Buscar

224239237 A Danca Klauss Vianna

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 3, do total de 72 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 6, do total de 72 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 9, do total de 72 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Prévia do material em texto

A p a j x o n a d o p e l a d a n ·a e p Ja p o i b i l i u d e 
t:>xpressiva do m o v i m e n t o , o b a i l a r i n o , o r e q g r a f o 
e ] J r o f e s o r K J a u . s V i a n n a a p r e s e n t a n e t e 1' . r o o 
1·e u J t a d o d e u m t r a b a l h o d e ob e r v a ç ã o , J e r i -
m e n t a ç ã.o, e s t u d o e r e f l e x ã o s o b r e o c o r p o h h l a n o 
P u a i m p li c a ç õ e s a n a t ô m · · a , f u n c i o n a i s }J ·ico l ' -
o·i · a · a f e t i v a s e e s p i r i t u a i . . 
· f i n a d o com a f i l o of1a d o · g r a n d e ·· r • n o v a -
dol'e::; d a d a n ç a c o n t e m p o r â n e a ( P i n a B a ch e 
K a z u o O h n o ) , e n i n a q u e a n t e d e e x p r i m i T 1 a ma-
t é r i a a u a e x p e r i ê n c i a e x i t e n c i a l , o h o m e n i a t r a -
d u z com a a j u d a d o . e u p r ó p r i o · o r p o : lm ca 
do a u t o · o n h e i m e n t o , t o d o , ::;em 
b a i la r i n o s d a v i d a . 
... 
. C h a m . 9 2 7 . 9 2 8 V61 7 d 
utor : Vianna , Klaus !.. 
ítuJo : A dança . 
111111 1111 1111111 
0 0 0 6 1 8 4 3 
S U B I M G - E m p 
111~ o de Carvalh o 
A D A N Ç A 
K L A U S S V I A N N A 
!!ID c o l a b o r a ç ã o com 
M a r c o A n t o n i o de C a r v a l h o 
D a d o s d e C a t a l o g a ç ã o n a P u b l i c a ç ã o ( C I P ) I n t e r n a c i o n a l 
( C â m a r a B r a s i l e i r a d o L i v r o , SP, B r a s i l ) 
V i a n n a , Klauss. 
A d a n ç a I Klauss V i a n n a e M a r c o A n t o n i o d e C a r v a l h o . 
- São P a u l o : S i c i l i a n o , 1990. 
1. A u t o p e r c e p ç ã o 2. B a l é ( D a n ç a ) 3. E s p í r i t o e c o r p o 
4. Klauss, V i a n n a I . C a r v a l h o , M a r c o A n t o n i o d e , 1
9 5 0 -
11. T í t u l o . C D D - 9 2 7 . 9 2 8 0 9 8 1 
- 1 2 8 
- 1 5 2 
9 0 - 1 3 0 7 - 7 9 2 . 8 2 
í n d i c e s p a r a c a t á l o g o s i s t e m á t i c o : 
1. B a i l a r i n o s b r a s i l e i r o s : B i o g r a f i a 9 2 7 . 9 2 8 0 9 8 1 
2. B a l é : D a n ç a 7 9 2 . 8 2 
3. B a l é : D a n ç a : T é c n i c a 7 9 2 . 8 2 
4. B r a s i l : B a i l a r i n o s : B i o g r a f i a 9 2 7 . 9 2 8 0 9 8 1 
5. C o r p o e e s p í r i t o : M e t a f í s i c a : F i l o s o f i a 1 2 8 
6. P e r c e p ç ã o c o r p o r a l : P s i c o l o g i a f i s i o l ó g i c a 1 5 2 
© 1 9 9 0 b y Klauss V i a n n a e M a r c o A n t o n i o d e C a r v a l h o 
D i r e i t o s e x c l u s i v o s p a r a a l í n g u a p o r t u g u e s a c e d i d o s à 
A g ê n c i a S i c i l i a n o d e L i v r o s , J o r n a i s e R e v i s t a s L t d a . 
AI. D i n o B u e n o , 4 9 2 - C E P 0 1 2 1 7 - S ã o P a u l o - B
r a s i l 
C a p a : P i n k W a i n e r 
E d i ç õ e s S i c i l i a n o , 1 9 9 0 
I S B N : 8 5 - 2 6 7 - 0 3 0 0 - 5 . 
P ' r a vocês: A n g e l , R a i n e r , N e i d e e T a i n á . 
A g r a d e c i m e n t o s : F u n d a ç ã o V i t a e 
C o n t e ú d o 
A n t e s de m a i s n a d a . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 
. . . . . . .
 . . . . 
9 
I n t r o d u ç ã o 
11 
A V I D A 
I. B e l o H o r i z o n t e , a n o s 3 0 . . . . . . . . . . . . . 
. . . . . . .
 . 17 
l i . 
I I I . 
I V . 
v. 
V I . 
V I I . 
B a l é c l á s s i c o : u m a v i s ã o m i n e i r a . . . . . . . . . . .
. . . . 
O c o m p a s s o b a i a n o . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . 
As p e q u e n a s m o r t e s . . . . . . . . . . . . . . . . . .
 
O e t e r n o r e c o m e ç o . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . 
E s t a r n o m u n d o . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . 
P e l a c r i a ç ã o d e u m b a l é n a c i o n a l 
A T É C N I C A 
2 2 
2 8 
35 
4 2 
5 4 
6 8 
I . A h a r m ô n i c a i n c o e r ê n c i a . . . . . . . . . . . . .
 . . . . . . 
. . 77 
I l . A o r i t m o d o U n i v e r s o . . . . . . . . . . . . . . .
 . . . . . . 
. . 8 2 
I I I . F u n ç ã o e f o r m a . . . . . . . . . . . . . . . . . . 
. . . . . . .
 . . . 
8 9 
I V . A p r e n d i z a d o e e n e r g i a - n o ç õ e s . . . . .
 . . . . . . 
. . . 9 7 
V. P e r c e p ç ã o c o r p o r a l a p a r t i r de m o v i m e n t o
s b á s i c o s . 1 0 8 
V I . N a s a l a de a u l a . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
 . . . . . . 
. . . 1 2 0 
V I I . M a g i a e t é c n i c a . . . . . . . . . . . . . . . . . .
 . . . . . . 
. . . . 1 3 2 
A V I S Ã O D O O U T R O 
K l a u s s : e d u c a n d o os s e n t i d o s . . . . . . . . . . . .
 . . . . . . 
. . . . 139 
7 
E s s e t e x t o foi c n a d o a p a r t i r de e n t r e v i s t a s de A n a F r a n -
c i s c a P o n z i o , Luis P e l l e g r i n i e M a r c o A n t o n i o de C a r v a l h o com 
K l a u s s V i a n n a . 
A n t e s d e ma1s n a d a 
Q u a n d o me a p a i x o n e i pela d a n ç a e p e l a s p o s s i b i l i d a d e s 
e x p r e s s i v a s do m o v i m e n t o , eu e r a quase um a d o l e s c e n t e . Ao 
longo dessa l i g a ç ã o , que j á d u r a mais de q u a r e n t a a n o s , p r o -
c u r e i p e r c e b e r e q u e s t i o n a r os gestos e m o v i m e n t o s h u m a n o s 
em s u a p r o f u n d i d a d e - sempre o r i e n t a d o p o r m i n h a s i n q u i e -
t a ç õ e s , em p a r t e p r o v o c a d a s pelas i n ú m e r a s l a c u n a s que um 
b a i l a r i n o b r a s i l e i r o e n f r e n t a em sua f o r m a ç ã o . Mas n ã o q u e r o 
a q u i d e m o n s t r a r um m é t o d o p r o n t o e a c a b a d o . S e m e l h a n t e à s 
i n f i n i t a s d e s c o b e r t a s q u e a vida nos p r o p o r c i o n a , um p r o c e s s o 
d i d á t i c o e c r i a t i v o é inesgotáveL P o r isso, em vez de c o n d u z i r 
a d a p t a ç õ e s a m a n e i r a s de d a n ç a r ou se m o v i m e n t a r que me 
a g r a d a m ou com as q u a i s me i d e n t i f i c o , p r e f i r o a p r e s e n t a r in-
f o r m a ç õ e s e e s t i m u l a r as c o n t r i b u i ç õ e s i n d i v i d u a i s . É o q u e p r e -
t e n d o a p a r t i r das reflexões - e d ú v i d a s - c o n t i d a s n e s t e livro. 
Q u e , e s p e r o , n ã o b u s q u e nem e s t a b e l e ç a c e r t e z a s , mas d e s p e r t e 
o d e s e j o p e r m a n e n t e de i n v e s t i g a ç ã o p e r a n t e a d a n ç a e a a r t e 
- que, p a r a mim, se c o n f u n d e m c o m a vida. 
K l a u s s V i a n n a 
I n t r o d u ç ã o 
E s t e é um livro de V i d a , e n ã o a p e n a s de d a n ç a . É p r o -
d u t o a c a b a d o de um t r a b a l h o de o b s e r v a ç ã o , e x p e r i m e n t a ç ã o , 
e s t u d o e r e f l e x ã o s o b r e o c o r p o h u m a n o e s u a s i m p l i c a ç õ e s a n a -
t ô m i c a s , f u n c i o n a i s , e m o c i o n a i s , p s i c o l ó g i c a s , a f e t i v a s e e s p i r i -
t u a i s . T o d a essa m a s s a de c o n h e c i m e n t o c u s t o u a o a u t o r , K l a u s s 
V i a n n a , n ã o a p e n a s as m u i t a s h o r a s p a s s a d a s n a s s a l a s de a u l a , 
c o m o a l u n o e como p r o f e s s o r , eo t e m p o e m p r e g a d o n o s seus 
e s t u d o s t e ó r i c o s : o m a t e r i a l aqui c o n t i d o , a l é m d e t u d o isso, re-
flete a p r ó p r i a e x p e r i ê n c i a e x i s t e n c i a l de K l a u s s , d e s d e os p r i -
m e i r o s a n o s de vida, a t é os t e m p o s d a s u a m a t u r i d a d e c o n s o -
l i d a d a . 
A o b r a d i v i d e - s e em d u a s p a r t e s p r i n c i p a i s . A p r i m e i r a , de 
c u n h o p r e d o m i n a n t e m e n t e a u t o b i o g r á f i c o , p o d e s e r l i d a c o m o um 
r e l a t o , uma r e p o r t a g e m , e, em a l g u m a s p a s s a g e n s , a t é m e s m o 
c o m o r o m a n c e . R e t r a t a a t r a j e t ó r i a e x e m p l a r de u m a i n a t a vo-
c a ç ã o p a r a a d a n ç a , s u r g i d a no B r a s i l dos a n o s 3 0 , e q u e se 
e s t e n d e u , sem ~nterrupção, a t é o p r e s e n t e m o m e n t o , c o n f u n d i n -
do-se com a p r ó p r i a h i s t ó r i a da d a n ç a n o B r a s i l no p e r í o d o . 
O r e l a t o é de g r a n d e u t i l i d a d e n ã o a p e n a s p a r a os p r o f i s -
s i o n a i s da d a n ç a , m a s t a m b é m p a r a t o d o s a q u e l e s q u e p r e t e n d e m 
d e s e m p e n h a r , n a vida, a l g u m a a t i v i d a d e c r i a t i v a , s e j a n a á r e a d a s 
a r t e s , c o m o na da c i ê n c i a , da f i l o s o f i a , o u da r e l i g i ã o . A o r e -
l a t a r o seu c a m i n h o pessoal no m u n d o , K l a u s s V i a n n a p a s s a u m a 
lição f u n d a m e n t a l : a c r i a ç ã o h u m a n a , n ã o i m p o r t a q u a l s e j a ela, n ã o 
p o d e p r e s c i n d i r da v i v ê n c i a a t e n t a , h o n e s t a e p a c i e n t e d a r e a l i -
11 
d a d e . E a r e a l i d a d e c o m e ç a n o c o t i d i a n o , n a s c o i s a s m a i s sim-
ples e a p a r e n t e m e n t e sem i m p o r t â n c i a c o m o , p o r e x e m p l o , e p a r a 
c i t a r e p i s ó d i o s do l i v r o , o s a b o r dos t o m a t e s frescos, o c o n t a t o 
com os seios da avó, o b a l é d a s n u v e n s no céu, os m o v i m e n t o s 
m u s c u l a r e s do j a r d i n e i r o no d e s e m p e n h o de suas f u n ç õ e s . É n a 
o b s e r v a ç ã o dos p r o c e s s o s da n a t u r e z a , m a n i f e s t a d a d e n t r o e f o r a 
de si mesmo, que se a c u m u l a o a c e r v o das coisas que, d e p o i s , 
c o n s t i t u i r ã o a m a t é r i a - p r i m a da o b r a pessoal. 
A s e g u n d a p a r t e d o livro é o r e s u l t a d o c o n c r e t o d a p r i m e i r a . 
A p r e s e n t a d o s sob o t í t u l o de " A t é c n i c a e a v i d a " , estes c a p í -
t u l o s g a n h a m d i m e n s õ e s s u r p r e e n d e n t e s . O que K l a u s s V i a n n a 
c h a m a de " t é c n i c a " t r a n s c e n d e com l a r g u e z a os l i m i t e s d o signi-
f i c a d o m a i s c o r r e n t e e t r a d i c i o n a l a t r i b u í d o ao t e r m o . E x i s t e 
uma " t é c n i c a K l a u s s V i a n n a " , mas ela p o u c o o u n a d a t e m a 
ver c o m os s i s t e m a s de r e g r a s , códigos e p r i n c í p i o s o r d e n a d o s n a 
c o n c e p ç ã o c o m u m da d a n ç a clássica e m o d e r n a , e n e m t a m p o u c o 
com os m é t o d o s de t r a b a l h o c o r p o r a l das h o j e t ã o e m m o d a 
t e r a p i a s d o c o r p o e similares. K l a u s s a c e i t a esses s i s t e m a s , e os 
r e s p e i t a e n q u a n t o b a s e h i s t ó r i c a e f o r m a l c a p a z de f o r n e c e r e l e -
m e n t o s n a d a desprezíveis. Mas sua visão vai m u i t o m a i s além. 
P a r t i d á r i o a p a i x o n a d o d a l i b e r d a d e i n d i v i d u a l em t o d a s as s u a s 
f o r m a s , ele r e j e i t a o a s p e c t o de " c a m i s a de f o r ç a " em q u e esses 
s i s t e m a s se t r a n s f o r m a m q u a n d o a p l i c a d o s de m a n e i r a m a s s i f i c a d a , 
ou q u a n d o s ã o e n t e n d i d o s c o m o escalas de r e g r a s fixas e i m u -
táveis. 
Nesse c o n t e x t o de l i b e r d a d e - q u e n ã o s i g n i f i c a c a o s n e m 
d e s o r d e m i n d i s c r i m i n a d a - a d a n ç a p a r a Klauss d e i x a de s e r 
uma p r o f i s s ã o , uma d i v e r s ã o , u m a g i n á s t i c a , d e i x a a t é d e s e r u m a 
a r t e no s e n t i d o mais r e s t r i t o d o t e r m o , p a r a s e r e n t e n d i d a e vi-
v i d a c o m o um c a m i n h o de a u t o c o n h e c i m e n t o , de c o m u n h ã o c o m 
o m u n d o e de e x p r e s s ã o do m u n d o . 
Ao l a n ç a r - s e em vôos t ã o a m p l o s , p a r a os q u a i s usa a s a s 
de g r a n d e e n v e r g a d u r a , o a u t o r r e t o m a a visão d o s a n t i g o s , se-
12 
g u n d o a q u a l o h o m e m é um m i c r o c o s m o que s i n t e t i z a em si o 
m a c r o c o s m o , o u n i v e r s o . N e s s a visão, as leis q u e r e g e m a g ê n e s e 
e a e v o l u ç ã o do u n i v e r s o s ã o e x a t a m e n t e as m e s m a s leis q u e 
regem a e x i s t ê n c i a h u m a n a . E t o d o esse s i s t e m a u n i v e r s a l de 
leis n ã o c o n h e c e , em s u a m a n i f e s t a ç ã o , a p e r m a n ê n c i a e s t á t i c a : 
t u d o a c o n t e c e em t e r m o s de uma p e r e n e d i n â m i c a c a r a c t e r i z a d a 
p e l o m o v i m e n t o . 
A vida, o m u n d o e o h o m e m m a n i f e s t a m - s e a t r a v é s d o m o -
- v i m e n t o . D a n ç a r é m o v e r - s e com r i t m o , m e l o d i a e h a r m o n i a . 
P o r t a l r a z ã o , n a s m e t a f í s i c a s o r i e n t a i s , os d e u s e s r e s p o n s á v e i s 
p e l a c r i a ç ã o d o m u n d o s ã o g e r a l m e n t e a p r e s e n t a d o s c o m o os 
" S e n h o r e s d a D a n ç a " . E s t e é, p o r e x e m p l o , o c a s o de S h i v a N a -
t a r a j a , o " S e n h o r d a D a n ç a ' ' , deus i n d i a n o d a c r i a ç ã o . 
N o m i t o d a c r i a ç ã o d o m u n d o p o r S h i v a N a t a r a j a , no p r i n - · 
c í p i o o u n i v e r s o e r a c o n s t i t u í d o de s u b s t â n c i a i n e r t e . C a n s a d o de 
s u a i m o b i l i d a d e , B r a m a , o A b s o l u t o , e m a n a de si m e s m o o d e u s 
S h i v a N a t a r a j a , que j á s u r g e d a n ç a n d o . D o c o r p o de S h i v a em 
m o v i m e n t o e m a n a m o n d a s s o n o r a s , v i b r a ç õ e s e e n e r g i a s que vi-
vificam a m a t é r i a i n e r t e . Assim s ã o c r i a d a s as i n f i n i t a s f o r m a s 
d o m u n d o m a n i f e s t a d o . C a d a u m a dessas f o r m a s , p o r s u a vez, 
p a s s a a d a n ç a r e a v i b r a r d e n t r o d o s m e s m o s p a d r õ e s de r i t m o s , 
m e l o d i a s e h a r m o n i a s d a d a n ç a o r i g i n a l de Shiva. E , p o r t a n t o , 
e m si m e s m a s d e p o s i t á r i a s essenciais de Shiva, t o d a s as f o r m a s 
d a c r i a ç ã o n a t u r a l s ã o t a m b é m , p e l o m e n o s em p o t e n c i a l , c r i a d o -
ras. N i s s o i n c l u i - s e o h o m e m , c r i a ç ã o n a t u r a l e c r i a d o r p o t e n c i a l . 
E s t a mesma i d é i a d o h o m e m e d o m u n d o s u r g i n d o e evo-
l u i n d o n o e t e rn o c o n t e x t o de u m a d a n ç a c ó s m i c a q u e n ã o t e m 
c o m e ç o e nem fim t a l v e z s e j a a c h a v e ú l t i m a p a r a a c o m p r e e n s ã o 
d a p r o p o s t a d e K l a u s s V i a n n a . P a r a o b a i l a r i n o , e s t e seu l i v r o 
e n s i n a que a d a n ç a , a m a i s a n t i g a de t o d a s as f o r m a s de a r t e , 
é· u m a o p ç ã o t o t a l d e v i d a . E n s i n a q u e a n t e s de e x p r i m i r n a 
m a t é r i a a s u a e x p e r i ê n c i a e x i s t e n c i a l , o h o m e m a t r a d u z c o m a 
a j u d a d o seu p r ó p r i o c o r p o . A l e g r i a , d o r , a m o r , t e r r o r , n a s c i -
m e n t o , m o r t e , t u d o , p a r a o v e r d a d e i r o b a i l a r i n o , é m o t i v o e o c a - · 
13 
sião de d a n ç a r . A t r a v é s dos m o v i m e n t o s da d a n ç a a p r o f u n d a - s e 
c a d a e x p e r i ê n c i a e realiza-se o milagre da c o m u n i c a ç ã o . 
P a r a os n ã o profissionais, Klauss r e s e r v a u m a r e v e l a ç ã o 
s u b s t a n c i a l : a de que todos somos, sem exceção, b a i l a r i n o s da 
vida. T o d o s nos m o v e n d o p a r a um ú n i c o e f u n d a m e n t a l o b j e t i v o : 
o a u t o c o n h e c i m e n t o . 
P e l a d a n ç a o homem m a n i f e s t a os movimentos d o seu m u n d o 
i n t e r i o r , t o r n a n d o - o s mais conscientes p a r a si mesmo e p a r a o 
e s p e c t a d o r ; pela d a n ç a ele reage ao m u n d o e x t e r i o r e t e n t a 
a p r e e n d e r os fenômenos do universo. Nessa t e n t a t i v a , ele se 
a p r o x i m a c a d a vez m a i s de seu Ser m a i s p r o f u n d o . Ou, f a z e n d o 
de Klauss V i a n n a as p a l a v r a s de M a r i a - G a b r i e l e Wosien em 
seu livro A dança sagrada, " d a mesma f o r m a que a c r i a ç ã o 
e s c o n d e o C r i a d o r , o i n v ó l u c r o fí,sico do homem e s c o n d e a sua 
e s p i r i t u a l i d a d e . D a n ç a n d o , o homem t r a n s c e n d e a f r a g m e n t a ç ã o , 
esse espelho p a r t i d o cujos p e d a ç o s · r e p r e s e n t a m as p a r t e s d i s p e r -
sas d o t o d o . E n q u a n t o d a n ç a , ele p e r c e b e n o v a m e n t e q u e é u n o 
com . s e u p r ó p r i o E u e com o m u n d o exterior. Q u a n d o a t i n g e 
tal nível de e x p e r i ê n c i a p r o f u n d a , o homem d e s c o b r e o s e n t i d o 
da t o t a l i d a d e da v i d a " . 
Luis P e l l e g r i n i 
1 4 
A vida 
I 
Belo Horizonte, anos 30 
Não me enquadro em nada que foi escrito a respeito do 
corpo. Meu trabalho também é assim: não se enquadra em ró-
tulos. Desde o princípio. Eu sempre fui mais intuitivo do que 
estudioso. A distância e a observação foram os pontos básicos 
de toda a minha vida. Desde pequeno. Observava a família, 
como se não pertencesse àquela comunidade. Observei a morte 
do meu pai e de minha mãe. Não as vivenc1e1, porque nunca 
cheguei perto deles. Nem eles de mim. Eu era muito só, o pa-
tinho feio, aquele que faz tudo errado. E esse ficar só me deu 
um conhecimento muito grande das pessoas, eu me afastava para 
me aproximar. Vivia num mundo que só existia na minha ca-
beça: queria mais observar do que participar. A brincadeira de 
ficar horas com os olhos fechados. A comunicação com minha 
avó, que também observava. Alemã, minha avó era a única 
pessoa da casa em quem sentia força, que me conhecia, sabia 
de mim. Nela, o primeiro corpo de mulher. O corpo: castigado 
desde o princípio. Massacrado na escola. O corpo negado em tudo. 
Só o reino da fantasia, do faz-de-conta. Horas no galinheiro, brin-
cando com as aves. Sabia o nome de todas. Também com os 
cachorros do pai, caçador. Com os humanos, não: distanciamento, 
medo. Observações. Horas observando os pés. Os meus e os 
dos outros. As marcas que deixavam na areia ou no cimento, 
quando saíam da piscina. O joelho foi o mais difícil: quase sem-
17 
pre o lado escondido das pessoas. As costas, comprimento dos 
braços, o jeito da cabeça. A expressão, olhos, boca, nariz. As 
mãos. Abrir a mão para apanhar. Lembrança da dor. A casa: não 
só grande. Enorme. Sempre fechada. Duas crianças, eu e meu 
irmão. E quatro irmãs mais velhas, lindíssimas, do primeiro 
casamento do meu pai. Meu pai era médico: um dos quartos da 
casa era o laboratório, com um esqueleto e um coração de ma-
deira, que eu adorava abrir e fechar. A casa: dividida como as 
pessoas que a habitavam. Quartos dos pais, das irmãs. Eu co-
nhecia cada pedaço do assoalho, cada canto das salas e quartos. 
As camas, engraçadas: conversava com cada uma. Menos a 
grande, de casal. A piscina, cheia, me amedrontava. Mas o quin-
tal era todo meu. A árvore preferida, onde escrevi meu nome, 
pequeno e escondido, para ninguém roubar. O gosto dos tomates 
na horta, os verdes e os vermelhos. Em meio a tudo isso, a 
descoberta do nu. O, jardineiro que trabalhava na casa. Às vezes 
ele tirava a camisa. Só no quintal, no meu mundo. Levei muito 
tempo só olhando. Um dia cheguei perto e perguntei. A desco-
berta dos pêlos do corpo: pedi para passar as mãos. Deixou 
que tocasse. Agora, além das árvores, tinha o corpo do jardi-
neiro para explorar. Pedia para que girasse os braços, levantasse 
as pernas. Achava engraçado o movimento dos músculos. Me 
excitava e dava euforia ao mesmo tempo. Mandava ele correr, 
pular, fechar os olhos e me procur~r. Era o meu primeiro e mais 
interessante brinquedo. Até o dia em que a empregada viu, contou 
para os meus pais e meu primeiro aluno foi posto na rua. Antes, 
outro brinquedo: um ônibus vermelho, cheio de bonecos, colados 
ao banco com goma arábica e vestidos pelo tricô da avó. Tirava 
a roupa deles quando estava só. Procurava saber o que havia 
por baixo. Só a mim não olhava: tomava banho de olhos fe-
chados. Dizia que por causa do sabão. E me cobria com uma 
toalha cada vez que fazia xixi ou cocô. Se me perguntavam o 
que seria quando crescesse respondia: "vou ser papa". Nada de 
engenheiro, médico, advogado. Papa: era uma coisa que pairava 
18 
acima, uma posição etérea. Com um espaço todo seu. No corpo 
da avó, com quem dormia, só havia os seios: caídos, feios. 
Prim-eiro corpo de mulher. Um dia, ao entrar de repente no 
quarto, ela:.trocava as calças de baixo: achei engraçado e quis 
pegar nos pêlos. Tapa na mão. O primeiro. O segundo na escola: 
aos sete anos, procurava retribuir uma brincadeira que uma co-
lega fazia com os dedos na minha coxa. De novo o castigo, o 
afastamento: era um monstro. Ficar no fundo da sala, sozinho, 
sem conversar com ninguém. Pela primeira vez, o perigo do 
corpo. Não tinha corpo: vivia o corpo dos outros. Os gestos do 
meu pai, da mi:p.ha mãe, o jeito de andar, de pisar, o movimento 
das mãos. E me fascinavam os ossos do esqueleto, os encaixes. 
E um fato inesquecível: meu corpo se tomou ausente. Só olhava 
nos olhos quando me ·dirigiam a palavra. Sem isso, olhar para 
baixo. Conheci todo o chão de minha casa. E, com muitadifi-
culdade, meu corpo começou a reaparecer: do chão, da base, 
dos pés. Durante anos, foi a única consciência que eu tive de 
mim. Na escola, só fazia o que queria: me fechava em mim. 
Comecei a ler o que caísse na minha mão. Octávio de Faria, 
Lúcio Cardoso, as poesias de Vanessa Neto, a musa de Belo 
Horizonte naquela época. Ganhande sempre os prêmios de dis-
ciplina. Eu me sentia muito próximo a tudo isso: buscava a 
relação entre os livros e a minha vida. Na Tragédia burguesa, 
de Octávio;·. na Crônica da casa assassinada, de Lúcio. Comecei 
a me interessar . por teatro, a dança nunca foi meu interesse: 
queria o teatro.Primeiro papel nas peças de escola, sempre: 
apesar de tudo, não era uma criança tímida. Desde pequeno 
escrevia textos para teatro, inventava cenários com as cadeiras: 
os meninos me evitavam, não queriam brincar comigo. Fui ver 
o espetáculo do balé da Juventude, fiquei encantado era tudo 
o que eu queria na vida: dança, música, teatro. Foi o primeiro 
espetáculo de dança: direção de Igor Schwezoff. Primeira com-
panhia a dançar pelo Brasil. E importante porque foi quem veio 
de fora . para dar importância à dança no Brasil. Ele formou seu 
19 
g r u p o de d a n ç a , com B e r t a R o s a n o v a , T a m a r a K a p e l l e r , e s a í r a m 
d a n ç a n d o pelo país a f o r a . Mas o p r i m e i r o b a i l a r i n o d a c o m p a -
n h i a , C a r l o s Leite, resolve ficar em Belo H o r i z o n t e , c o n v i d a d o 
p e l o D C E . F u i lá me m a t r i c u l a r : o p r i m e i r o . E me d e c e p c i o n e i : 
o. q u e eu t i n h a visto no p a l c o n ã o e r a o que havia n a s a l a de 
aula. N a m i n h a c a b e ç a n ã o e n t r a v a muito bem a q u i l o . Mas 
e s t u d a v a , lia, t i n h a m u i t a c u r i o s i d a d e . N ã o t i n h a livros d e d a n ç a , 
a b i b l i o g r a f i a sempre muito p e q u e n a : n ã o t i n h a d i n h e i r o , r o u -
b a v a os livros que e n c o n t r a v a . E duvidava: " N ã o , esse b r a ç o 
n ã o é assim. é assim". E u q u e r i a m o v i m e n t o s q u e n ã o fossem 
t ã o doloridos. P a r e i t u d o p a r a fazer dança: d e p o i s de u m a n o 
j á d a v a a u l a e era assistente do C a r l o s Leite. Mas n ã o e s t a v a 
satisfeito: p r o c u r a v a ligar os p o n t o s obscuros. Assisti a filmes de 
d a n ç a . D e s c o b r i que t i n h a u m a deficiência t é c n i c a m u i t o g r a n d e : 
uma p e r n a mais c o m p r i d a que a o u t r a . Mas n i n g u é m s a b i a disso. 
As aulas: o p r o f e s s o r m o s t r a v a o m o v i m e n t o e p e d i a p a r a os 
a l u n o s r e p e t i r e m . Se t o d o s conseguem l e v a n t a r a p e r n a e você 
n ã o , você está a z a r a d o . E ninguém me explicava o p o r q u ê da-
quilo. Ninguém p 8 r a e x p l i c a r p o r que t i n h a que l e v a n t a r a p e r n a 
assim. Explicações do tipo p o r q u e t e m . N u n c a aceitei as coisas 
ditas dessa forma. E sofri m u i t o com isso. Mas vivia t u d o i n t e r i o r -
mente: n ã o falava. P r a a p r e n d e r um d e b o u l é foram a n o s : m a s 
um d i a ele resolveu que eu t i n h a q u e s a i r d a l i s a b e n d o fazer. 
A c a b o u m i n h a s a p a t i l h a e eu Já. A s o l a do pé a c a b o u e eu lá. 
S o f r i a , e n j o a v a , mas n ã o desistia. Tive u m a p n e u m o n i a p a r a 
a p r e n d e r um passo. N ã o s a b i a p a r a que servia a q u i l o . A o mesmo 
tempo. a e d u c a ç ã o alemã: t i n h a q u e a c e i t a r as coisas. E o 
m u n d o , lá fora: j á convivia com a r t i s t a s como G u i g n a r d , q u e 
m o r a v a p e r t o da m i n h a casa. E r a f a s c i n a d o p o r ele, p e l a m o -
d e r n i d a d e , Pelo s e r h u m a n o q u e ele era. E A m í l c a r de C a s t r o , e 
CeschiattL Convivia com essas pessoa-: Os desenhos: p o s a v a p a r a 
G u i g n a r d . A c a d a dia i n v e n t a v a uma historinha: " H o j e vou s e r 
o o r g u l h o s o " . E observava q u e músculo a t u a v a : a r e a ç ã o mus-
c u l a r a p a r t i r de uma idéia. A i n t e n ç ã o a n t e r i o r a o m o v i m e n t o . 
E J o t a Dângelo, J o ã o E t i e n n e Filho. F u i l e v a n d o t u d o isso p a r a 
2 0 
a d a n ç a . N ã o de u m a f o r m a consciente: c a o t i c a m e n t e . M a s essa 
e r a a m i n h a ú n i c a forma de descobrir. E M e r c i e r , em O u r o P r e t o : 
a r e l a ç ã o com as a r t e s p l á s t i c a s foi m u i t o forte. Mas n ã o me 
revoltei: p l a c i d a m e n t e b u s q u e i meu e s p a ç o , como seguir em 
frente. O r e s u l t a d o é q u e n ã o existo. O q u e existe é o m e u 
t r a b a l h o . E m i n h a s a u l a s n ã o são p a r a meus alunos: são p a r a 
mim. Sempre tive m u i t o m e d o de mim, da m i n h a i m a g i n a ç ã o , 
das idéias. Mas t e n h o u m a o b r i g a ç ã o , um c a r m a : p a s s a r esse 
t r a b a l h o a d i a n t e . 
21 
li 
Balé clássico: uma visão mineira 
No final dos anos 40 comecei a criar minhas primeiras 
coreografias, dançadas por mim e por minha amiga Angel, mais 
tarde companheira e mãe do meu filho. Esses trabalhos eram 
mostrados no interior mineiro, no Circuito das Águas, em hotéis 
e cassinos onde o jogo corria livre e havia sempre espaço para 
espetâculos artísticos. 
Como qualquer jovem bailarino, jâ me considerava o melhor 
do mundo - um dos melhores, pelo menos - e essa foi a 
forma que encontrei para me expor e ao mesmo tempo buscar 
uma linguagem própria. Claro que eram coisas simples, quase 
infantis, mas foi através desses trabalhos que comecei a descobrir 
meu espaço. 
Essas turnês duraram alguns anos, até que um dia entendi 
que Minas não tinha mais nada a oferecer: era tempo de seguir 
adiante. E, na dança clássica brasileira, só existia uma forma de 
buscar mais conhecimento: ir até a fonte, a russa Maria Olenewa, 
que vivia em São Paulo. 
Carlos Leite - ele próprio ex-aluno de Olenewa - jâ 
havia me dado o respeito pela dança, um alto nível de exigência 
comigo mesmo e a lição· de paciência: "Com três anos de dança 
você não sabe nem varrer o palco", advertia. 
Apesar disso, as aulas dele não eram exatamente um primor 
de respeito humano ou artístico: ~am brutais, com ensinamentos 
22 
que chegavam aos alunos através de xingamentos e varadas. E 
qualquer questionamento mais insistente tinha apenas uma res-
posta: "Isso é segredo profissional". 
Em São Paulo, fiz aulas com Olenewa durante dois anos, 
entre 1948 e 1950, conhecendo o lado prático da dança, espe-
cialmente o repertório clássico e a relação entre a arte e o mundo. 
Desde essa época descobri que a técnica clássica é algo muito 
real e que nada tem de etéreo: o misticismo do balé, se existe, 
está na sua corporificação. 
Olenewa me trouxe não apenas a técnica, mas também a 
necessidade de sobrevivência - não tive qualquer apoio da fa-
mília ao optar pela dança - e de reflexão, uma reflexão que 
tem acompanhado a minha vida artística desde sempre. 
Foi essa observação que me levou a descobrir que aprendia 
mais sobre a dança com as artes plásticas. Passei a visitar museus 
e a observar a articulação, os músculos, o apoio dos corpos. 
Descobri Rafael, Da' Vinci, Modigliani e, lentamente, comecei 
a vislumbrar minha própria técnica. 
Observei, de início, a posição do dedo anular nas pinturas 
renascentistas e fiquei fascinado com a relação entre esses de-
senhos e a postura exigida para as mãos no balé: em ambos 
os casos, a certeza de que o movimento parte de dentro e não 
pode, jamais, ser apenas forma. 
Vejamos: quando você aperta o dedo anular para dentro 
sente todo o braço reagir e é por isso que a mão tem essa 
postura no balé clássico. O problema é que professores e baila-
rinos repetem apenas a forma e isso não leva a nada. O processo 
deveria ser o oposto: a forma surgir como conseqüência do 
trabalho. 
A ~erdade é que as pessoas no Brasil têm a mania de dizer 
que o clássico é uma técnica antianatômica, e não é assim: é 
a coisa mais anatômica que já foi criada na arte ocidental, é a 
rotação da musculatura no sentido máximo que ela pode atingir. 
23 
Desdee n t ã o d e s c o b r i t a m b é m que a p r e o c u p a ç ã o excessiva 
com a t é c n i c a é p r e j u d i c i a l , t ã o p r e j u d i c i a l q u a n t o . t e r u m a r e -
l a ç ã o a f e t i v a com uma p e s s o a e n ã o l a r g á - l a n u n c a , n ã o d a r 
e s p a ç o , t e l e f o n a r d i a r i a m e n t e , p r o c u r a r sempre, d e p e n d e r demais: 
com isso, afogamos a pessoa e m a t a m o s a relação. 
H o j e b r i n c o dizendo que a l u n o n o t a dez é um caso s e n o , 
a t é sete é ótimo, é o limite. N o t a dez n ã o f u n c i o n a : é u m 
obsessivo, q u e r seguir as r e g r a s em d e t a l h e s e p a s s a a t e r u m a 
r e l a ç ã o n e u r ó t i c a com a d a n ç a . N ã o d e s c a n s a e n q u a n t o n ã o 
a p r e n d e um d e t e r m i n a d o p a s s o e n ã o e n t e n d e que, b u s c a n d o 
o u t r o s movimentos, fazendo o u t r a s coisas - na sala de a u l a o u 
n a rua - , o passo n a t u r a l m e n t e vai surgir, no seu t e m p o , p o r -
que t u d o e s t á i n t e r l i g a d o . 
Sempre d i s c o r d e i da forma pela q u a l a t é c n i c a clássica chega 
aos b a i l a r i n o s , no Brasil. N ã o discuto a beleza e a e f i c i ê n c i a do 
clássico - a o c o n t r á r i o , a m o o clássico - , mas h á a l g u m a 
coisa que se p e r d e u na r e l a ç ã o e n t r e p r o f e s s o r e a l u n o e q u e 
faz d a sala de a u l a um e s p a ç o pouco saudável. 
A q u e s t ã o é essa: o p r o f e s s o r de balé é l i m i t a d o , e m g e r a l 
f r u s t r a d o p o r s e r o b r i g a d o a p a r a r de d a n ç a r cedo e assim i n c a p a z 
de d a r a m o r , a t e n ç ã o e i n c e n t i v o aos alunos. O p r o f e s s o r d e v e r i a 
s e r s e m p r e um a r t i s t a mais velho, mais sábio, com mais vivência, 
e que tivesse condições de c r i a r um clima de c o m p r e e n s ã o n a 
s a l a de a u l a . 
U m a s a l a de a u l a n ã o p o d e ser isso que vemos, o n d e a dis-
c i p l i n a tem algo de m i l i t a r , o n d e n ã o se p e r g u n t a , n ã o se ques-
t i o n a , n ã o se discute, n ã o se conversa. C o m isso, a t r a d i ç ã o d o 
b a l é se p e r d e em r e p e t i ç õ e s de formas, o n d e t o d o t r a b a l h o é 
feito a l e a t o r i a m e n t e . A c o m e ç a r pela p i a n i s t a , que t o c a sem a t e n -
ç ã o , f u m a n d o um c i g a r r o e n q u a n t o folheia u m a revista o u se 
p r e o c u p a com q u e s t õ e s domésticas. 
E s s a d e s a t e n ç ã o passa p a r a o a l u n o , que, ao invés de e s t a r 
p r e s e n t e e o u v i r a música, inicia u m processo de a u t o - h i p n o s e 
2 4 
e, em p o u c o t e m p o , n ã o e s t á mais n a s a l a de aula: e s t á n a s 
nuvens, no espelho, n a s n o t a s d o p i a n o , m a s n ã o consigo mesmo. 
A s a l a de a u l a , dessa f o r m a , se t o r n a a p e n a s u m a a r e n a p a r a a 
c o m p e t i ç ã o de egos, o n d e ninguém se i n t e r e s s a p o r n i n g u é m a 
n ã o s e r como p a r â m e t r o p a r a a c o m p a r a ç ã o . 
Mas a c o m p a r a ç ã o é p e r d a de tempo: a filha de F u l a n o é 
e n g r a ç a d i n h a , d a n ç a c o m g r a ç a , t o c a p i a n i n h o , e n q u a n t o a filha de 
S i c r a n o é t í m i d a , d e s a j e i t a d a , vive c a i n d o . Crescemos t o d o s com 
essas i n f o r m a ç õ e s e, depois, d e s c o b r i m o s que a filha de f u l a n o 
se t r a n s f o r m o u n u m a m e d i o c r i d a d e e n q u a n t o a o u t r a se t o r n o u 
e q u i l i b r a d a e h a r m ô n i c a . Mas p a r a d e s c o b r i r isso é n e c e s s á r i a 
t o d a u m a vida. 
A sala de a u l a m a s s i f i c a d a t i r a a i n d i v i d u a l i d a d e do a l u n o 
e, se as pessoas n ã o se conhecem nem possuem i n d i v i d u a l i d a d e , 
n ã o h á como p a r t i c i p a r do coletivo: o c o r p o de b a i l e tem que 
ser c o n s t i t u í d o p o r pessoas c o m p l e t a m e n t e diferentes, p a r a que 
os gestos s a i a m semelhantes: a i n t e n ç ã o é o que i m p o r t a . 
A d a n ç a se faz n ã o a p e n a s d a n ç a n d o , mas t a m b é m p e n -
s a n d o e sentindo: d a n ç a r é e s t a r i n t e i r o . N ã o posso i g n o r a r mi-
nhas emoções em u m a s a l a de a u l a , r e p r i m i r essas coisas t o d a s 
que t r a g o d e n t r o de mim. Mas, infelizmente, é o q u e acontece: 
os a l u n o s se a n e s t e s i a m a o e n t r a r em u m a s a l a de a u l a . 
E s e r i a difícil fugir desse sono: p a r a c o m e ç a r , ficam s e m p r e 
nos mesmos lugares, ouvem sempre a mesma m ú s i c a , o mesmo 
som d i á r i o d a voz do professor, que c o r r i g e d i a r i a m e n t e as 
mesmas coisas nas mesmíssimas pessoas. P r o n t o : c o m c i n c o mi-
n u t o s de a u l a todo m u n d o está em t r a n s e , n i n g u é m mais se e n -
c o n t r a ali. Se um e l e f a n t e p a s s a r pelo meio da s a l a n i n g u é m 
n o t a . 
Mas a v e r d a d e é que a r t i s t a n a s c e a r t i s t a ; u m p r o f e s s o r 
p o d e no m á x i m o l e v a r esse a r t i s t a a t é um c e r t o p o n t o . O p r o -
fessor t i r a de d e n t r o d o a l u n o o q u e ele t e m p a r a dar. F i c o 
s e m p r e i m p r e s s i o n a d o c o m a s a b e d o r i a p o p u l a r , que e x p l i c a bem 
m e l h o r t u d o isso: o q u e é bom j á n a s c e feito. 
25 
Isso sempre achei bonito: ninguém é igual a ninguém, não 
existe receita para se fazer arte ou dança. O professor deve 
apenas aviar a receita - como se fazia antigamente -, mas 
essa receita é pessoal, não serve para todo mundo. Em uma sala 
de aula é a mesma coisa: o desnivelamento existe, e cada caso 
é um caso. O ritmo é sempre o mesmo, mas a aptidão é de 
cada um. 
Por isso é que posso assistir vinte vezes ao Lago dos cisnes 
e as vinte montagens serão completamente diferentes, apesar da 
mesma coreografia. Um coreógrafo, por exemplo, pode usar os 
gestos sensuais dos personagens, outro a frieza de Odete, ou a 
desatenção dela, ou sua maldade. E tudo isso modifica a mus-
culatura, a interpretação dos bailarinos - se eles tiverem uma 
individualidade. 
Nós, profissionais de dança, somos um pequeno exemplo de 
que acontece lá fora. As leis da vida são as mesmas leis da 
dança, não temos como fugir disso. A inconsciência é que gera 
a mediocridade. O bailarino tem os mesmos problemas de um 
sapateiro. 
O resultado da inconsciência é visível nos espetáculos e na 
formação da mentalidade do bailarino brasileiro: ele não discute, 
não se interessa pelo sindicato, não luta pela classe, é desunido 
e alienado. E isso é ensinado a ele desde o princípio: não existe 
o indivíduo que faz dança entre nós, o que existe é essa entidade 
vaga chamada bailarino. 
Mas a técnica clássica não é isso, não exige isso. Através 
do clássico é possível organizar fisicamente as emoções e co-
nhecer o corpo. É uma forma de exprimir harmonicamente essas 
emoções. Para isso, porém, tenho que estar com os sentidos 
alerta. Senão minha dança se torna pura ginástica. 
O gesto no balé não deve ser apenas um gesto do balé: é 
um gesto trabalhado por um ser humano, especialista, e que 
envolve não apenas a memória daquele corpo mas o corpo de 
26 
todos os homens. É claro que tudo isso exige uma técnica e 
somente o aperfeiçoamento dessa técnica vai permitir ao baila-
rino chegar a essa memóriae a essa emoção comum a todos os 
seres humanos. É milagroso o que o corpo é capaz de fazer 
quando o deixamos livre - após o aprendizado técnico. 
Infelizmente, mais uma vez, lembremos que a realidade é 
outra: a técnica clássica tem buscado, antes de tudo, o ego do 
bailarino, do professor, do coreógrafo. E da mãe da bailarina, 
claro. É preciso desarmar tudo isso, para que cada um possa 
encontrar seu próprio movimento, sua forma pessoal. A forma, 
repito, é conseqüência: são os espaços internos que devem criar 
o movimento de cada um. 
Por outro lado - e contra mim mesmo -, admito que 
exista algo de sadomasoquista no clássico: essa busca de limite, 
de tentar vencer as dores físicas, tentar ir sempre além. Talvez 
apenas as pessoas que de alguma forma se identificam com esse 
sadomasoquismo tenham condições de praticar a dança clássica. 
E eu tenho esse componente em excesso. 
Entra aí uma questão cultural: o homem não é treinado 
para ser submisso, como nossa sociedade impõe às mulheres. 
Por isso reage, não se sujeita a ser xingado, humilhado, dimi-
nuído numa sala de aula ou num ensaio. O homem não aceita 
essa situação, o que talvez explique a quantidade muito maior 
de mulheres no balé. 
27 
111 
O c o m p a s s o b a i a n o 
E m 1 9 5 9 , eu e Angel criamos o Balé Klauss V i a n n a , em 
Belo H o r i z o n t e , e t r ê s anos depois o g r u p o p a r t i c i p o u d o I E n c o n -
t r o de E s c o l a s de D a n ç a d o Brasil, em C u r i t i b a . Levei u m a 
c o r e o g r a f i a onde uma b a i l a r i n a atravessava o p a l c o v e s t i d a de 
s a n t a b a r r o c a . E r a u m a p r o p o s t a b e m diferente: n o festival só 
t i n h a cisne, e r a m o r t e de cisne, solo de cisne, vôo de cisne. C e r t a 
m a n h ã meu c e n ó g r a f o p e r d e u a p a c i ê n c i a : " O p r i m e i r o cisne q u e 
eu p e g a r t o r ç o o pescoço". 
Esse foi meu p r i m e i r o t r a b a l h o c o r e o g r á f i c o a d u l t o , A face 
lívida. Usei u m a m o d i n h a i m p e r i a l c a n t a d a p e l a M a r i a L ú c i a 
G o d o y e nele eu buscava a síntese de uma visão m i n e i r a da 
d a n ç a . A n t e s de m o n t a r o t r a b a l h o fomos t o d o s a O u r o P r e t o , 
a n d a m o s p e l a s ruas, pisamos descalços nas p e d r a s , e n t r a m o s nos 
casarões. O r e s u l t a d o foi um e s p e t á c u l o com m u i t a gente v a i a n d o , 
g r i t a n d o - e uns p o u c o s a p l a u d i n d o . 
Mas o R o l f Gelewsky viu esse t r a b a l h o e ele e L i a R o b a t t o 
me c o n v i d a r a m p a r a d a r a u l a s na B a h i a , n a E s c o l a de D a n ç a 
da U n i v e r s i d a d e F e d e r a l , em S a l v a d o r . R o l f a c h a v a que m e u t r a -
b a l h o t i n h a m u i t a a f i n i d a d e com o que eles b u s c a v a m lá. 
R o l f e r a a l e m ã o , mal falava o p o r t u g u ê s , mas t i n h a u m a 
visão do q u e r e a l m e n t e interessava: a busca de um g e s t u a l , u m a 
d a n ç a b r a s i l e i r a . E n t ã o , aceitei: R o l f p a s s o u a s e r meu vizinho 
de q u a r t o n a p e n s ã o e comecei a s e r v i r de i n t é r p r e t e p a r a ele. 
28 
Mas logo senti a B a h i a em mim e me p e r g u n t a v a : como é 
q u e n ã o temos a u l a de c a p o e i r a a q u i , n a E s c o l a de D a n ç a , com 
t o d a a q u a l i d a d e de m o v i m e n t o que tem a c a p o e i r a ? E n t ã o , fui 
p r o c u r a r um p r o f e s s o r de c a p o e i r a p a r a a Escola. 
Sugeri ao R o l f que a c a p o e i r a fosse m a t é r i a c u r r i c u l a r , p o r q u e 
t i n h a s e n t i d o q u e na c a p o e i r a existia uma s e q ü ê n c i a de movimen-
tos igual à técnica clássica - ou às a r t e s m a r c i a i s - , p o r q u e o 
c o r p o h u m a n o tem uma coerência m u i t o g r a n d e de movimentos 
em q u a l q u e r c u l t u r a : o a q u e c i m e n t o na c a p o e i r a t a m b é m começa 
pelos pés, sobe pelas p e r n a s , t r o n c o , braços, até c h e g a r aos olhos. 
Os olhos são i m p o r t a n t í s s i m o s p a r a um c a p o e i r i s t a . 
Meu t r a b a l h o s e r i a c r i a r o s e t o r de d a n ç a clássica n a univer-
s i d a d e , mas isso n ã o me bastava. E u j á dava a u l a descalço, e 
c o n h e c i t r a b a l h o s m a r a v i l h o s o s de c a p o e i r a , c o n h e c i o mestre 
G a t o e foi a t r a v é s dele que a p r e n d i essa técnica. A p e s a r disso, 
ele n ã o podia d a r a u l a s na Escola, era p e d r e i r o , m o r a v a longe, 
n ã o t i n h a nem o curso p r i m á r i o - mas t i n h a d o u t o r a d o em 
c a p o e i r a . 
L e n t a m e n t e , senti q u e tudo a q u i l o p o d e r i a t e r i n f l u ê n c i a no 
meu t r a b a l h o e passei a u s a r os movimentos de t r o n c o , o som, a 
música ao vivo, o pé descalço que eu j á usava, c o n h e c e r os ossos 
- n ã o o nome do osso, que não leva a n a d a - , como se move 
c a d a osso e músculo. 
F u i p r o c u r a r um p r o f e s s o r de o d o n t o l o g i a , A n t o n i o B r o c h a -
do, que e r a c o n s i d e r a d o o m a i o r a n a t o m i s t a da B a h i a . E l e t i n h a 
u m a série de esqueletos n o consultório, pelos quais n u t r i a um 
a m o r p r o f u n d o . T r a t a v a c a d a um p o r um nome d i f e r e n t e . Ele 
a c e i t o u meu convite e foi d a r a u l a de a n a t o m i a n a E s c o l a de 
D a n ç a . 
Ao mesmo t e m p o , B r o c h a d o e r a do c a n d o m b l é e um dia 
me levou até o t e r r e i r o da Mãe Stella. Tive m u i t a d i f i c u l d a d e 
p a r a e n t e n d e r , e n t r a r n a q u e l a s coisas. M a s j á c o n h e c i a C a r y b é , 
G e n a r o , Jorge A m a d o , t o d o s b r a n c o s e p a i s de s a n t o do c a n d o m -
blé, e n t ã o t i n h a uma n o ç ã o mínima s o b r e a q u i l o tudo. 
2 9 
Um dia convidaram a mim e a Angel para ver as moças que 
iam receber o santo: é uma coisa impressionante, porque elas 
ficam em camarinhas, pequenos quartos trancados durante seis 
meses, a cabeça raspada, sem conversar ou ver ninguém, sem ter 
relação sexual nenhuma, comendo só aquilo que deixam no quarto. 
Com isso essas meninas acabam conhecendo profundamente 
o próprio corpo, as reações do corpo, a pessoa mais idiota acaba 
se conhecendo numa situação dessas. Então, era uma beleza quan-
do abriam a porta e vinha aquela pessoa, era uma coisa iluminada, 
uma musa, linda. Durava uma noite inteira - e o caminho, o 
movimento, o ritmo, tudo aquilo me impressionou demais. 
Esse era um momento político de muita efervescência no 
Brasil e a Universidade entrou em greve. Eu e Rolf, sem nada 
para fazer, se111 aula para dar, resolvemos trabalhar, montar algu-
ma coisa, e fomos para uma sala de aula. 
Um dia estávamos ali, ensaiando, quando as moças da Escola 
de Dança arrombaram a porta a pontapés e disseram que não 
pode~íamos ficar ali, que a Universidade estava fechada e que 
a coisa era para valer. 
Levei um susto: elas nos proibiram, simplesmente. No começo 
fiquei chocado, irritado, puto. Eu me dizia: "Mas esperem um 
pouco, sou um bailarino, um artista, não tenho nada a ver com 
política". Não entendia como é que aquele pessoal, aquelas meni-
nas que faziam aula de dança, podiam agir daquela forma. 
Resolvi começar a freqüentar os encontros para entender 
como é que era a cabeça desses alunos, como é que atuavam 
nesse processo político, e logo descobri que eram pessoas muito 
inteligentes e interessantes, fui notando queentre elas, havia urna 
harmonia ali, que não existia na sala de aula. Ali existia o amor 
por uma causa, exatamente o que faltava em relação à dança. 
Minha noção de arte e de dança mudou muito a partir daí: 
não é só dançar, é preciso toda uma relação com o mundo à 
nossa volta. Não adianta se isolar em uma sala de aula, isso leva 
30 
a um completo distanciamento da vida, de tudo o que acontece 
no mundo. O ser humano que existe no bailarino tem que estar 
atento e receber tudo lá fora, nas ruas. É impossível dissociar 
vida de sala de aula. 
Quis fazer uma coreografia que traduzisse essas descobertas 
todas. Mas não queria nada folclórico, nada dessa coisa de ca-
poeira e candomblé baiano visto por um mineiro: queria a música 
de alguém de lá mesmo, mas não conhecido, e traduzir tudo 
isso em movimentos meus, a partir da minha vivência. · 
Um dia me levaram um garoto, um compositor jovem e des-
conhecido que cantou uma série de canções lindíssimas para mim, 
onde ele criticava toda a sociedade baiana. Senti que a música 
dele tinha esse lado social e político, era uma coisa natural nele. 
Era o Caetano. 
Depois de um tempo ele disse: "Olha, eu tenho uma irmã que 
canta" e levou a Maria Bethânia até minha casa. Quando ouvi 
aquela mulher cantar, num apartamento de frente para o mar, 
quase caí duro. Descobri que eles faziam música e Bethânia 
cantava da mesma forma que a gente aprende a andar, como os 
animais se alimentam, do jeito que a gente aprende a defecar: 
naturalmente. Bethânia cantava porque precisava cantar, porque 
era um passarinho, se não cantasse morria. 
Mas a dança é diferente - e só então descobri isso -, a 
dança é um outro processo: eles gostavam muito de mim, me 
mostravam suas músicas, mas isso não era suficiente para que 
abandonassem a liberdade que o baiano tem, nem tinham como 
encarar a disciplina que a dança exige. 
Levei um longo tempo para entender que não repudiavam a 
mim, mas ao processo técnico da dança, a essa forma distante, 
a essa didática mal-resolvida. Aí a riqueza dessa vivência: a 
Bahia me abriu as portas para o exterior, porque até então eu 
vivia apenas o meu interior. 
31 
F i q u e i p o r l á d o i s a n o s , a t é 1 9 6 4 , q u a n d o c h e g o u a h o r a 
de p a r t i r m a i s u m a vez: a U n i v e r s i d a d e n ã o t i n h a v e r b a , o p a í s 
e s t a v a u m c a o s , eu n ã o t i n h a m a i s c a b e ç a p a r a c r i a r n a d a . A o 
m e s m o t e m p o , s a b i a q u e n ã o h a v i a m a i s c o m o v o l t a r p a r a M i n a s , 
o q u e m e fez ir p a r a o R i o , s e m e m p r e g o e s e m c a s a o n d e m o r a r . 
L á c o n s e g u i s o b r e v i v e r d a n d o a u l a s de d a n ç a c l á s s i c a e m 
e s c o l a s d e b a i r r o - de c e r t a f o r m a , u m a v o l t a à v i d a m i n e i r a -
e só a n o s d e p o i s . e m 6 8 , foi q u e s u r g i u a o p o r t u n i d a d e p a r a m e 
a p r o x i m a r d o t e a t r o . 
A ú n i c a p e s s o a q u e f a z i a c o r e o g r a f i a s p a r a t e a t r o , n o R i o -
n a v e r d a d e e r a m d a n c i n h a s , os a t o r e s n ã o t i n h a m a m e n o r n o ç ã o 
de d a n ç a . n a q u e l a é p o c a - e r a a S a n d r a D i c k e n s . U m d i a e l a m e 
p e r g u n t o u se eu n ã o g o s t a r i a d e f a z e r u m a c o r e o g r a f i a n o l u g a r 
d e l a e m u m e s p e t á c u l o de t e a t r o , p o r q u e e s t a v a d e v i a g e m m a r -
c a d a p a r a a A l e m a n h a . 
A c e i t e i , e isso m u d o u a m i n h a v i d a : o e s p e t á c u l o e r a A ó p e r a 
d o s três v i n t é n s , de B e r t h o l t B r e c h t e K u r t Weill, c o m d i r e ç ã o 
de J_osé R e n a t o e a t o r e s c o m o D u l c i n a , M a r í l i a P e r a e O s w a l d o 
L o u r e i r o e a t é u m a t o r e m c o m e ç o d e c a r r e i r a , J o s é W i l k e r . E s s e 
t r a b a l h o i n a u g u r o u a S a l a C e c í l i a M e i r e l l e s , n o R i o , e m 6 8 . 
E r a m u i t o c o m u m a c o n t e c e r e m c o i s a s a s s i m , u m d i r e t o r de 
t e a t r o i m a g i n a r u m a m o v i m e n t a ç ã o e m u m e s p e t á c u l o e c h a m a r 
a l g u é m liga_do à d a n ç a p a r a c r i a r a l g u m a coisa_ M a s e r a s e m p r e 
e s s a danc~nha e foi nesse s e n t i d o q u e a c e i t e i o t r a b a l h o . 
M a s n ã o f i q u e i n i s s o e. o u t r a vez, q u i s i r m a i s l o n g e . É c l a r o 
q u e os a t o r e s n ã o t i n h a m a l i n g u a g e m d a d a n ç a ; p o r isso fiz 
a l g u m a s m a r c a ç õ e s e o r e s u l t a d o foi t ã o d i f e r e n t e d o c o m u m q u e , 
p e l a p r i m e i r a vez, um c r í t i c o de t e a t r o - Y a n M i c h a l s k y , n o 
J o r n a l d o B r a s i l - c h a m o u a a t e n ç ã o d o p ú b l i c o p a r a a e x i s t ê n c i a 
de u m t r a b a l h o c o r p o r a l em um e s p e t á c u l o de t e a t r o . 
O r e s u l t a d o foi q u e , no a n o s e g u i n t e , J o s é C e l s o M a r t i n e z 
C o r r e a e F l á v i o I m p é r i o m e c h a m a r a m p a r a f a z e r R o d a V i v a , 
d e C h i c o B u a r q u e de H o l l a n d a . P a r t i c i p e i d o e s p e t á c u l o d e s d e o s 
3 2 
p r i m e i r o s t e s t e s - t u d o i s s o e n q u a n t o s o b r e v i v i a d a n d o a u l a s e m 
e s c o l a s e c l u b e s - e a c a d a vez o u v i n d o o J o s é C e l s o : " V a i , 
e x p e r i m e n t a m a i s , faz m a i s , b o t a m a i s d a n ç a " . E a c a d a e n s a i o 
p r o p u n h a m a i s m o v i m e n t a ç ã o p a r a os a t o r e s . 
E s s a foi u m a é p o c a d e e n v o l v i m e n t o t o t a l c o m o t e a t r o e os 
a t o r e s , t a n t o q u e m e u t r a b a l h o s e g u i n t e foi a p r i m e i r a m o n t a g e m 
d e N a v a l h a na c a r n e , d e P l í n i o M a r c o s , c o m d i r e ç ã o d e F a u z i 
A r a p , c o m T ô n i a C a r r e r o , N e l s o n X a v i e r e E m i l i a n o Q u e i r o z , 
t a m b é m e m 1 9 6 9 , o n d e d i r i g i o q u e c o m e ç a v a m a c h a m a r d e 
e x p r e s s ã o c o r p o r a l . 
T u d o i s s o e r a d e u m a r i q u e z a e n o r m e , p o r q u e m e u t r a b a l h o 
c o m os a t o r e s m o d i f i c a v a m i n h a s a u l a s c o m os b a i l a r i n o s n o d i a 
s e g u i n t e . A o m e s m o t e m p o , e s s a s a u l a s i n f l u e n c i a v a m a c o r e o g r a f i a 
q u e f a r i a p a r a o t e a t r o , m a i s t a r d e . O t e a t r o , à noite,_ m o d i f i c a v a 
a d a n ç a , d e d i a . E t u d o s e j u n t a v a n u m a c o i s a só. 
D e s d e e n t ã o o l h o p a r a a a r t e S!!m p r e c o n c e i t o s , a c h o u m a 
i g n o r â n c i a a t r o z o p r e c o n c e i t o c o n t r a f o r m a s a r t í s t i c a s e i n f e l i z -
m e n t e a i g n o r â n c i a n ã o t e m s o l u ç ã o . É r i d í c u l o p e n s a r q u e a d a n ç a 
s ó s e f a z a p a r t i r d e c i n c o p o s i ç õ e s o u q u e só é v á l i d a a d a n ç a 
q u e n a s c e u · n a E u r o p a . 
E , n o - e n t a n t o , é o q u e a g e n t e vê a t é h o j e : c o r e ó g r a f o s q u e 
v ê m d a E u r o p a m o n t a r c o r e o g r a f i a s e s t r a n h a s a o n o s s o b a i l a r i n o , 
t r a b al h o s q u e c u l t u r a l m e n t e n ã o t ê m n a d a a v e r c o m a f o r m a ç ã o 
a r t í s t i c a e t é c n i c a d e s s e b a i l a r i n o . E n t ã o o q u e · a c o n t e c e ? O s 
b a i l a r i n o s n ã o s a b e m e n ã o p o d e m i n t e r p r e t a r b e m ' a q u e l e s m o v i -
m e n t o s e a c a b a m f a z e n d o a p e n a s a f o r m a , s e m n a d a d e i n t e r i o r . 
E i s s o n ã o é d a n ç a : é g i n á s t i c a . 
P o r isso i n s i s t o q u e n ã o m e i m p o r t a , h o j e - e t u d o n o m e u 
t r a b a l h o p a r t e d a m i n h a v i v ê n c i a - q u a l a i d a d e , o t i p o d e 
m u s c u l a t u r a , a l t u r a o u p e s o d o b a i l a r i n o : o q u e m e i m p o r t a é a 
cabeça. N ã o t e n h o q u a l q u e r i d e a l i z a ç ã o a n í v e l f í s i c o s o b r e o 
b a i l a r i n o o u a b a i l a r i n a c o m q u e m q u e r o t r a b a l h a r . Q u e r o s ó 
q u e t e n h a u m a b o a c a b e ç a . P o r q u e , a i n d a q u e d i f í c i l , é p o s s í v e l 
3 3 
modificar um corpo. Mas mudar a mentalidade de um adulto é um 
trabalho quase impossível. 
Desde essa época, no Rio, descobri que sou um professor -
filósofo da dança, como digo sempre, brincando --.:..., nem mais 
nem menos do que isso. Mas nunca me coloquei na 'posição de um 
professor distante, superior. O professor é um partéiro, ele tira do 
aluno o que este tem para dar. Se o aluno não tem nada, não sai 
nada. Mas é preciso sempre ter cuidado: é claro que o aborto 
existe. Muitos professores matarp o artista na sala de aula. 
34 
IV 
As pequenas mortes 
Em um desses clubes onde eu dava aula, no Rio, havia uma 
pianista que também tocava na Escola Municipal de Bailados. 
Ela me perguntou se eu queria dar aulas lá, mas eu tinha um 
certo medo, me assustava essa coisa de trabalhar em uma escola 
oficial. Aceitei, mas pedi para dar aula só para crianças. 
Então, em 68, comecei a trabalhar na escola e logo descobri 
uma realidade nova: os professores não conversavam entre si, 
não discutiam nada sobre a dança. Conversavam sobre qualquer 
coisa, menos sobre a dança e os problemas de uma sala de aula. 
Faltava uma filosofia de trabalho, uma unidade. 
Ao mesmo tempo, notava a arquitetura do prédio da escola: 
era uma coisa antiga, com uma escadaria enorme, escura. Para 
mim havia toda uma relação entre aquela arquitetura e a menta-
lidade que vivia lá dentro. É preciso sempre notar isso, a relação 
entre a dança e o espaço onde se faz essa dança. 
E descobri as mães: mãe de bailarina é uma instituição na 
dança. Sempre na portaria, esperando as filhas, típicas na maneira 
de vestir, de sorrir, de cumprimentar os professores. Vestem-se 
sempre com as melhores roupas, como se fossem sair dali para 
o palco. 
Peguei exatamente a turma infantil - os professores não 
gostavam muito dessa aula - e, aos poucos, o trabalho foi dando 
35 
origem a uma relação profunda entre mim e as crianças. Bastava 
dar um estímulo e pronto, elas reagiam, criavam, brincavam, riam. 
Uma vez por mês eu propunha que os pais viessem ver e 
fazer as aulas com os filhos, para que vissem a espontaneidade 
das crianças. Mas logo descobri -que aquele convite era contra-
producente: as crianças se tornavam inibidas e ficava claro que 
aquela relação afetuosa e companheira da sala de aula não existia 
em casa. Dessa forma, em pouco tempo desisti dos convites aos 
pais. 
Mas não desisti das aulas: fiquei com um mesmo grupo de 
meninas dos oito aos treze, quatorze anos, e a proposta foi sempre 
uma aula lúdica. Falava do corpo, das funções dos ossos, brincá-
vamos de roda, pedia para que elas dançassem o que gostavam 
de dançar nas festas, lia histórias. 
Acreditava, nessa época, que é assim que se estimula um 
ser criativo. Não adianta colocar uma criança de sete anos em um 
Royal Ballet: este é um método desenvolvido para menininha 
inglesa, que tem perna comprida e bunda fina, enquanto a brasi-
leira tem perna curta e bunda grande. Essas meninas, coitadas, 
têm que se adaptar a um método que não serve para elas. O pior 
é que tudo vira moda no Brasil, um pouco tempo: dá status ter 
um diploma do Royal Ballet. Como ter pingüim em cima da 
geladeira. 
Naquela mesma época comecei a fazer teatro profissional-
mente, como coreógrafo e, mais tarde, ator - em Hoje é dia 
de rock, de José Vicente - e rião deixava nunca de levar essas 
experiências teatrais para minhas pequenas alunas, na Escola de 
Bailados. 
Aquele • era um momento de grande repressão e medo. Qual-
quer grupo de três pessoas que entrasse na escola fazia a gente 
ficar horrorizado: era o tempo da perseguição ao teatro, aos atores, 
ao pensamento. Mais do que nunca entendi a diferença entre 
dança e teatro, a diferença entre ator e bailarino. 
36 
Nunca houve qualquer censura ao balé no Brasil '- a não ser 
no caso ridículo da transmissão pela tevê do espetáculo do Bolshói. 
Era como se a dança brasileira não fosse feita aqui: era uma coisa 
estranha, não fazia parte do país. Essa foi a fase em que acreditei 
não ter mais nada a ver com a dança, em não voltar mais a 
trabalhar com bailarinos. 
Minha vida passou a ser só isso: dança de manhã e à tarde, 
teatro à noite. E muito cigarro e uísque. Em 1972, ganhei o 
Moliere de Teatro e me dei um enfarte. Era como se não aceitasse 
o prêmio, como se me dissesse: ninguém tem o direito de me 
premiar. 
Depois disso passei a conviver com esse problema cardíaco, 
mas em pouco tempo estava de volta à rotina. Dois anos depois, 
minha turma de alunas da Escola de Bailados se formou e me 
chamou para ser o paraninfo. 
Sempre pensei que algumas coisas eu jamais faria em minha 
vida, e uma delas era ser paraninfo. Ainda assim, aceitei e descobri 
uma lenda oriental que tem tudo a ver com minha proposta 
técnica de dança e de postura diante da arte. 
Não fiz, então, um discurso de paraninfo. Apenas contei a 
lenda: "O imperador amarelo viajou para o Norte, além do lago 
Vermelho, e na montanha do país do inverno ele olhou para o 
sul. Ao voltar da viagem perdeu sua pérola mágica. Então o 
imperador enviou Clara-visão para encontrar a pérola. Mas ela 
não achou. Enviou Força-pensamento, mas ele também não achou. 
Finalmente, enviou Sem-intenção. Este encontrou. Procurar a pé-
rola sem-intenção é' a chave do mistério". 
Com minha turma formada, em 74, me afastei da Escola de 
Bailados. Yan Michalsky me propôs fazer críticas de dança para 
o Jornal do Brasil e eu aceitei. Como introdução ao trabalho, 
republiquei trechos de um artigo que havia escrito anos antes, o 
primeiro ensaio sobre dança publicado na imprensa brasileira. 
37 
Escrever sobre dança, em princípio, não é um grande pro-
blema: tenho um certo instinto crítico, negativista, destrutivo 
mesmo, e sempre senti muito mais força nesse lado do que em uma 
tendência criativa. Tenho umas loucuras do gênero pôr fogo em 
museu ou matar pessoas em pensamento e essas fantasias eram 
mais fortes do que as idéias de montar um espetáculo, abrir um 
centro cultural. 
Um dia fui assistir a um grupo do Rio de Janeiro, dirigido 
pela Dalal Achcar. Era uma montagem da Suíte quebra-nozes. 
Esta suíte é apresentada no mundo inteiro durante o inverno, com 
frio, mas o espetáculo foi montado na praça Tiradentes, no Rio, 
no verão, com as menininhas todas vestidas de veludo. 
Logicamente, não podia ser grande coisa. E escrevi o que 
pensava na minha crítica. Mas parece que a mãe da Dalal -
sempre as mães das bailarinas - era uma pessoa muito influente 
no Rio. Só sei que perdi meu emprego no jornal. Coisa que não 
me fez mais triste. Nem mais alegre. 
Nessamesma época outra lição serviu para o desenvt~lvi­
mento do meu trabalho: Rudolf Nureyev e Margot Fonteyn vieram 
ao Brasil pela primeira vez e fui assistir à aula deles, no Muni-
cipal do Rio. 
Eles começaram lentamente, tiraram o sapato e deslizaram 
os pés no chão, sentindo o contato com o solo, sentindo a relação 
com o solo, com aquele espaço onde iam dançar. Era quase uma 
cerimônia, lenta e cuidadosa. 
Só depois colocaram as sapatilhas e iniciaram um pliê bem 
lento. O corpo de baile, enquanto isso, já estava saltitante e 
pronto para entrar em cena. 
Confirmou-se, para mim, a importância da relação com o 
tempo, o tempo interior, um tempo que só artistas como Margot 
e Nureyev têm. ou atrizes como Fernanda Montenegro e Marília 
Pera. Confirmou-se também que as aulas de clássico são rápidas 
38 
demais, superficiais demais, e professores e bailarinos querem 
resultados em pouco tempo. 
O problema é que não se pode dar saltos em arte. Existe o 
dia, a noité; a semana, o mês, o ano, você não· tem como suprimir 
0 tempo, não posso pular uma noite, não posso ir contra a natu-
reza, a natureza do meu corpo. Não posso lutar contra algo que 
é muito maior do que eu. 
O aprendizado exige um tempo e esse te~po. ~reci~a ser 
consciente. É claro, no entanto, que existem as md1v1duahdades 
_ e 0 professor existe para reconhecer essas individualidades -, 
e esse tempo varia em cada um. A conclusão é a seguinte: o que 
você aprende rápido vai embora rápido. 
O que temos aos montes no Brasil é gente que faz 58 pirue-
tas, ou 32 fuetés, mas faltam aqueles que dançam, que ouvem a 
música, que colocam intenções nos gestos, que têm um tempo e 
uma emoção internos. 
Deixei a Escola de Bailados do Municipal e parti para outra 
pesquisa, mais próxima dos meus interesses no teatro e na danç~: 
o gestual do homem carioca, patrocinado pela Funarte. Quena 
estudar as características desses gestos, como é que a população 
do Rio se move. 
Descobri um dado interessante: a divisão entre norte e sul 
no Rio não é só uma questão de túnel, de ter ou não ter praia. 
As crianças da zona Sul têm as pernas mais longas, as da zona 
Norte têm o tronco mais desenvolvido. As mulheres das· favelas 
ainda tinham o pescoço mais longo, a cabeça mais ereta - talvez 
por levarem a lata d'água na cabeça. Essa pesquisa durou todo o 
ano de 1975, mas nunca me preocupei em publicar nada: incor-
porei, consciente ou inconscientemente, tudo o que descobri du-
rante esse trabalho. 
Nesse mesmo ano passei a dirigir a Martins Pena, escola 
oficial de, teatro do Rio de Janeiro. Essa foi uma experiência 
39 
riqUlsstma, , p o r q u e p u d e c o l o c a r em p r á t i c a t u d o a q u i l o que 
estava s o n h a n d o , t o d a uma a b o r d a g e m d i d á t i c a das a r t e s cênicas. 
M i n h a p r i m e i r a p r o v i d ê n c i a foi a b o l i r o v e s t i b u l a r , u m teste 
t ã o c o m p l i c a d o e exigente que, segundo m i n h a visão, o a l u n o que 
conseguisse p a s s a r n ã o p r e c i s a v a mais e s t u d a r : e r a u m a t o r com-
p l e t o , e s t a v a f o r m a d o em t e a t r o . Pelo m e n o s no t e a t r o a c a d ê m i c o . 
M i n h a p r o p o s t a e r a um c u i s o livre, onde os i n t e r e s s a d o s 
t e r i a m as p r i m e i r a s r e s p o s t a s p a r a suas indagações a r e s p e i t o d o 
t e a t r o , a nível físico, s o b r e o espaço, a h i s t ó r i a , a a c ú s t i c a , a 
i n t e r p r e t a ç ã o . P a r t i a , assim, do mesmo p r i n c í p i o q u e me e n c a m i -
n h o u n a d a n ç a : a a r t e é antes de t u d o u m gesto de vida. 
N a M a r t i n s P e n a e n f r e n t e i t a m b é m a q u e s t ã o do t a l e n t o , 
dessa coisa vaga que c h a m a m o s t a l e n t o e que n ã o sei bem e x p l i c a r 
o que é. T a l e n t o t a l v e z s e j a u m a c a p a c i d a d e n a t a , u m e s t a r a b e r t o 
para, e n a d a mais que isso. 
H o j e a c r e d i t o que é m e l h o r t r a b a l h a r com gente t a l e n t o s a e 
t e n t a r d e s e s t r u t u r a r inclusive esses t a l e n t o s o s p o r q u e eles, mais d o 
que ninguém, têm t o d o um c o n c e i t o do t r a b a l h o a que se p r o p õ e m . 
P e r d i m u i t o t e m p o com gente sem t a l e n t o , mas h o j e me é impos-
sível t r a b a l h a r com essas pessoas. 
P r e c i s o de pessoas que e s t e j a m a b e r t a s , j á n u m d e t e r m i n a d o 
p o n t o do seu a u t o c o n h e c i m e n t o artístico: assim elas o u v e m a q u i l o 
que você p r o p õ e e isso faz com q u e se movam. De q u a l q u e r f o r m a , 
n u n c a me assustei com os a r t i s t a s talentosos. T a n t o que t r a b a l h e i 
com alguns dos m e l h o r e s a t o r e s , atrizes, b a i l a r i n o s e b a i l a r i n a s 
do país. 
F i q u e i n a M a r t i n s P e n a a t é 78 e lQgo passei p a r a o I n e a r t e , 
I n s t i t u t o E s t a d u a l das Escolas de A r t e do R i o de J a n e i r o , o n d e 
t a m b é m fiquei p o r dois anos, a t é a m u d a n ç a de governo. A l i á s , 
a a r t e no B r a s i l e s t á ' sempre t e n d o seu c a m i n h o i n t e r r o m p i d o pelas 
m u d a n ç a s políticas. 
E m 1 9 7 7 , dirigi i n t e i r a m e n t e meu p r i m e i r o e s p e t á c u l o de 
t e a t r o : O e x e r c í c i o , de Lewis J o h n C a r l i n o , com M a r í l i a P e r a e 
4 0 
G r a c i n d o J ú n i o r , no R i o , com o q u a l g a n h e i o P r ê m i o Mam-
b e m b e (dessa vez n ã o me deu u m e n f a r t e ) . M a r í l i a levou t o d o s 
os prêmios como atriz. 
Mas essa m i n h a r e l a ç ã o com o t e a t r o t a m b é m é complexa: 
fiz vários e s p e t á c u l o s mas só dirigi dois, s e n d o q u e e n t r e 1977 e 
1989 só p a r t i c i p e i deste E x e r c í c i o e de M ã o na l u v a , a m b o s c o m 
m u i t o sucesso de c r í t i c a e de público. 
N ã o que eu n ã o quisesse t r a b a l h a r c o m t e a t r o o u q u e tivesse 
a b a n d o n a d o o palco: eu é que fui a b a n d o n a d o . Ou m e l h o r : é 
quase u m a p o s t u r a m i n h a , u m a p r e m i s s a que c o l o q u e i p a r a mim. 
N ã o busco n a d a , n ã o b a t o na p o r t a de d i r e t o r o u p r o d u t o r 
n e n h u m . S e n ã o me c h a m a r e m a c a b o n ã o fazendo n a d a . Mas é 
c l a r o que, no fundo, q u e r o t r a b a l h a r c o m espetáculos. 
P a r a mim ficou c l a r o que, n o t e a t r o , n a m o n t a g e m de um 
t r a b a l h o , as coisas s ã o b e m mais objetivas, sei m e l h o r o q u e quero. 
N a a u l a de d a n ç a s o u mais um mágico, u m p r e s t i d i g i t a d o r , e 
t e n h o u m c a m i n h o p r ó p r i o . T a n t o que n u n c a fui assistente de 
c o r e ó g r a f o , n u n c a p a r t i c i p e i da m o n t a g e m de u m a c o r e o g r a f i a . 
M e u processo n a d a n ç a é muito p a r t i c u l a r , a p a r t i r d a s m i n h a s 
vivências. 
No final dos a n o s 7 0 descubro q u e e s t a v a mais u m a vez 
insatisfeito: e r a um a d m i n i s t r a d o r no I n e a r t e , n ã o h a v i a t e m p o 
p a r a c r i a r n a d a . E nessa h o r a me d á um d e s â n i m o t o t a l , começo 
a fugir das pessoas e dos compromissos, b e b o demais. 
E n t ã o de r e p e n t e fugi de tudo: do R i o , d o c a s a m e n t o , do 
e m p r e g o , das r e s p o n s a b i l i d a d e s . F i z t o d o s os r o m p i m e n t o s que 
a c h a v a necessários n aq u e l a h o r a . F u g i p a r a São P a u l o , sem q u a l -
q u e r p e r s p e c t i v a de t r a b a l h o , sem p r o j e t o s , sem c a s a , sem n a d a . 
4 1 
v 
O e t e r n o · r e c o m e ç o 
A m u d a n ç a p a r a São P a u l o t i n h a um f a t o r p r o f i s s i o n a l , 
p o r q u e eu j á d e r a um c u r s o n a a c a d e m i a do I v a l d o B e r t a z z o e 
sentia c e r t a a f i n i d a d e com a cidade. A o mesmo t e m p o , estava 
sem m u i t a s a í d a n o R i o , a d a n ç a p r a t i c a m e n t e n ã o existia mais. 
J u n t a n d o t u d o isso com as c i r c u n s t â n c i a s pessoais e afetivas, m i n h a 
i d a p a r a S ã o P a u l o foi um p o u c o de fuga e de b u s c a - c o m o 
p a r e c e s e r em t o d o s os casos .. 
O i n í c i o , como s e m p r e , foi c o m p l i c a d o em t e r m o s de s o b r e -
vivência, m a s a L a i a D o h e i n z e l i n me p r o p ô s d a r aulas n a a c a d e m i a 
dela e aos p o u c o s fui me e n t e n d e n d o com a cidade. D e s c o b r i , p o r 
exemplo, q u e São P a u l o é mais solta do que o R i o , o R i o tem 
u m a coisa de superfície, de a p a r ê n c i a , de beleza e x t e r n a q u e d á 
p o u c o espaço p a r a relações mais p r o f u n d a s . 
A o mesmo t e m p o , eu j á e r a mais ou menos c o n h e c i d o n o 
m u n d o da d a n ç a e do t e a t r o em São P a u l o , h a v i a ganho o p r ê m i o 
de m e l h o r c o r e ó g r a f o p e l a m o n t a g e m c a r i o c a de O a r q u i t e t o e o 
i m p e r a d o r da A s s í r i a , em 1 9 6 8 ; p r ê m i o c o n c e d i d o pela A P C A , 
A s s o c i a ç ã o P a u l i s t a de C r í t i c o s de A r t e . N i n g u é m me avisou, 
aliás, s o b r e esse prêmio: eu só s o u b e dele doze anos depois, q u a n d o 
m u d e i p a r a São P a u l o . 
E m 1 9 8 1 , L a i a e seu g r u p o m o n t a r a m Clara C r o c o d i l o a 
p a r t i r das músicas de A r r i g o B a r n a b é e desde e n t ã o surge u m a 
4 2 
r e l a ç ã o m u i t o a f e t u o s a e n t r e nós. S e m p r e n o s c o m p r o m e t e m o s a 
c r i a r um espetáculo j u n t o s , mas esse t r a b a l h o n ã o sai. E talvez 
n ã o s a i a nunca. 
N a q u e l e mesmo a n o , M á r i o C h a m i e - e n t ã o s e c r e t á r i o de 
C u l t u r a d a cidade de São P a u l o - me c h a m o u p a r a d i r i g i r a 
E s c o l a s de Bailados do Municipal. Mais uma vez lá ia eu t r a b a l h a r 
com o E s t a d o . Dessa vez s u b s t i t u i n d o A d d y A d d o r , que b r i g a r a 
com professores, mães e p a i s p o r c a u s a de i n t e r f e r ê n c i a s de t o d o 
g ê n e r o em seu t r a b a l h o . 
É c u r i o s o n o t a r que sou s e m p r e l e m b r a d o nessas h o r a s , 
q u a n d o a b o m b a j á e x p l o d i u , q u a n d o os p r o b l e m a s j á c h e g a r a m 
a um p o n t o m u i t o a v a n ç a d o . Aí o Klauss é l e m b r a d o , p a r a colo-
c a r um p o u c o de o r d e m . E n t r e i e logo n a p r i m e i r a r e u n i ã o senti 
o que iria e n f r e n t a r : a escola p a u l i s t a n ã o e r a nem p a r e c i d a com 
a c a r i o c a . E r a pior, m u i t o pior. 
P o r mais que a E s c o l a de B a i l a d o s do R i o tivesse seus 
ranços (os professores davam aulas p a r a o g r u p o profissional), 
havia · u m a ligação m í n i m a e n t r e os dois g r u p o s - a E s c o l a e o 
C o r p o de Baile - , coisa que não existia em a b s o l u t o em São 
P a u l o . P a r a c o m e ç a r , o p r é d i o da E s c o l a de B a i l a d o s p a u l i s t a n a 
ficava s e p a r a d o dos o u t r o s grupos, e m um local h o r r í v e l , d e b a i x o 
do v i a d u t o do Chá. 
Os professores, p o r o u t r o lado, n ã o m o s t r a v a m interesse 
em m o d i f i c a r n a d a , em a p r e n d e r n a d a . Mais do que n u n c a , ali 
senti que os cursos oficiais de balé n ã o levam a n a d a , as E s c o l a s 
de B a i l a d o s p o d e m e devem fechar p o r q u e é imposs:vel a p r e n d e r 
a l g u m a coisa s o b r e d a n ç a em suas aulas. 
Esses cursos g e r a l m e n t e são e n t r e g u e s a pessoas q u e a t é 
têm um c e r t o t a l e n t o , mas que n ã o conseguem fazer n a d a de 
c r i a t i v o devido ao c u r r í c u l o , aos p r o g r a m a s que n ã o p o d e m s e r 
a l t e r a d o s . Os p r o f e s s o r e s são todos formados p o r u m a t é c n i c a e 
u m a visão antigas da a r t e e estão lá e s p e r a n d o a a p o s e n t a d o r i a . 
U m a a p o s e n t a d o r i a , como se sabe, ridícula. 
4 3 
P o r t u d o isso, não há q u a l q u e r interesse p o r p a r t e dos pro-
fessores em m o d i f i c a r seja o que for, e não falo a q u i especifica-
mente da E s c o l a de Bailados de São P a u l o ou da do R i o , que 
conheci bem. A c r e d i t o que esse seja um fenômeno de t o d a escola 
oficial de d a n ç a , n o Brasil. · 
R e a f i r m o que essas escolas são inúteis p o r q u e seus q u a d r o s 
são f o r m a d o s p o r professores que têm uma m e n t a l i d a d e antiga, 
u l t r a p a s s a d a , uma visão c o n s e r v a d o r a d a árte. E são e x a t a m e n t e 
essas pessoas que formam crianças e jovens, que saem dessas 
escolas j á i n t e i r a m e n t e m a l f o r m a d a s e d e s i n f o r m a d a s em r e l a ç ã o 
à dança. 
A o invés de escolas oficiais de dança, deveriam ser c r i a d o s 
centros de reciclagem p a r a quem quisesse ser professor, p a r a que 
estes pudessem a c o m p a n h a r m e l h o r o que existe de mais m o d e r n o 
n a d i d á t i c a ou n a técnica da d a n ç a . 
Basta l e m b r a r que t o d o a l u n o de E s c o l a de Bailados, se tiver 
d i n h e i r o , e s t u d a t a m b é m em escolas p a r t i c u l a r e s , p o r q u e só 0 
ensin<:J da escola oficial não basta. E m São P a u l o , p o r exemplo, 
e r a a mesma a u l a o ano i n t e i r o , a a u l a que o p r o f e s s o r d á :ao 
p r i m e i r o d i a é e x a t a m e n t e a mesma no último dia Não são mais 
a r t i s t a s , p o r t a n t o : são funcionários públicos da dança. 
As dificuldades são a b s u r d a s . Os professores ou e s t ã o prestes 
a se a p o s e n t a r , e n c e r r a r a c a r r e i r a , ou não se a p o s e n t a m p o r q u e 
n ã o têm mais n a d a a fazer. A o mesmo tempo, estão a c o s t u m a d o s 
com as m u d a n ç a s de d i r e ç ã o n a s escolas, diretores que e n t r a m 
cheios de p r o j e t o s n u n c a realizados. 
Assim, você p r o p õ e idéias e p l a n o s d u r a n t e as reuniões e 
a p a r e n t e m e n t e eles até aceitam, sequer discutem suas p r o p o s t a s . 
Mas, ao s a i r dali, simplesmente ignoram o que você disse e t u d o 
c o n t i n u a n a mesma. 
Uma escola nesses moldes mata a criatividade, a individuali-
d a d e de q u a l q u e r a r t i s t a ou b a i l a r i n o . N a Escola de Bailados de 
São P a u l o , o a l u n o só ia p a r a o· palco depois de oito a n o s de 
aulas - e a d a n ç a só se a p r e n d e no palco. 
4 4 
E r a m 1 2 0 0 alunas, a p a r t i r dos sete anos, t o d a s elas meni-
n i n h a s a c o s t u m a d a s a s o n h a r com a d a n ç a , com a M á r c i a , com 
a M a r g o t , com a A n a B o t a f o g o , e de r e p e n t e e n t r a m n u m a sala 
de a u l a e as o b r i g a m a a g a r r a r um p e d a ç o de p a u , a b r i

Continue navegando