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DIZER HOMEM HOJE ANTROPOLOGIA, ANTROPOLOGIAS E ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA... 23 Não compartilhamos nem mesmo a concepção redutora que ürgen Habermas tem da antropologia filosófica. Este lhe designa a :arefa de interpretar filosoficamente os resultados obtidos pelas ciên :ias do homem, da antropologia biológica à psicologia e à sociolo ~ia18. Para o filósofo de Frankfurt, a antropologia filosófica é a “rea ~ão da filosofia ao advento daquelas ciências que lhe disputam o objeto u, por certo, o justo direito de se ocupar dele”9. 1.4. A antropologia filosófica: à procura de urna definição Antes de nos colocarmos à procura de uma definição de “antro pologia filosófica” que nos sirva de orientação e de ponto de referên cia no prosseguimento da nossa indagação, parece oportuno atuali zar-nos sobre as principais acepções de “antropologia filosófica” presentes na história desta disciplina. Helmut Fehrenbach20, aplicando-se sobre a história do modo como o termo “homem” se desenvolveu e se definiu, apresenta um ma pa das possibilidades de entender o título “antropologia filosófica”. 1) Numa primeira acepção de “antropologia filosófica”, confluem todas as observações sobre o homem contidas no complexo de uma filosofia, ou as asserções que dizem respeito ao homem em determina dos contextos ou autores (por exemplo, a antropologia de Aristóteles, de Agostinho etc.). Nestes casos, a “antropologia filosófica” é apenas um dos capítulos que compõem uma proposta filosófica global. 2) Uma segunda acepção de “antropologia filosófica” é a que vê nesta pesquisa uma disciplina fundamental, ou seja, não como um ‘8U. FADINI. “Antropologia filosofica.” In P. ROSSI (cd.), La filosofia. 1. Le filosofie speciali, Torino: UTET, 1995, 496s. ‘9. HABERMAS. “Antropologia.” Em O. PRETI (ed.). Filosofia. Milano: Fekrinelli — Fischer, 1966, p. 20. 20H. FEHRENBACH. “Uomo.” Em H. KRINOS — H. M. BAUMGARTNER— CH. WILD (ed.). Concettifond.amentali di filosofia. 3.~ cd. it. org. porO. Penso. Brescia: Quiriniana, 1982, p. 2.269s. problema entre outros, mas como temática sistematicamente central e fundamental da filosofia em geral. 3) Muito próxima desta acepção é aquela de todos os que retêm que a expressão “antropologia filosófica” e os seus conteúdos possam funcionar como título ou como recipiente ao qual é reconduzida toda reflexão filosófica. 4) Há, enfim, quem considere a “antropologia filosófica” como uma disciplina particular, desenvolvendo-se no interior da filosofia, em que a reflexão sobre o homem é definida e desenvolvida de ma neira conceitualmente estruturada, com o objetivo de colher e de descrever sistematicamente as formas de pensamento (“categorias”) e as constantes filosóficas do universo pessoal. Enquanto a primeira das acepções apresentadas vê na “antro pologia filosófica”, como se diz, um dos tantos capítulos dos quais se compõem um sistema filosófico, a segunda e a terceira podem ser re conduzidas, feitas as devidas precisões, à posição expressa por L. Feuerbach (1804-1872). O filósofo alemão, no interior de um proje to tendente a resgatar a centralidade do ser humano em relação ao objeto da teologia (=Deus), afirma que a “filosofia do devir” deverá contrastar a ênfase especulativa da subjetividade abstrata, fazendo do homem “o objeto único, universal e supremo da filosofia”, confi gurando a antropologia como a “ciência universal”. A conseqüência necessariamente implicada na aceitação de tal perspectiva é que o princípio fundamental da práxis humana a sua lei primeira e su prema não poderá ser senão “o amor do homem pelo homem”21. A referência ao “amor”, neste caso, tem pouco a ver com o Evan gelho ou, de qualquer modo, com apelos de natureza filantrópica; o sentido e o apelo ao “amor” têm, aqui, outras motivações. Partindo do axioma feuerbachiano, “só aquilo que é sensível é verdadeiro, é 21L. FEUERBACH. L’essenza dcl cristianesimo. Milano: Feltrinelli, 1971, p. 286. 24 DIZER HOMEM HOJE ANTROPOLOGIA, ANTROPOLOGIAS E ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA... 25 real”, o homem, não o homem abstrato ou fechado em si mesmo, mas o homem que vive em relação com os seus semelhantes, é um ente verdadeiro e real só porque colhe a realidade e a si mesmo com os sentidos. Chama-se “amor” a certeza de que existe um outro ho mem além de mim; o “amor” não é outra coisa que a constatação sensível de que existo, não estou só, sou visto por outro e vejo outros. É por isso que “a propósito de Feuerbach — segundo alguns críticos— parece necessário falar, de modo definitivo, mais que de antropologia filosófica, de uma “filosofia antropológica” ou de uma filosofia convertida em antropologia”22. A quarta acepção de “antropologia filosófica” é a que, evitando o limite da primeira e a pretensão absolutizante (a antropologia como ciência universal) das outras duas, afirma ser possível a existência de uma disciplina que, com método próprio e mediante a utilização dos instrumentos filosóficos, está em condições de colher e de descrever sistematicamente a essência do homem. Para identificar as coordenadas epistemológicas da antropolo gia filosófica e o seu objeto específico já se tomou clássico recorrer às páginas com as quais Kant introduz a sua Logik (25 A). O filósofo alemão afirma que uma “filosofia com intenção cos mopolita” deve se organizar em torno de quatro interrogações, deve poder dar resposta a estas quatro perguntas: “Que coisa posso pensar? Que coisa devo fazer? Que coisa é-me consentido esperar? Que coisa é o homem?”23. A última destas perguntas encontra resposta na an 22M. IVALDO. “Antropologia, umanesimo, uorno.” Em op.cit., p. 9s e p. 20s. 23São também as perguntas da Critica delia ragion pura (tr. it. de O. Gentile e O. Lombardo. Radice dei 1909-1910. 7.~ ed. Revista por V. Mathieu, Laterza, Roma-Bari, 1979 onde, na p. 612, se lê: “Todo o interesse da minha razão (tanto o especulativo como o prático) se concen tra nas três perguntas seguintes: 1) que coisa posso saber?; 2) que coisa devo fazer?; 3) que coisa posso esperar?” De particular utilidade resulta também a leitura de M. HEIDEOGER. Kant e ii problema dei la metafisica (org. por V. Verra). Laterza, Roma-Bari, 1985. De modo particular, a seção quarta: “A fundação da metafísica”, na sua repartição A. Fundação da rnetaffsica na antro pologia, p. 178-188. tropologia, a que, disse Kant, é possível reconduzir também as outras perguntas. Fica assim estatuída a centralidade24 da reflexão filosófica sobre o homem: é dentro desta perspectiva que são enfrentados os temas referentes à metafísica, à ética e à religião. Se, portanto, objeto da antropologia, como para tantas outras disciplinas, é o homem, o nosso é um interesse voltado para uma di mensão específica dele: queremos nos ocupar de antropologia filosó fica, com a tarefa precípua de mostrar como “de uma estrutura fun damental do ser homem deriva tudo aquilo que é monopólio específico, efeito e obra do homem” M. Scheler,{sic]). Desta, que é uma das tantas definições possíveis da antropologia filosófica, se de duz tanto o específico desta disciplina, quanto a possibilidade de va lorizar-lhe ulteriormente as aquisições. Para Scheler, de fato, e para grande parte dos antropólogos modernos, a resposta à pergunta: “Quem é o homem?” não nasce independentemente da existência concreta do homem e não é, de outra parte, fim para si mesma. Assim que, com já se disse, embora sendo necessário distinguir entre as diversas abordagens do homem, não é possível decretar a absoluta independência e estranheza dos resultados conseguidos caso por caso. A definição de Scheler e as que nela se inspiram não parecem, porém, particularmente atentas para enfrentar e resolver um dos nós referentes ao estatuto epistemológico da antropologia filosófica que, geralmente, está ligado ao problema da possibilidade mesmo da metafísica. Um problema levantadopor Heidegger a respeito do pen samento de Kant, mas que depois se tomou um tema fundamental também por aquilo que atinge sua reflexão sobre o homem25. 24Q Parenti fala de “centralidade metódica” em Sapere antropologico e linguaggio. Introduziorie critica aU’onto-reologia. Brescia: Morceiliana, 1990, p. 53ss. (Fenomenologia, tr. it. de A. Fabris, Genova: II Melangolo, 1988.) 25Com estas referências concorda M. Scheler, que escreve: “Em certo sentido, todos os problemas fundamentais da filosofia podem-se reconduzir à pergunta que coisa seja o homem e DIZER HOMEM HOJE Para aqueles, como E. Coreth, que mantêm praticável o discur ;o metafísico, a antropologia filosófica é a “disciplina que procura :onhecer o homem na sua dimensão metafísica essencial, na sua re Ferência ao ser, na sua abertura ao ser”26. Para quem, ao invés, recusa a metafísica, a antropologia filosófica se identifica com a tentativa de integrar, numa síntese, os resultados que são oferecidos pelas as sim chamadas ciências empíricas como a biologia, a anatomia, a psi cologia, a sociologia, as ciências da linguagem e da história, da cul tura e da religião27. Considero importante ter presente as observações e as distin ções feitas até aqui todas as vezes em que nos aproximamos de um tratado ou de um ensinamento de antropologia filosófica. Ela é, de fato, indevidamente reunida com a antropologia cultural por todos os que julgam insólito o recurso à metafísica e, de qualquer modo, inútil interrogar-se sobre elementos que concorrem para definir a identidade do homem28. qual lugar e posição metafísica ele ocupa entre a totalidade do ser, do mundo, de Deus”. (M. SCHELER. “Sull’idea dell’uomo.” In Idem. La posizicme dell’uomo nel cosmo, Milano: Fabbri, 1970, p. 93). Em referência à pergunta “que coisa é o homem?”, oportunamente, Ricardo de São Vitor (De Trinitare, 4,6) distingue a pergunta “que coisa é o homem?” de “quem é o homem?”, en quanto a primeira conceme a toda “substância” natural, a segunda é formulada relativamente ao homem. 26E. CORETH. Was ist philosophische Anthropologie?, reportado porJ.L. MOLINERO. “Antropologia.” Em Dizionario di filosofia contemporanea, Assisi: Cittadella, 1979, p. 20. 27M. IVALDO. “Antropologia, umanesimo, uomo.” Em A. RIGOBELLO (ed.). Lessico della persona umana. Roma: Studium, 1986, p. 1-40. 28Para captar de maneira exata e também sem fechamento preconcebido e redutor o alcance destas afirmações e distinções e daquelas que as seguem, quero dizer que partilho, em boa parte, a repreensão que Th. LITI (em La science e l’uomo. Roma: Armando, 1972, p. 141) move à tendência presente em algumas “correntes espirituais dos nossos dias que se podem perceber sob o título de ‘antropologia filosófica’ de quase não tomar conhecimento dos esforços e dos resultados da física contemporânea, ou de só lhe fazer acenos com o único fim de mostrar que ela é incapaz de contribuir com alguma coisa de válido para a solução dos problemas da antropologia, como também a física é acusada de cobrir ou obs curecer fatos que a reflexão antropológica espera clarear”. Como conclusão do primeiro capítulo do texto citado, o filósofo alemão escreve: “Em nítida síntese com cada corrente da antropologia que ostenta uma indiferença pela ciência da natureza, podemos, pois, afir mar que esta ciência, ainda que exclua do próprio âmbito o homem enquanto homem, antes justo pelo fato deste seu excluí-lo, deve constituir um objeto essencial para toda reflexão antropológica” (Ibidem, p. 154). ANTROPOLOGIA, ANTROPOLOGIAS E ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA... 27 Alguns momentos da indagação semântica conduzida sobre o termo “antropologia” e as indicações referentes explicitamente à “antropologia filosófica” permitem afirmar que a antropologia filo sófica, como pesquisa conceitualmente estruturada pelo universo pessoal, teve sempre um espaço na reflexão filosófica. Os resultados desta pesquisa, alcançados com métodos e modos diversos, não po dem, pois, ser postos todos sob o mesmo plano e avaliados com os mesmos critérios. Como, de fato, a explicitação das perspectivas de abordagem do homem reduzem os perigos de generalização e de reducionismo, assim uma leitura orientada das respostas à pergunta “quem é o homem?” permite orientar-se com clareza no panorama antropológico. Com as páginas seguintes quer-se contribuir para alcançar este escopo respondendo a perguntas que constituem outros tantos nú cleos em tomo dos quais pode ser ordenada grande quantidade de informações direta ou indiretamente reconduzíveis à antropologia filosófica. A primeira olha o “de onde” nasce e o “porque” nasce a pergunta sobre o homem; a segunda pergunta conceme aos instrumentos de pesquisa dos quais se serviu o homem para responder à pergunta “quem é o homem?”. Enfim, pergunta-se se, no interior das respostas que têm sido oferecidas, é possível identificar, além de uma esquematização cr0- nológica, um divisor de águas metodológico claramente reconhecível. 1.5. “De onde” nasce e “por que” nasce a pergunta antropológica? É possível identificar os lugares e os motivos que levam o ho mem a se interrogar sobre si mesmo? Sobre sua natureza? Sobre sua origem? Sobre o sentido da relação com os outros e com o mundo? Sobre sua destinação final? Antes de tomar em consideração as situações pessoais que impulsionaram cada um a se interrogar sobre si mesmo e, portan
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