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ob jet ivo s Metas da aula Evidenciar nos textos fatores ligados às subjetividades dos autores, bem como discutir questões que interferem na criação literária, considerando entrevistas, depoimentos, aspectos biográficos, histórias, memórias dos escritores. Esperamos que, ao final desta aula, você seja capaz de: 1. reconhecer a complexidade que envolve o processo de criação literária do autor; 2. identificar traços importantes na escrita do autor, relacionados a diversos aspectos: sociais, literários, biográficos, políticos, contextuais; 3. estabelecer a sua leitura para além dos aspectos grafados no texto literário, aplicando-a aos que também compõem a subjetividade. Em cartaz: o escritor em “um mundo de histórias” Henriqueta Do Coutto Prado Valladares Bianca Karam Athayde Dayhane Ribeiro Paes 2AULA Literatura Brasileira IV | Em cartaz: o escritor em “um mundo de histórias” C E D E R J2 4 INTRODUÇÃO Na Aula 1, destacamos textos teóricos que problematizavam questões concer- nentes ao sujeito que escreve e ao sujeito que lê textos literários. Pluralizamos, portanto, o sujeito. Levamos em consideração que existe uma rede complexa ligada às subjetividades da escrita, na medida em que percebemos o quanto é difícil definirmos univocamente um Eu. Nessa teia que o envolve, estão, dizíamos lá, múltiplas faces que esta subje- tividade assume em diferentes espaços, situações, vivências e circunstâncias diversas, como no trabalho, no lazer, na família, no ambiente acadêmico, nas redes sociais. Desempenhamos papéis que nos são impostos, uma espécie de comportamento para, digamos assim, uma possível sobrevivência nesses C E D E R J 2 5 A U LA 2grupos. Em nosso cotidiano, somos submetidos aos frames (molduras) que nos fazem agir de maneira específica em várias situações, pois a convivência nos obriga a isso. Por isso, nós nos comportamos de uma forma assistindo a uma partida de futebol e, de outra, em uma palestra sobre a profissão que exercemos. Tratamos de forma diferenciada o nosso cliente, quando preten- demos fechar um negócio profissional, e o nosso amigo, que encontramos num fim de tarde para relaxar depois de um dia cansativo de trabalho. Dessa forma, percebemos que estamos, mesmo fora do espaço literário, como em um teatro, várias vezes em um mesmo dia, assumindo diferentes performances. Poderíamos, então, concluir que o espaço ficcional não está só no palco do teatro, mas em nosso dia a dia. Descobrimos que nós tam- bém representamos e que, assim, a representação literária de um Eu é uma representação da representação. Nesta segunda aula, perceberemos que o assunto sobre autoria ainda não se esgotou em nossa primeira aproximação. Temos muitos caminhos a percorrer ao se tratar dessa subjetividade da escrita. Por isso, tão logo tomamos um livro (romance, conto, novela, poema) em nossas mãos, queremos saber não só da história que conta. Curiosamente nos interessamos pela história de quem conta. Novamente em cena: o autor. O anonimato é, para nós, insuportável, dizia-nos Foucault. Então, cada livro aberto suscita também outras fontes onde queremos beber para saciar nossa sede de saber. Queremos conhecer mais sobre a vida do autor. Quando ele descobriu a sua vocação para tal tipo de arte? Também atua em outra modalidade artística? Alguém, especialmente, o incentivou a ser um escritor literário? De que forma ele cria? Que outros escritores o influenciaram, ou não houve influência externa? De que maneira aquela subjetividade “vê” o mundo em que vive? São questões e respostas que irão variar segundo cada escritor escolhido para leitura. Trata-se de perguntas recorrentes em muitas entrevistas, o que nos prova que não estamos sozinhos em nossas buscas. Vejamos algumas observações, pertinentes ao tema, em duas partes. PARTE I: DOS QUE CRIAM ESCRITAS Sobre as relações entre vida e obra, já destacamos que estas não são tranquilas de se estabelecer. Afinal, precisamos das biografias espe- cializadas, de entrevistas, depoimentos, palestras, cartas assinadas pelo próprio autor, para que se afirme a relação intrínseca entre as duas. Literatura Brasileira IV | Em cartaz: o escritor em “um mundo de histórias” C E D E R J2 6 Affonso Romano de Sant’Anna, poeta que também escreve crônicas em jornal, publicou em O Globo (em “A voz da Poesia”) um texto sobre essa extrema dificuldade, dizendo que há, na poesia, uma “estranha relação entre o eu e o mundo. O pessoal e o social. Há de haver uma orquestração” (SANT’ANNA, 2012). Notamos essa orquestração explícita, por exemplo, na dedicatória do poeta romântico Fagundes Varela, no poema “Cântico do Calvário” – “À memória de meu filho morto a 11 de dezembro de 1863” –, em que se observa a direta relação de um fato ocorrido em sua vida e com o texto. No entanto, outras aproximações não são tão diretas assim. Elas podem acontecer também ao revés. O escritor americano Paul Auster, considerado na Aula 1, revela em entrevista que não havia entre ele e o pai uma forte convivência. Ela se fazia sim com a mãe, bastante presente na vida de Auster. No entanto, em sua literatura, a figura do pai é muito mais incisiva do que a da mãe. Observamos outro exemplo em uma crônica de Manuel Bandeira, em que o escritor fala de dois aspectos: da afetividade de sua mãe, repre- sentada por meio de várias palavras no diminutivo, e de como Mário de Andrade percebia este traço na escrita da poesia de Bandeira. Lê-se, então, na crônica “Minha Mãe”, o reconhecimento do autor sobre esta influência, dita da seguinte maneira: Notou Mário de Andrade como em minha poesia a ternura se trai quase sempre pelo diminutivo; creio que isso (em que não tinha reparado antes da observação de Mário) me veio de diminutivos que minha mãe, depois que adoeci, punha em tudo que era para mim: ‘o leitinho de Nenen’, ‘a camisinha de Nenen’... Porque ela me chamava assim, mesmo depois de eu marmanjo. Enquanto ela viveu, foi o nome que tive em casa, ela não podia acostumar-se com outro. Só depois que morreu é que passei a exigir que me cha- massem – duramente – Manuel (BANDEIRA, 1972, p. 185-187). Julio Cortázar, escritor argentino, abriu uma palestra proferida em Cuba contando um acontecimento insólito. Uma senhora que ele havia encontrado no aeroporto afirmava veementemente que ali, com certeza, não estava Julio Cortázar, que ele era um outro. O verdadeiro Julio Cortázar, ela o conhecera em outra ocasião e lugar, afirmava para o próprio, taxativamente. A situação de dúvida lançada pela interlocu- tora para Cortázar, ele mesmo, coincide na verdade com aspectos de sua C E D E R J 2 7 A U LA 2obra literária, que suscita em seus leitores o mesmo tipo de desconforto, estranhamento e dissolução de certezas absolutas. O escritor português José Cardoso Pires (1925-1998) viveu o estranhamento que aquela senhora havia imposto a Julio Cortázar. O escritor transformou em literatura a experiência clínica de acordar um dia e não se reconhecer. Após perder a memória e olhar a própria existência como se fosse outra pessoa, inclusive privado dos sinais de escrita, Cardoso Pires sentiu-se uma folha em branco. Já recuperado – da mesma maneira misteriosa como ficou doente –, o escritor produziu De profundis, valsa lenta, texto em que narra: “Ainda hoje estou a ouvir aquele ‘é’. Espantoso como bruscamente o meu eu se transformou ali noutro alguém, noutro personagem menos imediato e menos concreto” (PIRES, 1998). O livro segue expondo a profunda angústia de procurar por si mesmo ao passo em que discute a importância da escrita nesse processo. Trata-sede um exemplo sensível da relação que se desdobra entre o Eu, o Outro e o Outro de mim. Já o escritor moçambicano Mia Couto revelou algo muito interes- sante sobre seu nome. Ele respondeu à seguinte pergunta em entrevista, evidenciando uma nova identidade, escolhida por ele mesmo, realcio- nada mais intimamente com algo de seu gosto pessoal e de prazer de convivência com ele mesmo. Essa opção foi acatada pelos que haviam lhe dado o nome de batismo: Antonio Emílio Leite Couto. Vejamos o trecho da entrevista: De onde vem o nome Mia? Vem de um convívio que eu tinha com gatos, com dois, três anos. É óbvio que eu não me lembro, mas os meus pais contam-me, e têm fotos para comprovar, que eu comia com gatos, dormia com gatos, pensava que era um deles. Eram gatos vadios que foram para a nossa varanda e ali ficaram. E um dia decidi que queria ser chamado Mia. Eles aceitaram e passei a chamar-me assim. Acho que foi o meu primeiro acto de ficção. Fonte: forum.angolaxyami.com/livros-o-melhor-da-literatura/290509- -livros-para-todos. Literatura Brasileira IV | Em cartaz: o escritor em “um mundo de histórias” C E D E R J2 8 Para não chegarmos à exaustão de exemplos, convidamos você, nosso interlocutor, para acessar o blog indicado no link a seguir e ler os poetas brasileiros que influenciaram a poesia de Affonso Romano de Sant’Anna, a fim de verificar estas vozes que vão compondo subjetividades: http://www.avozdapoesia. com.br/autores.php?poeta_id=207. Caro aluno, seria bom que você assistisse a este vídeo com a entrevista de Mia Couto, disponível no seguinte site: http:// www.youtube.com/watch?v=SzNedHwwPmI&feature=play er_detailpage. De influências nas escritas Comecemos por Mia Couto, que em entrevista afirmou ter come- çado sua escrita pela poesia. E como muitos escritores também fazem: ouvindo outras vozes. Seu pai, também poeta, reconhecidamente uma influência no caminho literário de Mia Couto, apresentou-o ainda a outras vozes (uma vez que traduziu e organizou antologias de muitas obras literárias), inclusive da poesia brasileira: Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto e, os mais recentes, Manuel de Barros, Adélia Prado e Hilda Hilst. É importante destacar que, mesmo se não tivermos acesso, direta- mente, aos depoimentos do escritor sobre tais influências de leituras de outros escritores, a nossa leitura da obra já nos permite percebê-las. Estão citadas nos textos reiteradas vezes, fazendo-nos crer que no processo de criação de uma escrita há outras obras em diálogo mais ou menos visível. Nos romances machadianos, evidencia-se que o autor é leitor de Shakespeare, Sterne, Poe. Repetidas vezes, Machado de Assis cita obras ou trechos de obras literárias destes escritores. Os árcades, como veremos mais adiante, são chamados de neoclássicos por admirarem e assumirem como “modelos” os escritores clássicos gregos. Os românticos brasileiros reverenciavam Musset, Byron, Schiller. C E D E R J 2 9 A U LA 2De como nascem as escritas Comecemos conhecendo um pouco da história de Cecília Meirel- les, poetisa brasileira, e de sua relação com um mundo de histórias de imaginação que a fascinava em sua infância. Cecília Meirelles perdeu mãe e pai muito cedo. O pai morreu três meses antes de ela nascer e a mãe também faleceu, quando a menina tinha três anos. A sua tutela coube à avó materna, de origem açoriana de São Miguel. Segundo Cecí- lia Meirelles, pela a avó soube muitas coisas do folclore açoriano. “Ela também me cantava rimances e me ensinava parlendas”, dizia Cecília recordando a infância. No entanto, foi Pedrina, sua pajem (também por pouco tempo), a “companheira mágica” da infância. Era aquela que não só lhe contava histórias do folclore brasileiro (histórias de Saci Pererê e Mula-sem-cabeça), mas que as “dramatizava, cantava, dançava e sabia adivinhações, cantigas, fábulas etc”. Cecília Meirelles também revela que tinha uma relação intrínseca com o objeto livro, desde sua encadernação, sua capa, seu aspecto gráfico, suas ilustrações. Tinha uma verdadeira paixão pelo exemplar de Os Três Mosqueteiros, livro que pertencera ao seu avô. “Aquilo era uma história que não acabava nunca; e acho que esse era o seu principal encanto para mim”, afirmava Cecília (MEIRELLES, 1972, p. 43). Toda essa vivência influenciou a escritora Cecília Meirelles que, desde pequena, já se sentia fascinada pelas parlendas, ouvidas de sua avó, por exemplo. O ritmo, as rimas, os versos que ali estavam também seriam recursos usados em sua criação literária – a poesia. Uma pré-visão de seu futuro profissional. Os rimances são histórias muito antigas em verso, cavaleirescas, mais ou menos cortesãs. Podem ter origem no séc. XV. O primeiro transcrito é a outrora célebre “Nau Catarineta” (ou “Nau Catrineta”); o segundo, o rimance “Dona Silvana”. Este gênero de poemas foi durante muito tempo de tradição oral, talvez ao modo do que se passou com as danças e cantares folclóricos, que também teriam origem cortesã ou fidalga. Em Portugal, quem primeiro cuidou da sua recolha foi o Cavaleiro de Oliveira, no séc. XVIII; no século seguinte, Garrett deu seguimento à tarefa, como a continuaram mais tarde Teófilo Braga e outros. A ideia inicial da recolha foi romântica, como aconteceu na Alemanha por meio do trabalho dos irmãos Grimm. Os dois são poemas moralizantes e em ambos encontramos o que alguns chamam de “maravilhoso cristão”, isto é, a intervenção sobrenatural, e Literatura Brasileira IV | Em cartaz: o escritor em “um mundo de histórias” C E D E R J3 0 daí se enquadrarem na temática religiosa. No primeiro, essa intervenção é clara; no segundo, quase só sugerida. É interessante notar que a “Nau Catarineta” faz referência à época das descobertas marítimas. Fonte: lendasexemplares.blogspot.com.br Já as parlendas são versinhos com temática infantil que são recitados em brincadeiras de crianças, como exemplificado a seguir: Parlendas Hoje é Domingo, pede cachimbo O cachimbo é de ouro, Bate no touro, O touro é valente, Bate na gente, A gente é fraco, Cai no buraco, O buraco é fundo, acabou-se o mundo. Um, dois, feijão com arroz Três, quatro, feijão no prato Cinco, seis, falar inglês Sete, oito, comer biscoito Nove, dez, comer pastéis Uni duni tê Salamê min guê Sorvete colorido O escolhido foi você Fonte: http://www.suapesquisa.com/folclorebrasileiro/parlendas.htm As histórias que muitas pessoas, às vezes,querem transmitir a um escritor para que as torne contos, romances ou novelas, Cortázar dispen- sa. Acercam-se dele afirmando: “tenho uma excelente história para seus leitores”. Ele agradece, mas diz que um tema espetacular deverá ser como “um diamante dentro de um cristal”, algo que possa ultrapassar o mero argumento apresentado. Dessa forma, o escritor argentino explicita que “escrever revolucionariamente não significa escrever sobre a revolução”. Cortázar explica que percebeu, quando esteve em Cuba, o interesse, a emoção e a reflexão crítica de camponeses, quando colocados em contato C E D E R J 3 1 A U LA 2com a leitura das obras literárias de William Shakespeare. Ao contrário, esse público não se fixava nas leituras de obras que alguns autores faziam especialmente para eles, usando linguagens e abordando assuntos que julgavam ser mais acessíveis para esse tipo de leitor mais simples. Com a intenção ideológica de fazer os camponeses assimilarem ideias pro- pagadas pelo regime político daquele país, os textos – que poderíamos chamar de panfletários devido ao conteúdo – não os motivavam para a leitura como faziam os escritos por Shakespeare.Pensemos ainda no que diz Machado de Assis, em Esaú e Jacó, chamando a atenção de que, muitas vezes, o valor da obra pode não estar na história que conta, mas no como se conta. Se pensarmos na história do referido romance (a história de dois gêmeos que se apaixonam pela mesma mulher, Flora, e disputam não só o amor da moça, mas também posições políticas diversas: um é monarquista e o outro é republicano), veremos que ela em si não é extraordinária. A força está na maneira como é contada. É o que lemos no capítulo LI / “Aqui presente”: “Supõe um fio de anedotas ou uma história comprida, cousa alheia: ainda assim podia ser deles somente, porque há estados da alma em que a matéria da narração é nada, o gosto de a fazer e de a ouvir é que é tudo. Também podia ser isto” (ASSIS, 1979, p. 1012, grifo nosso). Os personagens de ficção: subjetividades criadas Lembremos que os escritores criam personagens, dão vida a esses seres que, se pensamos serem dominados por seus criadores, nos sur- preendem com a autonomia que assumem, driblando os seus autores. Essa força narrativa é tão evidente que os escritores equilibram-se nas entrevistas quase sempre obrigados a responder: como é o seu pro- cesso de criação da escrita? Como são criados os personagens por seus criadores? Beth Brait, em seu livro sobre A personagem, reserva nele um capítulo – “De onde vêm esses seres” – para que vários escritores brasi- leiros respondam a esta pergunta. Ao acompanharmos as mais diversas e diferentes respostas a tal pergunta, também flagramos as subjetividades daqueles que escrevem. Literatura Brasileira IV | Em cartaz: o escritor em “um mundo de histórias” C E D E R J3 2 Cada um tem um modo muito próprio e particular de lidar com os seres ficcionais que inventam. Se os escritores admitem que os seres de papel ou de palavras existem, muitos confessam que tais personagens têm muito dos seus próprios criadores. Podem ser aspectos, traços de suas personalidades. No entanto, podem ser feitos como mosaicos, ganhando de pessoas outras, conhecidas ou não, esses aspectos humanos. Um dos escritores entrevistados por Beth Brait usa a imagem dessa mistura, dizendo que retira de cada pessoa conhecida traços para compor seus personagens, coloca-os em um liquidificador e, assim, bem chacoa- lhados pelo movimento do aparelho, ganham vida os seus personagens. Lygia Fagundes Telles afirma que a convivência, a proximidade excessiva com seus personagens durante um bom tempo faz com que ela se sinta vampirizada por eles, como se lhe sugassem todo o sangue. Revela que, no fim de uma criação artística de um livro que escreve, se encontra em absoluto cansaço e exasperação. Moacir Scliar fala muito peculiarmente da criação de seus perso- nagens, apresentando-se também como um deles – o personagem escritor Moacir Scliar. Dessa forma, ele se apresenta como um personagem que assume o papel de escritor, porque o escritor difere do ser social. Acompanhei, há muitos anos, Jorge Amado afirmar, em uma entrevis- ta, que seu desejo em Dona Flor e seus maridos era que Dona Flor escolhesse um dos dois pretendentes. No entanto, a personagem havia ultrapassado a vontade do próprio escritor, com muita vida, personalidade e vontade pró- prias, por isso, ficando com os dois. Zélia Gattai, sua esposa, ao passar na porta do escritório, onde Jorge escrevia, foi testemunha do momento em que o escritor reconheceu o fato de ter perdido o controle de sua personagem. Ela passou exatamente no instante em que Jorge desabafava com Dona Flor: “Sua bandida, você me traiu, ficando com os dois maridos”. Atentemos ainda para uma observação de Umberto Eco sobre a estranha reação de um amigo que se mostrou ofendido com a publicação de um de seus livros, por achar que, um dos personagens revelava uma história sigilosa, um verdadeiro segredo de sua família. No entanto, Eco jamais conhecera o tio desse amigo e nada sabia sobre a misteriosa história familiar dele. C E D E R J 3 3 A U LA 2 Atende ao objetivo 1 Procure, em alguma entrevista com um escritor brasileiro, aspectos rela- cionados à sua subjetividade. Comente as afirmações do próprio autor acerca de sua escrita. RESPOSTA COMENTADA Você pode destacar da entrevista com o autor como ele se descobriu escritor. Escreva se houve influência de leituras de outros escritores ou se alguém (como aconteceu com Cecília Meirelles e com Mia Couto) despertou nele o interesse pela escrita. ATIVIDADE PARTE II: DE UM PERSONAGEM EM DESTAQUE: O NARRADOR Ainda temos que tratar de um personagem muito importante, criado pelo autor: o narrador da obra ficcional. O autor o constrói de tal forma que cabe a ele a direção da narrativa. É o narrador que conduzirá os leitores pelos “bosques da ficção”, com a função de assumir, algumas vezes, uma vida quase independente do ser social do autor. O narrador pode ser um personagem feminino inventado por um autor masculino ou ao contrário. Além disso, sabemos que de pontos de vista masculino ou feminino podem vir tomadas de posições diversas. Machado de Assis criou em Dom Casmurro o personagem Ben- tinho. É ele, não esqueçamos, um advogado, o narrador da sua história com Capitu. Obviamente, com o poder de convencimento, hábil em criar um discurso que sustente e ampare os argumentos para as suas defesas, Literatura Brasileira IV | Em cartaz: o escritor em “um mundo de histórias” C E D E R J3 4 conduz de tal forma seu ponto de vista que transfere para quem acom- panha o seu relato a dúvida que sente em relação à traição (ou não) de Capitu e Escobar. Umberto Eco lembra que um autor pode emprestar a um cão o ponto de vista de uma narrativa. Foi o que fez P. G. Wodehouse, que “certa vez escreveu na primeira pessoa as memórias de um cachorro – uma demonstração de que a voz que narra não é necessariamente a do autor” (ECO, 1994, p. 20). A afirmação de Umberto Eco nos leva nova- mente ao que Barthes enuncia: “quem fala na narrativa não é quem é”, como lemos na nossa primeira aula. Para contar a história, o narrador pode assumir um só ponto de vista, tendo uma posição de câmera que, de fora da trama, vai acom- panhando o desempenho de outros personagens. Pode ter um foco sem esse distanciamento, imiscuindo-se junto aos personagens, participando das ações, sem saber o que acontecerá mais adiante na história. Outra possibilidade para o narrador é tudo ver e saber, a partir de uma visão total de tudo e de todos. Chama-se este tipo de narrador de onisciente, considerado como um semideus. Todas as possibilidades são estratégias importantes não só para o desenrolar da narrativa, mas também no aspecto de sua verossimilhança, para fazê-la ser coerente com as intenções do autor. Já nas primeiras linhas do conto “Missa do Galo”, de Machado de Assis, sabemos que estamos diante de uma narrativa conduzida por um narrador, que, embora distanciado do tempo narrado, está envolvido intimamente com o que irá narrar. Dessa forma, o narrador – em primeira – pessoa revela: “nunca pude entender uma conversação com uma senhora, há muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta” (ASSIS, 1959, p. 584). Aí está estabelecida a dubiedade tratada em todo o conto: a diferença de idade entre os dois personagens, a distância entre o tempo da escritura e o tempo narrado, a incerteza/dúvida do que de fato aconteceu ou do que poderia ter acontecido. Assim, permanece a questão: D. Conceição insinua-se ou não para o rapaz recém-chegado ao Rio de Janeiro para “estudar preparatórios”? C E D E R J 3 5 A U LA 2 Caro aluno, recomendamos que você leia esse conto por meio do seguintelink: http://www.biblio.com.br/defaultz. asp?link=http://www.biblio.com.br/conteudo/MachadodeAs- sis/missadogalo.htm. Há ainda outras narrativas que trazem uma pluralidade de pon- tos de vista. Nestas não há um só narrador que comande o discurso do princípio ao fim. São narrativas que obrigam os leitores a não confiar em apenas uma subjetividade, mas a se desapegarem de uma acomoda- ção a um único ponto de vista. Neste caso, os leitores devem participar mais ativamente em busca de significações da obra, em um discurso mais elaborado do que a história que as narrativas contam. Ignácio Loyola Brandão escreveu um romance intitulado Zero (1975). A obra se caracteriza por ter, inseridos na narrativa, recortes de jornal, depoimentos de personagens, trechos de entrevistas sobre acon- tecimentos que revelam um tempo de repressão política no Brasil, nos anos de 1970. Ele apresenta uma obra sem uma sequência lógica, em que insere trechos que nem mesmo são escritos por ele. É o próprio Ignácio Loyola Brandão quem responde ironicamente, quando inquirido sobre a obra tão fragmentada em sua forma narrativa, qual seria o eixo desse seu livro. E ele responde: “ele (o eixo do livro) pode ser encontrado em qualquer loja de autopeças”. De outras considerações sobre narradores Nas concepções sobre narradores, ainda se destacam as que foram concebidas por Walter Benjamin no texto “O narrador”, no qual o filó- sofo alemão se atém principalmente à obra de Nikolai Leskóv. Literatura Brasileira IV | Em cartaz: o escritor em “um mundo de histórias” C E D E R J3 6 Figura 2.1: Walter Benjamin (1928). Fonte: http://als.wikipedia.org/wiki/Walter_Benjamin Neste texto, Benjamin apresenta o narrador como aquele que tem o que contar porque, sendo um viajante, adquire experiências de vida, ou seja, acumula conhecimentos de outras terras, outras gentes, outras culturas. Ao contrário, para Benjamin, existe ainda o narrador que não sai, o que é arraigado, enraizado à sua terra, por isso adquire no lugar mesmo onde vive as histórias para contar. Este tipo de narrador já escutou essas histórias de outros que também ali moravam. Benjamin atribui-lhes, respectivamente, as figuras do marinheiro e do camponês. O escritor afirma que narradores desta estirpe estão em vias de extinção. Um de seus argumentos se sustenta no fato de que, quando se vive em um tempo de muitas informações, perde-se esta capacidade de elaborar histórias. Tudo está dado e superado em um turbilhão de fatos que vão se sucedendo rapidamente, sem dar tempo de reflexão sobre os mesmos. Benjamin diz que, caso se peça a alguém que narre um acontecimento, a dificuldade em fazê-lo é flagrante. C E D E R J 3 7 A U LA 2Seus argumentos ampliam-se ao sinal dos tempos em que as rela- ções com o trabalho se modificam também. A produção em larga escala de itens provenientes da sofisticada industrialização, com a rapidez do resultado final, evidencia a desvalorização do que é feito artesanalmente. O trabalho elaborado, que demanda maior tempo para que o produto fique pronto, porque está sendo moldado nas/pelas mãos dos artesãos, requer cuidados minuciosos e especiais que demandam mais tempo. Ao passar esse tipo de trabalho aos que herdarão essa tradição, não se ensina somente a técnica de fazer, mas a história desse saber, que já vem de gerações em gerações. Outro fator apontado por Benjamin, nesse aspecto do “encolhi- mento” da capacidade de narrar, advém das mudanças no tratamento em relação ao momento da morte. Se antes em quase todo quarto ou sala de casa abrigava alguém nesta situação, hoje, as pessoas com doenças terminais são transferidas de casa para hospitais, o que os afasta dos parentes na hora da morte. No entanto, segundo observa Benjamin, é justamente nesse tempo que se trava o conhecimento de uma história de vida. Uma verdadeira caminhada, onde se adquiriu sabedoria, desafios, alegrias, tristezas, angústias, vai sendo exposta, com todos esses “fios”, na hora que se vai deixando a vida. Quando se está mais perto do que não se sabe, parece que se avolumam perguntas não só do que se vai encontrar (além da vida?), mas também o que se vai deixar dela e nela de sua história. É um crescimento para quem escuta esse outro ponto de vista sobre a vida que vai cessando. Uma oportunidade de fazer pensar a sua própria vida, de se abrir um espaço (às vezes tão raro) para refletir sobre a condição de ser-no-mundo. Pensemos ainda em outras histórias: aquelas não escritas nas folhas de papel dos livros, mas escritas em nossas memórias, porque foram ouvidas de alguém, um/a narrador/a, com o poder mágico de encantar crianças e adultos ou de prepará-los para não abrirem mão de sonhos, que não se extinguem com os finais das histórias. Lembremos que assim aconteceu com Cecília Meirelles, que, também escritora, não esqueceu as histórias contadas por Pedrina, sua babá. Literatura Brasileira IV | Em cartaz: o escritor em “um mundo de histórias” C E D E R J3 8 Atende ao objetivo 2 Destaque do texto da aula o trecho relacionado à subjetividade da escrita que mais tenha tocado a sua subjetividade e diga o porquê de sua escolha. RESPOSTA COMENTADA Você pode escolher alguma consideração feita sobre a criação literá- ria de um escritor mencionado no texto, por exemplo, de que forma é realizada a composição de seus personagens ficcionais. Apresente argumentos que levaram você a fazer tal escolha. ATIVIDADE CONCLUSÃO Ainda nesta aula, estamos chamando a sua atenção para a com- plexa rede de fatores que envolvem a subjetividade da escrita. Se costu- mamos nos ater ao limite de o que vai grafado entre as duas capas dos livros (as histórias que nos trazem), vê-se que ainda há outras histórias ligadas à obra. Enveredamos, dessa maneira, para aquelas narrativas que estão escritas em outro livro do autor, nas páginas de sua vida, por exemplo. São histórias gravadas na infância, de livros lidos de outros autores, contadas por outros, observadas no dia a dia de convivência com pessoas que cercam aquele que escreve. ATIVIDADE FINAL Atende aos objetivos 1, 2 e 3 Escolha uma modalidade de narrador dentre as que foram apresentadas na aula, para escrever sobre ela. C E D E R J 3 9 A U LA 2 RESPOSTA COMENTADA Você pode escrever como/de que maneira a atuação do personagem narrador influencia a leitura de uma obra. Por exemplo, o narrador de “Missa do Galo”, de Machado de Assis, diz na primeira linha do conto: “nunca pude entender uma conversação com uma senhora, há muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta”. Percebemos que ele faz parte da história. Você deve considerar se este envolvimento do narrador influencia no que ele escreve. R E S U M O Tendemos a considerar em nossas leituras os aspectos ligados às histórias que lemos. Queremos ler linha após linha para o fim, para saber o que acontecerá com os personagens em um romance, conto ou novela. No entanto, nesta aula, per- cebemos que as saídas que os leitores fazem do texto também guardam sentidos para ele e nele. Trata-se de aspectos relacionados às subjetividades dos autores, que criam um mundo de histórias, histórias de um mundo – um mundo ficcional permeado do que é peculiar à realidade empírica do autor, mas também à sua imaginação. Acompanhar as ideias estéticas do escritor, sua visão de mundo, seus traços biográficos colocados em entrevistas ou trazidos pela crítica especializada sobre autores enriquecem nossas leituras. A figura presente do autor nos fascina. Mas nada nos encanta mais do que a leitura da obra escrita. É nela que se dá o encontro de subjetividades: a de quem escrevecom a de quem lê, ainda que seja para um encontro que revele as diferenças entre as duas. Pode ser também que se vejam em outra subjetividade complementações, possibilidades de desdobrar reflexões críticas, uma ponte de comunicação com o Outro que também nos habita. Vamos caminhando no sentido de entender que escrever de um ponto de vista em 3ª pessoa, ou seja, sobre aqueles que estão distantes de um Eu, pode não significar isenção de si mesmo. Escrever sobre si, assumindo um Eu, pode também mascarar o fascínio sentido por um Outro. Um Ele que se esconde dentro de um Eu. Ou um Eu mascarado por um Ele que escreve. Literatura Brasileira IV | Em cartaz: o escritor em “um mundo de histórias” C E D E R J4 0 INFORMAÇÕES SOBRE A PRÓXIMA AULA Na próxima aula, analisaremos como os autores são, primeiramente, leitores de outras histórias. Dessa forma, veremos que os leitores também escrevem suas obras. Até lá!
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