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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANÁ CAMPUS DE MARECHAL CÂNDIDO RONDON CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, EDUCAÇÃO E LETRAS – CCHEL CAMILA CALGAROTTO SOARES A INFLUÊNCIA DOS CONCEITOS DA CONTRACULTURA NA OBRA DISCOGRÁFICA DE RAUL SEIXAS - (1970-1989) Marechal Cândido Rondon 2017 UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANÁ CAMPUS DE MARECHAL CÂNDIDO RONDON CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, EDUCAÇÃO E LETRAS – CCHEL CAMILA CALGAROTTO SOARES A INFLUÊNCIA DOS CONCEITOS DA CONTRACULTURA NA OBRA DISCOGRÁFICA DE RAUL SEIXAS - (1970-1989) Trabalho de conclusão de curso apresentado ao curso de História, da Universidade Estadual do Oeste do Paraná como requisito parcial à obtenção do título de licenciatura em História. Orientador: Prof. Dr. Danilo Ferreira Fonseca Marechal Cândido Rondon 2017 RESUMO A presente pesquisa visa analisar a obra do compositor e cantor baiano Raul Seixas atentando para a influência do movimento contracultural da década de 1960 nas suas músicas. Para tanto, será feita uma análise de algumas canções dentro do período de 1970 à 1989, levando em consideração o momento histórico vivido pelo cantor e também a incorporação e ressignificação da contracultura em suas músicas, buscando através desse ideal dar sentido a uma nova sociedade, ou seja, uma sociedade alternativa. Palavras-chaves: Raul Seixas, contracultura, rock, jovens e música. SUMÁRIO 1. Introdução ...........................................................................................................4 2. Capitulo I - Raul Seixas e a sua conturbada realidade social ...........................12 3. Capitulo II - Raul Seixas do Ouro de Tolo ao Cowboy fora da lei......................29 4. Conclusão .........................................................................................................48 5. Referências Bibliográficas ................................................................................52 6. Fontes ...............................................................................................................54 4 1. INTRODUÇÃO A presente pesquisa visa analisar o pensamento da contracultura nas canções do cantor e compositor Raul Seixas, partindo da década de 1970, quando ele começa a aparecer no cenário musical brasileiro, até 1989, ano de sua morte. Este é o período auge da carreira de Raul Seixas, e, também é o momento no qual o cantor passa a compor e cantar músicas que buscam passar uma mensagem da sua visão de sociedade e das coisas, a partir da influência de outros artistas engajados no movimento da contracultura. Analisando o cenário musical nacional do momento, vemos que Raul Seixas não se enquadra com nenhum dos movimentos musicais do período, deste modo, busco compreender a questão da contracultura e como esse pensamento foi utilizado pelo cantor em suas canções. Sendo assim, tenho em mente que a contracultura foi um movimento que contou com a grande atuação dos jovens e que envolveu várias formas de movimentações, entre elas, a mais atuante foi a música, principalmente o estilo musical conhecido como rock. O termo contracultura começa a ser divulgado pela mídia norte-americana na década de 1960, o qual primeiramente é caracterizado pelas roupas coloridas, cabelos compridos, drogas, um tipo de música e assim por diante. Mas, na medida em que o movimento começa a ter mais espaço, também começa a ficar claro que, essas características seriam superficiais, pois a contracultura desenvolveu uma nova ideologia com regras, valores e limites próprios. Deste modo, de acordo com Pereira: Começavam a se delinear, assim, os contornos de um movimento social de caráter fortemente libertário, com enorme apelo junto a uma juventude de camadas médias urbanas e com a prática de um ideário que colocaram em xeque, frontalmente, alguns valores centrais da cultura ocidental, especialmente certos aspectos essenciais da racionalidade veiculada e privilegiada por esta mesma cultura.1 1PEREIRA, Carlos Alberto Messeder. O que é contracultura. 4 ed. São Paulo, Brasiliense, 1986. p. 08. 5 Podemos compreender que, inicialmente, uma pessoa que fosse adepta da contracultura era reconhecida, principalmente, pela opção de se vestir e comportamento, entretanto aos poucos fica claro que esse movimento significou muito mais que isso. Nesta perspectiva, a contracultura conseguiu se afirmar no sistema social, cultural e econômico da época, como um movimento catalisador de uma grande parte da população que estava excluída do modelo de sociedade pré-estabelecido, além de proporcionar a esse grupo um espaço para questionamentos tanto na sociedade estadunidense quanto na europeia, inicialmente, e para países considerados subdesenvolvidos. Para além disso, criou um estilo de vida e uma cultura underground, que foge do modismo, do padrão e do normal, os quais eram estipulados para a sociedade da época. Apesar de todo esse alarde sobre o movimento da contracultura que ocorreu nos anos de 1960, esse ideário já aparecia nos Estados Unidos desde 1950. Nesse período, uma das expressões da contracultura ficou conhecida como a beat generation, que era formada por poetas norte-americanos, que ficaram conhecidos pelo poema Howl de Allen Ginsberg (1956). Em uma tradução livre esse poema pode ser chamado de uivo ou berro. É nesta época que também surge o rock and roll, que fica conhecido e sintetizado na figura de Elvis Presley, o qual era capaz de reunir um grande número de jovens em seus shows. Neste momento, passa a ser impossível separar esse estilo de música (ou a arte) e o comportamento. Deste modo, surge a chamada juventude transviada ou os rebeldes sem causa, os quais apavoravam toda uma sociedade. A partir daí a oposição jovem/não-jovem começa a se fazer necessária para se compreender determinados movimentos sociais2. Mesmo com a geração dos poetas americanos e com o rock and roll dos anos 1950, é em 1960 que o movimento da contracultura ganha força máxima, isto é, com o surgimento dos Beatles e de Bob Dylan, que, através das suas músicas, reuniam grande número de jovens em seus concertos e festivais de rock. 2 Ibid. p. 10. 6 Dentre esses festivais, talvez um dos mais conhecidos no mundo seja o de Woodstock, em 1969. Para além dessa movimentação na música, há também o movimento hippie, que tinha suas comunidades e passeatas pela paz. E em última instância, e, não menos importante, estão os levantes nos campi universitários que terão seu apogeu com o “Maio de 68”, na França. A partir deste período, seria difícil ignorar a contracultura como forma de contestação radical. Essa juventude que bebia das idéias da contracultura em 1960, queria por meio desse conjunto de ideais e comportamentos sair do modismo da época. Para tanto, tentavam criar um mundo alternativo, underground. Deste modo, queriam romper com a grande maioria dos hábitos consagrados pelo pensamento e comportamento da cultura dominante. Podemos pensar que essas manifestações eram feitas por uma camada excluída dos privilégios dessa cultura dominante ou até por aqueles que estavam inseridos nessa. Mas,na verdade, essa era uma manifestação proposta pelos jovens que tinham acesso a essa cultura e a seus privilégios, e os negavam, rejeitando os valores estabelecidos e o pensamento que prevalecia nas sociedades ocidentais. De modo mais geral, podemos entender por contracultura duas coisas que são diferentes, mas ligadas entre si. Primeiramente, podemos usar o termo contracultura para definir os movimentos de rebelião da juventude que marcaram os anos de 1960, exemplo, o movimento hippie, a música rock, as agitações nas universidades e aí por diante. Tudo isso regado por um forte espírito de contestação e insatisfação. Sendo assim, podemos entender por contracultura todo um conjunto de ideais culturais, sociais e políticos que vão ao sentido oposto daquele utilizado e difundido pela parcela dominante da sociedade. Mas, também pode ser compreendido como alguma coisa mais geral, mais abstrata, como um modo de contestação a uma ordem vigente, tendo um caráter radical e estranho às forças mais tradicionais de oposição a esta mesma3. Esses ideais acabaram por ser sintetizados na figura do jovem que mesmo fazendo parte integrante dessa sociedade pré-estabelecida, lutou contra a mesma 3Ibid. p. 20. 7 das mais diversas formas, utilizando-se de todos os recursos possíveis para se fazer notar diante de uma sociedade modista. Durante a pesquisa para compor esta monografia, tive acesso a um trabalho de conclusão de curso realizado pela aluna Simone Tatiana Pedron4, intitulado “ Contracultura e religiosidade na obra de Raul Seixas”, na Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), sediada em Marechal Cândido Rondon. Neste trabalho, a autora tratou de duas questões que serão de grande importância para a minha pesquisa, isto é, ela trabalhou com o cantor e compositor Raul Seixas e com o movimento da contracultura. Em seu trabalho, contudo, o enfoque foi dado à questão de como Raul Seixas utiliza a ideologia religiosa e mística presente no movimento da contracultura em suas músicas, sendo assim, ela utiliza a ligação de Raul Seixas ao ocultismo e misticismo para analisar como esse lado religioso do cantor é explorado em suas canções, sempre buscando enfatizar a ligação desse aspecto com relação à contracultura. É neste ponto que nossas propostas de análise divergem. Se no trabalho citado acima, o principal objetivo foi compreender o aspecto religioso e místico da contracultura presente nas canções de Raul Seixas, na atual pesquisa quero analisar como essa ideologia contracultural fez com que esse cantor passasse a analisar os problemas sociais. Isto se faz presente tanto no social, cultural e político, da época por uma ótica diferente daquela empregada pelos outros movimentos musicais do período. Deste modo, quero analisar como um cantor que, no início da carreira, fica à margem no cenário musical brasileiro e que, a partir da década de 1970, passa a fazer música seguindo os moldes da indústria fonográfica e, consequentemente, a ter grande sucesso nacional, cantando músicas que passavam a mensagem de uma sociedade alternativa, a qual era um dos principais objetivos da contracultura. Para tanto, tenho como norte de análise a incorporação do pensamento da contracultura nas canções de Raul Seixas durante o período de 1970 a 1989. O interesse, em pesquisar tal assunto, surgiu da questão de querer trabalhar com algo relacionado à música e também por gostar das canções do 4PEDRON, Simone Tatiana. Contracultura e religiosidade na obra de Raul Seixas. Marechal Cândido Rondon, 2002. Trabalho de Conclusão de Curso em História. UNIOESTE. 8 cantor Raul Seixas. Porém, este interesse pelo cantor foi uma coisa instigada pelas reportagens e matérias televisionadas que contavam a trajetória do mesmo como uma pessoa que nasceu na Bahia e com uma atitude agressiva e, digamos, até futurista, conquista o cenário musical brasileiro e também o gosto do público. Entretanto, o que mais chama a atenção na história de Raul Seixas é que ele buscou fazer a sua música, procurando deixar a sua mensagem, a sua visão do mundo e das coisas, por meio da canção. Acredito que este seja um dos motivos para que mesmo hoje, após anos de sua morte, tanto o cantor como as canções sejam lembradas e cantadas pelos mais jovens. A delimitação do período da pesquisa se deu através das leituras bibliográficas e historiográficas que já fiz com relação a Raul Seixas, deste modo, começarei pelo ano de 1970, pois é a partir deste momento, que o cantor começa a se conscientizar sobre fazer uma música dentro dos moldes da indústria cultural, sem deixar de passar a sua mensagem, apenas, se alia a ela. E analisarei até o ano de 1989, período no qual Raul Seixas produz seu último álbum e também é o ano de seu falecimento. Deste modo, quero compreender como Raul, no período de maior sucesso de sua carreira utiliza elementos do pensamento da contracultura para passar a sua mensagem sobre a sociedade e conseguir um grande número de fãs que mesmo após vinte e sete anos de sua morte ainda continuam a lembrá-lo. Pois, quem nunca escutou um sujeito no bar pedir ao cantor para tocar uma música do Raul Seixas. A principal fonte a ser trabalhada na pesquisa, serão as canções de Raul Seixas. As quais vão ser selecionadas, partindo do ponto de vista da influência do pensamento contracultural, presente em tais músicas, tendo como base minha principal proposta, que é compreender a produção fonográfica de Raul Seixas a partir deste viés. Essa seleção teve como requisito, para a escolha de uma de suas músicas, a questão da contracultura, e se, ela se enquadra dentro do proposto para a discussão e desenvolvimento da escrita do trabalho. 9 Deste modo, começarei a análise pela canção Ouro de Tolo5, foi a primeira música lançada por Raul Seixas que fez sucesso nacionalmente. Ela é concebida em 1973, momento no qual o país passava pelo chamado milagre econômico, o qual, dava a sociedade da época uma relativa liberdade de aquisição de bens de consumo duráveis como carros e casas de praia, além da possibilidade de comprarem produtos de consumo não duráveis como roupas, adereços para decoração de ambientes e outros. Essa música vem de encontro a essa realidade, com uma forte crítica sobre as questões de consumo excessivo, de comodismo e também busca instigar em seus ouvintes uma nova perspectiva de visão da própria condição do indivíduo enquanto agente social. Na sequência irei trabalhar com a canção Sociedade Alternativa6, a qual é lançada em 1974, porém sua composição começa muitos anos antes, quando Raul Seixas busca desenvolver os parâmetros da dita sociedade alternativa, que pretendia por meio de um preceito básico, colocado pela contracultura, a criação de uma sociedade diferente da qual os jovens da época estavam inseridos, desta forma, culminando com o lançamento da música, que veio a se tornar um hino entre os adeptos dessa sociedade. Nesta canção, vemos exprimida todo o ideário de liberdade buscado pelos jovens envolvidos no movimento da contracultura, com relação ao Brasil, além de expressar os próprios anseios do cantor quanto a criação de uma sociedade a onde fosse tudo da lei. A última música com a qual irei trabalhar é a Cowboy fora da lei7, ela foi lançada em 1987, ano em que o país estava em grande agitação social, devido ao fim do milagre econômico e também as movimentações sociais que começam a emergir de forma lenta dentro da sociedade brasileira, digo que foram lentas devido ao período da ditadura militar, a qual aindatinha grande poder dentro da mesma. Através desta música, Raul Seixas, manda uma mensagem de incentivo aos jovens, isto é, ele busca por meio de trocadilhos, passar uma mensagem de que ainda é importante lutar, por seus objetivos, mesmo que eles pareçam 5 SEIXAS, Raul. Ouro de Tolo. LP Krig-Há, Bandolo! PHILIPS RECORDS, 1973. 6 COELHO, Paulo; SEIXAS, Raul. Sociedade Alternativa. LP Gita. PHILIPS/UNIVERSAL MUSIC, 1974. 7 ROBERTO, Cláudio; SEIXAS, Raul. Cowboy fora da lei LP Uah-Bap-Lu-Bap-Lah-Beim-Bum! COPACABANA, 1987. 10 distantes ou que esses jovens acabassem sendo engolidos por um sistema opressor. O cantor e compositor Raul Seixas é um dos artistas que surgiram entre as décadas de 1970 e 1980, o qual ainda tem grande aclamação dentro do cenário musical brasileiro, mesmo após a sua morte. Como exemplo, há alguns programas voltados para o entretenimento, como o intitulado Por toda minha vida8, que buscam contar a trajetória desta figura emblemática da música brasileira, fazendo com que este seja lembrado e que suas canções não sejam esquecidas. Para além desses programas, há também o Raul Rock Club/Raul Seixas Oficial Fã-Clube9, o mais antigo fã clube do cantor, que reine um acervo sobre a vida e obra do mesmo. E ainda terei como base o trabalho desenvolvido pela pesquisadora Juliana Abonízio10, no qual ela analisa a criação do mito em torno de Raul Seixas. Além de trabalhar com Juliana Abonízio, uma das principais pesquisadoras da obra de Raul Seixas, também quero trabalhar com a questão das representações, presentes nas canções de Raul. Para tanto, irei partir da concepção de representação do historiador francês Roger Chartier. Deste modo, entendo por representação [...] esquemas intelectuais, que criam as figuras graças às quais o presente pode adquirir sentido, o outro tornar-se inteligível e o espaço ser decifrado.11 Partindo desta citação, as músicas de Raul Seixas passam a mensagem de um presente vivido e entendido pelo cantor, que, através de suas canções cria a representação desse, utilizando-se de suas próprias experiências. Sendo assim, quando Chartier fala que o espaço pode ser decifrado, podemos pensar esse ser 8 Programa feito pela Rede Globo de Televisão, o qual tem como objetivo expor a vida e obra de grandes nomes da música brasileira. 9RAUL Rock Club/Raul Seixas Oficial Fã-Clube. Disponível em <https://raulsseixas.wordpress.com/>. Acesso em 20 dez. 2016. 10 ABONIZIO, Juliana. O protesto dos inconscientes: Raul Seixas e a micropolítica. Cuiabá: ECCO UFMT, 2008. 11CHARTIER, Roger. A História Cultural: Entre práticas e representações. Tradução Maria Manuela Galhardo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990. 17. 11 na obra de Raul Seixas como as novas alternativas que o cantor propõe nas letras de suas músicas. Pois, em suas canções, Raul Seixas tenta criar uma possível representação de uma sociedade, partindo da sua própria experiência, e também de leituras de livros de ficção científica. Relaciona o vivido com a fantasia, para então, criar uma representação de uma sociedade alternativa. Tendo como base esses apontamentos, no de correr do trabalho, tentarei mostrar como o cantor/compositor Raul Seixas busca se expor para o mundo, não como apenas mais um na multidão. Pelo contrário, ele é um sujeito ativo de seu próprio processo histórico, sempre usando a música como um meio para um objetivo maior, o de libertação de uma geração jovem, que acaba deixando-se cegar pelo bombardeio maciço de uma indústria cultural e de consumo que lhes usurpava uma das principais características dos jovens dos anos 70/80, que era, a contestação incessante de sua conveniente realidade social. Sendo assim, utilizarei uma das melhores fontes para se analisar a história musical e de vivência de Raul Seixas, ou seja, sua própria música. 12 2. CAPÍTULO I - RAUL SEIXAS E A SUA CONTURBADA REALIDADE SOCIAL Para entendermos a obra do compositor/cantor Raul Seixas, primeiramente, temos que entender outros aspectos que foram fundamentais para a divulgação do seu trabalho em um nível nacional e temporal, já que seu legado é partilhado até hoje pelos seus fãs. Partindo desse ponto, neste primeiro capítulo pretendo esboçar sobre o papel da indústria cultural, da contracultura aliada ao levante do maio de 1968, quando os jovens se fazem notar dentro da sociedade e também do rock brasileiro das décadas de 1970 e 1980, que foram as portas de entradas para Raul Seixas expressar suas ideias. Devemos compreender que o termo indústria cultural é deveras complexo, pois superficialmente, podemos entender este como uma denominação, para uma produção que é feita em larga escala e para uma população também em larga escala. Porém, é mais que isso. Para entendermos melhor o termo indústria cultural é necessário compreendermos primeiro a relação dessa com os “meios de comunicação de massa” e com a “cultura de massa”. A primeira vista, podemos subjugar os dois como sinônimos, entretanto isto não é assim. Para que a cultura de massa exista, se faz necessária a existência dos meios de comunicação de massa, mas a existência desses meios, não faz com que necessariamente a cultura de massa exista. Isto porque, inicialmente quem tem acesso a esses meios de comunicação móveis são os da elite letrada do século XV – quando ocorre a criação dos tipos móveis de imprensa, idealizada por Gutemberg12. Nesta perspectiva, a cultura de massa data da criação de jornais e principalmente da criação dos folhetins. Os quais eram de amplo acesso e também contavam de modo simplificado os dramas da vida da época. Sendo assim, o termo de indústria cultural surge a partir da Revolução Industrial do século XVIII, como é colocado pelo autor Teixeira Coelho Não se poderia, de todo modo, falar em indústria cultural num período anterior ao da Revolução Industrial, no século XVIII. Mas embora esta Revolução seja uma condição básica para a 12 COELHO, Teixeira. O que é industria cultural? 35 ed. São Paulo, Brasiliense, 1993. p. 05. 13 existência daquela indústria e daquela cultura, ela não é ainda a condição suficiente. É necessário acrescentar a esse quadro a existência de uma economia de mercado, isto é, de uma economia baseada no consumo de bens; é necessário, enfim, a ocorrência de uma sociedade de consumo, só verificada no século XIX em sua segunda metade — período em que se registra a ocorrência daquele mesmo teatro de revista, da opereta, do cartaz.13 Quando o autor fala que a Revolução Industrial, pura e simplesmente, não é suficiente para se compreender o termo indústria cultural, é porque se faz necessário acrescentar a economia de mercado que surgiu através desta, ou seja, essa economia gera outra economia, a de consumo de bens. Neste momento, começa a surgir uma movimentação no orçamento do trabalhador fabril o que faz com que ele invista em bens de consumo não duráveis como roupas, calçados e consequentemente em jornais, revistas, folhetins e músicas. Todos estes derivados dos meios de comunicação de massa. Por este prisma, temos o surgimento de uma sociedade de consumo, datada da segunda metade do século XIX. Desta forma, os termos indústria cultural, meios de comunicação de massa e cultura de massa surgem como um fenômeno da industrialização. Partindo deste princípio, estes termos produzem as alterações no modo de produção e de trabalhohumano, dessa sociedade, determinando um tipo particular de indústria – a cultural – e de cultura – a de massa14. Sendo assim, temos a submissão do homem à máquina. Isto é, atualmente temos em nossa sociedade um meio de comunicação de massa, que acaba por ultrapassar qualquer outro, este seria a TV, uma máquina responsável por orientar a vida de milhões de pessoas no mundo, o que consequentemente faz com que as pessoas moldem suas vidas partindo dos programas e propagandas feitas e reproduzidas por essa máquina, passando a comprar ou a se portar de tal maneira e não de outra, pois assimilam de forma simplificada o que é divulgado por esse meio de comunicação de massa, gerando assim, uma cultura de massa e 13 Ibid. p. 06. 14 COELHO, loc. cit. 14 conseguintemente uma indústria de massa, responsável pela reprodução desses consumos alcançados pela divulgação massiva de produtos e estilos de vida. Contudo, não devemos relativizar, pois nem todas as pessoas que tem acesso a esse tipo de meio de comunicação, acabam por incorporar esse comportamento. Elas ficam à margem desse sistema. Para entendermos melhor isso, devemos analisar a disposição do homem dentro da sociedade capitalista liberal, isto é, essa sociedade funciona partindo do princípio da utilização da máquina, a submissão do homem ao ritmo dela, ocasionando a exploração desse trabalhador e por fim acarretando a divisão do trabalho. Desta maneira, causando uma massificação do trabalhador, o qual acaba ficando cada vez mais preso à máquina e não se permitindo olhar as outras opções que estão ao seu redor. Todo esse jogo de submissão do homem a máquina, faz com que ele entre em uma rotina de trabalho, que não o permita pensar e agir fora do imposto pelo seu meio de trabalho, pois ele passa a não ter vida própria e sim uma vida regrada pela indústria, ou seja, a máquina. Esse homem que vive dentro dessa sociedade capitalista liberal, e que é refreado pela máquina, acaba ficando alienado, e, não se identifica mais como um sujeito responsável pelo seu próprio tempo ou pelos seus pensamentos e ações. Ele se vê sujeitado a essa rotina de trabalho passando a não ter tempo para mais nada, e isto acaba por acarretar uma massificação do pensamento e da cultura.15 Por exemplo, quantas vezes já ouvimos várias pessoas dizerem que trabalham agora para garantirem um futuro tranquilo e poderem aproveitar a vida, contudo na maioria das ocasiões não é isso que acontece, pelo contrário, quando esta pessoa chega à fase de “aproveitar a vida” ela não pode fazer isso devido os problemas físicos e psicológicos adquiridos em anos de longas e exaltantes jornadas de trabalho. Porém, esse pensamento de “garantir um futuro tranquilo” impera em nossa sociedade mesmo depois de vermos tantas pessoas que acabam não tendo um futuro tão calmo assim. Isso acontece devido a esse pensamento de que temos que trabalhar para garantir um futuro melhor e para tanto temos que continuar a alimentar essa indústria que acaba por corroer as outras opções que temos. 15 Ibid. p. 07. 15 Outra questão é com relação à cultura. Na sociedade capitalista liberal, ela acaba por virar uma espécie de mercadoria de troca, o homem já não se identifica por afinidade ou por razões emocionais a determinado tipo de cultura, mas sim, por que essa é a que está “na moda”, e deve ser consumida. Exemplo, a música sertaneja ou o funk, são dois estilos musicais que estão em alta no cenário musical brasileiro, entretanto muitas das pessoas que escutam esses estilos não conhecem sua trajetória ou evolução musical, apenas curtem por estar em alta no momento. Ainda tem aquelas pessoas que não gostam desses gêneros, mas também não conhecem suas histórias, apenas não gostam por acharem vulgar, brega ou não se identificam com o estilo. Contudo, esse pensamento, é devido ao conhecimento superficial da trajetória percorrida pela música sertaneja e pelo funk, para que hoje eles estivessem com esse estilo mais “universitário”, com relação ao sertanejo, ou com o estilo mais “provocante”, com relação ao funk. A grande maioria das pessoas que dizem gostar dessas músicas, na realidade só as escuta porque é o que está na moda. Nesta perspectiva, elas acabam não questionando nem a trajetória dessas músicas e muito menos o porquê elas estão atualmente com essa composição musical e não outra. Partindo desta análise, devemos levar em consideração, a questão de que tanto o sertanejo quanto o funk, são expressões musicais que transmitem uma ligação com o seu presente, isto é, elas buscam através de suas respectivas realidades sociais passarem para os ouvintes seus dilemas sociais. O que devemos levar em conta é a questão de apropriação desses estilos pela indústria cultural e a forma com que ela se utiliza deles para fins lucrativos e de venda. Neste sentido, concordo quando o autor Teixeira Coelho escreve sobre essa cultura imposta pela sociedade capitalista liberal por meio da indústria Nesse quadro, também a cultura — feita em série, industrialmente, para o grande número — passa a ser vista não como instrumento de livre expressão, crítica e conhecimento, mas como produto trocável por dinheiro e que deve ser consumido como se consome qualquer outra coisa. E produto feito de acordo com as normas gerais em vigor: produto padronizado, como uma espécie de kit para montar, um tipo de pré-confecção feito para 16 atender necessidades e gostos médios de um público que não tem tempo de questionar o que consome.16 Sendo assim, o que podemos perceber é que nesse estilo de sociedade, para o homem não é “permitido” o sentimento de questionamento, em qualquer área da vida, pois se o mesmo fizesse isto ele se permitiria pensar em outras formas de cultura e até quem sabe de sociedade. Dito isto, partilho do conceito de circularidade utilizado por Carlo Ginzburg, o qual considera haver uma reciprocidade entre a cultura dominante e a subalterna “[...] termo circularidade: entre a cultura das classes dominantes e a das classes subalternas existiu, na Europa pré-industrial, um relacionamento circular feito de influências recíprocas, que se movia de baixo para cima, bem como de cima para baixo [...]”17 Ou seja, dentro da nossa sociedade, o que vemos hoje, é uma apropriação tanto da classe dominante quanto da classe subalterna de aspectos e costumes que antes eram vistos como subordinados ou superiores, mas que agora, são apropriados e incorporados pelas duas culturas, sendo assim, são reeditados, partindo do ponto de vista de mundo, sociedade e entendimento enquanto sujeitos ativos no processo histórico, para desta forma, serem resignificados partindo da visão de cada uma dessas culturas dentro da própria realidade social. Devemos ter em mente, que, isto não significa há inexistência de pessoas que pensem diferente do expressado pela indústria cultural, pelo contrário, existem sim, mas elas acabam por serem invisíveis dentro do próprio sistema. Partindo desses pontos percebemos que para a indústria cultural se firmar é necessária a existência dos meios de comunicação de massa e também de uma cultura de massa. Este fenômeno passa a ser visível a partir da Revolução Industrial do século XVIII, a qual proporciona um aumento no número de trabalhadores assalariados ocasionando uma economia de mercado e conduzindo a uma economia de consumo e massificação do trabalhador, o qual é induzido a não 16 COELHO, loc. cit. 17 GINZBURG, Carlo.O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Cia. das Letras, 1987. p. 13. 17 pensar devido ao sistema de longas e estressantes jornadas de trabalho dentro de uma fábrica.18 Esse trabalhador submetido a esse sistema acaba se acostumando a não questionar, passando a assimilar tudo o que lhe é proposto sem perguntas sobre o porquê disso ou daquilo. Formando dessa maneira, um campo relativamente homogêneo para o desenvolvimento desse pensamento massificado e simplificado produzido pela indústria cultural. Contudo, o mesmo não acontece com relação ao Brasil. Isto é devido, principalmente, a questão da divisão de rendas, pois se fizermos uma rápida análise dessa distribuição veremos que ela está centrada na região centro-sul do país, ou seja, os potenciais consumidores dessa indústria cultural estão nessa área, ocasionando um campo heterogêneo para a proliferação da mesma. Isto é, essa população que vive na região centro-sul é pequena se comparada com a população nacional, sem contar, que, mesmo os habitantes dessa área consomem moderadamente dentro de suas próprias limitações econômicas. A indústria cultural no Brasil, para conseguir se firmar dentro do país acaba por fazer um trabalho todo focado para esses bolsões consumidores.19 Entretanto, ela se utiliza dos meios de comunicação de massa que estão presentes em quase toda a extensão do território brasileiro. Esses meios estão dispostos dentro do país da seguinte maneira televisão, rádio, jornais, revistas, livros e a internet, mesmo que está ainda esteja mais presente dentro da região centro-sul do país. É se utilizando desses meios, que a indústria cultural, consegue atingir seu público alvo, e como consequência, se espalha para as demais regiões do país. Dentre esses meios a televisão é a que detém a maior parcela de investimentos em publicidade. Isto se deve, ao fato, dela ser o meio de comunicação de massa, mais presente dentro do território brasileiro, e também, é o de mais fácil acesso para a população nacional. Exemplo, se antigamente no país, a população se reunia em volta do rádio para escutar as notícias do Brasil e do mundo e também ouvir as famosas rádio-novelas, hoje as pessoas se reúnem 18 Ibid. p. 08. 19 Ibid. p. 35. 18 em volta de um receptor de televisão para assistir as notícias, o futebol e as novelas. Em um segundo plano temos o rádio, que ainda funciona como um veículo propagador da indústria cultural. Contudo, colocar o rádio na frente da internet parece um absurdo, mas se pensarmos que a população que vive fora da região centro-sul, tem um acesso limitado à internet se comparado aos habitantes desse bolsão consumidor. Isto não significa que os habitantes dessas outras regiões não tenham oportunidade de adquirir esse meio. Desta maneira, a indústria cultural ganha espaço para se desenvolver dentro do Brasil em grande parte devido à assimilação feita pela população nacional daquilo que ela produz para a população da região centro-sul constituída pela parcela de consumidores moderados.20 Para entendermos melhor essa questão dos meios de comunicação de massa, e a relação destes, com a indústria cultural dentro do país, podemos analisar da seguinte maneira, atualmente a televisão brasileira tem grande influência em todos os aspectos da vida da população nacional, isto porque, esse meio de comunicação vende seu produto através das propagandas, programas e novelas produzidas pela mesma. A exemplo disto temos as telenovelas, as quais são produzidas com o intuito de passar questões que são consideradas tabus dentro da sociedade, mas o que elas realmente fazem, é mostrar de forma simplificada um lado apenas do problema. Elas não dão espaço para questionamentos e outras visões, e acabam por impregnar toda uma população com seus esquemas simplificados da realidade do problema. Para além dessa simplificação da realidade, há também a questão da venda maciça de estereótipos culturais, sociais, psicológicos e físicos difundidos pelas novelas e programas televisionados. Ou seja, dentro deles há milhares de esquemas voltados ao convencimento do telespectador, para que ele compre, vista e use determinado tipo de roupa, música, eletro e eletrônico e os mais diversos produtos possíveis. Partindo do princípio, de que os meios de 20 Ibid. p. 36. 19 comunicação de massa, sobrevivem no Brasil devido ao auto teor de publicidade em suas produções, é pertinente quando o autor Teixeira Coelho fala dos traços grotescos que marcam a indústria cultural brasileira: — a indústria cultural no Brasil apresenta-se marcada pelos traços mais evidentes e grotescos do comercialismo em particular e do capitalismo em geral. Tudo o que possa prejudicar um consumismo acrítico não deve passar por esses veículos. Como norma, todas as preocupações culturais se guiam pela preocupação maior, que é vender alguma coisa. Para vender é necessário criar e manter o hábito de consumir. E para que este sobreviva é necessário embotar a capacidade crítica, em todos os seus domínios.21 Nesta perspectiva, o que a indústria cultural quer, com relação ao Brasil, é vender, porém este produto já deve ter como, via de regra, um teor crítico, pronto e acabado impossibilitando a capacidade do próprio consumidor questionar e ser crítico diante desses produtos destinados exclusivamente ao consumo, e quanto maior melhor. Já que a finalidade é vender acima de tudo. O que se deve levar em conta com relação à indústria cultural no Brasil, é que ela necessita diretamente dos meios de comunicação de massa para garantir o seu espaço, fazendo isso das mais diversas formas. Esses meios de comunicação são indispensáveis com relação ao país, devido à desigualdade na distribuição da renda nacional, o que faz com que existam os chamados bolsões consumidores, mesmo que estes consumam de forma modera, eles são os principais alvos dessa indústria, proporcionando com isso a existência de grupos de subconsumo, estes assimilam o consumo adaptado para esses bolsões. E conseguintemente há aqueles que apenas vivem na esperança de um dia consumir as ideologias propagadas pela indústria cultural. A influência dessa indústria é de longa data, isto porque para fazer-se notar dentro no cenário artístico brasileiro, é necessário aliar-se a ela, buscando se firmar dentro do panorama artístico. Entretanto, o que podemos verificar com relação à obra do cantor/compositor Raul Seixas, é que ele se utilizou da indústria 21COELHO, loc. cit. 20 cultural da época para passar a sua mensagem, sem deixar de fazer uma música dentro dos padrões estéticos exigidos para o período, e também, sem deixar de passar uma mensagem crítica sobre a sua realidade social e sobre suas ideologias de mundo. Para tanto, além de utilizar a indústria cultural como meio divulgador de suas músicas, usou do pensamento da contracultura como ideologia para criar, cantar e viver suas canções e vida. Inicialmente, a contracultura era vista como um movimento juvenil feito por jovens e para eles que estavam insatisfeitos com a sociedade como um todo. Contudo, quando a editora Vozes, lança em 1972, o livro A Contracultura, de Theodore Roszak, o qual trata, principalmente, do universo contracultura dentro dos Estados Unidos, mas que serve como base para um estudo desse movimento dentro de outros países. E também ajuda a compreender com mais claridade o que é, como surge, o que defendee quem está por trás desse movimento contracultural Na verdade, quase não parece exagero chamar de “contracultura” aquele fenômeno que estamos vendo surgir entre os jovens. Ou seja, uma cultura tão radicalmente dissociada dos pressupostos básicos de nossa sociedade que muitas pessoas nem sequer a consideram uma cultura, e sim uma invasão bárbara de aspecto alarmante.22 Nesta passagem, vemos que o autor, trata o termo contracultura, como algo que expressa uma grande ruptura com o que era tido como correto dentro da sociedade da época, buscando mostrar que os parâmetros propostos pelo movimento, mexem tão fundo dentro do ambiente social que eram vistos como uma coisa hostil e até certo ponto considerada uma invasão da ordem social vigente. O termo contracultura, começa a ser vinculado pela mídia norte-america, na década de 1960, caracterizado inicialmente como um movimento de jovens 22 ROSZAK, Theodore. A contracultura. São Paulo: Vozes, 1972. p. 54. 21 que usavam roupas coloridas, cabelos compridos e escutavam um tipo de música que era característico desse movimento, isto é, o rock and roll.23 Porém, a influência desse movimento não ficava restrita apenas à música, ele também atingia outras áreas artísticas. Exemplo disso foi com o poeta fundador, se é que podemos chamá-lo assim, da contracultura Allen Ginsberg (1956), idealizador do poema Howl (em uma tradução livre pode ser chamado de uivo), que é considerado como o marco fundador da beat generation,uma das primeiras expressões da contracultura.24 É também nos anos de 1960 que surge a figura de Elvis Presley, o qual sintetiza o rock and roll da época. Contando com essa agitação de 1960 é que a contracultura começa a ganhar espaço dentro da sociedade estadunidense, porém ela ganha força máxima em todo mundo com o surgimento dos Beatles e de Bob Dylan, dentre outros, que através da música foram capazes de reunir um grande número de pessoas em festivais de rock. Toda a movimentação desses artistas para propagarem o ideário contracultural foi sintetizada nos dois acontecimentos mais marcantes desse movimento, isto é, o festival de Woodstock, que contou principalmente com a participação dos hippies, os quais propagavam o amor e não a guerra, fato devido principalmente a Guerra do Vietnã, a qual foi responsável pela morte de muitos jovens. Já a outra movimentação ocorreu nos campi universitários que tiveram como apogeu o “Maio de 68”, na França. Deste ponto em diante foi difícil ignorar a contracultura como um movimento de contestação radical. É devido a esses acontecimentos, que esse movimento ganha destaque entre os jovens brasileiros das décadas de 1970 e 1980. Uma explicação plausível para o despertar da juventude brasileira para o pensamento do movimento da contracultura é que na década de 1970 o país estava vivendo o chamado milagre econômico, isto é, a família desses jovens estava gastando com casas de praia ou campo, evocando uma época de 23 PEREIRA, PEREIRA, Carlos Alberto Messeder. O que é contracultura. 4 ed. São Paulo, Brasiliense, 1986. p. 13 24 Ibid. p. 35. 22 abundância, possibilitando um relaxamento no modo de criação das crianças, que estava assentado em um molde mais rígido. Fazendo com que surgisse uma rebeldia pura e simples.25 As crianças e jovens das décadas de 1960 e 1970 passam a ter um maior espaço de expressão dentro da sociedade e também do seio familiar, por exemplo, é permitido a criança demonstrar seus sentimentos e estimulá-los. Ela não é mais refreada pelos pais ou pela sociedade, pelo contrário, os pais acabam procurando escolas que tenham em seus currículos idéias progressistas. Neste momento, há no país, devido principalmente às leituras estrangeiras vindas dos Estados Unidos, uma aceitação e incentivo à criação libertária das crianças, as quais se tornariam jovens críticos e com liberdade para sentir e criar, adotando assim o lema de que é proibido proibir.26 A adoção de uma educação mais liberal somada ao comodismo da classe média, que é de onde provinham à maioria dos jovens que aderiram à contracultura, o fato desse acomodamento da classe, é devido principalmente ao “milagre econômico”, fruto da ditadura militar, que proporcionava a compra de eletrodomésticos e o consumo de outros produtos, os quais facilitavam a vida dessas pessoas e as deixavam com a falsa ilusão de um conforto e de uma melhor condição de vida. Para além da questão da educação, o momento no qual o país estava inserido era de extrema repressão, isto é, tudo o que não exaltasse o sentimento de pátria não era valido. A ditadura militar, engoliu o Brasil em um universo de violenta represaria, a qualquer tipo de pensamento, que fosse contrário ao imposto pelo governo militar, isso afetou diretamente todas as expressões sociais da época, como colocado pela autora Claudia Wasserman A ditadura, entre 1964 e 1985, deu um golpe certeiro no projeto reformista, calou a intelectualidade brasileira, desmoralizou o movimento estudantil, ceifou esperanças de uma nova estética artística no teatro, cinema e outros âmbitos da cultura nacional, destruiu a imprensa engajada e politizada castigou severamente o 25DIAS, Lucy. Anos 70 Enquanto Corria a Barca - Anos de chumbo, piração e amor uma reportagem subjetiva. 1 ed. digital. São Paulo, Biblos Editora Digital, 2013. p. 32. 26 Ibid. p. 33. 23 projeto de educação e alfabetização chamado "pedagogia do oprimido" e feriu de morte os movimentos operário e camponês.27 Como colocado neste trecho, vemos que a ditadura minou qualquer projeto de mudança social, que estivesse em andamento no país, fazendo com isso, que esses jovens, provenientes de uma educação totalmente diferente ao momento social do Brasil, vissem na contracultura uma maneira de buscar algo novo, fora dos padrões aos quais estavam submetidos. O movimento da contracultura no Brasil, contou também, com uma parcela de adultos que estavam inconformados com o comodismo de sua própria geração. Estes adultos acabavam servindo como guias para esses jovens, assim como, esses jovens também serviam de gurus para esses adultos. Partindo disto concordo quando a autora Lucy Dias coloca o adulto como: Seja lá o que for que tenha atraído os adultos mais radicais — que já tinham bebido na fonte dos beatniks e feito a difícil travessia dos 60 — à nova rebeldia, serão eles que darão forma e direção ao movimento contracultural gestado no Brasil.28 Como é colocado por Lucy Dias, esses adultos inconformados e maduros é que darão a direção para a onda contracultural vivida no país, principalmente na década de 1970, quando através do comportamento, roupas e músicas esse movimento ganha espaço e passa a cair no gosto de uma juventude que queria apenas curtir a vida sem nenhum padrão social pré-estabelecido. Isso faz com que essa juventude seja chamada de “rebeldes sem causa”, pois, aparentemente, eles não tinham motivo para fazerem um movimento que ia diretamente contra tudo aquilo que eles usufruíram quando eram crianças. Mas, o motivo direto para esses jovens aderirem à causa contracultural é o comodismo encontrado quando eles chegam à fase adolescente e adulta, fazendo com que eles comecem a repudiar tudo aquilo que fazia parte diretamente de suas realidades de vida e social. No Brasil os pólos contraculturais dos anos 1970 eram São Paulo e Rio de 27 WASSERMAN, Claudia. O golpe de 1964: tudoo que se perdeu. In: PADRÓS, Enrique Serra (Org.) As Ditaduras de Segurança Nacional: Brasil e Cone Sul. Porto Alegre: Corag. 2006. p. 60. 28 Ibid. p. 38. 24 Janeiro, essas cidades atraiam jovens de todas as partes do país, os quais podiam se portar de acordo com a conduta do movimento.29 Isto é, esses jovens se reunião em grupos underground, que eram compostos por pessoas que não se conheciam muito bem, mas que saiam juntos e iam para os porões30 da cidade para lá criarem e criticarem o sistema social da época, ou seja, a ditadura militar. Esses jovens que se reuniam em seus espaços nessas cidades, queriam colocar em prática um dos principais objetivos da contracultura, que era a luta contra o comodismo social, propagado pela sociedade na qual estavam inseridos. Essa sociedade é formada por um sistema de pessoas responsáveis por explicar como deve funcionar a vida em todas as esferas que se possa imaginar. Para combater este tipo de sociedade, estes jovens acabam formando as chamadas cidadelas, grupos constituídos por pessoas que tinham algum tipo de afinidade tanto social como político e cultural.31 Dessas cidadelas surgiram as tribos e comunidades, que se juntavam para propagarem e discutirem suas ideias. Um dos exemplos mais marcantes dessas cidadelas, aconteceu com um grupo de atores do Rio de Janeiro, que promoveram a peça Hoje é dia de rock, de José Vicente, tendo direção final de Rubens Correia. Ficou em cartaz no Teatro Ipanema, em 1971, durante o governo Médici.32 Essa peça contava uma história sobre a juventude, a família e sua desintegração, partindo da utopia de um reino livre, um reino de cada ser humano. Como colocado por Lucy Dias essa peça foi um marco para os jovens que tinham suas utopias de viverem em uma sociedade sem regras. Essa peça, foi de tal importância, para esses jovens/adultos porque ela representava um ideal de sociedade que era o desejado por eles na época, porém esse mesmo ideal era visto como uma espécie de loucura ou utopia devido ao momento que o país vivia, isto é, a ditadura militar refreava grande parte da atuação direta desses jovens, porém eles se utilizavam dos meios de comunicação para propagarem suas ideias, coisa que foi feita por Raul Seixas, 29 Ibid. p. 43. 30Casas ou prédios antigos, que serviam de refúgio, para que esses jovens pudessem se expressar de acordo com os preceitos da contracultura. 31 Ibid. p. 50. 32 Ibid. p. 56. 25 que através de suas músicas deu voz a milhares de jovens que compartilhavam o mesmo pensamento que ele. Por meio dessa peça, o Teatro de Ipanema, ganhou destaque no Rio de Janeiro e acabou tornando-se um ponto de referência para a juventude carioca, que durante a ditadura frequentava esse espaço de forma a fugir do deserto proporcionado pelo regime. Esses jovens que frequentavam os porões de São Paulo ou o Teatro de Ipanema no Rio de Janeiro, deixaram se levar pela grande onda contracultural que se propagou no país, buscando na igualdade, solidariedade, consumo coletivo de drogas, na questão da sexualidade onde homem pode experimentar homem e mulher pode sair com mulher, ir fundo nas coisas e assim se descobrir enquanto sujeito e ser humano que é passível de criticar e de ser criticado e de amar e ser amado sem se prender a moldes pré- estabelecidos pela sociedade da época. Entretanto, para entender o florescimento desse pensamento entre os jovens, se faz necessário compreendermos o que foi e o que significou o Maio de 1968, tanto para a organização desses como grupo, quanto para a propagação do movimento da contracultura, por boa parte mundo. Para tanto, podemos começar procurando entender em linhas gerais o que buscavam as pessoas envolvidas no Maio de 1968. Em 68, o próprio movimento de jovens operários e estudantes praticou a espontaneidade consciente e criadora. Não se considerou o sistema de partidos ou grupos de pressão a qualquer nível; não se participou nem do sistema nem de seus métodos. Desde o início o movimento não tem direita; ele contesta os profissionais da contestação, viola as regras do jogo que as oposições dominam. O movimento de 68 põe por terra o bolchevismo imaginário do Palácio de Inverno: esse não foi uma luta pelo poder ou contra ele; afirmaram-se, ao contrário, os direitos da subjetividade e da espontaneidade consciente. Como a crítica ao mundo burocratizado e desencantado, colocou como lema a verdade triunfante do desejo.33 33 MATOS, Olgaria C. F. Paris 1968: as barricadas do desejo. 3 ed. São Paulo, Brasiliense, 1989. p. 13. 26 Com esse trecho do livro Paris 1968: as barricadas do desejo, podemos compreender que o movimento do Maio de 1968 não queria apenas uma mudança política, social ou cultural, ele queria mais, essas pessoas buscavam uma transformação substancial em todos os aspectos da vida humana em sua sociedade. Para tanto, elas acabaram por não usarem nenhuma das formas de organização tradicionais para uma revolução, isto é, não buscaram organizarem- se em hierarquias de poder dentro de grupos pequenos ou grandes. Pelo contrário, esses estudantes e operários, buscaram por meio de uma espontaneidade consciente formas para que suas reclamações e objetivos fossem ouvidos e vistos pela sociedade capitalista da época. É nesse momento que temos o surgimento de uma nova forma de se fazer ouvir um movimento totalmente contrário ao tradicionalismo das revoluções, isto porque os estudantes e operários que participavam do Maio de 68 delinearam uma cultura da irreprodutibilidade, ou seja, eles se utilizaram de assembleias, as quais incorporavam grupos que acabaram excluídos pelos moldes da indústria cultural. Deste modo, para saber a quantas andava o movimento se fazia necessária a presença dos adeptos e simpatizantes nas reuniões.34 Outro ponto de ação desses manifestantes eram as invasões das fábricas e tomada das ruas, porém eles faziam isso não como uma forma de padronizar o movimento. Pelo contrário, eles ocupavam esses lugares buscando mostrar o diferente saindo do tradicionalismo. Com isso, eles, buscavam uma interação entre as pessoas presentes no movimento, tornando cada manifestação única, já que à atmosfera desenvolvida nas manifestações nunca era a mesma. Eles queriam por meio de sua cultura da irreprodutibilidade chamar as pessoas para prestar atenção ao novo, ao diferente e, acima de tudo, mostrar que os indivíduos, têm direito de escolher o modo como querem viver seu próprio futuro sem nenhuma manipulação da chamada indústria cultural. 34 Ibid. p. 14. 27 Tendo como base essas formas de reprodução contrárias às propagadas pela indústria cultural, o movimento de Maio de 68 cria seu próprio slogan o "pour une planète plus bleue"35, em uma tradução livre para o português isso significa "para um planeta azul". Com ele os participantes, queriam mostrar para a sociedade que eles buscavam uma nova forma de organização social, onde todos tivessem os mesmos acessos a coisas básicas para se tornar um cidadão crítico, e, acima de tudo que pudesse escolher seu próprio futuro sem as pré-imposições da estrutura social a qual estavam submetidos, isto é, eles queriam o direito de escolher uma nova forma de governo, de economia e até mesmo de cultura que fosse totalmente diferente dos padrões atuais. Partindo disso, buscaram através da propagação da educação, do amor, da bondade e da solidariedade difundir seus ideais para todos os interessados, em participarem do movimento semdistinção de raça, credo, orientação sexual, cultura e posição econômica. Dessa forma, todos tinham acesso aos anseios do grupo sem distinção hierárquica ou de qualquer outro tipo de divisão que pudesse tirar o foco do movimento, que era a rejeição total do modo atual da sociedade, como um todo, desde sua divisão econômica, social e cultural. Podemos perceber que os estudantes e operários envolvidos no movimento, tinham muito claras suas intenções, porém o questionamento que devemos fazer é de como eles alcançariam de fato esses desejos? Devemos partir do pressuposto de que eles eram contar qualquer forma de organização de poder dentro do movimento, sendo assim, como seria possível se chegar a uma vitória realmente. Outro ponto importante é a questão de o quanto a própria organização social existente estava em declínio e se realmente eram necessárias as mudanças propostas. Isto é: Aqueles que em Maio de 1968 se sublevaram estavam recusando muito mais uma certa forma de existência social do que a impossibilidade material de subsistir nessa sociedade: "contrariamente a todas as revoluções passadas, diz Jacques Baynac, Maio de 1968 não foi provocada pela penúria, mas pela abundância".36 35 Ibid. p. 16. 36 Ibid. p. 21. 28 Nesta passagem podemos ter uma noção de como a revolução de Maio de 1968, foi forjada mais pela necessidade de uma nova existência social, do que de fato por algum declínio da atual estrutura social, os jovens estavam buscando maneiras de contrariar e questionar o seu meio, contudo não tinham de fato argumentos mais encorajadores, para fazer com que a sociedade em geral apoiasse seus ideais. Entretanto não devemos pensar que os jovens que participaram do Maio de 1968 fossem apenas baderneiros sem propósitos. Pelo contrário, essa juventude buscou mostrar que queria deixar sua marca na história, mesmo que isso não significasse de fato vencer. A revolução de Maio de 1968, nos deixa como ensinamento a questão de que suas propostas eram plausíveis, mesmo dentro de uma sociedade que não estava em declínio, mas acima de tudo nos mostra que é possível se organizar um movimento que ultrapasse as fronteiras do país e gere os mesmos questionamentos e críticas em outros jovens de outras regiões com realidade totalmente diferentes daquelas a que os estudantes e operários franceses estavam inseridos. Além disso, devemos ter em mente que eles não se utilizaram da indústria cultural para difundir seus pontos de vista, isto torna a levante de Maio de 1968 ainda mais interessante. Partindo desses breves apontamentos feitos anteriormente, a partir de agora buscarei contextualizar esses movimentos dentro das canções de Raul Seixas, as quais foram capazes de mobilizar toda uma juventude e fazê-la refletir sobre o seu papel como sujeito ativo dentro do processo histórico. 29 3. CAPÍTULO II - RAUL SEIXAS - DO OURO DE TOLO AO COWBOY FORA DA LEI Primeiramente, antes de começarmos a análise das músicas de Raul Seixas temos que conhecer o cantor por trás das canções, sendo assim, no início destacaremos alguns aspectos da vida desse cantor/compositor, que com sua música, foi capaz de mexer com as mentes de vários jovens que estavam buscando um novo sentido de lutar, pelos seus desejos em uma sociedade que estava vivendo um dos seus piores momentos, isto é ditadura militar. Com este momento histórico como pano de fundo, Raul Seixas, foi hábil em se incorporar à indústria cultual, e a passar sua mensagem por meio de canções que tinham uma profunda mensagem de mudança social que vinha incorporada com as noções propostas pela contracultura e que, de certo modo, influenciam seus fãs até os nossos dias atuais. Raul Seixas nasceu no estado da Bahia, cidade de Salvador no dia 28 de junho de 1945. Ainda na infância tinha como principal brincadeira ficar lendo os livros que compunham a biblioteca que seu pai tinha em casa e, com isso passou a criar histórias e personagens que eram retratados por meio de gibis. Seu primeiro contato com a música, mais propriamente o rock and roll foi quando a família se mudou para uma casa perto do consulado americano e ele faz amizade com os meninos de lá os quais lhe emprestam os discos de Elvis Presley, Chuck Berry entre outros.37 Esses garotos foram responsáveis por apresentar o universo do rock para Raul, como ele próprio diz abaixo "Eu ouvia os discos de Elvis Presley até estragar os sulcos. O rock era como uma chave que abriria minhas portas que viviam fechadas. Usava camisa vermelha, gola virada para cima. As mães não deixavam as filhinhas chegarem perto de mim porque eu era torto como o James Dean. Olhava de lado, com jeito de durão. Cada vez que eu cumprimentava uma pessoa dava três giros em torno do próprio corpo. Eu era o próprio rock. Eu era 37 PASSOS, Sylvio. O Moleque Maravilhoso. RAUL ROCK CLUB/RAUL SEIXAS OFICIAL FÃ- CLUBE, São Paulo - Brasil. Disponível em <https://raulsseixas.wordpress.com/biografia-raul- seixas/>. Acessado em 10 dez. 2016. 30 Elvis quando andava e penteava o topete. Eu era alvo de risos, gracinhas, claro. Eu tinha assumido uma maneira de vestir, falar e agir que ninguém conhecia. Claro que eu não tinha consciência da mudança social que o rock implicava. Eu achava que os jovens iam dominar o mundo."38 Com essa citação do próprio cantor, vemos que ele se incorpora rapidamente ao estilo descolado de Elvis e outros cantores, passando a agir e pensar tendo as músicas deles como base para todo os seus pensamentos e modos de agir. Nesta passagem, observamos que Raul considerava a música como um elemento capaz de mudar as pessoas, prova disso era ele mesmo. Com toda essa entrega para com o rock, em pouco tempo Raul forma sua primeira banda, composta por seus irmãos Délcio e Thildo Gama e chamada de Os Relâm-pagos do Rock, eles chegaram a se apresentar na TV, porém não emplacaram. Entretanto no ano de 1964, o grupo passa por uma revisão trocando de nome e de pessoas, passando a se chamar The Panthers, eles chegaram a gravar duas músicas as quais acabaram não sendo lançadas, apenas em 1992 a música intitulada "Nany" é lançada no álbum O Baú do Raul junto com outras canções inéditas.39 Com mais essa tentativa frustrada Raul altera mais uma vez o nome do grupo passando a ser conhecido como Raulzito e Os Panteras os quais no ano de 1968 vão ao Rio de Janeiro para gravarem o primeiro LP, que tinha o mesmo nome da banda como título, contudo mais uma vez o grupo não emplacou e o LP permaneceu na estante das lojas de discos. Como o próprio Raul define o disco "Chegamos em fim de safra. Não entendíamos o que estava acontecendo. Agnaldo Timóteo de um lado, Gil e Os Mutantes de outro, Tocávamos coisas complicadas, minhas letras falavam de agnosticismos, essas coisas, e complicamos demais. Não tínhamos idéia do que era comercial em matéria de música em português."40 38 Ibidem. 39 Ibidem. 40 Ibidem. 31 Como colocado por Raul, suas músicas não foram bem vistas pelo público, que, em um primeiro momento não entendeu o significado delas, levando em consideração que o estilo musical rock concorria de frente com a bossa nova e dividia opiniões dos jovens. Devemos ter em mente que é nesse momento que ele passa a compreender sobre o que é comercial e não comercial dentro do universo musical brasileiro. Com a desilusão do disco a banda se desfaz, porém Raul não deixa de todo o universomusical e em 1970 vira produtor musical da CBS, hoje conhecida como Sony Music. Neste momento, ele passa a produzir os discos de cantores como Jerry Adriani e Trio Ternura, com a sua ida para o outro lado da indústria musical ele começa a entender o que é comercial no cenário musical brasileiro tanto que em 1971 ele lança o LP Sociedade da Grã-Ordem Kavernista - apresenta - Sessão das 10, o disco contou com a participação de outros cantores, porém como seu lançamento não tinha sido aprovado, isto leva à saída de Raul da CBS e ao sumiço do LP das bancas.41 Mesmo com esse imprevisto ele estava muito orgulhoso de sua primeira obra comerciável "Foi também a primeira vez que eu fiz algo para ser consumido e do qual me senti paranoicamente orgulhoso e feliz. Como os Beatles, que aprenderam no estúdio, eu aprendi tudo na CBS,os macetes todos. Aprendi a fazer música fácil, comercial, intuitiva e bonitinha,que leva direitinho o que a gente quer dizer."42 Nesta passagem, vemos que Raul diz que aprendeu a fazer música seguindo os padrões comerciais dentro da gravadora e com isso passou a trabalhar em seu próprio retorno ao palcos. Coisa que aconteceu em setembro de 1972 quando ele se inscreveu no VII Festival Internacional da Canção e apresentou ao público sua performance da música"Let me Sing, Let me Sing" a qual mistura o rock com baião, mesmo assim, ele acaba sendo desclassificado, mas antes disso ele chama a atenção do público e da imprensa com seu jeito rock star do sertão o que lhe proporciona um contrato com a gravadora Philips.43 41 Ibidem. 42 Ibidem. 43 Ibidem. 32 O grande momento de sua carreia chegou com a explosão da música "Ouro de tolo", a qual faz uma crítica à sociedade da época que vivia o Milagre Brasileiro, que lhes possibilitava comprar coisas supérfluas apenas para o consumo rápido. Porém, o sucesso chega a seu ápice com o lançamento do primeiro disco solo o intitulado 'Krig-ha, Bandolo!' Esse título refere-se ao grito de guerra de Tarzan 'cuidado, ai vem o inimigo' ele foi lançado em 1973, sendo visto como um dos seus melhores trabalhos.44 É nesse momento que Raul Seixas conhece Paulo Coelho, e os dois criam a chamada Sociedade Alternativa, que além de ser nome de um de seus principais sucessos, é também um modelo de conduta que é rapidamente adotado por eles. Isto é, a Sociedade Alternativa vira uma comunidade com sede e relatórios mensais sobre sua evolução. Foi neste período que os dois caíram no radar do DOPS, departamento criado na ditadura para reprimir avanços de ideias que poderiam prejudicar o sistema vigente. Desta forma, Raul acabou sendo preso e torturado, pois seus valores difundidos dentro dessa sociedade iam totalmente contra aos impostos pelos militares, na época o principal slogan, dessa comunidade criada por eles era "Fazes o que tu queres, há de ser tudo da lei", como esses ideais iam totalmente contra a ordem vigente, tanto Raul como Paulo Coelho foram expulsos do país partindo rumo aos Estados Unidos.45 Foi no ano de 1974, que Raul, iria colocar em prática todo o seu projeto da Sociedade Alternativa, porém como ele mesmo conta foi tudo barrado pela repressão militar Então foi tudo desativado porque eu fui expulso para Nova York. Fiquei um ano exilado do Brasil, sem poder voltar. Eu fui pego na pista do Aterro [do Flamengo, no Rio] quando eu voltava de um show. Um carro do Dops barrou o meu táxi e eu fiquei nu com uma carapuça preta na cabeça. Fui para um lugar, se não me engano, Realengo. Eu sinto que foi por ali, 44 Ibidem. 45 Ibidem. 33 Realengo. Um lugar subterrâneo, que tinha limo. Eu tateava as paredes e tinha limo.46 Como relatado pelo cantor, ele foi brutalmente arrastado para o exílio e obrigado, além da tortura física, a deixar o país devido as suas ideias que neste momento, já contavam com grande apoio social, devido ao seu sucesso nacional. E por isso, essa busca da Sociedade Alternativa, acaba indo de encontro com tudo que era tido como subversivo ao governo militar. Raul Seixas fica no exílio por quase um ano e é chamado a retornar ao país em dezembro de 1974 pelo consulado brasileiro Então, eu estava lá nos Estados Unidos. Já tinha encontrado com John Lennon, já tinha corrido o país, era casado com uma americana na época. E tinha cantado com Jerry Lee Lewis em Memphis, Tenesee. Ele me acompanhou de piano. Tinha transado [feito muitas coisas] um bocado nos EUA quando veio o Consulado Brasileiro no meu apartamento. Era quase em dezembro de 1974. Bateu na porta do meu apartamento dizendo que eu já podia voltar. Que o Brasil já me chamava, que eu era patrimônio nacional e que tava vendendo disco. Cinicamente, o cara falou assim.47 Fica evidente que Raul só retorna ao país devido à grande repercussão do álbum "Gita", o qual teve várias faixas de sucesso como a auto intitulada Gita e Sociedade Alternativa, a qual acaba se tornando um mantra para os adeptos deste realidade social pregada pela canção. É neste momento, que, Raul Seixas ganha seu primeiro disco de ouro com mais de 600 mil cópias vendidas. Depois de todo esse evento, Raul lança seu próximo trabalho, o "Novo Aeon", em 1975, mas ele não chegou nem perto do ápice de seu disco lançado anteriormente.48 No ano seguinte ele lança o disco "Há mil anos Atrás", o qual o ajudou a voltar para o cenário musical. Já em 1977, lança o álbum "O Dia em que a Terra Parou", porém esse novo trabalho acaba não agradando a crítica, mesmo contendo uma de suas músicas mais aclamadas, a "Maluco Beleza”. Na nova 46 MATSUKI, Edgard. Em áudio de 1988, Raul Seixas relata tortura sofrida durante a ditadura militar. Disponível em <http://www.ebc.com.br/cidadania/2014/08/em-audio-de- 1998-raul-seixas-relata-tortura-sofrida-durante-a-ditadura-militar>. Acessado em 10 fev. 2017. 47 Ibidem. 48 PASSOS, loc. cit. 34 gravadora WEA ele lança no ano de 1978, o LP "Mata Virgem" e os críticos também não aprovaram seu novo trabalho, e no ano seguinte lança o "Por Quem os Sinos Dobram", Esse álbum foi pelo mesmo caminho que os outros.49 Em 1980 ele volta para a gravadora CBS e faz o disco "Abre-te, Sésamo" e com este LP ele volta a cena musical, porém com menos força. No estúdio Eldorado em 1983, Raul lança o álbum "Raul Seixas" o qual faz sucesso e ele volta a fazer shows pelo país.50 Em 1984, depois de uma viagem aos Estados Unidos, para saber o que havia de novo no cenário musical de lá, ele volta ao Brasil e assina contrato com a gravadora Som Livre e lança o disco "Metrô linha - 743". Após o lançamento deste álbum, Raul Seixas passa por sérios problemas para achar uma nova gravadora, até que com a ajuda de amigos ele assina com a Copacabana e lança em 1987, o aclamado "Uah-Bap-Lu-Bap-Lah-Béin-Bom!", o disco toca em todo o país e Raul volta à cena musical do Brasil. Neste álbum, é lançada a música "Cawboy Fora-da-Lei" que fez tanto sucesso que teve direito a clipe e trilha sonora de novela, mas é nessa época, que os problemas de saúde devido o abuso de álcool atrapalham sua volta a TV e aos palcos.51 No ano seguinte ele lança o LP "A Pedra do Gênesis", no qual se dedica a falar sobre a Sociedade Alternativa. E no ano de 1989, Raul Seixas lança seu último disco, o "Panela do Diabo", o qual foi lançado dois dias antes de seu falecimento. No dia 21 de agosto de 1989, Raulzito veio a óbito devido a uma parada cardíaca resultado da pancreatite que o acompanhava por mais de dez anos. Desta forma, chegouao fim a carreira musical de Raul Seixas, porém seu legado é preservado até hoje, por meio de fã clubes e fãs isolados que passam seus ensinamentos de geração a geração, permitindo que seu legado seja repassado para os jovens de hoje. Dentro de todo esse vasto repertorio de Raul Seixas, para fazer a análise que pretendo, tive que escolher algumas músicas para analisarmos como ele se utiliza das canções para passar uma mensagem de 49 Ibidem. 50 Ibidem. 51 Ibidem. 35 ruptura a sociedade imposta e a busca por algo novo fora dos padrões tradicionalistas. A primeira música que irei analisar foi lançada no álbum Krig-ha Bandolo! no ano de 1973. Essa canção lançou Raul Seixas, no cenário musical brasileiro, em um ambiente totalmente desfavorável para o rock ou para qualquer outro estilo musical que fosse contra o regime militar. É neste mesmo ano que se passa o chamado milagre econômico no Brasil, onde vemos o surgimento de uma nova classe média, que com a abertura do país para os produtos estrangeiros e, também, com o aumento de renda, estas famílias passam a ter mais dinheiro para comprarem produtos fruto da indústria cultural, isto é, coisas de consumo não duráveis, mas que faziam a cabeça dessa classe em ascensão.52 Foi essa mesma indústria que Raul Seixas aprendeu a utilizar durante seu trabalho na gravadora CBS. Sendo assim, em maio de 1973 é lançada a música Ouro de Tolo Ouro de Tolo Eu devia estar contente Porque eu tenho um emprego Sou um dito cidadão respeitável E ganho quatro mil cruzeiros Por mês... Eu devia agradecer ao Senhor Por ter tido sucesso Na vida como artista Eu devia estar feliz Porque consegui comprar Um Corcel 73... 52 GIAMBIAGI, Fabio; VELOSO, Fernando A.; VILLELA, André. Determinantes do "milagre" econômico brasileiro (1968-1973): uma análise empírica. Rev. Bras. Econ. vol.62 no.2 Rio de Janeiro Apr./June 2008.Disponível em < http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rbe/article/view/1053>. Acessado em 15 jan. 2017. 36 Eu devia estar alegre E satisfeito Por morar em Ipanema Depois de ter passado Fome por dois anos Aqui na Cidade Maravilhosa... Ah! Eu devia estar sorrindo E orgulhoso Por ter finalmente vencido na vida Mas eu acho isso uma grande piada E um tanto quanto perigosa... Eu devia estar contente Por ter conseguido Tudo o que eu quis Mas confesso abestalhado Que eu estou decepcionado... Porque foi tão fácil conseguir E agora eu me pergunto "e daí?" Eu tenho uma porção De coisas grandes prá conquistar E eu não posso ficar aí parado... Eu devia estar feliz pelo Senhor Ter me concedido o domingo Prá ir com a família No Jardim Zoológico Dar pipoca aos macacos... Ah! 37 Mas que sujeito chato sou eu Que não acha nada engraçado Macaco, praia, carro Jornal, tobogã Eu acho tudo isso um saco... É você olhar no espelho Se sentir Um grandessíssimo idiota Saber que é humano Ridículo, limitado Que só usa dez por cento De sua cabeça animal... E você ainda acredita Que é um doutor Padre ou policial Que está contribuindo Com sua parte Para o nosso belo Quadro social... Eu que não me sento No trono de um apartamento Com a boca escancarada Cheia de dentes Esperando a morte chegar... Porque longe das cercas Embandeiradas Que separam quintais No cume calmo Do meu olho que vê 38 Assenta a sombra sonora De um disco voador... Ah! Eu que não me sento No trono de um apartamento Com a boca escancarada Cheia de dentes Esperando a morte chegar... Porque longe das cercas Embandeiradas Que separam quintais No cume calmo Do meu olho que vê Assenta a sombra sonora De um disco voador...53 Nesta música vemos que Raul Seixas, faz uma crítica a tudo que é colocado como um objetivo de vida, para se alcançar um final feliz dentro dos moldes sociais impostos, ou seja, como já foi mencionado antes, o Brasil vivia neste momento o milagre econômico, o qual permitia que as famílias buscassem cada vez mais a felicidade em coisas que estavam atreladas a divulgação maciça promovida pelos meios de comunicação como carros, passeios e produtos não duráveis. Por isso, entendo que há uma representação do cotidiano vivido pelo cantor, o qual através de suas próprias experiências analisa o meio social que está inserido. Sendo assim, concordo quando o autor francês Roger Chartier54 fala de representação como uma experiência vivida pelo seu interlocutor, o qual busca por meio de sua vivência traduzir seu cotidiano de modo a proporcionar ao 53SEIXAS, Raul. Ouro de Tolo. LP Kri-Há, Bandolo! PHILIPS RECORDS, 1973. 54CHARTIER, loc. cit. 39 expectador uma parte de seu próprio modo de pensar social, desta maneira proporcionando a ele uma experiência diferente de uma mesma sociedade. Para além, desta questão da representação, temos também a utilização de elementos particulares da contracultura, isto se faz presente na música, no sentido de que Raul Seixas propõe que as pessoas deveriam estar felizes por suas conquistas, porém, ao mesmo tempo, ele provoca uma inquietação, já que convida as pessoas a pensarem com mais que apenas dez por cento do cérebro, e também as convida para sair de seus apartamentos e a olharem para além do que lhes é apresentado pelo sistema, principalmente se levarmos em conta o momento histórico do país. Nesta perspectiva, entendo que a música Ouro de Tolo carrega vários signos em sua letra, entretanto eles terão um sentido diferente para cada grupo social que a escuta. Ou seja, se pensarmos no período em que a canção foi lançada, era um cenário a onde tínhamos uma crescente difusão de ideais que iam contra o sistema e em contrapartida tínhamos um sistema que ia totalmente contra os sentidos provocados pelas estrofes da música. Mas a pergunta que fica é como em plena ditadura militar, Raul Seixas, passa pelas regras de bloqueio cultural impostas pelas restrições do sistema, e lança uma música que faz com que as pessoas revejam seu modo de vida. A resposta é um tanto quando simples, pois ele aprendeu a trabalhar nas entrelinhas, e a escrever de forma que levasse o público, a ter que pensar em suas próprias experiências como sujeitos, para que daí a canção fizesse realmente sentido, e com isso ele começa a ter cada vez mais fãs pelo país, isto porque, ele propunha uma atitude totalmente nova aos jovens que escutavam suas canções, e elas não se limitavam apenas as roupas ou cabelos, pelo contrário elas iam mais longe mostrando aos jovens que eles tinham o poder para mudar o futuro. Com essa canção, que teve o nome baseado em livros sobre alquimia que Raul Seixas lia com frequência55, ele busca trazer à tona sua própria frustração, diante de uma sociedade que almejava cada vez mais o que lhes era mostrado pela mídia, considerando isso como um presente chique mais que não tinha um 55 PASSOS, loc. cit. 40 real propósito de mudança social, ou seja, ouro de tolo, e com isto buscava refletir sobre o sentido de se ter tudo e ao mesmo tempo não ter nada. Pois quando o "embrulho é bonito", mas o conteúdo não corresponde, de nada adianta ter acesso a este
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