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AMARILIS, de Eva Furnari

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Amarílis de Eva Furnari. 
 
Tiago contou. 
- Um, dois, três, quatro, cinco passos. 
Deu a volta na escrivaninha do pai e parou diante de uma grande estante de livros. O pai estava 
viajando, desta vez tinha ido para um país que ficava na parte de cima do mundo. Tiago sabia o que 
era o mundo – uma bola redonda igual ao globo da biblioteca, só que maior, muito maior. 
Deslizou a mão pela quina de madeira escura, foi até o fim e voltou sentindo as lombadas dos livros 
uma por uma – finas, grossas, ásperas, lisas, rasgadas, frias. 
- Este já foi, este outro também. Este eu detestei. Lu, onde estão os livros novos que o papai trouxe 
daquele lugar onde as pessoas têm os olhos puxados? 
Luisa, sentada no sofá, olhou em volta. 
Estão ali, em cima da escrivaninha, na pilha alta perto da janela. Não, essa não, a outra. Isso. 
Entre todos, Tiago escolheu um volume grande, com uma sobrecapa lisa e aproximou o nariz. 
- Tem cheiro de livro novo. 
Sentou-se ao lado da irmã. Naquele dia ele ia ficar contente de ouvir uma história triste, se possível 
uma que o fizesse chorar, não sabia explicar por que, mas gostava de chorar, às vezes, quando o pai 
viajava. 
- Vamos começar, Lu? 
Luisa pôs o caderno de ciências de lado. 
-Vamos. 
Ela apanhou o volume da mão de Tiago e abriu ao acaso. Uma imagem colorida ocupava toda a 
página da direita e embaixo apenas o nome de uma flor, amarílis. 
O livro escolhido era fotografias, somente fotos de flores. 
A menina percorreu a figura com o olhar preocupado, teria que traduzir a imagem colorida em 
palavras. 
Luisa teria que dizer a Tiago o que estava vendo, era assim que costumavam brincar. 
Travava-se de um jogo que eles mesmos tinham inventado, as regras eram simples: ele escolhia o 
livro, ela escolhia a página e contava ao irmão o que havia lá, se fosse escrito, lia, se fosse imagem, 
teria que explica-la, e, quando o assunto era chato ou difícil, ela criava histórias para deixar a coisa 
mais interessante. Luisa gostava do desafio, mas nem sempre era fácil, o último jogo tinha sido um 
desastre. Como explicar desenhos técnicos das partes de um motor de barco? 
- Onde foi que caiu, Lu? – quis saber Tiago. 
Luisa nunca respondia na hora, demorava, o menino sabia disso e tentava se conter, balançava as 
pernas, roía as unhas, enrolava e desenrolava a toalhinha de crochê do braço do sofá um milhão de 
vezes. 
A menina fazia o possível para que esses sinais nervosos não a atrapalhassem, ela precisava de calam 
para encontrar as palavras certas. Às vezes, o irmão conseguia tirá-la do sério; o pior era quando 
começava com a música dos mortos-vivos, uma melodia irritante com gemidos que pareciam saídos de 
um cemitério. Nessas horas ela perdia a paciência, puxava-lhe os cabelos, dava-lhe beliscões pra 
valer e quando ele se punha a chorar ela se arrependia, era a irmã mais velha e tinha que cuidar dele. 
Depois de se demorar um bom tempo na figura, Luisa começou. 
- É a fotografia de uma planta, as folhas são lisas e compridas, saem da parte de baixo e depois caem 
para os lados. Aí, de repente, do meio delas sai um caule reto, bem reto, que vai pra cima todo 
esticado. 
-Esticado como as cordas do meu violino? 
-Isso, mas não tão fino. 
-É grosso como a bengala da vovó? 
-É, só que mais curto. Ele é mais frio do que quente e dá a impressão de ser oco por dentro, mas pra 
ter certeza a gente ia ter que cortar. 
-Ai que dor. 
-Se a gente cortar, a flor vai morrer. 
-Ah! A planta tem uma flor? 
-Tem. Tem duas e elas são iguaizinhas, totalmente idênticas. 
- Gêmeas? 
-Sim, são gêmeas. E, olha só que engraçado, elas têm o mesmo nome, uma se chama Amarílis e a outra 
também. 
-Isso deve dar muita confusão na casa delas. 
-Estou vendo que uma sai para um lado e a outra para o outro. 
- Uma de costas pra outra? Elas estão de mal, Lu? 
Luisa ficou calada por uns instantes. 
-Não, elas não estão de mal, a verdade é bem pior que isso – a menina completou com uma voz 
misteriosa. – É que elas não conseguem olhar! 
-Elas não conseguem se olhar? Nossa, mas por quê? 
-Bem, antes eu preciso explicar umas coisas. Primeiro, elas são flores especiais – são flores-princesas 
do reino das Floresbelas. Segundo, elas perderam a mãe com três anos de idade quando a mãe delas, 
que era muito, muito, muito boazinha, teve um troço e puf, morreu. 
Tiago lambeu uma lágrima minúscula que escorreu pelo rosto. 
- Aí, quando elas tinham seis anos de idade, o pai delas, o rei Floresbongo, se casou outra vez, o nome 
da nova mulher era Malvona. As Amarílis tinham um pouco de medo dela, porque ela era grandalhona 
e tinha umas antenas compridas com poeirinhas ardidas na ponta que davam alergia nas princesinhas. 
Quando a madrasta ficava brava, esticava as antenas e as Amarílis, atchim, começavam a espirrar. 
Além disso, as pétalas da Malvona eram grossas e ásperas e cheiravam a panela queimada. O caule, 
então, era cheio de espinhos, e as folhas, imagine só, davam choque! 
O menino se arrepiou. 
- Quando as flores gêmeas fizeram sete anos, teve uma grande festa no castelo. Foi o pai que quis dar 
a festa e não a madrasta. As Amarílis estavam hiperalegres nesse dia, pularam, brincaram, cantaram, 
dançaram, etc. Até esqueceram as saudades da mãe. E mais tarde, depois do fim da festa, à meia-
noite, com todo mundo dormindo, alguém veio devagarzinho e...- a voz de Luisa engrossou num tom 
ameaçador - ... entrou no quarto delas... 
Tiago mastigava a ponta da toalhinha de crochê. 
-... entrou no quarto delas, espalhou um pó mágico e zak-zun!!! Enfeitiçou as princesas! 
-Aposto que foi a madrasta! 
-Foi mesmo e o feitiço foi horrível! Depois disso elas não conseguiam mais ficar de frente uma para a 
outra, só de costas! Foi uma confusão danada no castelo, o pai só chorava. Chamaram os médicos, 
mas eles só coçavam a cabeça e diziam: Sua majestade, não estamos entendendo nada! Ninguém 
percebeu que a própria Malvona tinha feito o feitiço. E sabe por que ela fez isso? 
-Não! 
-Foi porque não suportou a alegria das gêmeas! 
-Eu não disse que foi ela?! Não disse? 
-E depois, no dia seguinte, quando a Malvona viu as Amarílis de costas, também não suportou a 
amizade delas, o tanto que elas falavam, riam e cochichavam. À meia-noite, entrou de novo no quarto 
delas, espirrou o pó mágico e, zak-zun, enfeitiçou as princesas pela segunda vez. 
-Outra vez? Que malvadona! 
-Desta vez as florzinhas ficaram mudas, não podiam falar nem mais uma palavrica de nada! 
-AI que medo, Lu. A minha festa de sete anos está chegando e se essa bruxa-flor ficar irritada porque 
eu falo demais e vier me enfeitiçar? Imaginou, eu de costas pra você a vida toda? Vou ter que chorar 
muito, Lu. 
-Bobagem, Tiago. Esta é uma história inventada, inventadíssima. 
-Jura? 
-Juro. 
-Então tá. 
Luisa prosseguiu. 
-Bem, o Rei Floresbongo, desesperado com as filhas, que não podiam mais falar, mandou chamar 
Flosgo, o tataravô das princesas. Flosgo era um velho muito velho, muito sábio que morava num reino 
muito distante. Quando o tataravô soube que as tataranetas estavam em perigo, veio correndo numa 
carruagem puxada por...por... 
-Por lesmas voadoras? 
Luisa riu. 
-Isso, puxadas pelas grandes e desajeitadas Lesmas Voadoras. O Rei Floresbongo esperou até o dia 
seguinte e, como o velho não chegava nunca, ele ficou desesperadíssimo. Não aguentou ver as filhas 
tristes daquele jeito e comprou dois vestidos farfalhosos e maravilhíssimos para elas. Os vestidos 
tinham fitinhas longas e delicadas que tremiam como gelatina quando elas riam. Eles eram feitos com 
as pétalas de flores mais finas do mundo. 
-Eram finas como asas de libélula ou de borboleta? 
-De borboleta, com aquele veludinho macio que dá cosquinhana ponta dos dedos. E quando se 
encostava a mão, elas eram frescas como... 
-Como um suco de abacaxi com hortelã e gelo? 
-Não, não tão frias assim, eram mais como um suco de melancia. Engraçado, Tiago, de mexer elas 
eram frescas, mas de olhar eram quentes. 
-Quentes como uma xícara de chá? 
-Não, esse era um quente seco, era como uma fogueira de São João. 
-Como uma coisa pode ser quente e fria ao mesmo tempo? Não entendi isso, Lu. 
Luisa teve que pensar. 
-Ó, tem coisas que são assim, têm um lado quente e outro frio, entendeu? 
Tiago abriu um sorriso. 
-Já sei! É que nem o banho, que tem a água quente e o azulejo frio na parede, né? 
-Isso mesmo. Bem, nesse dia em que as princesinhas ganharam os vestidos do pai, a Malvona ficou 
louca de inveja e, pela terceira vez, entrou no quarto delas à meia-noite, jogou o pó mágico e... 
Luisa agarrou com força os ombros do irmão e gritou. 
-ZAK-ZUN! 
Ele soltou um grito. 
-A madrasta enfeitiçou as duas de novo, outra vez! Ela não suportou a beleza das princesinhas e desta 
vez transformou os vestidos delas em trapos. Estou vendo aqui na página da esquerda, tem uma foto 
com as flores...os vestidos muito, muito estragados. Uma ficou com a roupa toda seca e retorcida, se 
tocasse, ela esfarelava e, pior, cheirava a fundo de gaveta de um móvel de um casarão mal-
assombrado. 
Tiago gemeu. 
- A outra ficou com a roupa toda rasgada. Em vez do veludinho macio, o tecido ficou caído como uma 
berinjela murcha e se gente amassasse soltava uma gosma visguenta com cheiro de intestino de 
minhoca. Além do mais, as fitinhas, em vez de alegrar o vestido entristeciam, viraram uns fiapos de 
vômito grudento de um...um... 
-Um bode! 
-Um bode que comeu um mingau azedo! 
Tiago gargalhou. 
-Nesse dia, finalmente, o poderoso Flosgo chegou na sua carruagem puxada por Lesmas Voadoras. 
Examinou as gêmeas e logo viu que tinham sido enfeitiçadas. Mas quem tinha feito aquilo? Quem? 
Quem? Quem? O tataravô esticou suas Gavinhas Mágicas e perguntou. Gavinhas, Gavinhas Mágicas, 
quem enfeitiçou minhas tataranetinhas? Aí veio uma resposta tremulenta. Foi a malvada Malvona. 
Todos se espantaram. A Malvada? A madrasta Malvona? Tem certeza? As gavinhas repetiram. Foi a 
malvada Malvona. E todos ficaram boquiabertos. 
 -Uau! 
-O Rei Floresbongo ficou furioso e mandou... 
-Matar a Malvona? 
-Prender na torre do castelo. 
-Mas a torre do castelo era cercada de dinossauros cascudos que soltavam fogo pelas ventas, né?! 
-Era, Tiago. E o fogo era gigantesco! Assim ela nunca mais podia sair de lá pra fazer maldades. 
-Benfeito! E as gêmeas, Lu, o que aconteceu com elas? 
- O tataravô esticou de novo as Gavinhas Mágicas e, pa-puf, os feitiços se desfizeram na hora! Elas 
voltaram a falar, a ficar de frente e ater belas roupas de princesa e aí foram felizes para sempre! 
O menino bateu palmas e a irmã despenteou seus cabelos. 
O ronco do motor de um carro chamou a atenção de Luisa. 
-Tiago, adivinha quem chegou de viagem?!- gritou ela debruçada na janela. 
-O papai! 
Os dois desceram as escadas correndo cheios de saudades e abraçaram o pai com tanto entusiasmo, 
que ele caiu no chão. 
À noite, antes de dormir, Luisa apanhou um caderno desconjuntado que guardava embaixo do colchão 
e escreveu a história das Amarílis. Mudou alguns detalhes para deixar o conto mais dramático, fez a 
Malvona mais cruel e casou o rei com um a flor boa que adorava as princesinhas. Ao terminar, eram 
as coisinhas que tinha inventado para fazer os ouvidos do irmão escutarem como se fossem olhos. 
Tiago não enxergava e a irmã contava as histórias com texturas, consistências, temperaturas, volumes, 
sons. Tateava para escolher as palavras certas, o desafio era esse, as palavras deviam brilhar onde 
havia luz, congelar nas cores frias, ferver nas cores quentes, engordar nos volumes, ter espinhos nas 
asperezas. 
Assim, Luisa ficou íntima das palavras e, do jogo dos irmãos, nasceu o amor pelas histórias e desse 
amor nasceram livros que ela iniciava sempre com a mesma dedicatória. 
Para Tiago, que iluminou o meu caminho.