a r d e . O t e a t r o , à noite,_ m o d i f i c a v a a d a n ç a , d e d i a . E t u d o s e j u n t a v a n u m a c o i s a só. D e s d e e n t ã o o l h o p a r a a a r t e S!!m p r e c o n c e i t o s , a c h o u m a i g n o r â n c i a a t r o z o p r e c o n c e i t o c o n t r a f o r m a s a r t í s t i c a s e i n f e l i z - m e n t e a i g n o r â n c i a n ã o t e m s o l u ç ã o . É r i d í c u l o p e n s a r q u e a d a n ç a s ó s e f a z a p a r t i r d e c i n c o p o s i ç õ e s o u q u e só é v á l i d a a d a n ç a q u e n a s c e u · n a E u r o p a . E , n o - e n t a n t o , é o q u e a g e n t e vê a t é h o j e : c o r e ó g r a f o s q u e v ê m d a E u r o p a m o n t a r c o r e o g r a f i a s e s t r a n h a s a o n o s s o b a i l a r i n o , t r a b al h o s q u e c u l t u r a l m e n t e n ã o t ê m n a d a a v e r c o m a f o r m a ç ã o a r t í s t i c a e t é c n i c a d e s s e b a i l a r i n o . E n t ã o o q u e · a c o n t e c e ? O s b a i l a r i n o s n ã o s a b e m e n ã o p o d e m i n t e r p r e t a r b e m ' a q u e l e s m o v i - m e n t o s e a c a b a m f a z e n d o a p e n a s a f o r m a , s e m n a d a d e i n t e r i o r . E i s s o n ã o é d a n ç a : é g i n á s t i c a . P o r isso i n s i s t o q u e n ã o m e i m p o r t a , h o j e - e t u d o n o m e u t r a b a l h o p a r t e d a m i n h a v i v ê n c i a - q u a l a i d a d e , o t i p o d e m u s c u l a t u r a , a l t u r a o u p e s o d o b a i l a r i n o : o q u e m e i m p o r t a é a cabeça. N ã o t e n h o q u a l q u e r i d e a l i z a ç ã o a n í v e l f í s i c o s o b r e o b a i l a r i n o o u a b a i l a r i n a c o m q u e m q u e r o t r a b a l h a r . Q u e r o s ó q u e t e n h a u m a b o a c a b e ç a . P o r q u e , a i n d a q u e d i f í c i l , é p o s s í v e l 3 3 modificar um corpo. Mas mudar a mentalidade de um adulto é um trabalho quase impossível. Desde essa época, no Rio, descobri que sou um professor - filósofo da dança, como digo sempre, brincando --.:..., nem mais nem menos do que isso. Mas nunca me coloquei na 'posição de um professor distante, superior. O professor é um partéiro, ele tira do aluno o que este tem para dar. Se o aluno não tem nada, não sai nada. Mas é preciso sempre ter cuidado: é claro que o aborto existe. Muitos professores matarp o artista na sala de aula. 34 IV As pequenas mortes Em um desses clubes onde eu dava aula, no Rio, havia uma pianista que também tocava na Escola Municipal de Bailados. Ela me perguntou se eu queria dar aulas lá, mas eu tinha um certo medo, me assustava essa coisa de trabalhar em uma escola oficial. Aceitei, mas pedi para dar aula só para crianças. Então, em 68, comecei a trabalhar na escola e logo descobri uma realidade nova: os professores não conversavam entre si, não discutiam nada sobre a dança. Conversavam sobre qualquer coisa, menos sobre a dança e os problemas de uma sala de aula. Faltava uma filosofia de trabalho, uma unidade. Ao mesmo tempo, notava a arquitetura do prédio da escola: era uma coisa antiga, com uma escadaria enorme, escura. Para mim havia toda uma relação entre aquela arquitetura e a menta- lidade que vivia lá dentro. É preciso sempre notar isso, a relação entre a dança e o espaço onde se faz essa dança. E descobri as mães: mãe de bailarina é uma instituição na dança. Sempre na portaria, esperando as filhas, típicas na maneira de vestir, de sorrir, de cumprimentar os professores. Vestem-se sempre com as melhores roupas, como se fossem sair dali para o palco. Peguei exatamente a turma infantil - os professores não gostavam muito dessa aula - e, aos poucos, o trabalho foi dando 35 origem a uma relação profunda entre mim e as crianças. Bastava dar um estímulo e pronto, elas reagiam, criavam, brincavam, riam. Uma vez por mês eu propunha que os pais viessem ver e fazer as aulas com os filhos, para que vissem a espontaneidade das crianças. Mas logo descobri -que aquele convite era contra- producente: as crianças se tornavam inibidas e ficava claro que aquela relação afetuosa e companheira da sala de aula não existia em casa. Dessa forma, em pouco tempo desisti dos convites aos pais. Mas não desisti das aulas: fiquei com um mesmo grupo de meninas dos oito aos treze, quatorze anos, e a proposta foi sempre uma aula lúdica. Falava do corpo, das funções dos ossos, brincá- vamos de roda, pedia para que elas dançassem o que gostavam de dançar nas festas, lia histórias. Acreditava, nessa época, que é assim que se estimula um ser criativo. Não adianta colocar uma criança de sete anos em um Royal Ballet: este é um método desenvolvido para menininha inglesa, que tem perna comprida e bunda fina, enquanto a brasi- leira tem perna curta e bunda grande. Essas meninas, coitadas, têm que se adaptar a um método que não serve para elas. O pior é que tudo vira moda no Brasil, um pouco tempo: dá status ter um diploma do Royal Ballet. Como ter pingüim em cima da geladeira. Naquela mesma época comecei a fazer teatro profissional- mente, como coreógrafo e, mais tarde, ator - em Hoje é dia de rock, de José Vicente - e rião deixava nunca de levar essas experiências teatrais para minhas pequenas alunas, na Escola de Bailados. Aquele • era um momento de grande repressão e medo. Qual- quer grupo de três pessoas que entrasse na escola fazia a gente ficar horrorizado: era o tempo da perseguição ao teatro, aos atores, ao pensamento. Mais do que nunca entendi a diferença entre dança e teatro, a diferença entre ator e bailarino. 36 Nunca houve qualquer censura ao balé no Brasil '- a não ser no caso ridículo da transmissão pela tevê do espetáculo do Bolshói. Era como se a dança brasileira não fosse feita aqui: era uma coisa estranha, não fazia parte do país. Essa foi a fase em que acreditei não ter mais nada a ver com a dança, em não voltar mais a trabalhar com bailarinos. Minha vida passou a ser só isso: dança de manhã e à tarde, teatro à noite. E muito cigarro e uísque. Em 1972, ganhei o Moliere de Teatro e me dei um enfarte. Era como se não aceitasse o prêmio, como se me dissesse: ninguém tem o direito de me premiar. Depois disso passei a conviver com esse problema cardíaco, mas em pouco tempo estava de volta à rotina. Dois anos depois, minha turma de alunas da Escola de Bailados se formou e me chamou para ser o paraninfo. Sempre pensei que algumas coisas eu jamais faria em minha vida, e uma delas era ser paraninfo. Ainda assim, aceitei e descobri uma lenda oriental que tem tudo a ver com minha proposta técnica de dança e de postura diante da arte. Não fiz, então, um discurso de paraninfo. Apenas contei a lenda: "O imperador amarelo viajou para o Norte, além do lago Vermelho, e na montanha do país do inverno ele olhou para o sul. Ao voltar da viagem perdeu sua pérola mágica. Então o imperador enviou Clara-visão para encontrar a pérola. Mas ela não achou. Enviou Força-pensamento, mas ele também não achou. Finalmente, enviou Sem-intenção. Este encontrou. Procurar a pé- rola sem-intenção é' a chave do mistério". Com minha turma formada, em 74, me afastei da Escola de Bailados. Yan Michalsky me propôs fazer críticas de dança para o Jornal do Brasil e eu aceitei. Como introdução ao trabalho, republiquei trechos de um artigo que havia escrito anos antes, o primeiro ensaio sobre dança publicado na imprensa brasileira. 37 Escrever sobre dança, em princípio, não é um grande pro- blema: tenho um certo instinto crítico, negativista, destrutivo mesmo, e sempre senti muito mais força nesse lado do que em uma tendência criativa. Tenho umas loucuras do gênero pôr fogo em museu ou matar pessoas em pensamento e essas fantasias eram mais fortes do que as idéias de montar um espetáculo, abrir um centro cultural. Um dia fui assistir a um grupo do Rio de Janeiro, dirigido pela Dalal Achcar. Era uma montagem da Suíte quebra-nozes. Esta suíte é apresentada no mundo inteiro durante o inverno, com frio, mas o espetáculo foi montado na praça Tiradentes, no Rio, no verão, com as menininhas todas vestidas de veludo. Logicamente, não podia ser grande coisa. E escrevi o que pensava na minha crítica. Mas parece que a mãe da Dalal - sempre as mães das bailarinas - era uma pessoa muito influente no Rio. Só sei que perdi meu emprego no jornal. Coisa que não me fez mais triste. Nem mais alegre. Nessamesma época outra lição serviu para o desenvt~lvi mento do meu trabalho: Rudolf Nureyev e Margot Fonteyn vieram ao Brasil pela primeira vez e fui assistir à aula deles, no Muni- cipal do Rio. Eles começaram lentamente, tiraram o sapato e deslizaram os pés no chão, sentindo o contato com o solo, sentindo a relação com o solo, com aquele espaço onde iam dançar. Era quase uma cerimônia, lenta e cuidadosa. Só depois colocaram as sapatilhas e iniciaram um pliê bem lento. O corpo de baile, enquanto isso, já estava saltitante e pronto para entrar em cena. Confirmou-se, para mim, a importância da relação com o tempo, o tempo interior, um tempo que só artistas como Margot e Nureyev têm. ou atrizes como Fernanda Montenegro e Marília Pera. Confirmou-se também que as aulas de clássico são rápidas 38 demais, superficiais demais, e professores e bailarinos querem resultados em pouco tempo. O problema é que não se pode dar saltos em arte. Existe o dia, a noité; a semana, o mês, o ano, você não· tem como suprimir 0 tempo, não posso pular uma noite, não posso ir contra a natu- reza, a natureza do meu corpo. Não posso lutar contra algo que é muito maior do que eu. O aprendizado exige um tempo e esse te~po. ~reci~a ser consciente. É claro, no entanto, que existem as md1v1duahdades _ e 0 professor existe para reconhecer essas individualidades -, e esse tempo varia em cada um. A conclusão é a seguinte: o que você aprende rápido vai embora rápido. O que temos aos montes no Brasil é gente que faz 58 pirue- tas, ou 32 fuetés, mas faltam aqueles que dançam, que ouvem a música, que colocam intenções nos gestos, que têm um tempo e uma emoção internos. Deixei a Escola de Bailados do Municipal e parti para outra pesquisa, mais próxima dos meus interesses no teatro e na danç~: o gestual do homem carioca, patrocinado pela Funarte. Quena estudar as características desses gestos, como é que a população do Rio se move. Descobri um dado interessante: a divisão entre norte e sul no Rio não é só uma questão de túnel, de ter ou não ter praia. As crianças da zona Sul têm as pernas mais longas, as da zona Norte têm o tronco mais desenvolvido. As mulheres das· favelas ainda tinham o pescoço mais longo, a cabeça mais ereta - talvez por levarem a lata d'água na cabeça. Essa pesquisa durou todo o ano de 1975, mas nunca me preocupei em publicar nada: incor- porei, consciente ou inconscientemente, tudo o que descobri du- rante esse trabalho. Nesse mesmo ano passei a dirigir a Martins Pena, escola oficial de, teatro do Rio de Janeiro. Essa foi uma experiência 39 riqUlsstma, , p o r q u e p u d e c o l o c a r em p r á t i c a t u d o a q u i l o que estava s o n h a n d o , t o d a uma a b o r d a g e m d i d á t i c a das a r t e s cênicas. M i n h a p r i m e i r a p r o v i d ê n c i a foi a b o l i r o v e s t i b u l a r , u m teste t ã o c o m p l i c a d o e exigente que, segundo m i n h a visão, o a l u n o que conseguisse p a s s a r n ã o p r e c i s a v a mais e s t u d a r : e r a u m a t o r com- p l e t o , e s t a v a f o r m a d o em t e a t r o . Pelo m e n o s no t e a t r o a c a d ê m i c o . M i n h a p r o p o s t a e r a um c u i s o livre, onde os i n t e r e s s a d o s t e r i a m as p r i m e i r a s r e s p o s t a s p a r a suas indagações a r e s p e i t o d o t e a t r o , a nível físico, s o b r e o espaço, a h i s t ó r i a , a a c ú s t i c a , a i n t e r p r e t a ç ã o . P a r t i a , assim, do mesmo p r i n c í p i o q u e me e n c a m i - n h o u n a d a n ç a : a a r t e é antes de t u d o u m gesto de vida. N a M a r t i n s P e n a e n f r e n t e i t a m b é m a q u e s t ã o do t a l e n t o , dessa coisa vaga que c h a m a m o s t a l e n t o e que n ã o sei bem e x p l i c a r o que é. T a l e n t o t a l v e z s e j a u m a c a p a c i d a d e n a t a , u m e s t a r a b e r t o para, e n a d a mais que isso. H o j e a c r e d i t o que é m e l h o r t r a b a l h a r com gente t a l e n t o s a e t e n t a r d e s e s t r u t u r a r inclusive esses t a l e n t o s o s p o r q u e eles, mais d o que ninguém, têm t o d o um c o n c e i t o do t r a b a l h o a que se p r o p õ e m . P e r d i m u i t o t e m p o com gente sem t a l e n t o , mas h o j e me é impos- sível t r a b a l h a r com essas pessoas. P r e c i s o de pessoas que e s t e j a m a b e r t a s , j á n u m d e t e r m i n a d o p o n t o do seu a u t o c o n h e c i m e n t o artístico: assim elas o u v e m a q u i l o que você p r o p õ e e isso faz com q u e se movam. De q u a l q u e r f o r m a , n u n c a me assustei com os a r t i s t a s talentosos. T a n t o que t r a b a l h e i com alguns dos m e l h o r e s a t o r e s , atrizes, b a i l a r i n o s e b a i l a r i n a s do país. F i q u e i n a M a r t i n s P e n a a t é 78 e lQgo passei p a r a o I n e a r t e , I n s t i t u t o E s t a d u a l das Escolas de A r t e do R i o de J a n e i r o , o n d e t a m b é m fiquei p o r dois anos, a t é a m u d a n ç a de governo. A l i á s , a a r t e no B r a s i l e s t á ' sempre t e n d o seu c a m i n h o i n t e r r o m p i d o pelas m u d a n ç a s políticas. E m 1 9 7 7 , dirigi i n t e i r a m e n t e meu p r i m e i r o e s p e t á c u l o de t e a t r o : O e x e r c í c i o , de Lewis J o h n C a r l i n o , com M a r í l i a P e r a e 4 0 G r a c i n d o J ú n i o r , no R i o , com o q u a l g a n h e i o P r ê m i o Mam- b e m b e (dessa vez n ã o me deu u m e n f a r t e ) . M a r í l i a levou t o d o s os prêmios como atriz. Mas essa m i n h a r e l a ç ã o com o t e a t r o t a m b é m é complexa: fiz vários e s p e t á c u l o s mas só dirigi dois, s e n d o q u e e n t r e 1977 e 1989 só p a r t i c i p e i deste E x e r c í c i o e de M ã o na l u v a , a m b o s c o m m u i t o sucesso de c r í t i c a e de público. N ã o que eu n ã o quisesse t r a b a l h a r c o m t e a t r o o u q u e tivesse a b a n d o n a d o o palco: eu é que fui a b a n d o n a d o . Ou m e l h o r : é quase u m a p o s t u r a m i n h a , u m a p r e m i s s a que c o l o q u e i p a r a mim. N ã o busco n a d a , n ã o b a t o na p o r t a de d i r e t o r o u p r o d u t o r n e n h u m . S e n ã o me c h a m a r e m a c a b o n ã o fazendo n a d a . Mas é c l a r o que, no fundo, q u e r o t r a b a l h a r c o m espetáculos. P a r a mim ficou c l a r o que, n o t e a t r o , n a m o n t a g e m de um t r a b a l h o , as coisas s ã o b e m mais objetivas, sei m e l h o r o q u e quero. N a a u l a de d a n ç a s o u mais um mágico, u m p r e s t i d i g i t a d o r , e t e n h o u m c a m i n h o p r ó p r i o . T a n t o que n u n c a fui assistente de c o r e ó g r a f o , n u n c a p a r t i c i p e i da m o n t a g e m de u m a c o r e o g r a f i a . M e u processo n a d a n ç a é muito p a r t i c u l a r , a p a r t i r d a s m i n h a s vivências. No final dos a n o s 7 0 descubro q u e e s t a v a mais u m a vez insatisfeito: e r a um a d m i n i s t r a d o r no I n e a r t e , n ã o h a v i a t e m p o p a r a c r i a r n a d a . E nessa h o r a me d á um d e s â n i m o t o t a l , começo a fugir das pessoas e dos compromissos, b e b o demais. E n t ã o de r e p e n t e fugi de tudo: do R i o , d o c a s a m e n t o , do e m p r e g o , das r e s p o n s a b i l i d a d e s . F i z t o d o s os r o m p i m e n t o s que a c h a v a necessários n aq u e l a h o r a . F u g i p a r a São P a u l o , sem q u a l - q u e r p e r s p e c t i v a de t r a b a l h o , sem p r o j e t o s , sem c a s a , sem n a d a . 4 1 v O e t e r n o · r e c o m e ç o A m u d a n ç a p a r a São P a u l o t i n h a um f a t o r p r o f i s s i o n a l , p o r q u e eu j á d e r a um c u r s o n a a c a d e m i a do I v a l d o B e r t a z z o e sentia c e r t a a f i n i d a d e com a cidade. A o mesmo t e m p o , estava sem m u i t a s a í d a n o R i o , a d a n ç a p r a t i c a m e n t e n ã o existia mais. J u n t a n d o t u d o isso com as c i r c u n s t â n c i a s pessoais e afetivas, m i n h a i d a p a r a S ã o P a u l o foi um p o u c o de fuga e de b u s c a - c o m o p a r e c e s e r em t o d o s os casos .. O i n í c i o , como s e m p r e , foi c o m p l i c a d o em t e r m o s de s o b r e - vivência, m a s a L a i a D o h e i n z e l i n me p r o p ô s d a r aulas n a a c a d e m i a dela e aos p o u c o s fui me e n t e n d e n d o com a cidade. D e s c o b r i , p o r exemplo, q u e São P a u l o é mais solta do que o R i o , o R i o tem u m a coisa de superfície, de a p a r ê n c i a , de beleza e x t e r n a q u e d á p o u c o espaço p a r a relações mais p r o f u n d a s . A o mesmo t e m p o , eu j á e r a mais ou menos c o n h e c i d o n o m u n d o da d a n ç a e do t e a t r o em São P a u l o , h a v i a ganho o p r ê m i o de m e l h o r c o r e ó g r a f o p e l a m o n t a g e m c a r i o c a de O a r q u i t e t o e o i m p e r a d o r da A s s í r i a , em 1 9 6 8 ; p r ê m i o c o n c e d i d o pela A P C A , A s s o c i a ç ã o P a u l i s t a de C r í t i c o s de A r t e . N i n g u é m me avisou, aliás, s o b r e esse prêmio: eu só s o u b e dele doze anos depois, q u a n d o m u d e i p a r a São P a u l o . E m 1 9 8 1 , L a i a e seu g r u p o m o n t a r a m Clara C r o c o d i l o a p a r t i r das músicas de A r r i g o B a r n a b é e desde e n t ã o surge u m a 4 2 r e l a ç ã o m u i t o a f e t u o s a e n t r e nós. S e m p r e n o s c o m p r o m e t e m o s a c r i a r um espetáculo j u n t o s , mas esse t r a b a l h o n ã o sai. E talvez n ã o s a i a nunca. N a q u e l e mesmo a n o , M á r i o C h a m i e - e n t ã o s e c r e t á r i o de C u l t u r a d a cidade de São P a u l o - me c h a m o u p a r a d i r i g i r a E s c o l a s de Bailados do Municipal. Mais uma vez lá ia eu t r a b a l h a r com o E s t a d o . Dessa vez s u b s t i t u i n d o A d d y A d d o r , que b r i g a r a com professores, mães e p a i s p o r c a u s a de i n t e r f e r ê n c i a s de t o d o g ê n e r o em seu t r a b a l h o . É c u r i o s o n o t a r que sou s e m p r e l e m b r a d o nessas h o r a s , q u a n d o a b o m b a j á e x p l o d i u , q u a n d o os p r o b l e m a s j á c h e g a r a m a um p o n t o m u i t o a v a n ç a d o . Aí o Klauss é l e m b r a d o , p a r a colo- c a r um p o u c o de o r d e m . E n t r e i e logo n a p r i m e i r a r e u n i ã o senti o que iria e n f r e n t a r : a escola p a u l i s t a n ã o e r a nem p a r e c i d a com a c a r i o c a . E r a pior, m u i t o pior. P o r mais que a E s c o l a de B a i l a d o s do R i o tivesse seus ranços (os professores davam aulas p a r a o g r u p o profissional), havia · u m a ligação m í n i m a e n t r e os dois g r u p o s - a E s c o l a e o C o r p o de Baile - , coisa que não existia em a b s o l u t o em São P a u l o . P a r a c o m e ç a r , o p r é d i o da E s c o l a de B a i l a d o s p a u l i s t a n a ficava s e p a r a d o dos o u t r o s grupos, e m um local h o r r í v e l , d e b a i x o do v i a d u t o do Chá. Os professores, p o r o u t r o lado, n ã o m o s t r a v a m interesse em m o d i f i c a r n a d a , em a p r e n d e r n a d a . Mais do que n u n c a , ali senti que os cursos oficiais de balé n ã o levam a n a d a , as E s c o l a s de B a i l a d o s p o d e m e devem fechar p o r q u e é imposs:vel a p r e n d e r a l g u m a coisa s o b r e d a n ç a em suas aulas. Esses cursos g e r a l m e n t e são e n t r e g u e s a pessoas q u e a t é têm um c e r t o t a l e n t o , mas que n ã o conseguem fazer n a d a de c r i a t i v o devido ao c u r r í c u l o , aos p r o g r a m a s que n ã o p o d e m s e r a l t e r a d o s . Os p r o f e s s o r e s são todos formados p o r u m a t é c n i c a e u m a visão antigas da a r t e e estão lá e s p e r a n d o a a p o s e n t a d o r i a . U m a a p o s e n t a d o r i a , como se sabe, ridícula. 4 3 P o r t u d o isso, não há q u a l q u e r interesse p o r p a r t e dos pro- fessores em m o d i f i c a r seja o que for, e não falo a q u i especifica- mente da E s c o l a de Bailados de São P a u l o ou da do R i o , que conheci bem. A c r e d i t o que esse seja um fenômeno de t o d a escola oficial de d a n ç a , n o Brasil. · R e a f i r m o que essas escolas são inúteis p o r q u e seus q u a d r o s são f o r m a d o s p o r professores que têm uma m e n t a l i d a d e antiga, u l t r a p a s s a d a , uma visão c o n s e r v a d o r a d a árte. E são e x a t a m e n t e essas pessoas que formam crianças e jovens, que saem dessas escolas j á i n t e i r a m e n t e m a l f o r m a d a s e d e s i n f o r m a d a s em r e l a ç ã o à dança. A o invés de escolas oficiais de dança, deveriam ser c r i a d o s centros de reciclagem p a r a quem quisesse ser professor, p a r a que estes pudessem a c o m p a n h a r m e l h o r o que existe de mais m o d e r n o n a d i d á t i c a ou n a técnica da d a n ç a . Basta l e m b r a r que t o d o a l u n o de E s c o l a de Bailados, se tiver d i n h e i r o , e s t u d a t a m b é m em escolas p a r t i c u l a r e s , p o r q u e só 0 ensin<:J da escola oficial não basta. E m São P a u l o , p o r exemplo, e r a a mesma a u l a o ano i n t e i r o , a a u l a que o p r o f e s s o r d á :ao p r i m e i r o d i a é e x a t a m e n t e a mesma no último dia Não são mais a r t i s t a s , p o r t a n t o : são funcionários públicos da dança. As dificuldades são a b s u r d a s . Os professores ou e s t ã o prestes a se a p o s e n t a r , e n c e r r a r a c a r r e i r a , ou não se a p o s e n t a m p o r q u e n ã o têm mais n a d a a fazer. A o mesmo tempo, estão a c o s t u m a d o s com as m u d a n ç a s de d i r e ç ã o n a s escolas, diretores que e n t r a m cheios de p r o j e t o s n u n c a realizados. Assim, você p r o p õ e idéias e p l a n o s d u r a n t e as reuniões e a p a r e n t e m e n t e eles até aceitam, sequer discutem suas p r o p o s t a s . Mas, ao s a i r dali, simplesmente ignoram o que você disse e t u d o c o n t i n u a n a mesma. Uma escola nesses moldes mata a criatividade, a individuali- d a d e de q u a l q u e r a r t i s t a ou b a i l a r i n o . N a Escola de Bailados de São P a u l o , o a l u n o só ia p a r a o· palco depois de oito a n o s de aulas - e a d a n ç a só se a p r e n d e no palco. 4 4 E r a m 1 2 0 0 alunas, a p a r t i r dos sete anos, t o d a s elas meni- n i n h a s a c o s t u m a d a s a s o n h a r com a d a n ç a , com a M á r c i a , com a M a r g o t , com a A n a B o t a f o g o , e de r e p e n t e e n t r a m n u m a sala de a u l a e as o b r i g a m a a g a r r a r um p e d a ç o de p a u , a b r i
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