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11. A formação do pensmento jurídico moderno (página 220 à 289)

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XEROY VAlO~r~.~•••••..1
PASTA O
PRÓFo. ~
MAT~RIA \ O
ORIGINAL
r.l20- W'1
A FORMAÇÃO DO
PENSAMENTO JURÍDICO
MODERNO
Michel Villey
Texto estabelecido, revisto e apresentado por
Stéphane RiaIs
Notas revistas por
Eric Desmons
Tradução
CLAUDIA BERLINER
Revisão técnica
GILDO SÁ LEITÃO RIOS
Martins Fontes
São Paulo 2005
Esta obra foi publicada originalment~ em francês com o h1ulo
LA FORMATlON DE LA PENStE JURID1QUE MODERN E
por Presses Universitaires de Fra'Jct, Paris.
Copyrighl @ Prrsses Unillfl'sitaires de France.
Copyrighl @2OOS, Litnaria Martins Fonles Editara LIda.,
SQo Paulo, para a presenle edição.
"Ouvrage publié avec le concours du Ministere français chargé de la Culture - Centre
National du Livre."
"Obra publicada com a colaboração do Ministério francês dJl Cultura - Centro
Nacional do Livro."
l' edição 2005
Tradução
CL4UDlA BERUNER
Revisão técnica
Gildo Sã Leitão Rios
Acompanhamento editorial
Luzia Aparecida dos Santos
Preparação do original
Maria Regina Ribeiro Machado
Revisões gráficas
Sandra Garcia Cortes
Solange Martins
Dinarte ZorZDnel/i da Silva
Produção gráfica
Geraldo Alves
Paginaçâo/Fololilos
5tudio 3 Desenvolvimento Editorial
ÍNDICE
Apresentação de Stéphane Rials ." .." "."""" .... " ,,. XIII
Advertência quanto às notas " " " ".; .." ". LXXV
Prefácio à quarta edição do texto mimeografado (1975).. LXXVII
PRIMEIRA PARTE
A FILOSOFIA DO DIREITO NOS TEÓLOGOS
DO CRISTIANISMO (1)
Dados inlernacionais de Catalogação na Publicação ICD')
(Câmara Brasileira do Livro, Sp' Brasil)
Villey.Michel
A fonnação do pensamento juridico moderno / Michel
Villey; texlo estabelecido, r,,'.sto e apresentado por Slépha-
ne Rials ; notas revistas por Eric Desmons ; tradução Claudia
Berliner; revisão lécnica Gildo Sá Leitão Rios. - São Paulo:
Martins Fontes, 2005. - (justiça e direito)
Título original: La formation de la pensée juridique
modeme.
ISBN 85-336-2238-4
I. Direito - Filosofia - História l. Rials, Stéphane. li. Des-
mons, Eric. m. Título. IV.Série.
05-8838 CDU.34O.12(091)
Índices para catálogo sistemático:
1. Pensamento jurídico: História 340.12(091)
Todos os direitos desla edição para o Brasil reserVados à
tivraria Martins Fontes Editora Ltda.
Rua Conselheiro Ramalho, 330 01325-000 São Paulo SP Brasil
Tel. (11) 3241.3677 Fax (11) 3101.1042
e-mail: in!o@martins!onles.com.br h/lp://www.martins!ontes.com.br
Introdução .
I. Indicações gerais sobre a história da filosofia do
direito " : .
O que é afilosofia do direito? Sua razão de ser. Seu objeto.
A história das doutrinas como método de iniciação à
filosofia do ,direito , .
11.Apresentação do curso. A filosofia do direito nos
teólogos do cristianismo " " .
TÍTULO 1 - OS PRECEDENTES DA ANTIGUIDADE
GREGA, ROMANA E JUDAICA .
Capítulo I - As origens da filosofia do direito grega .
Período arcaico ,..
Crise do século V .
Reação de Sócrates .
3
3
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7
10
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15
17
18
20
53. D. 50. 17. 93. v M. D. Lambert, ap. cit., pp. 12655.
como os outros homens, têm direitos, e até direitos de pro-
priedade. E é aqui que são Boaventura é obrigado a ir bus~
car no Digesto um apoio para sua refutação. Sua resposta é
que, em direito romano, o filho de família ou o escravo po-
dem utilizar um pecúlio sem por isso serem qualificados de
proprietários53• Não acho que esse tipo de réplica vá ao fun-
do do problema.
Na verdade, não foi no tempo de são Boaventura que
essas questões mesquinhas tiveram realmente importância
no universo intelectual dos escolásticos franciscanos. Salvo
ignorância de nossa parte, foi por isso que Duns Escoto
pôde não se ocupar delas. Será preciso esperar uma outra
etapa da história da ordem.
Com efeito, aproximadamente no final do século XlII e
mais ainda no começo do século XIV, o Papado abandonou
a atitude miraculosamente favorável que durante muito
tempo adotara em relação ao franciscanismo. Talvez tenha
se deixado convencer por seus adversários, ou se cansou de
servir de testa-de-ferro e de monopolizar as responsabili-
dades envolvidas na administração das riquezas temporais
da ordem. Como quer que seja, pretende impor-lhe o titulo
e as responsabilidades da propriedade. Ao menos é essa,
por volta de 1323, a decisão tomada por João XXII. Então,
com o risco de abandonar os últimos vestígios da Regra, os
franciscanos são obrigados a meter a mão no assunto como
um todo.
Empenhar-se-ão nisso com grande vivacidade tanto
mais que na mesma época desenvolve-se na ordem um
partido rigorista. O conjunto dos franciscanos jamais acei-
tara totalmente as meias-medidas instituídas pelo Papado.
Houve quem protestasse, já entre os contemporâneos mais
próximos da fundação; e os protestos continuaram em se-
guida, entre os devotos cativados pela pessoa de são Fran-
Capítulo 1lI
A FILOSOFIA JURÍDICA DE
GUILHERME DE OCKHAM
221
. Salvo mais informações, o escolástico franciscano que
deIXOUa marca mais forte na filosofia do direito - cuja obra
demarca a passagem do direito clássico para o direito mo-
derno - é, na primeira metade do século XIV, Guilherme
cisco, que certamente punha sua Regra (e suas citações do
Evangelho) bem acima das Decretais e do direito canôni-
co. Portanto, a ordem se viu atravessada por agitações for-
tes o suficiente para levar o Papado a declarar que o Tcsta-'
lnento de são Francisco era inválido, c são Boaventura,
l1,ais tarde, quando já era geral da ordem, a mandar quei- .
mar todas as "legendas" contendo a vida de são Francisco.
Mas, no final do século XIlI, na França meridional e na Itá-
lia, surge o movimento dos "espirituais". Esses espirituais
retomam o culto intransigente da pobreza, chegam mesmo
a exagerá-lo: com um rigor escolástico bem diferente da
maneira evangélica de são Francisco, professam agora o des-
prezo pela propriedade, e, como verdade de fé, que Cristo e
seus primeiros apóstolos viveram na pobreza, sem j~mais
serem proprietários; denigrem (o que n5n agradava muito à
Cúria) a propriedade como uma forma de vida moralmente
inferior; para os próprios franciscanos, condenam qualquer
vestígio de propriedade, qualquer pMticij1açiio na própria
administração dos bens dos conventos; não aceitam estri-
tamente nada além do uso e do "uso pobre" (USI/S pal/[7!'r).
I\evoltam-se contra o papa c lançam a dissensão na ordem.
Agora, o assunto tem de ser resolvido: onde começa o di-
reito? O que é o direito? Como distinguir do uso o direito-
subjetivo - de propriedade? Uma controvérsia decisiva - em
que creio identificar a eclosão do pensamento jurídico mo-
derno - irá se desencadear durante a primeira metade do
século XIV, na qual estará envolvido Guilherme de Ockham.
A FILOSOFIA DO DIREITO NOS TEC)WGOS no CRISTI/\NISlv10
A FORMAÇÃO DO PENSAMENTO ]URfDlCO MODERNO220
222 A FORMAÇÃO DO PENSAMENTO jURfDICO MODERNO A FILOSOFIA DO DIREITO NOS TE6LOGOS DO CRISTIANISMO 223
de Ockham. Isso porque as circunstâncias fizeram desse
franciscano primeiro um filósofo e, secundariamente, um
políticos4•
Guilherme de Ockham, cujas origens são obscuras, apa-
rece no primeiro terço do século XIVcomo estudante e como
professor em Oxford. Essas duas ocupações distinguem-se
de maneira bem menos rígida na universidade:medieval que
nos dias atuais. A carreira universitária de Guilherme de
Ockham parece, aliás, ter enfrentado certas hostilidades; não
teria obtido o título de mestre, permanecendo com o grau
de bacharel; e este seria o primeiro significado da palavra
inceptor, que passou a fazer parte de seu apelido (venerabilis
inceptor).
Deixemos de lado a questão de seus títulos acadêmicos
para observar que o jovem universitário do centro francis-
cano de Oxford, pelo menos assim como Duns Escoto, apre-
senta-se como grande aficionado de Aristóteles (terá a pre-
tensão de interpretá-lo melhor que os t~mistas), conhece-
dor sobretudo de dialética
aristotélica. E um virtuose em
dialética, como é de bom tom nessa época da história uni-
versitária, mesmo nas escolas franciscanas, que são obriga-
das a dispor das mesmas armas que as outras escolas para
rivalizar com elas. É um tempo ávido de dialética: cultiva-se
na faculdade de artes uma lógica extremamente erudita -
aquela codificada nas Summulae logicales de Pedro de Espa-
nha - já intitulada de lógica moderna (Iogica modernorum). E,
como vimos, os franciscanos não tiveram outra alternativa
senão também praticar dialética e filosofia, com a condição
de que esses estudos ocupassem apenas uma função instru-
mental. Na verdade, não creio que a dialética ainda se man-
tenha em Ockham, a despeito de suas afirmações de prin-
cípio, num lugar auxiliar: ela governa suas obras, por exem-
54. L. Baudry, GuilIaume de Oceam, sa vie, ses oeuvres, ses idées sociales et
politiques, Paris, Vrin, 1950; A. Amann, artigo "Occam", in Dictionnaire de
théologie catholique, op. cit., l. 11.
pIo seu Expositio aurea super artem veterem, assim como bem
mais tarde sua Summa totius logicae; mas também as quaes-
tiones, os Quodlibeta septem, os Comentários sobre as Senten-
ças. Porém, o culto levado ao extremo de uma técnica de ra-
ciocínio não poç.lese dar sem afetar a essência da doutrina
(e, talvez, sem substituir uma concepção do mundo confor-
me aos postulados idealistas do raciocínio por uma visão
mais realista).
Talvez tenha sido por seu gosto exacerbado pela dialé-
tica que Guilherme de Ockham foi o fundador (o inceptor,
agora num novo sentido) de uma filosofia nova, de uma
"via nova" (via moderna) - isto é, de uma maneira nova de
filosofar - destinada a fazer grande fortuna durante todo o
final da Idade Média e mesmo depois: é o nominalismo mo-
derno, e o nominalismo, por si só, significa em filosofia do
direito uma revolução radical. Tivesse ele sido apenas o in-
ceptor do nominalismo e Guilherme de Ockham já teria um
lugar garantido ,na história da filosofia do direito.
Mas há algo mais, que se origina no momento em que
Guilherme de Ockham é citado, em 1324, na cúria de Avig-
non, para responder por suas teses teológicas: a teologia
constitui o fundo de seus estudos, e as Sentenças de Pedro
Lombardo são o tema de seus comentários. Mas o chance-
ler da universidade de Oxford concluiu que a nova lógica
de Ockham e sua nova filosofia iam contra a ortodoxia.
Portanto, em 1329 ocorre uma virada na vida de Oc-
kham.Ei-Io intimado a comparecer perante a corte do papa
de Avignon, sob a acusação de heresia, o que, na época, cos-
tumava ser o c!estino corrente dos teólogos. Mas, em seu
processo, há outros dois assuntos em pauta.
Por um lado, Ockham desembarca na corte do papa
vindo de Oxford no auge da luta de João XXII contra os
franciscanos rigoristas. João XXII lançou suas bulas contra
os espirituais, decidiu impor à ordem franciscana o regime
.da propriedade; chegou até a jogar na fogueira uma boa for-
nada de "espi9tuais"; outros estão presos; e até o geral da
ordem, Miguel de Cesena, encontra-se detido como suspei-
to na corte de Avignon. Ockham será o aliado de seus ir-
mãos franciscanos.
Por outro lado, o eterno conflito entre o sacerdócio e o
império acaba de se reacender nesse mesmo momento: o
Papado, cujos canonistas'procJamam o direito a controlar o
império e as eleições imperiais, e que se apega a essa últi-
ma prerrogativa sobre o governo temporal mais que a qual-
quer outra, recusou-se a reconhecer a eleição de Luís da Ba-
viera. Seguiu-se a isso uma longa luta entre, por um lado,
Luís da Baviera, por outro, João XXII e seus sucessores. Luís
e seus partidários lançaram, conforme o costume, uma
acusação de heresia contra o papa. E a causa do imperador
associa-se naturalmente à dos franciscanos em rebelião.
Então, depois de passar quatro anos sondando a atmos-
fera da cúria, onde seu processo se perpetua, numa noite
do ano de 1328 Ockham foge em companhia do geral da
ordem, Miguel de Cesena: escapa para a corte de Luís da
Baviera, em Pisa e em seguida em Munique, onde transcor-
rerá a maior parte do resto de sua vida. Coloca-se sob a
proteção do imperador: "Defende-me com a espada, eu te
defenderei com minha pena." Isso significa que ele se dedi-
ca à luta contra o papa, do lado do franciscanismo e de Luís
da Baviera. Luta infeliz em que, militando junto com MarsÍ-
lio de Pádua - mas não de acordo com ele -, Ockham se verá
periodicamente abandonado pelo imperador - e também
abandonado por sua ordem: após a morte do geral Miguel
de Cesena (que, no entanto, faz de Guilherme de Ockham o
depositário do selo da ordem), a maioria dos franciscanos
volta a prestar obediência ao papa e, aparentemente, no fi-
nal da vida, Ockham, isolado, rejeitado tanto pela Igreja Ca-
tólica romana como até mesmo pelo mundo franciscano,
esteve prestes a pedir sua reconciliação com a Igreja e pedir
perdão publicamente (sem dúvida por volta de 1349).
Mas, antes disso, nesse segundo período, de sua pena
saiu uma longa série de obras políticas. Aliás, não exclusiva-
mente obras desse tipo: a Summa totius logicae, que é sua
I. A vitória do nominalismo
A prin~ipal razão da fJma de Oekham é, por certo, o
fato de ter JnJugurado a via moderna. Ele sem dúvida não
foi o primeiro a percorrer essa via. Jc'íse fala de nominalis-
. 55. Obrus parcialmente publicadus na antiga edição M. Coldas!, MOlla/"-
ciJla S. Romall; Imperii, Hannover-Frankfurt a. M.,1611-.1614 (reprad. anastá-
tlca,. Craz, 1960~, e da qual uma edição recente, bem mais rompleta, foi pro-
dUZIda pela univerSIdade de Manchester (Sikes, Carrett e Offler ed.), G. de
Ockham opera po1rtlca, Mancuni, 3 vaI., 1940-1 %3.
225
ob~a fil?sófica mais importante, pJrece datar dessa época.
Alem ~JSSO,o ataque contra élSheresias do pélpa Ooão XXII,
e depOIS seus sucessores Bento XII e Clemente Vl) serve de
op~rtunidade para abordar todo tipo de temas. Portélnto,
sera, um an;p.lo leque de discussões teológicas que consti-
tUlra a matena dos grandes escritos desse período: 0(0/11-
pcndium cnorum papac Johannis XXll; o Opus nonaginta die-
r~nn; o Dwlogus; o Breviloquium de principatu tyrannico; a
Ep',stola ad jratres minores in capitulo apud Assisium congrega-
to~"., Neles Ockham tentou (o que Duns Escoto não fizera)
por, ~ prov~ s~~ filosofia e sua lógica no trato de questões
pohtJCas e lundlcas. Chegou-se a negar a existência de uma
relaçã? entre suas obras filosóficas e suas obras de política.
De mmha parte, estou convencido da existência dessa li-
gação. ~ de que dessa forma completa-se o quadro da con-
tnbUlçao de Ockham à filosofia do direito: ele é não só o
fundador do nominalismo, que 'tem suas aplicações em di-
reito assim como em todas as coisas, mas as circunstâncias
levaram-no, um franciscano, a se fazer jurista. Quando um
filósofo e um místico chega a se envolver com o direito
isso raramente ocorre sem algumas infrélções às rotinas da~
pessoas do ramo. E perceberemos na obra jurídica de Oc-
kh~m a eclosão, q~anto às fontes do direito, do positivismo
},.'nd.,co,.e quanto a sua estrutura, da noção de direito subje-
tIVO mdlvldual. .
A FILOSOFIA DO DIREITO NOS TE()WGOS {)O CRlSTlANISlVl0
A FORM,\çAO DO PENSAMENTO jURiDICO MODERNO224
226 A FORMAÇÃO DO PENSAMENTO jURiDICO MODERNO A FILOSOFIA DO DIREITO NOS TEÓLOGOS DO CRISTIANISMO 227
mo nos séculos XI e XII com Roscelino ou Abelardo; desde
o final do século XIII, o franciscano Pedro Auri.ole (ou Au-
riol) ou mesmo o dominicano Durand de Saint- Pourçai~
(heterodoxo dentro da sua ordem) eram de tendência no-
minalista. Mas a história pôs em posição de destaque a
obra pessoal de Ockham, fez dele o fundador de uma esco-
la de filosofia que atràvessará toda a história moderna e ain-
da sobrevive hoje: o ockhamismo, com efeito~triunfa nos
últimos séculos da história universitária medi~val, em que
os mestres mais famosos não só de Oxford, mas também
de Paris e de
vários outros centros de estudos, são nomina-
listas: Tomás de Bravardine (ou Bradwardine);Gregório de
Rimini; João Buridano; Marsílio de Inghem (ou de Inghen);
Nicolau d'Autrecourt; João Gerson; Pedro de Ailly; Alberto
de Saxônia; Nicolau de Oresme ... A suposta proibição do
nominalismo por Luís XI, em 1474, parece ser apenas uma
lenda. O nominalismo espalha-se por todos os países da
Europa. Será o legado da Idade Média para a filosofia mo-
derna, passando, na Alemanha, de Gabriel Biel a Lutero,
ou, na Inglaterra, a Bacon, Hobbes, Locke e Hume.
Estou convencido de que poucos estudos são mais ne-
cessários para a história da filosofia do direito que o do no-
minalismo confrontado com seu oposto, o realismo de são
Tomás. A querela dos universais pode, hoje, parecer arcai-
ca, talvez ultrapassada, ou, de preferência, fora de moda -
embora seja eterna. Mas perder-se-á menos tempo com ela
que com velhas cartas ou velhas coletâneas de costumes, se
nosso propósito for apreender o contraste e a transição do
direito antigo para o direito moderno. Pois aí se situa a li-
nha divisória entre o direito natural clássico, inseparável do
realismo de Aristóteles e de são T-Jmás,e o positivismo ju-
rídico. Ai se encontra a chave do problema fundamental
(ainda hoje, digam o que disserem) da filosofia do direit056•
56. J. Chevalier, Hisloire de la pensée, op. cil., pp. 484 ss.; M. de Gandillac,
"Occam et la via moderna", in A. Fliche e V. Martin, Hisloire.de /'Eglise, Bloud
et Gay, 1935-1956, t. 14. Ressalto o célebre artigo de P. Vignaux no Diclionnai-
E como é altamente provável que poucos juristas estarão fa-
miliarizados com essa doutrina, somos obrigados a conden-
sá-la: bastará lembrar aquilo a que ela se opõe, fazer um rá-
pido resumo de seu conteúdo e, por fim, avaliar de modo
sumário suas conseqüências.
Em que consiste, primeiro, a tese adversa, a do realis-
mo, contra a qual Ockham escreve? Na verdade, pela obra
de são Tomás, ela só se apresenta sob uma forma moderada:
são Tomás, discípulo de Aristóteles, reconhece em primeiro
lugar uma realidade para os indivíduos. Mas também con-
sidera reais (nisso consiste o "realismo" no sentido escolásti-
co da palavra) os,,'universais". Os gêneros, as espécies, esses
universais - o animal, o homem, o cidadão;- não são apenas
conceitos, têm existência fora de nossa mente; são inclusive
"substâncias segundas", sendo a qualidade de "substâncias
primeiras" atribl!ída aos indivíduos (Pedro ou Paulo). Trata-se
apenas de um "semi-realismo", mas que basta para nos dar
do mundo exterior essa rica visão, a única sobre a qual pode
fundar-se uma doutrina do direito natural. O mundo exterior
não é apenas uma poeira de átomos em desordem, apenas
uma poeira de indivíduos; comporta em si mesmo uma or-
dem, classes em que vêm se incluir seres singulares ("cau-
sas formais") e naturezas ("causas finais"); e todo um siste-
ma de relações entre indivíduos, acima dos indivíduos. Tudo
isso existe em termos objetivos, independentemente do in-
telecto que o descobre nas coisas. Essa é, apresentada de
modo grosseiro, a metafísica realista que a nosso vercons-
titui uma condição para que se tenha podido pretender des-
cobrir um "direito" na "natureza".
Já pudemo~ observar, contudo, ao abordarmos a filo-
sofia de Duns Escoto, O que, nessa visão de mundo, é teo-
re de théologie catholique, op. cil., t. 11 ("Nominalisme") e R. Guelluy, Philoso-
phie el théologie chez Guillaume d'Occam, Louvain, 1947. Ver também F. Hochs-
tetter, Studien zur Metaphysik und Erkenninislehre Wilhelms von Ockham, Berlim-
Leipzig, 1927; G. Toffanin, Slona de/l'umanesimo, Bolonha, 1959, vol. 1, c. 3.
logicamente inaceitável para os franciscanos e entra em
choque com sua espiritualidade. A idéia de uma ordem na-o
tural absolutamente fixa, necessária, escandaliza-os como
se fosse uma injúria à onipotência divina, uma negação do
milagre e da ação direta de Deus sobre cada vida individual.
Na verdade, o perigo de sujeitar Deus à Razão existe menos
na doutrina sabiamente nuançada de são Tomás que na dos
averroístas, e talvez também na de certos mestres aficiona-
dos pelo neoplatonismo: no final do século XlII e começo do
século XIV, a filosofia pagã está representada sobretudo por
outros escolásticos que não são Tomás; mas, depois da con-
denação de 1277, persegue-se em sua obra até mesmo uma
tendência a revalorizar o antigo culto greco-romano, idóla-
tra, da natureza. São Boaventura e Duns Escoto denunciam
a idéia de uma natureza objetiva e impessoal, em nome da
teologia que ainda é a soberana dos estudos.
Mas Ockham vai muito além de Duns Escoto nessa
obra de reação. Em se tratando da própria querela dos uni-
versais, sabe-se que Duns Escoto tomou, em definitivo, o
partido dos "realistas": excetuando o primado do indivíduo
(e da onipotência divina), Duns Escoto admite que as qua-
lidades expressas pelos termos universais (tais como, no in-
divíduo Pedro ou Pauio, a humanidade, a liberdade, a ani-
malidade) sejam "formalmente distintas" no ser; retoma
portanto o realismo e até o exagera e será finalmente in-
cluído, nas controvérsias do século XIV,entre os partidários
do método antigo de filosofar (via antiqua). Ockham, ao con-
trário, teve a honra de ser considerado o iniciador, o "incep-
tor" da "via modema" - e motivos religiosos não foram os
únicos a determinar sua atitude. Talvez tenha sido seu gos-
to pela lógica, tão intensamente cultivada naquele período
da história da escolástica, que o conduziu a essas posições
radicais - e pela própria lógica de Aristóteles: pois Ockham
acreditou-se fiel às verdadeiras intenções de Aristóteles, e
ele mesmo não se dizia "moderno" (a palavra moderno ainda
possuía e continuou possuindo por certo tempo uma resso-
nância pejorativa). Mas, na qualidade de lógico experiente, sa-
bia fazer unia distinção clara entre as coisas (rcs) e seus signos:
as palavras (como os tennos universais) são apenas signos das
coisas, e um raciocínio metódico conduz à conclusão de que
as coisas só podem ser, por definição, "simples", isoladas, se-
paradJs; ser é ser único e distinto; Pedro, Paulo, os indivíduos
são e, na pessoa de Pedro, há llpenas Pedro, e não lllgumll
outra coisa que dele se distinga "realmentc" ou "formlll-
mente". O animal ou o homem - e tampouco a animalidade,
a humanidade, não são coisas, não são sercs. làlvcz Ockham
possa ser acusado aqui de abuso da lógica; talvez tenha
transportado de maneira inconsiderada seus hábitos de ra-
ciocínio para a solução dos problemas últimos da metafísi-
ca, como se nossas regras de lógica devessem reger a estru-
tura do real; mas temos de deixar para depois essas consi-
derações críticas. Em todo caso, ele concluiu pela rejeição
total do tradicional realismo.
Qual será, então, inversamente, seu ensinamento?
Ockham levou ao extremo o movimento élpenas esboçado
por Aristóteles contra Platão, desprezando o geral em be-
nefício do singular. Na interpretação de Ockham, só os il1-
divíduos existem: só Pedro, Paulo, aquela árvore, aquele blo-
co de pedra são reais, só eles constituem "substâncias".
Quanto ao "homem", quanto ao vegetal ou ao mineral, isso
não existe, e poderíamos dizer o mesmo de todas as noções
gerais. Quando hoje falo do "nominalismo", por exell"lplo,
acabo por tomar, por excesso de intelectualismo, essa pala-
vra por uma realidade; mas, na verdade, não existe "nomi-
nalismo" - apenas esse ou aquele filósofo dito nominalista,
Ockham, Gregório de Rimini ou Gabriel Biel. Não existe
"filosofia moderna" - tão-somente esses filósofos ditos mo-
dernos, cada um tomado individualJTlente, Hobbes, Des-
cartes, Espinosa ou Locke. Não existe realmente uma "or-
dem franciscana" mas, dispersos pela Europa, frades fran-
ciscanos. Este último exemplo é dado pelo próprio Ockham,
em polêmica, como veremos, com o papa João XXII. Outro
exemplo, tomado do domínio das "relações": não existe pa-
228 1\
FORMAÇÃO DO PENSAlvfENTO 111RfDICO MODERNO
A FILOSOFIA DO DIREITO NOS TEC)WGOS DO CR1ST1J\NISMO 229
230 A FORMAÇÃO DO PENSAMENTO JURÍDICO MODERNO A FILOSOFIA DO DIREITO NOS TEÓLOGOS DO CRISTIANISMO 231
ternidade. Como poderia existir a paternidade, sem pai e se:n
filho? Há apenas pais e filhos e, mais precisamente ainda,
esses pais e esses filhos. Não há natureza das coisas, nature-
za do homem, formas comuns, causas finais57. Só possue:n
existência real esses indivíduos singulares, de que, de resto
(tese franciscana já encontrada em Duns Escotô) nos é dado
um conhecimento imediato e intuitivo, e que designamos
por meio desses signos que são os nomes próprios.
Mas, e no que se refere a esses "universais" - o ho-
mem, o franciscano, o pai? Para Ockham, são apenas signcs,
termos da linguagem, nomes, mas que desempenham na
nossa lógica uma função particular: servem para "conota"-
mos" (isto é, para notarmos junto) vários fenômenos singu-
lares; exprimem uma semelhança ou uma relação que per-
cebo entre vários seres singulares - assim, designo pela pa-
lavra "homem" uma certa similitude que creio discernir en-
tre Sócrates, Platão, Pedro ou Paulo; e esse modo de falar
não é arbitrário, tem de fato certo "fundamento" no mun-
do da realidade (jundamentum in te), pois é verdade que há
certa semelhança entre Sócrates, Platão, Pedro ou Paulo.
Contudo, o ser só pertence verdadeiramente a esses indiví-
duos; e, portanto, os termos gerais não significam nada em
si mesmos, nada exceto um conhecimento imperfeito e
parcial dos indivíduos. Na verdade, os termos gerais expri-
mem apenas um conhecimento confuso, ainda grosseira-
mente indistinto: é como se eu visse na distância aproximar-
se Sócrates, sem conseguir distinguir ainda seus traços pes-
soais, discernindo nele vagamente apenas "um homem";
ainda não percebi o verdadeiro objeto do C0nhecimento.
No mesmo sentido, se trato "do nominalismo", tenho em
mente apenas uma noção vaga e inconsistente; só começo
a me aproximar do real ao lhes falar de uma determinada
fala de Guilherme de Ockham. O único conhecimento per-
feito, verdadeiramente adequado ao real, é o do individua1.
57. Sento 11,quo 3, em Lagarde, op. cit., V, p. 221.
A metafísica de Ockham transporta para o mundo da
linguagem e do .pensamento, para o universo conceitual, o
que pertencia, para os tomistas, ao mundo do "ser": os gê-
neros, as "formas comuns" e as relações. Estes agora são
apenas conceitos, instrumentos, etapas no caminho do co-
nhecimento de 4ma realidade exclusivamente singular, ape-
nas um começo de conhecimento nebuloso dos indivíduos.
Universais e relações são apenas instrumentos de pensa-
mento. No real e na "natureza" real não existe nada acima
dos indivíduos: não existem universais, estruturas, direito
natura!.
Assim concebo, em grandes linhas, a doutrina nomi-
nalista. Caso não a tenha deformado em excesso, acrescen-
to que ela ainda não conseguiu minha adesão. Não vejo
por que não poderíamos apreender do mundo exterior na-
tural uma ordem, conjuntos e relações, assim como indiví-
duos singulares. A idéia de "substâncias" individuais (pe-
dro, Paulo, tal árvore, tal rochedo) me pareceria, pelo menos,
tão gratuita quanto a de "substâncias segundas" (o animal, o
homem, o cidadão) de Aristóteles e de são Tomás. Em nos-
sa filosofia atual seria, aliás, possível encontrar muitos ar-
gumentos contra a doutrina de Ockham. Este nos parece
merecedor da acusação de ter imposto ao real, a despeito
das evidências, os moldes de seu próprio pensamento, ou
seja, de sua lógica formal. Ele já põe o pensamento no lugar
do ser, como fará o idealismo. Pessoalmente, e salvo mais in-
formações, manterei portanto minha preferência pela me-
tafísica tomista.
Mas, deixemos a crítica de lado. O que nos importa é
entender as conseqüências históricas dessa nova filosofia.
Seu sucesso, sua longa fortuna no mundo dos filósofos, fo-
ram resumidos anteriormente. Mas, quando deixa de ser
apenas acadêmica (e confinada à seção de filosofia da Sor-
bonne), toda filosofia irradia sua influência nos setores mais
diversos da atividade intelectual: foi o que ocorreu com o
nominalismo. Já mencionamos suas conseqüências teológí-
58. Summa totius logicae, 111, 1.
cas, que foram as primeiras a se manifestar (uma vez que
Ockham era professor de teologia) e acarretaram sua incul-
pação ante a justiça pontificai: o nominalismo levou Oc-
kham a se desviar de várias proposições tradicionais da teo-
logia católica, por exemplo, no que concerne ao dogma da
Trindade ou à análise dos atributos da essência divina (não
pode mais haver, segundo Ockham, atributos separados
em Deus, como a razão, a vontade, a justiça, a misericórdia,
mas apenas, como diz a Escritura, "nomes" pelos quais de-
signamos Deus, "canotando-o" com diversos fenômenos do
mundo criado: a unidade radical de Deus opõe-se a que dis-
tingamos nele uma pluralidade de atributos); a rejeitar qua-
se totalmente as provas racionais (como as extraídas da or-
dem cósmica) por meio das quais são Tomás acreditava de-
monstrar racionalmente a existência de Deus; a lançar por
água abaixo a ponte erguida por são Tomás e sua escola en-
tre a filosofia pagã e o conhecimento de Deus. Em suma, o
nominalismo de Ockham levava a um corte brutal entre fi-
losofia e fé: a filosofia natural e a razão têm por domínio a
criação, só a fé é meio de acesso ao conhecimento de Deus.
"Os dogmas da fé não são matéria de demonstração, e não
são suscetíveis de prova: são até mesmo falsos para a maio-
ria ou mesmo para a totalidade dos sábios deste mundo,
dos sábios da filosofia."5~O protestantismo de Lutero (e mes-
mo, em menor medida, o de Calvino) tem, como se sabe,
suas raízes longínquas em Ockham.
Também cabe vincular ao nominalismo o futuro de-
senvolvimento das ciências modernas experimentais: aliás,
já podemos encontrar os primórdios dessas ciências na Ida-
de Média, sobretudo na escola franciscana, e particular-
mente em Oxford: os franciscanos Roger Bacon e Roberto
Grosseteste foram seus precursores (embora fosse algo to-
talmente alheio ao ideal de são Francisco cultivar a física ou
a botânica). Ockham ensina que a razão natural do homem
tem por objeto próprio não mais os "universais", as "natu-
rezas", mas as coisas individuais da maneiril como Deus ilS
"dispôs" na criação. Ele sem dúvida é também o ilncestral
do positivislno, no sentido que será dado a essa paL.wra por
Augusto Com te, já que o próprio termo fJz parte do voca-
bulário ockhamiano ("res positivae").
Ora, assim como suscitil umil crise no seio da teologia,
e, no longo prazo, renova os métodos dils ciênciils, o nomi-
nalismo tilmbém viria il invadir o direito. Ele significa o ilban-
dono do direito niltural, ou seja, do método que presidira, il
nosso ver, à constituição dil ciência jurídica romana e que il
escolástica humilnista acabavil precisilmente de restJurar no
direito emdito da ldilde Média - método que tomava como
ponto de partidil pam a descoberta dils soJuçõesjurídicas a
observilção dil Natureza e da ordem que'delil emilna. O no-
minJ1ismo, ao contrário, hilbituil J pcnsilJ' todils as coisas il
partir do indivíduo: o indivíduo (não mais a re!Jçân entre vá-
rios indivíduos) torna-se o centro de interesse eb ciência do
direito; o esforço dJ ciência jurídica tenderá doravante a
descrever as qualidildes jurídicils do indivíduo, il extensão
de SUilSfaculdildes, de seus direitos individuais. E, quanto às
normas jurídicas, não podendo mais extraí-lils da própriil
ordeni que antes se acreditava ler na Natureza, será preciso
buscar sua origem exclusivamente nas vontades positivils
dos indivíduos: o positivismo jurídico é filho do nominalismo.
Todas JS características essenciais do pensamento jurídico
moderno já estão contidas em potência no nominalismo.
Embora, como veremos, essas conseqüências já este-
jam presentes em Ockham, só penetrarão o conjunto da
ciência jurídica no longo prazo. (Da mesma forma que as
ciências positivas experimentais só se desenvolverão plena-
mente no século XVII, três séculos após a eclosão do nomi-
nalismo.) Os novos métodos lógicos e a nova visão de mun-
do que a filosofia de Ockham introduziu na Escola ainda
terão de avançar lentamente na educação dos estudiosos
assim como na dos juristas. Mas a estrutura do direito mo-
de.rno só se ~x'plica remontando a essa fonte, a essas pre-
missas metafIsICas elaboradas pelas escolas do auge da Ida-
de Média. Sua lógica, sua metafísica, embora transmitidas
232 A FORMAÇÃO DO PENSAMENTO fURtDICO MODERNO
A FILOSOFIA DO DIREITO NOS TECJ/'OGOS DO CJ~ISTlI\NJSM() 233
I,
I
234 A FORMAÇÃO DO PENSAMENTO jURiD1CO MODERNO A FILOSOFIA DO DIREITO NOS TEÓLOGOS DO CRISTIANISMO 235
ao direito apenas de modo lento e indireto, são portanto a
principal contribuição de Ockham para a história do direi.-
to. (É verdade que se Ockham não tivesse instaurado o no-
minalismo, outros sem dúvida o teriam descoberto na mes-
ma época - pois tais revoluções não são o feito de um só
homem.)
11.O positivismo jurídico de Guilherme de Oekham
Houve quem se mostrasse cético quanto às relações
existentes entre a filosofia de Ockham e suas posições jurí-
dicas: nossos historiadores materialistas insistem convicta-
lTlente em que a filosofia não exerce nenhuma influência
sobre o conteúdo positivo do direito ou chega alguma vez
a explicar algo da história do direito. Penso, inversamente,
que os intelectuais, mesmo que j~ristas, têm ó grave defei-
to de se apegar à coerência de suas opiniões, seja qual for
o domínio a que se apliquem. Acho, portanto, que a ma-
neira como Ockham, obrigado a escrever sobre o direito,
escolhe suas fontes, toma como base para seus raciocínios
jurídicos apenas fontes positivas, é perfeitamente solidária
de sua filosofia59•
Textos gerais sobre a lei e o direito naturais
Fazer remontar o positivismo juridico ao princípio do sé-
culo XN não deixa de contrariar a opinião corrente. Ele
costuma nos ser apresentado como produto da cultura do
59. Sobre a obra jurídica de Ockham, ver os três tomos relativos a Oc-
kham e ao ockhamismo em G. de Lagarde, La naissanee de /'esprit laie au déclin
du Moyen Âge, Paris, Vrin, 1956, l. 4, 5 e 6; A. Hamman, La doctrine de rtglise
cl de l'ttat chez Oekham. Úude sur le Breviloquium, Paris, ed. Franciscaines,
1942; R. Scholz, prefácio a Wilhelm von Oekham ais politischer Denker und sein
Breviloquium de principatu tyrannico, Leipzig-Stuttgarl, K. W. Hiersemann,
1944; L. Baudry "Le philosophe et le politique ehez Guillaume d'Occam",
Arch. hist. dado el litt. du Moyen Âge, 1939, p. 204.
século XIX,mais ou menos ligado ao "positivismo" científi-
co de Augusto Comte. Alguns, como eu mesmo cheguei a
pensar, datam sua eclosão da doutrina jurídica de Hobbes.
É bastante paradoxal transportar essa concepção da arte ju-
rídica, que parece ser característica do rigor científico mo-
derno, para o ocaso da Idade Média.
Deve-se, não obstante, reconhecer que a expressão
"positivismo jurídico", não menos que a "direito natural", é
singularmente equívoca. Com efeito, em alguns fiéis da
"análise da linguagem", como M. Cattaneo ou Norberto
Bobbio (por exemplo, no artigo incluído em Mélanges Rou-
bier60), encontram-se listas dos sentidos que esse termo re-
cebe no uso contemporâneo: reconheçamos, contudo, que a
maioria desses sentidos não conviria à posição de Ockham.
Aliás, embora a "análise da linguagem" seja hoje uma das
correntes filosóficas mais em voga, sou pessoalmente céti-
co quanto a seus resultados; e, nesse caso oarticular, tenho
a impressão de que ela acaba provocando mais confusão
que esclarecimentos quanto à linguagem com seu costume
de registrar os sentidos mais impróprios das palavras - sen-
tidos aceitos no uso atual e entre as pessoas mais incultas -
e atribuir-lhes, em nome da imparcialidade científica, o
mesmo peso que ao sentido autêntico (os partidários da re-
ferida análise esquecem às vezes de indicar o sentido au-
têntico, caso o açougueiro da esquina não o entenda mais ...).
Certamente por:padecer da deformação contrária, também
como historiador, prefiro entender os termos em sua signi-
ficação primeira, aquela de que estavam revestidos na épo-
ca de sua eclos~o e de sua maior maturidade, que, comu-
mente, é também aquela mais próxima da etimologia.
O que é o positivismo jurídico? A expressão direito po-
sitivo (jus positivum; jus titia positiva) nasce~, como vimos, na
escolástica humanista, em Chartres, depois em Abelardo,
em seguida entre os glosadores e na linguagem de são To-
60. Esta referencia a Mélanges Roubier [Miscelânea em homenagem a
Roubier (N. da T.)) parece estar errada.
más. É, aliás, a tradução do grego dl'kaion nomikón, porque a
essência das leis (nól11oi) de onde deriva esse justo consiste
em serem dispostas (legem ponere), positivas. A idéia de dI-
reito positivo é, aliás, uma das peças do sistema clássico do
direito natural. Mas, nesse sistema, embora exista um justo
que deriva da lei, um justo disposto, positivo, é apenas uma
fonte subsidiária, já que a primeira fonte do direito conti-
nua sendo a ordem da natureza, da qual o trabalho da juris-
prudência extrai regras jurídicas. O positivismo jurídico é, ao
contrário, a doutrina que exalta o direito positivo a ponto
de pretender edificar sobre a lei, e apenas sobre a lei, o con-
junto da ordem jurtdica.
E.é nesse sentido, o mais claro e mais autêntico, que o
positivismo jurídico é produto do nominalismo. E que já faz
parte da doutrina de Guilherme de Ockham. Como acaba-
mos de dizer, Guilherme de Ockham apenas reconhece,
como objeto do conhecimento, "res positivae" singulares:
isso quer dizer que ele também só pode reconhecer como
fontes de direito fórmulas de leis, expressões de vontades
individuais, e não mais a ordem da natureza. Guilherme de
Ockham concebeu e até aplicou o positivismo jurídico. In-
diquemos inicialmente, a esse respeito, alguns textos de al-
cance geral.
Já em seu comentário oxfordiano sobre as Sentenças de
Pedro Lombardo, Ockham retoma a tese de Duns Escoto
segundo a qual os preceitos do Decálogo não são verdadei-
ramente naturais, não são absolutamente necessários em
si, mas apenas obrigatórios pelo fato de serem positivos,
dispostos por Deus. Mas ele exagera: Escoto ainda conside-
rava racionalmente necessários os preceitos da Primeira Tá-
bua (como o do amor a Deus), mas Ockham estende seu
ceticismo ao conjunto do Decálogo: Deus teria podido fazer
do ódio a Deus uma \~rtude, poderia ter-nos ordenado a ado-
ração dos ídolos. Nenhuma "razão" limita seu "poder abso-
luto" (como em Deus a razão e a vontade não são separá-
veis, nossa inteligência nada conhece da essência divina: a
"razão" e a "vontade" são apenas tennos "conotativos", não
61. Ver Dia/ogl/s, livro 3, capo 6, ed. M. G()ld~st, MOllarcl1ia, op. cit., I. 111,
pp 93255.
h2. G. de L~ga!'de, La 'lIlissa/lee dc-l'csprit laie, ap. cil., l. 4, c~p. 3.
aplicáveis a ele). Os preceitos do Decálogo impõem-se a nós
por terem sido dispostos, ordenados por Deus; o roubo, o
adultério, o perjúrio e o próprio ódio a Deus só são pecados
porque ele os proibiu (mala quia proJúbita) - e não o contrá-
rio: proibidos porque em si meSIT10Sruins. É verdade que
os exemplos acima referem-se apenJs à morJl, a crítica de
Ockham por enquanto apenas visa, nessa passagem bem
conhecida do Comentário sobre as Sentenças, a lei naturalmo-
ral e não precisamente o direito.
Mas por que não estender essa crítica ao direito? Na
segundJ metade de sua vida, as circunstânciJs levaram Oc-
kham, como já dissemos, a se envolver com a teoria jurídi-
ca - e até com as questões teóricas mais importantes de
seu século. Por isso, era inevitável que encontrJsse a noção
de direito natural revalorizada pela escolástica humanistJ c
pelos romanistas - ademais em acepçôes bastante
diver-
sas, como vimos - e já incorporada à ortodoxia tanto dos
teólogos como dos mestres do direito civil, tendo-se torna-
do praticamente UIT\ dos pilares dJ ordem social da cris-
tandade.
TJmbém na obra polêmica de Ockham existe um texto
bastante longo e igualmente célebre, onde o VCITIOS expli-
car-se fazendo uso dessa noção: o Dil7loglls'" - texto um
tanto obscuro, e talvez intencionalmente difícil, porque te-
ria sido perigoso chocar-se de frente com a ortodoxia, mas
também porque Ockham pratica o método da dialética, do
diálogo, que mais confronta com liberalidade opiniões cem-
traditórias do que expõe diretamente a opinião do autor. G.
de Lagarde, em Naissance de l'esprit laicr,2, teceu um comen-
tário com o qual eu não concordaria totalmente. Trata-se
de saber se os romanos, em virtude do direito natural, têm
o direito de eleger o papa: é um problema efetivamente ju-
rídico. Em torno dessa questão, inicia-se uma discussão en-
236 A FORMAÇÃO DO PENSAMENTO fURtDICO MODERNO
A FILOSOFIA DO DIREITO NOS TEcJLOGOS DO CRISTIANISMO 237
238 A FORMAÇÃO DO PENSAMENTO fURlDlCO MODERNO A FILOSOFIA DO DIREITO NOS TEÓLOGOS DO CRISTIANISMO 239
tre o Mestre e seu discípulo sobre os sentidos possíveis do
termo" direito natural": não faz parte das intenções do Mes-
tre negar completamente esse vocábulo, aceito no uso co-
mum; procura contentar-se em aprofundar sua significa.;ão.
Distingue três sentidos diferentes - é hábito dos escol2sti-
cos distinguir os sentidos dos termos, e esse costume tam-
bém se nota no nOlninalismo, para o qual os termos gerais
são apenas signos '\rtificiais, suscetíveis de serem utilizados
mais ou menos arbitrariamente:
- Segundo o uso, designam.-se pelas palavras jus nJtu-
rale certos preceitos racionalmente necessários, por exem-
plo, os do Decálogo: "Não matarás", "Não cometerás adul-
tério" ... Na verdade, em seu íntimo Guilherme de Ockham
não pensa que esses preceitos morais sejam tealmente ne-
cessários para a razão, nem autenticamente "naturais": aca-
bamos de ver que ele lhes atribui uma orig~m positi~'1, o
mandamento positivo de Deus. No mesmo sentido, um
pouco mais adiante o Mestre faz questão de sublinhar que
esse tipo de direito natural está contido na Sagrada Escritu-
ra: "[ ...] continetur in scripturis dívinis [...]"63. De resto, e3ses
preceitos presentes no Decálogo ainda não são jurídicos; não
ditam nenhuma distribuição do meu e do teu e não pode-
riam nos dizer, por exemplo, se os romanos dispõerr ou
não da faculdade de eleger o papa; são, no máximo, da al-
çada da lei natural moral.
- Num segundo sentido, prossegue o Mestre, o te:-mo
jus naturale designa a condição primitiva da ijumanidace, °
regime jurídico em vigor antes de qualquer legislação ou
formação de costumes humanos: "absque omni consuettdine
vel constitutione humana"ó4. Sentido antigo, longinquamen-
te derivado do sonho estóico da idade de ouro, transposto
pelo cristianismo para os termos do paraíso terrestre. Por
exemplo, a comunidade dos bens seria, nesse sentido, ins-
63. Ibid" p. 934.
64. Ibid., p. 932.
tituição de direito natural, pois uma antiga tradição a repre-
senta como o regime do estado de natureza. Mas isso não
significa que ela ainda tenha hoje algo de obrigatório, pois,
posteriormente, intervieram leis humanas e costumes que
instituíram em sentido contrário o regime da propriedade.
Caso entendan:os nesse sentido (de grande fortuna na épo-
ca moderna) 0, direito natural, ele não tem mais interesse
atual. Faz muito tempo que saímos do "estado de natureza"
- e, aliás, no estado de natureza, o problema do modo de
eleição do papa não se colocava ...
- Resta, diz nosso texto, um terceiro sentido. Pode-se
designar por direito natural as conseqüências que decorrem
racionalmente ,de uma convenção entre os homens ou de
uma regra positiva dada: "Tertio modo dicitur jus naturale il-
lud, quod ex jure gentium vel aliquo facto humano evidenti ra-
tione eolligitur, nisi de eonsensu illorum, quorum interest, sta-
tuatur contrarium [...]."65 Por exemplo, uma vez instituída a
propriedade, disso resulta logicamente que o depósito deva
ser restituído ao proprietário. Ockham concede um lugar
eminente, na arte jurídica, à razão, ao raciocínio, ao princí-
pio de não-contradição; é isso que ele também consente
em designar (impropriamente) pelo termo direito natural.
E, nesse sentido, concluirá que o direito natural confere aos
romanos o poder de escolher o papa: tendo a instituição do
~papado sido precedentemente" disposta", sendo o papa o
bispo de Roma, encarregado de supervisionar, de governar
os romanos, disso se segue racionalmente que apenas os
romanos têm o direito de elegê-lo: "[ ...] supposito enim, quod
aliquibus sit aliquis praelatus vel prineeps vel reetor praejicien-
dus, evidenti ratione eolligitur, quod [...] illi quibus est praeji-
ciendus habent jus eligendi; et praejiciendieis, unde nullus dari
debet ipsis invitis [...]66". Gá temos aí o argumento do con-
trato social.)
65. Ibid., p. 933.
66. Ibid., p. 934.
,
1
67. J. H. von Kirchmann, Die Wertlosigkeit der ]urisprudenz ais Wissen-
schaft (1848), ed. G. Ncesse, Stutlgart, Kohlammer, 1938.
Eis o que, na prática, o direito natural se tornou para
Ockham: ele significa as conseqüências racionais das regras
positivas. Além de não ter mais nenhum vinculo com a na~
tureza, observemos que perdeu qualquer caráter universal e
obrigatório, pelo menos no tocante ao legislador. Pois as
conclusões que o jurista tira silogisticamente das leis não
poderiam valer se fossem de encontro às intenções modifi-
cadas do legislador; valem apenas enquanto perdura a von-
tade legislativa que lhes serviu de fundamento, "nisi [...] sta-
tuatur contrarium". A autoridade legislativa que instituiu o
regime da propriedade está perfeitamente habilitada para
prescrever que, em certos casos, o depósito não será resti-
tuído; ou (já que nesse domínio não há outro legislador)
O'isto, que fundou a Igreja, poderia ter prescrito que opapa
não fosse o sucessor de são Pedro, bispo de Roma. Basta
que um novo texto do legislador intervenha para que todas
as conclusões lógicas do direito natural "tertio modo" tor-
nem-se, como dirá Kirchmann, na idade do triunfo absolu-
to do positivismo, palavreado vão e antiquado, frases va-
zias, "blosse Makulatur ..."67.
O quarto sentido, que seria o de são Tomás (na verda-
de, o único autêntico), é inútil tentar encontrá-lo no Dia-
logus. A expressão "direito natural" começa a ser empre-
gada (é uma aventura destinada a se reproduzir, e que dura
até nossos dias), mantida viva por um respeito apenas
aparente e verbal, em acepções, todas elas impróprias, e
que não têm mais nenhuma relação com sua etimologia.
Isso porque seria impossível o autêntico direito natural in-
gressar na óptica do nominalismo; este nem mesmo conse-
gue concebê-lo. No final dessa discussão teórica de Oc-
kham, não vejo subsistir mais nada do direito natural -
nada, exceto a palavra. Mas vejo surgir, no prolongamento
do nominalismo ockhamiano, seu corolário: o positivismo
jurídico.
68. R. Scholz, op. cit.; e L. Baudry, Guil/clmi de Occam Breviloquium de
potestate papae, Paris, Vrin, 1937. Citaremos o texto latino conforme o Brcui-
loquium de principatu tyrallnico, ed. H. S. Off]er in Ockham, Opera politica, t
IV, Oxford UP, 1997 (S.R.)
Deixemos de lado essa demonstração intencionalmen-
te meândrica para observar Ockham em ação no seu traba-
lho propriamente de jurista. Entre suas obras polêmicas (não
temos tempo de ler tudo), ~scolhi uma cujo objeto me pa-
recia jurídico por excelência. Trata-se do Breviloquium de
principatu tyrannico, por muito tempo perdido, mas que foi
redescoberto por Scholz em 1926. Depois de duas edições6R,
foi objeto de inúmeros comentários. Talvez devêssemos
justificar a afirmação de que o Breviloquiu111 de Ockham é
uma obra de direito: alguns juristas atuais poderiam con-
testá-Ia, qualificando-a antes de obra "política". Mas não
vejo razão válida para contestar o fato de que nesse escrito
Ockhélm trata de um problema realmente jurídico - aliás, o
mais importante do direito público medieval: o da partilha
dos poderes entre as duas autoridades soberanas (ou que
aJTlbasgostariam de ser) da Idade Média, o imperador e o
papa. (Como sabemos, Ockham pôs-se a serviço de Luís da
Baviera e empreendeu por conta própria o combate contra
a tese pontificai da "plenitude do poder" - plenitudo potes-
tatis -, ou seja, da soberania total, não apenas "espiritual",
mas também "temporal" do papa.)
Percorramos esse livro de um ponto de vista um tanto
novo, sem nos preocuparmos em nos aprofundar no con-
teúdo da doutrina, mas apenas para experimentar o método
adotado por Ockham. Lendo o Breviloquium nessa pers-
pectiva, nos surpreenderemos com o caráter estranhamen-
te moderno, em certos aspectos, de seu estilo, de seu apego
rigoroso às fontes de direito positivo: esse estilo é o próprio
estilo do positivismo. E o método adotado por Ockham nes-
sa matéria parecerá constituir, nesse momento do início do
241
o método do Breviloquium
A FILOSOFIA DO DIREITO NOS TEÓLOGOS DO CRIS'Il/lNISMOA FORMAÇAo DO PENSAMENTO ]URiDICO MODERNO240
I
242 A FORMAÇÃO DO PENSAMENTO ]URlDlCO MODERNO
século XIV, uma novidade decisiva. Mas este último ponto
exige, primeiro, que voltemos um pouco atrás.
É sabido que o grande proCE:"3S0do Papado contra o Es-
tado suscitou uma literatura abundante. O conflito entre
Luís da Baviera e João XXII é, aliás, apenas a continuação
daquele entre Felipe, o Belo, e Bonifácio VIII, que deu lugar
de ambas as partes a uma fervorosa atividade da doutrina
jurídica, mesmo se há quem a designe hoje 'por outro no-
me69• Do lado do papa intervêm, depois de Ptolomeu de
Lucca (continuador do De regno de são Tomás de Aquino) e
a coorte dos canonistas da cúria romana, homens tais como
Gil de Roma ou Tiago de Yiterbo ou ainda, sob João XXII,
Agostinho de Ancona e o franciscano espanhol Alvaro Pe-
layo. Do lado do Estado/ João de Paris (outro discípulo de são
Tomás, cuja doutrina é moderada), Dante e, sob João XXII,
principalmente Marsílio de Pádua, companheiro de Gui-
lherme de Ockham, na corte de Luís da Baviera.
Ora, nesse fimdo século XIII ou começo do século XIV
(não penso que ocorria o mesmo na época deÇregório VII),
todos esses autores nos fornecem a prova do triunfo do
método do direito natural. Aliás, é por esta única razão que
nossos positivistas atuais gostariam de negar-lhes o título
de juristas e só consentem, timidamente, em qualificá-los de
"publicistas". Do lado pontificaI, utilizam-se praticamente
apenas argumentos de tipo jusnaturalista - e sem dúvida
não haveria outra forma de fundamentar o poder temporal
do papa (exceto, por certo tempo, a partir da Doação de Cons-
tantino: mas esse argumento ambíguo foi bem rapidamente
relegado à sombra). Alega-se uma visão de mundo e - par-
ticularmente - do mundo dos homens, da humanidade que,
por sua natureza, seria una, formaria um corpo, e deveria ter
apenas uma cabeça. E, na esteira de são Tomás (um dos ra-
69. Ver R. Scholz, Die Publizistik zur Zeit Philip des Schõnen und Bonifaz
VIII, Stuttgart, 1903; J. Riviere, Le probleme de /'Église et de /'Éta(au temps de
Philippe le Bel, Louvain-Paris, ed. Champion, 1926.
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II
~l
I
I
I
A FILOSOFIA DO DIREITO NOS TEÓLOGOS DO CRISTIANISMO 243
mos da escola tomista defendeu a causa do papa), prova-se
que. ~ ordem natu~al d~ve ser coroada por sua inserção no
espIrItual, su? realIzaçao pela graça: "Assim como o corpo
:~cebe da alma. o ser, a potênci~, a colpcação em ato (esse,
vlrtutem, o~er~tl~n:m) [...] tambem a jurisdição temporal os
recebe da Junsdlçao espiritual de Pedro e de seus sucesso-
res"70;"O poder temporal encontra sua fonte na inclinação
natural, P?rtanto em Deus ele mesmo, na medida em que a
natureza e ob~a de De~~, mas só existe formal e perfeita-
mente ~~7~0poder espIrItual, pois ~ graça [...] aperfeiçoa a
naturez~ ~. E a mesma ar?Umentaçao que também compõe
a exppslçao de um canomsta como Hostiensis.
E verdad~ que, subsidiariamente, também são evoca-
dos certos tex~osda S~grada Escritura: do Gênese, por exem-
plo, a passag€1mrelativa aos dois luminares, que são o Sol e
a Lua representando os dois poderes, do papa e do prínci-
pe se~ular -:-como a Lua recebe do Sol sua luz, o imperador
dever.la_den~ar sua autoridade do papa -; ou, do Evangelho
da..PalXao,_alIT;'agemdos dois gládios, que estão, ambos, nas
maos de sao Pedro; ou ainda o fragmento sobre as "chaves"
recebida~ por são Pedro ... Mas é fácil perceber que não se
podem tirar desses textos conseqüências no terreno do di-
reito (dos poderes do papa e do imperador) por meio de
uma exegese 11tera~:os p~rtidários .do poder temporal do
papa recorre:n aqUl ao metodo da mterpretação simbólica,
que pressupoe uma certa visão do universo, considerado
como reple~o de correspondências, rico em analogias, orde-
nado. Esse tipo de argumentação, em aparência extraído dos
textos, na verdade não deduz nada literalmente dos tex-
tos - mas haure, para além dos textos, numa concepção da
natureza.
É também ~ mesmo método que vemos ser praticado,
com resultados mversos, pelos adversários do poder tem-
70. Ptolomeu de Lucca, De regimine principum, 1265-1266, 1II, 10.
. . 71. !iago de Viterbo~ De re~mine christiano, citado por N. Jung, Un fran-
cIscam theologlen dupouvOlr pontificai au XW' siec1e, Alvaro Pelayo Paris 1931
p.76.' ., , ,
poral do papa: por João de Paris, que é o ~iscípulo e o su-
cessor de são Tomás, no convento da rua Samt- Jacques, mas
que desenvolveu sua doutrina r;um s~ntido mais favoráv~l
à autonomia do Estado. E tambem ate mesmo por Marsího
de Pádua. Este último parece servir (ainda que com fortes
divergências no conteúdo das soluções) à mesma causa
que Guilherme de Ockham. Mas de !o.rma alguma serve a
ela da mesma maneira. Ele sem dUV1dacondena (como
João de Paris) o método de argumentação tirado da exege-
se simbólica dos textos da Santa Escritura. Ele sem dúvida
exalta o poder das leis do imperador romano, a soberania
do imperador (mas ainda não, contrariando um preconcei-
to muito disseminado, o verdadeiro contrato social indivi-
dualista como fonte do poder imperial). E poderíamos até
lhe conceder a honra de ter desenvolvido a noção de direi-
to positivo, ao pôr a ênfase nas" causas eficientes" das leis
positivas (que são a vontade do povo ou do i,~perador u~-r;?
vez instituído) - sem contudo esquecer suas causas finaIs ,
ou seja, sem sair da órbita da doutrina do direito natura!,2.
Mas como Marsílio chega a essas soluções? Basta ler o índi-
ce de capítulos de seu principal livro, Defensor Pacis: ele
parte de uma definição da pólis73 ou do "reino", da "comu-
nidade civil" (capítulos 2 e 3); depois indaga-se sobre as
"causas" da "comunidade civil", causa material, causa for-
mal e causa final (capítulo 4, De causa jinali civitatis); sobre
a causa final de cada parte constituinte 9a pólis (capítulo 5,
De causa jinali cujusdam partis civitatis). E por esse caminho
que chega a suas conclusões sobre o poder imperial e fun-
damenta a própria autoridade das leis imperiais: a partir de
uma visão do mundo que repousa na observação da nature-
za; pelo método - justamente - do direito natural, endure-
cido e grosseiramente praticado por Marsílio, não sem pe-
dantismo. Não é desse universitário obstinado pelo aristo-
telismo e cúmplice do averroísmo que se deve esperar um
desvio dessa tradição. O método do direito natural triunfa-
va no direito público no começo do século XIV. E agora,
qual é o método de Guilherme de Oekham?
o estilo jurídico do Breviloquium surpreende por seu
aspecto moderno, por sua secura positivista, por sua cons-
tante demonstração de submissão exclusiva às fontes posi-
tivas. De qualquer argumentação
tomada da ordem do
mundo, da essência da humanidade, da natureza da pólis,
das causas finais dos atos humanos, não encontraremos
vestígio em toda a obra. Quanto (lOemprego do método do
direito natural, tão difundido naquela época e nesse tipo de
controvérsia, é preciso redigir, após a lcituféldo Bre-uiloquiwn,
um auto de constatação de carência no que o concerne.
Com plena consciência de seu procedimento, com uma cla-
reza exemplar, Ockham nos declara ater-se aos textos de
direito positivo, que são de dois tipos: as leis divinas, (lSleis
humanas.
É claro que será o direito positivo divino que ocupará
lT)aisespaço em semelhante matéria (assim como vimos, a
propósito dos preceitos do Decálogo, que para Ockham ele
também era a fonte de toda a moral). Pois, quando se trata
de partilhar os poderes do papa e do imperador, a decisão-
nos diz Ockham - evidentemente não pode proceder de
nenhuma dessas duas autoridades, que são partes interes-
sadas no processo. Ela procede do jus divinum (jus, para
Ock~am, si.gnificalei, ~rdem, mandamento - a antiga con-
cepçao do JUs, que deSIgnava a relação justa, não tem mais
sentido para o nominalismo), do "ordil1atio Christi"74. Como
escreve, aliás, Ockham, a divisão dos dois poderes não pode
provir de outra lei senão da ordenação feita por Deus: "51'-
cl./11dotenet illa opinio quod illae dual' potcstates nec cadunt nec
cadere debel1t in eundem hominem; quod quidem 11011accidit ex
natura rei, sed ex ordinatione Dei I't iure divino, quo cavetur nl:
ordinarie vel regulariter idem hOl11opral'sit rebus saecularibus
244 A FOR/dAÇÃO DO PENSAMENTO ]URfDICO MODERNO
A FILOSOFIA DO DIREITO NOS TEÓLOGOS DO CRISTIANISMO 245
72. Marsílio de Pádua, Le Defensor Paris, 1324, reed. Nat1welaerts, Paris-
Louvain, 1970, I, 7, 10, 12.
73. Ibid., capo 1.
74. Rrrvi/nquillm, op. cit., I, 7.
246 A FORMAÇÃO DO PENSAMENTO ]URlDICO MODERNO A FILOSOFIA DO DIREITO NOS TE6LOGOS DO CRISTIANISM~ 247
et divinis [...]"75A questão deve ser tratada de acordo com o
texto da Sagrada Escritura, e a exegese da Sagrada Escritu-
ra compete aos teólogos: "[ ...] Theologorum' est scire quam
potestatem habeat papa ex jure divino."76
A exegese em questão deve ainda ser literal, ater-se à
letra do texto ou recuperar a intenção do legislador. Oc,
kham condena expressamente (pelo menos em se tratando
de tirar conseqüências jurídicas) o uso da interpretação mís-
tica: "o sentido IT\ísticoda Escritura, a menos que a própria
Escritura, diretamente ou no contexto, o comporte expres-
samente, embora possa ser utilizado para a edi£icação mo-
raI, não pode e não deve ser alegado quando se trata de
provar um tema de disputa, por ocasião de um conflito en-
tre cristãos"77.Vêem-se assim rejeitados os argumentos dos
dois luminares, dos dois gládios etc. Ockham admite ape-
nas a interpretação literal, aquela que nada acrescenta ao
texto, aquela que se funda inteiramente na fónnula positi-
va; ele interpreta longamente, minuciosamente, os textos
expressamente relativos ao poder de Pedro: "Tu és Pedro e
sobre esta pedra ..."; "Apascenta as minhas'ovelhas ..."; "0
que ligares na terra ..."78. É a partir desses textos que ele cons-
tata, rigorosamente, que não se poderia deduzir o poder
temporal do papa, ao passo que se deve deduzir desta ou-
tra prescrição de Cristo - "Dêem a César" - o poder tempo-
ral do imperador.
Esse modo de praticar o raciocínio jurídico nada tem
de radicalmente novo: vimos que um apego comparável à
letra dá Escritura (embora certamente interpretada de ma-
neira mais flexível) era característico do agostinismo jurídi-
co, presidindo a arte dos juristas até o advento, nos séculos
XII e XIII, da escolástica humanista. Como observamos, há
75. Octo quaestiones de potestate papae, I, 4, ed. Camastra, Milão, Rusconi,
1999, p. 84.
76. Breviloquium, ed. Offler I. 7, op. cit., p. 106.
77. Breviloquium, ed. Scholz, op. cit., p. 171.
78. Ibid., n, 14 e 15.
no franciscanism~ muitos asp:ctos reacionários. É simples-
mente o velho metodo dos teologos - a submissão absolu-
ta da inteligência ao texto positivo revelado - que Guilher-
me de Ockham vem restaurar na sua aplicação ao direito: o
mé.to~o do. positivismo f?i, primeiro, um empréstimo que
os )unstas fIzeram dos teologos. Contudo, evitemos pensar
que a .ob,r~depck~am s~ limita a esse retorno ao passado:
~ua dl~l~tIca ~.n;a~s ~,stnta do. que podia ser na época do
ag~stI~lsmo !?ndlco ; ademaIs, ele sabe conferir um lugar
ao dIreIto POSItivOde origem humana.
. Pois as necessidades jurídicas da sociedade são muito
maIs .ar:'plas no século XlV do que na época anterior do
agostImsmo, em que era possível acalelltar o projeto de se
re~eter totalmente à Sagrada Escritura e prescindir do di-
reIto humano. Agora, as cidades e o comércio se desenvol-
veram, assim como os Estados e o sistema cada vez mais
complex? d~s relações ~dn:inis~r~tivas. Mas, uma vez que
se repudIa a mterpretaçao slmbohca, nada mais se encontra
sobre esses. tem~s no Evangel~o. !ampouco nada que se
possa extral~ senamente da LeI antIga. E preciso recorrer a
font~s de ongem humana: ao que respondiam, com efeito,
no seculo XIII, a renascença do direito natural da Antigui-
dade gr~co-romana ~ a renasce~ça do direito romano que,
po~ mUlto temp?, fOI .seu corolario. Ockham, por sua vez,
satIsfaz ess~s eXlgenClas.~om a exaltação das leis positivas
hur:za~as. Na.o qu~ estas Ja ocupem um lugar importante no
propno Brevlloquzum, pois o problema ali discutido não de-
pende essencialmente de nenhuma legislação humana.
Contudo, Ock~am pr~vê nele que certas questões precisas,
concernentes a autondade do imperador ou mesmo aos
poderes do paea, concernem ao direito positivo humano.
Mesmo a doaçao de Constantino, em que se poderia fun-
d~r o fOder do papa, volta a ser objeto, para ele, de uma
m:nu:lO~a exege~e ~emb~ra.inacaba.da no texto que chegou
ate nos) . A fortlOn os dIreItos do Imperador originam-se
79. Breviloquium, VI.
r
248 /I FORMAÇÃO DO PENSAMENTO ]URfDlCO MODERNO
A FILOSOFIA DO DIREITO NOS TEl)L(}(;OS DO CRISTIANISMO 249
do direito positivo humano. E a questão passa então a ser
da alçada, nos ensinà Ockham, dos jurisperiti, ou seja, d~s-
ses romanistas que dominam a ciência das leisRo
Leis romanas, não mais direito romano. Há, em Ockham,
uma tendência - de próspero futuro, embora contrária à
verdade histórica - a conceber o direito romano como de
origem imperial, como decorrente da vontade positiva dos
imperadores romanos; por conseguinte, também a interpre-
tação do C017711sjuris ciuilis deve ser praticada de maneira
estrita e literal, e não mais da maneira flexível recomendada
por são Tomás e que corresponde à doutrina do direito na-
tural. Para são Tomás, que tem a esse respeito uma visão mais
correta, o direito romano era doutrinai e, como tal, tratado
livremente por seus intérpretes modernos. Ao passo que para
Ockham, o direito romano é legislativo e sua interpretação
deve, portanto, seguir rigorosamente as fórmulas positivas
dos textos e procurar descobrir a vontade do legislador, uma
vez que se trata de direito positivo: o jurisperitus aplica os
mesmos métodos às leis imperiais que o theolagus aos pre-
ceitos divinos.
Ockham esboça a teoria da origem dos textos roma-
nos, para sublinhar seu caráter exclusivamente positivo.
Recorreàs Institutas: "[ ...] quod principi placuit legis habct vi-
gorem, cum lcge regia quae de ejus imperio lata cst, papulus ci ct
in eum omnc imperium suum ct potestatem concedatl/81• A com-
petência criadora da própria vontade imperial encontra seu
fundamento na vontade popular. Sabe-se que esse texto das
Institutas não tinha, em Roma, esse alcance universal que
passará a lhe ser atribuído.
Ao tratar, no livro III do BreviloquiumR2, da fonte dos
direitos de propriedade (dominium) ou de soberania tem-
poral (jurisdictio tcmporalis), Ockham retoma a análise já
esboçada, na verdade, por Duns Escoto.
Normalmente, a
80. Ibid, I, 10.
81. ln5titutas, I, 11,6, cit~da ibid .. IV, 3, ed. Offler, p. 200.
82. I/lid., 111, 755.
propriedade, autorizada após a queda pejo direito positivo
divino, nasce de uma decisão ôe um príncipe temporal; e a
própria autoridade do príncipe temporal tem como fonte a
decisão dos súditos, aos quais o direito positivo divino con-
feriu a permissão de constituir acima deles chefes, I/[ ... J 170-
testas instituendi iudicem ct rectorem, qui potestatem habeat
coercendi [.. .)"83. Essa própria instituição implica a outorga
ao príncipe temporal do poder de dispor leis: I/potestas con-
dendi legesl/84.
O círculo se fecha: o direito humano, assim como o di-
reito de origem divina, agora é concebido apenas como po-
sitivo; ele procede em última análise das vontades indivi-
duais. Já tínhamos encontrado, no Dialogus, a propósito da
eleição do papa, essa afirmação de princípio de que toda au-
toridade emana do consentimento original dos súditos: 1/[ ... ]
supposito eni111,quod aliquibus sit a/iquis pradatus velprinccps
[)cl rector praeficiendus, evidcl1ti rationc collagitur, quod [...J illi
quilms est pracficiendus hnbent jus rligendi, cf praejicicndi eis,
lmde nullus dari debet ipsis il1vitis [.. .]"8~'.É este o verdadeiro
contrato social individualista, aquele que não estava em Mar-
sílio, mas que se encontra pelo menos em germe em Duns
Escoto e que o nominalismo, a bem dizer, exigia. O direito
tem uma única fonte, a vontade individual: seja a do indiví-
duo Deus, seja a dos indivíduos homens.
. Com uma c~e:ência perfeita, o Oekham jurista segue a
VJado Oekham filosofo. Direi com isso que ele foi o inven-
tor d~ po~itjvisrr:o. j~rídico? Eis um tipo de afirmação que
um hlstonador dIfICIlmente ousa proferir. O método jurídi-
co de Ockham tem por certo seus precedentes, na sua or-
dem ou no passado da história do direito. Mas, antes da re-
nascença tomista do direito natural, o agostinismo jurídico
não se atinha apenas aos textos positivos divinos, sem, aliás,
83. Ibid., 111,11, ed. Offler, p. 184.
84. Ibid., 111,14, ed. Offler, p. 189.
85. Diaio),'Us,111,6, ill Caldast, !l1ollarchia. op. cit., vaI. 111,p. 933.
lU. A gênese do direito subjetivo em
Guilherme de Oekham
86. H. Kelsen, General Theory ofLaw and State, Cambridge (Mass.), Har-
vard U. P., 1945. [Irad. bras. Teoria gemI do direito e do Es(ado, São Paulo, Mar-
tins Fontes, 3~ ed., 1998.]
interpretá-los de uma maneira tão rigorosa. E tampouco
existe positivismo jurídico na Roma clássica nem na Gr~cia
(os sofistas gregos, por exemplo, negadores do direito na-
tural, não pretendiam constituir, a partir dos textos positi-
vos, uma ordem jurídica substancial: o pensamento deles
era apenas negativo, destruidor da ordem). O que se deve
concluir disso? No mínimo que, antes da obra de Guilher-
me de Ockham, não se conhece aplicação consciente e sis-
temática do positivismo jurídico, mas que, na obra deste úl-
timo, nota-se esse tipo de positivismo brotar de uma lógica,
do culto da dialética e do gosto levado ao extremo pelo ra-
ciocínio mais estrito, solidário, na verdade, ç1euma metafí-
sica e primeiro efeito, no direito, do nominalismo.
Existe outro tema fundamental dos sistemas jurídicos
modernos, mais fundamental ainda que o positivismo jurí-
dico: é o do direito subjetivo. A idéia do direito subjetivo tam-
bém procede, a nosso ver, do nominalismo, e se explicita
comOckham.
O termo direito subjetivo é um desses vocábulos de que
os juristas bem-educados têm a elegância de se abster, pois,
além de obscuro, denota uma pretensão suspeita a filoso-
far. Infelizmente, ele poderia ser uma das chaves no nosso
pensamento jurídico atual. Certamente não existe crítica ao
modo de pensar jurídico que herdamos da época moderna,
desde que exercido com certa profundidade, que não ata-
que essa noção. Foi o que fez Duguit, por exemplo, na es-
teira de Augusto Comte, e preciosas são as páginas que Kel-
sen, em sua General Theory, dirige,numa óptica por certo bem
diferente, contra a idéia de direito subjetiv086• No campo
I
I
1
A FILOSOFIA DO DIREITO NOS TEÓLOGOS DO CRISTIANISMO 251
tradicionalista, professores de direito civil, como Jean Da-
bin, ~a~l Rou~ietl7, vieram em sua defesa. A ciência jurídica
alema l.nt~rvelO~o .debate88• Em sU,m.a,há ~oje uma quere-
la do dIreito subjetIvo que, sem dUVIda,nao faz muito ba-
rulho e aind~ não ch.eg~u ~ perturbar o sono de nossos ju-
ristas, mas amda assIm e dIgna de nossa atenção.
Para poder ver com alguma clareza no meio dessa que-
rela (e poder primeiro esclarecer o termo nebuloso de direi-
to subjetivo), uma via útil é a história de suas origens. Sei
~u,~ hesit~rã? em l~v~r a sé?o a tese que exporei - que a
Idela do dIreIto subjetIvo tena como pai o nominalismo de
Guilherme de Ockham, que ela não remonta muito além
do começo do século XIV: não costumamos estar muito
dispostos a pôr em causa as noções de uso cotidiano, elas
nos parecem "naturais" e custa-nos muito imaginar que elas
não tenham existido em outros tempos. Lembro-me de que
durante uma exposição na Sociedade de História do Direi-
to e.:n 19538~,? própri.o ?eão Le Bras me respondeu que a
noçao de dIreito subjetIvo parecia-lhe "tão antiga como
Adão e Eva" ...' Essa opinião pode nos parecer, de início, ve-
rossímil, e, embora eu vá procurar desmenti-la, não tenho
certeza de oferecer uma doutrina muito clara. Existem dois
t!pos de pes~uisas em história do direito: naquelas que rea-
hzamos na lmha dos caminhos batidos, é fácil ser claro; na-
quelas que se emancipam das rotinas que o uso e a educa-
ção imprimiram em nosso espírito, nem sempre encontra-
mos o bom caminho.
Em todo caso, antes de poder afirmar o caráter inova-
dor da obra de Ockham, o tema me obriga a fazer um es-
. 87. J. Dabin; Théori~ générale du droit. Histoire des doetrines juridiques et
phlfosophle des valeurs soewles, Paris, Sirey, 1946. P. Roubier, Droits subjeetifs et
situations juridiques, Paris, Dalloz, 1963.
88. Sobretudo H. Coing, lur Gesehiehte des Begriffs Subjektives Reehts,
Berlim, Metzner, t959; R. I?ubischar, Ueber die Grundlagrn ... Ein dogmatiseher
Beltrag zur Lehre von subjektlven Pnvatreeht, 1961 etc. Ver, também, Arehives de
philosophie du droit, 1964, dedicados a esse tema. '
89. "Les origines de la notion de droit subjectif", publicado em nossas li-
ções ... , op. cit., pp. 221 ss.
A FORMAÇÃO DO PENSAMENTO ]URiDICO MODERNO250
252 A FORMAÇÃO DO PENSAMENTO JURíDICO MODERNO A FILOSOFIA DO DIREITO NOS 7BJWGOS DO CRISTIANISMO 253
c1arecimento prévio: devo demonstrar primeiro que a no-
ção de direito subjetivo é logicamente incompatível c0Il! o
direito natural clássico, que tampouco tem lugar na ciência
jurídica romana - ou seja, que antes da época de Guilher-
me de Ockham só aparecem germes dela.
A noção do direito subjetivo e o sistema do direito natural
Aparentemente, não se pode tratar da data de origem
do direito subjetivo sem ter refletido antes sobre o que sig-
nifica a expressão "direito subjetivo". Reconheçamos que
não é tão fácil defini-Ia bem como é preciso fazer um esfor-
ço de inteligência. Para a maioria dos juristas franceses
atuais, esse tipo de trabalho é indesejável: mesmo quando
uma questão é claramente da alçada da filosofia, a maioria
prefere resolvê-Ia sem recorrer à filosofia. Por isso, a nosso
ver, a noção de direito subjetivo é reconstruída hoje por vá-
rios de seus teóricos de modo bastante arbitrário, submeti-
da em todos os sentidos aos sistemas pessoais de cada au-
tor, e levada por eles, sem nenhum escrúpulo, para longe
de seu sentido originário. Não deve nos espantar, dadas es-
sas condições, que ela pareça obscura, inutilmente pesada e
pedante para o grande público.
Contudo, sem nos darmos ao trabalho de exprimir sua
denominação completa, falamos cotidianamente do direito
subjetivo. Não há nada mais habitual, nem de uso mais co-
mum. Falamos
de nossos direitos ao trabalho, à saúde, à cul-
tura, de nossos direitos de crédito, de nossos direitos reais,
e do direito de propriedade do Código Civil. Contudo, essa
noção fundamental de nosso atual pensamento jurídico
ainda suscitava, há apenas um século, a atenção apaixona-
da da doutrina, que se empenhava em descobrir-lhe defini-
ções. Lembremos simplesmente a dos pandectistas - de que
o" direito subjetivo" seria um "poder da vontade". Essa fór-
mula de Savigny teve inúmeras variantes e enfrentou, a co-
meçar por lhering, contraditores. Penso que nossa única
chance de esclarecer esse conceito é remontar à época de
sua fundação, ao momento em que ele surgiu, com o máxi-
mo de sentido, do cérebro de seus inventores. (Cada termo
do direito teve seu tempo, em que é preciso recolocá-lo para
compreendê-lo.) Teremos a oportunidade de fazer essa in-
vestigação (por exemplo, na obra de Leibniz que usa ex-
pressamente o termo). Mas limitemo-nos, por ora, ao ele-
mentar. O que me parece característico da expressão direi-
to subjetivo, se a entendermo~.no sentido autêntico e origi-
nário, é que ela aplica o selo, a rubrica do jurídico (a força
normativa do direito), a uma faculdade do sujeito, a um de
seus poderes. O direito subjetivo de propriedade é, por exem-
plo, o poder de usar, de desfrutar, de dispor da coisa, atri-
buído ao proprietário, ele mesmo reconhecido, garantido,
sancionado juridicamf17tc. Essa noçi1o complexa resulta da
associação de duas idéias, a de direito e a de podfr. Acho que
essa análise bastante simples pode ser esclarecedora se ago-
ra abordarmos a história de suas origens.
Pois basta um olhar rápido sobre a filosofia clássica do
direito natural, a de Aristóteles e de SlJJ escola, que conside-
rJmos ter tido certa aplicação na história, para compreen-
der que ela exclui a idéia de direito subjetivo tal como J
acabamos de definir. O próprio da doutrina de Aristóteles e
de são Tomás, como já sublinhei tantas vezes, é construir a
ciência jurídica não sobre J "natureza do homem" - como
será o caso dos modernos -, de onde se pode inferir esse
atributo do homem i~,olado, seu poder, seu direito subjeti-
vo, mas sobre a "nat):1reza cósmica": o jurista descobre o di-
reito pela observaçãó da ordem presente no corpo social na-
tural, de onde só se podem extrair relações, proporções,
conclusões objetivas.
Segundo essa filosofia, tampouco a função do jurista é
a de servir ao indivíduo, à satisfação de seus desejos, à pro-
clamação de seus poderes; essas finalidades competem a
outras artes, e a busca da realização do útil ou do desenvol-
vimento espiritual dos indivíduos não é de sua alçada; o ju-
rista é "sacerdote da justiça" (sacerdotes justitiae, diz Ulpia-
254 A FORMAÇÃO DO PENSAMENTO JURÍDICO MODERNO A FILOSOFIA DO DIREITO NOS TEÓLOGOS DO CRISTIANISMO 255
no sobre os jurisprudentes). Ele busca realizar o justo, esse
valor estritamente definido, que é harmonia, equilíb~o,
boa proporção aritmética ou geométricÇlentre as coisas ou
as pessoas.
O que é o direito - dt'kaion, ou jus? Para são Tomás (como
para Ulpiano, ou para Aristóteles), é aquilo que é justo (id
quod justum est), o resultado ao qual tende o trabalho do ju-
rista: a justa relação objetiva, a justa proporção descoberta
entre os poderes reservados ao rei, aos guardiões, às outras
classes de cidadãos (na República de Platão), entre os res-
pectivos patrimônios de dois proprietários vizinhos, ou en-
tre aqueles que mantêm uma relação de negócios, como a
vítima de um dano e o delinqüent~ autor deste, o credor e
seu devedor etc. A própria consistência da partilha é o obje-
to da arte jurídica.
Numa acepção mais estrita, os textos mencionarão o
jus que cabe a um determinado indivíduo. A palavra desig-
na então a parte que ele recebe segundo a justiça, já que a
justiça tem por objetivo atribuir a cada um' o seu direito:
suum jus cuique tribuere. Especialmente: no tipo de partilha
que se efetua por fracionamento de uma coipa "corpórea",
entre as diversas vantagens que disso se possa tirar, deter-
minado cidadão vai receber o uso da coisa (jus utendi) ou da
passagem (jus eundi)90, da água alheia, da rabitação. Ou
ainda, jus designa globalmente o status, a condição particu-
lar que um indivíduo recebe: distingue-se então" o direito"
do homem livre, do escravo ou do cidadão (jus civitatis). Ou
ainda,. enfim, sempre na mesma acepção, jus designa a coi-
sa, imóvel, crédito ou dívida que constitui a parte desse in-
divíduo. .
90. Haverá quem objete que jus utendi ou jus eundi podem ser traduzidos
em francês por "poder" de fazer uso da coisa ou de cruzar um campo: mas
isso desde que se entenda aqui o termo poder como um s\lbstantivo, que de-
signa uma espécie de bem incorporaI que faz parte da soma de bens exterio-
res que são partilhados: como se partilha, num Estado, a massa deis "poderes
públicos", o legislativo, o judiciário ou o executivo - objetivados -, tratados
como coisas. Não é este o primeiro sentido da palavra.
Em suma, ,o próprio da linguagem jurídica clássica é vi-
sar um mundo de coisas, de bens exteriores, porque é so-
mente nas coisas e na partilha feita nas coisas que se mani-
festa a relação jurídica entre as pessoas. A ciência do direito
mira as coisas, e é nesse sentido que a autêntica linguagem
jurídica é essencialmente objetiva.
Diferente desta é a linguagem do individualismo. Em
vez de visar a ordem do grupo, está centrada no sujeito em
particular. Tende a conceber e a exprimir as "qualidades" ou
as "faculdades." de um sujeito, as forças que seu ser irradia:
poderes, mas no sentido principal da palavra, entendida
como capacidade da pessoa, inerente ao sujeito: no sentido
subjetivo. Conseqüência: esse poder é concebido, de partida,
como ilimitado: E apenas num segundo momento, quando
for preciso dar conta dos poderes concorrentes dos outros,
que lhe atribuirão fronteiras. Inicialmente, ele não é uma
parte definida.
Esforçar-nos-emos em esclarecer (faz-se necessário)
esse contraste entre duas linguagens; entre esses dois sen-
tidos da palavra direito, o sentido objetivo' herdado da juris-
prudência romana, e o sentido subjetivo moderno. Lance-
mos primeiro um olhar sobre o direito romano.
o jus do direito romano clássico
Quando eu estava preparando meu exame de admis-
são como professor suplente, publiquei um artigo intitula-
do: "Les Institutes de Gaius et l'idée de droit subjectif"91.
Com esse artigo não consegui a aprovação nem da banca
nem dos romanistas. Vários deles qualificaram a tese de
"aventurosa", De minha parte, critico a dificuldade deles
em se afastarem o suficiente de nossas categorias moder-
91. M. ViIley, "Les lnstitutes de Caius et l'idée de droit subjectif", in Li-
ções __., op. cit., pp. 167 ss.
256 A FORMAÇÃO DO PENSM1ENTO]URÍDlCO 1,,10DERNO
A FILOSOFIA DODIREITO NOS nl)f,Ocos DOCl?ISTIANISIVIO 257
nas. Para consegui-lo, é preciso recorrer à história da filoso-
fia. E, como vocês devem estar céticos desde o começo do
curso, vou justificar meu ponto de vista. Terei primeiro de
relembrar a doutrina corrente, e depois resumir sumaria-
mente os resultados de minha investigação.
Um preconceito muito difundido é o de que o direito
da Europa moderna deveria sua estrutura subjetivista à in-
fluência do direito romano. Teríamos herdado do mundo
germânico costumes comunitários dos quais nos teríamos
libertado progressivamente a partir do século XVI, e deve-
ríamos à renascença do direito romano estas concepções:
por um lado, a propriedade absoluta - direito de desfrutar e
de abusar da coisa do modo mais absoluto - às vezes tam-
bém chamada de "propriedade à romana"; por outro, toda
a rede de nossos direitos subjetivos, direito de crédito, direi-
tos de servidão, direitos processuais, "direitos reais" ou "di-
reitos pessoais". Até mesmo os direitos públicos de nossas
democracias modernas, como o direito de voto ou as diver-
sas liberdades

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