Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
1 ANOTAÇÕES SOBRE O PENSAMENTO JURÍDICO- FILOSÓFICO NA HISTÓRIA Guilherme Arruda Aranha1 INTRODUÇÃO O presente artigo procura apresentar de maneira sucinta e panorâmica as marcantes diferenças que o pensamento jurídico-filosófico assumiu ao longo da história. Seu objetivo é apontar a existência do vasto campo do pensamento jurídico-filosófico e despertar o leitor para a idéia de que “a história não é apenas um verniz de erudição. (...) Ela desempenhará o papel de desmistificação do eterno e ajudará a compreender que vivemos no tempo da ação”, como afirma o professor e historiador José Reinaldo de Lima Lopes. I. SOCIEDADES TRIBAIS E DIREITO ARCAICO As sociedades tribais têm na consciência mítica uma característica acentuada, isto é, são organizadas em torno de crenças míticas, tradições e costumes. A função dos mitos “é resolver, num plano imaginativo, tensões, conflitos e antagonismos sociais que não têm como ser resolvidos no plano da realidade. A narrativa os soluciona imaginariamente para que a sociedade possa continuar vivendo com eles, sem destruir a si mesma. Graças ao encantamento do mundo – cheio de deuses e heróis, de objetos mágicos e feitos extraordinários – o mito conserva a realidade social dando-lhes um instrumento imaginário para conviver com suas contradições e dificuldades” (Chaui, 2002, p. 36). A consciência mítica que molda a interpretação do real predominante nas sociedades tribais é, também, uma consciência comunitária. Isso quer dizer que o aspecto coletivo supera e condiciona a dimensão pessoal do indivíduo. O saber produzido em tais culturas é predominantemente dogmático. Ou seja, aceitam-se as explicações míticas da realidade e os comportamentos impostos pelas crenças e tradições sem que haja grandes margens para críticas ou questionamentos. 1 Mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC/SP. Professor da PUC/SP e Coordenador Científico do Instituto Norberto Bobbio. 2 À primeira vista pode parecer que não existe direito nesses grupos. De fato, não existe um conhecimento do direito propriamente dito. Os integrantes das sociedades tribais não têm qualquer consciência “jurídica”. Entretanto, há uma ordem social bastante rígida, assentada sobre o princípio do parentesco. “Todas as estruturas sociais, que aliás não se especificam claramente, deixam-se penetrar por esse princípio (...), produzindo uma segmentação que organiza a comunidade em famílias, grupos de famílias, clãs, grupos de clãs. Dentro da comunidade, todos são parentes, o não-parente é uma figura esdrúxula. As alternativas de comportamento são, assim, pobres, resumindo-se num ‘ou isto ou aquilo’, num ‘tudo ou nada’”(Ferraz Jr., 2001, pp. 52-53). Todo comportamento novo, incomum, inesperado, quebra as expectativas consagradas pelo grupo gerando medo e incerteza, indicando o “perigo de desvio para caminhos desconhecidos, de descarrilamento irreversível dos trilhos da ordem, incapaz de desacertos e inovações.” Assim, “torna-se compreensível a preferência por meios simbólicos [mitos e tradições], os quais protegem o presente contra a ameaçadora irrupção de outras possibilidades (...) A palavra certa, o gesto certo, a mágica certa, o juramento ou a maldição ativam o direito imediatamente (...). Dessa forma também o juramento divino é experimentado como uma estipulação concreta e presente do direito, mas não como um prejulgado para casos futuros ou até mesmo como revelação de uma regra geral. E a obrigatoriedade do direito transparece no rompimento de uma expectativa justificada no presente; ela não é concebida como uma obrigação futura” (Luhmann, 1983, pp.188-190). Não há, ainda, nenhuma instância supra-familiar competente para decidir conflitos e disputas. As proibições, antes de serem regras conscientes que delimitam o que se pode e o que não se pode fazer no convívio social, são tabus explicados de modo sobrenatural e condicionados pelo princípio do parentesco. Daí que a violação do tabu – que não deixa de ser uma norma de conduta – ultrapassa a estrita individualidade de quem a violou, atingindo toda a comunidade que se vê ameaçada pelas divindades. Para a sociedade ver-se livre dos castigos sobrenaturais a que fica sujeita com a quebra do tabu, são realizados “ritos de 3 purificação” que podem culminar com a expulsão do transgressor ou em sacrifícios que, muitas vezes, são sacrifícios humanos. Na medida em que o transgressor é expulso ou punido, faz-se notar aí a existência de um direito. Direito, todavia, que se manifesta de modo maniqueísta: ou o indivíduo está dentro da sociedade e, portanto, com o direito ou, ao desrespeitá-lo, é associado ao mal e colocado para fora. Dito de outro modo, o “bem” é visto como jurídico e o “mal” como antijurídico. Em suma, existe nas sociedades tribais um direito. No entanto, sua existência, seu conhecimento, sua aplicação confundem-se (cf. Ferraz Jr., 2001, p. 53). II. A PÓLIS E O DESENVOLVIMENTO DO DIREITO Ainda que o direito romano seja experiência autóctone, não se pode menosprezar a influência sobre ele exercida pela filosofia grega. Para que se compreenda essa influência, faz-se necessário ter a dimensão das transformações da mentalidade humana que estavam em curso quando do surgimento da cidade- estado grega – a pólis. Desde o início do segundo milênio a.C. até o século VIII a.C. – período que abrange a civilização micênica e os tempos homéricos – havia, na Grécia, a figura do mestre da verdade, isto é, alguns homens considerados excepcionais, inspirados pelos deuses. O poeta2, o adivinho e o rei-de-justiça são os sábios que, ao falar, proferem a verdade. Sua palavra é poderosa, soberana e mágica. Em suma, uma palavra “eficaz porque, quando o poeta canta, o passado se faz presente; quando o adivinho anuncia, o futuro se faz presente; quando o rei-de- justiça enuncia a justiça, cria a lei. Não há distância entre falar e fazer, palavra e ação” (Chaui, 2002, p. 41). A partir do século VIII a.C., porém, a pólis vai se solidificando como nova forma de organização social. É nesse período que os mestres da verdade começam gradativamente a perder importância para uma nova categoria de homem: o cidadão. Em detrimento das palavras-mágicas dos sábios, o modelo da 2 Os poetas da Grécia Homérica, também chamados aedos e rapsodos, eram aqueles que cantavam os mitos da cultura grega, celebrando os feitos extraordinários de seus antepassados. A poesia era, ainda, o veículo de educação das crianças gregas que aprendiam desde cedo a recitar trechos de cor. 4 pólis assenta-se no exemplo das assembléias dos guerreiros gregos: um círculo formado antes e após as batalhas; nele, cada guerreiro é igual perante a lei do grupo (isonomia) e tem direito à palavra, podendo emitir sua opinião (isegoria). Trata-se de uma palavra compartilhada, pública, leiga e humana, em tudo oposta à palavra proferida pelo mestre da verdade: impositiva, unilateral, secreta e religiosa. Segundo o helenista Marcel Detienne, a palavra dos guerreiros está inscrita “no tempo dos homens e não dos deuses (...) Instrumento de diálogo, esse tipo de palavra não tira mais sua eficácia de um jogo de forças religiosas que transcendem os homens. Funda-se essencialmente no acordo do grupo social que se manifesta pela aprovação ou pela desaprovação (...) É na assembléia dos guerreiros que se prepara o futuro estatuto da palavra jurídica e da palavra filosófica, isto é, da palavra que se submete à ‘publicidade’ e que tira sua força do assentimento de um gruposocial” (apud, Chaui, 2002, p. 42). No lugar deixado pelos mestres da verdade, surge a figura do filósofo. A principal diferença entre a consciência mítica dos períodos anteriores (e mesmo dos grandes impérios do Oriente) e a consciência filosófica nascente é a elaboração de um conhecimento reflexivo aberto à critica. Se os mitos oferecem uma explicação mágica e dogmática sobre o princípio do mundo (cosmogonia) e o nascimento dos deuses (teogonia), os primeiros filósofos buscam a racionalidade constitutiva da Universo (cosmologias). O que se nota nesse momento é a “ruptura quanto à atitude diante do saber recebido. Enquanto o mito é uma narrativa cujo conteúdo não se questiona, a filosofia problematiza e convida à discussão. Enquanto no mito a inteligibilidade é dada, na filosofia ela é procurada. A filosofia rejeita o sobrenatural, a interferência de agentes divinos na explicação dos fenômenos” (Aranha, 1993, p. 67). Ou ainda, como acentua Vernant, “com os milésios3, pela primeira vez, a origem e a ordem do mundo tomam a forma de um problema explicitamente colocado a que se deve dar uma resposta sem mistério, ao nível da inteligência humana, suscetível de ser exposta e debatida publicamente, diante do conjunto dos cidadãos, como as outras questões da vida 3 Milésios: são os primeiros filósofos, atuantes em Mileto, na Jônia (atual Turquia), entre eles, Tales. 5 corrente. Assim se afirma uma função de conhecimento livre de toda preocupação de ordem ritual” (Vernant, 2000, pp. 84-85). É com o advento da pólis, portanto, que a filosofia e a política4 se desenvolvem: instaura-se uma ordem humana, livre dos desígnios divinos, elevando o indivíduo à categoria de cidadão da pólis – figura inexistente no mundo coletivista da comunidade tribal –, garantindo-se-lhe acesso ao debate em praça pública. Concomitantemente, observa-se o esforço de superação do princípio do parentesco: na filosofia, Aristóteles enaltece a amizade entre os cidadãos demonstrando que a família não é o único fundamento da vida social; no direito, criam-se leis com o objetivo de impor o fim das vinganças familiares; na literatura, destaca-se a tragédia Antígona, de Sófocles, na qual “se chocam de um lado a solidariedade de Antígona com o irmão, e de outro a lei da cidade, encarnada por Creonte” (cf. Lopes, 2002, p 36). Muito embora a lei continue exprimindo uma ordem concebida como sagrada, ela vai gradativamente se tornando supra-familiar, ou seja, vai se tornando comum e superior a todos. A grande novidade é que a confecção e a revogação das leis passam a ser responsabilidade de todos os cidadãos, estando irremediavelmente sujeitas à discussão e ao debate, abrindo-se um hiato nem sempre harmônico entre o direito “dos deuses” e o direito “dos homens” e cujo conflito pode ser igualmente percebido na tragédia Antígona (cf. Lopes, 2002, p 40; Vernant, 2000, p. 44). Pode-se dizer que o que se reivindica, nesse momento, é a redação das leis, possibilitando a imposição de normas prescritivas de validade permanente. O contraventor já não merece mais a expulsão. É dentro da sociedade que ele invoca, para se defender, o mesmo direito que invocam contra ele. O ilícito, afinal, não significa mais o exclusivo desrespeito à ordem querida pelos deuses, mas o desrespeito às leis humanas da cidade. Está em curso, finalmente, a elaboração de uma nova concepção de justiça, capaz de garantir a todo cidadão o direito ao poder. Remetem-se, pois, a esse período as primeiras discussões acerca daquilo que, depois, viria a ser chamado 6 de jusnaturalismo. Ao invés da palavra ritual e inquestionável do rei-de-justiça, capaz de “dizer” o direito, o que se vê agora são disputas em torno de conceitos como, por exemplo, “justo por natureza” e “justo por lei”. Tais disputas, contudo, eram muito menos jurídicas do que filosóficas. Um bom exemplo disso é o conceito de phrônesis, palavra grega que não foge à tradição filosófica do rigor da linguagem. Definida por Heráclito como pensamento, por Sócrates (segundo Xenofonte) como inteligência divina e por Platão como pensamento puro, foi, todavia, por meio da filosofia aristotélica que, mais tarde, ela chegaria ao direito romano. Em Ética a Nicômaco, Aristóteles define phrônesis como uma excelência moral: a virtude do discernimento5. Para ele, a pessoa capaz do discernimento é aquela que sabe “deliberar bem acerca do que é bom e conveniente para si mesma, não em um aspecto particular (...), e sim acerca das espécies de coisas que nos levam a viver bem de um modo geral” (Aristóteles, 2001, p. 116). Nesse sentido, o discernimento não se confunde nem com o conhecimento científico (forma de conhecimento no qual não há deliberação, mas demonstração de algo cujo princípio é invariável porque atrelado ao mundo da necessidade), nem com a técnica (domínio de procedimentos cuja finalidade é a realização de um produto exterior). A virtude do discernimento, diferentemente, é uma racionalidade capaz de identificar o que é bom ou mau para um ser humano, tornando-se hábil para agir na esfera dos bens humanos. Não se trata de um conhecimento puro, mas de uma razão intuitiva que discerne não o exato, mas o correto. Em suma, a phrônesis aristotélica é uma espécie de sabedoria e capacidade de julgar desenvolvida pelo homem prudente, capaz de chegar a uma decisão após a análise de situações e possíveis soluções. É, em outras palavras, a busca do certo e do justo. Para que o discernimento do homem prudente pudesse ser exercido, era necessário percorrer o caminho da dialética, entendida como a técnica das 4 A palavra política deriva de pólis. Politikós é o cidadão da pólis e tudo aquilo que a ele diz respeito, ou seja, todos os negócios públicos e a administração pública. Política é, enfim, a arte de gerir a cidade. 5 Mário da Gama Kury aponta na nota 162 de sua tradução de Ética a Nicômacos que o termo phrônesis, geralmente traduzido por prudência, corresponde melhor ao termo português discernimento. 7 contradições. Do diálogo das opiniões contrárias seria possível, por meio de um procedimento crítico, refutar e erradicar as teses equivocadas, fortalecendo-se, em contra partida, as opiniões corretas. Desse modo, a dialética funcionava como uma espécie de lógica da verdade procurada (cf. Ferraz Jr., 2001, p. 57). Sob a influência de discussões filosóficas desse porte, o direito grego confundia-se com a atividade ética da prudência. III. A FORMAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA ROMANA Os gregos são responsáveis pelo desenvolvimento de idéias e conceitos caros à toda civilização ocidental. Diz-se que os romanos, tendo colonizado os gregos, foram por eles colonizados: à superioridade bélica do Império correspondia um maior refinamento filosófico ático. Mas não se diminua o mérito dos romanos que souberam reconhecer e usufruir de uma tal riqueza. E mesmo que já possuíssem um direito muito mais institucionalizado do que aquele que, ainda de modo incipiente, desenvolvia-se na Grécia, não hesitaram em adaptar conceitos filosóficos ao universo jurídico. Assim é que a prudência grega transforma-se na jurisprudência romana: a virtude moral do discernimento, uma vez ligada aos atos de julgar, confere ao direito o caráter de equilíbrio e ponderação. Os romanos, tendo incorporado o pensamento prudencial e a técnica dialética, acabaram por produzir um saber jurídico de natureza prática, atingindo elevado nível de abstração. Ao contrário do que acontecia nas sociedades tribais, em Roma o comportamento em desacordocom a expectativa consagrada (e portanto a possibilidade de um futuro imprevisto) é suportado pela sociedade, reservando-se ao acusado a possibilidade de argumentar e provar. O direito não é mais a luta maniqueísta entre bem e mal, mas a ordem regulada por leis que valem para todos e em nome da qual se discute e se argumenta. Gradativamente, observa-se a especialização de juízos e tribunais, bem como o desenvolvimento de uma linguagem própria dos juristas, com suas regras, princípios, figuras retóricas, meios de interpretação, instrumentos de persuasão. A 8 atividade dos juízes em nada corresponde à palavra-mágica e ritual do rei-de- justiça. Antes disso, o juiz é alguém que decide e que responde por sua decisão. A jurisprudência separa-se do direito propriamente dito, possibilitando a diferenciação entre “questões de fato” e “questões de direito”, afinal a sua interpretação destaca-se do caso concreto constituindo uma discussão própria e abstrata quando comparada às disputas cotidianas. Passa a fazer sentido uma expressão como aplicação do direito. Saliente-se, ainda, uma característica marcante do direito romano, a saber, seu comprometimento intrínseco com a fundação de Roma. É nota particular dessa cultura o mito da fundação da cidade, advindo daí uma espécie de veneração dos antepassados romanos. Assim, enquanto a prudência aristotélica, voltada fundamentalmente para a esfera política, era uma promessa de orientação da ação em busca do certo e do justo, a jurisprudência romana, voltada para a esfera jurídica, era a confirmação do certo e do justo nos feitos e exemplos dos antepassados e dos costumes daí derivados (cf. Ferraz Jr., 2001, pp. 55-61). Há quem defenda, inclusive, que a tarefa original desempenhada pelos juristas romanos na adaptação ao universo jurídico das heranças filosóficas dos gregos, é fruto do conservadorismo e tradicionalismo que caracterizaram o Império. Enquanto a inquietude intelectual grega não se restringia aos estreitos limites de um pensamento dogmatizante, os romanos, habituados a respeitar os limites da tradição, teriam tido mais facilidade em transformar os métodos da retórica e da dialética em instrumento jurídico. Finalmente, anote-se que as fontes do direito romano eram a razão, a eqüidade das fórmulas e, por último, as leis, invocadas quando a solução não era óbvia do ponto de vista prudencial (cf. Lopes, 2002, p. 55). IV. O DIREITO COMO DOGMA NA IDADE MÉDIA O declínio do Império Romano foi marcado pela violência dos poderosos sobre os mais fracos e pela corrupção e venalidade da justiça. Contudo, foi marcado, paradoxalmente, pelo fim da pax romana e da estabilidade social. Os controles sociais se afrouxam e as garantias diminuem. Não há mais um poder 9 político totalizante, capaz de absorver as variadas formas de manifestações sociais. Ao invés disso, nota-se um “vazio” político. No lugar de um Estado centralizador, prevalecem os costumes locais, os poderes senhoriais, as regras eclesiásticas. Ao lado de um poder localizado, abre-se a possibilidade da ingerência de um poder concorrente. Durante séculos, foi possível a coexistência no mesmo território de ordens jurídicas paralelas, aplicáveis a grupos distintos de pessoas. Após a conquista da Península Ibérica pelos mouros, por exemplo, havia na cidade de Toledo três religiões distintas e suas respectivas ordens jurídicas: a do cristianismo, a do judaísmo, a do islamismo, ficando proibido o casamento inter-religioso. Esse pluralismo e “a ausência de regras explícitas de delimitação dos diferentes direitos, tornavam o ‘sistema jurídico’ complexo, pesado, caótico e arbitrário” (Santos, 2000, p. 121) Apesar da turbulência social, a herança cultural greco-latina é preservada nos mosteiros. Aos poucos a alfabetização torna-se um privilégio dos monges. Num mundo em que nobres e servos não sabem ler, torna-se compreensível a enorme influência exercida pela Igreja no controle da educação e da formação moral, política e jurídica. Compreende-se, igualmente, que algo do direito romano tenha sido conservado pela Igreja, nascida à sombra do Império Romano. O cristianismo, contudo, ao mesmo tempo em que conservou características do direito romano, transformou-o inserindo aí a dimensão de uma sacralidade transcendente, de origem externa à vida na Terra, contrapondo-se, assim, à sacralidade imanente dos romanos, voltada para o mito da fundação de Roma. Essa mudança não é radical mas é decisiva: permanece o sentido da prudência romana, subordinada, entretanto, aos dogmas das Sagradas Escrituras, que não podiam ser contrariadas. A maior parte da Alta Idade Média transcorre nesse clima de pluralismo jurídico e de disputas entre papas e imperadores, clero e nobreza. Muito embora essas disputas continuem na Baixa Idade Média, algo de novo e relevante acontece. No século IX, com o renascimento carolíngeo, o saber deixa de restringir-se aos mosteiros. Muito embora os intelectuais pertençam às ordens religiosas, conservando-se o caráter teocêntrico do saber, o ensino é reformulado 10 e inúmeras escolas são fundadas. Muito lentamente o quadro político também começa a se alterar. A partir do século XI as Cruzadas acabam por liberar a navegação no Mediterrâneo, contribuindo de modo intenso para o renascimento comercial. As cidades, graças ao comércio florescente, voltam a crescer e dá-se o surgimento de uma nova classe: a burguesia. Com isso, iniciam-se as lutas contra o poder dos senhores feudais. Os reis, com a ambição de centralizar o poder em suas mãos, buscam o apoio da burguesia e dos camponeses livres, enfrentando, contudo, a resistência dos nobres. O desenvolvimento do comércio impulsiona o aprendizado. Ler, escrever e calcular voltam a ser necessidades. O ensino que já havia deixado de se limitar aos mosteiros modifica-se novamente: surgem as escolas seculares, isto é, desvinculadas das atividades religiosas, o que não deixa de representar uma oposição ao poder religioso. Em uma sociedade que começa a tornar-se mais complexa, a criação das universidades atende à demanda pela ampliação dos estudos. Nesse contexto histórico é fundada, em 1088, a Universidade de Bolonha. Em flagrante oposição ao irracionalismo da Alta Idade Média, assiste-se à retomada de um estudo racionalizado e à reativação do direito romano (ou “direito erudito”), desenvolvendo-se uma dogmaticidade em sentido estrito. Uma vez transformada em disciplina universitária, a teoria jurídica buscou assentar-se sobre textos que gozavam de autoridade. O Corpus Juris Civilis – também conhecido como Código de Justiniano6 – foi recuperado e os digestos transformados em textos escolares para ensino nas universidades (que, a partir do século XII, começaram a proliferar por quase toda a Europa Ocidental). 6 Justiniano foi imperador do Império Romano do Oriente, cuja capital situava-se em Constantinopla (atual Istambul), tendo reinado por quase quarenta anos (de 527 a 565 d.C.). Nesse período, a cultura romana já estava em declínio: o Império Romano do Ocidente havia sido conquistado pelos bárbaros (476 d.C) e as leis romanas eram numerosas, contraditórias e obsoletas. Não obstante, Justiniano pretendia restaurar o passado romano em seu esplendor cultural e militar. Além de ter reconquistado algumas das antigas possessões romanas (principalmente no mediterrâneo), foi responsável pela elaboração do Corpus Juris Civilis (Corpo do Direito Civil), também chamado de Código de Justiniano: trata-se de uma encomenda feita a um corpo de especialistas encarregados de compilar as antigas leis romanas, restaurandoo direito clássico. O Corpus Juris Civilis era composto de quatro partes: o Código (Codex), compilação e revisão sistemática das leis estabelecidas desde o reinado de Adriano; o Digesto (Digesta), compilação dos escritos dos grandes juristas da época clássica; as Instituições ou Institutas (Instituitiones Justiniani), princípios legais contidos no Código e no Digesto; as Novelas (Novellae), legislações do próprio Justiniano e de seus sucessores imediatos. 11 O Código de Justiniano representava a recuperação de um direito idealizado, trazendo em si a autoridade de textos de mais de cinco séculos, bem como a marca da Igreja Cristã e seus dogmas de fé. Sobre ele, os juristas medievais – também chamados de glosadores ou comentadores – começam a desenvolver nova técnica de estudos baseada na retórica, na dialética e na gramática e cujo objetivo era harmonizar o corpus eliminando suas contradições, esclarecendo os pontos obscuros e demonstrando sua racionalidade. Se, por um lado, essa atividade teórica encontrava-se desvinculada do pluralismo que caracterizava a realidade jurídica da Idade Média (o que, de início, valeu aos glosadores a pejorativa imagem de homens desligados da vida), ela correspondia, por outro lado, a um extenso projeto cultural e político de emancipação social7. O direito romano, sendo um misto de autoridade e razão, propunha uma nova regulação da vida social. Essa regulação, contudo, subordinava-se à experiência racional e, longe de ser apenas um produto técnico com finalidades meramente instrumentais, representava também uma ética política e social ajustada aos novos ideais de autonomia e liberdade. Contra a insegurança característica do pluralismo jurídico e contra a ingerência arbitrária em seus negócios, a burguesia – que ainda não dominava nem política nem ideologicamente – vê na recepção do direito romano e na racionalização da vida social por ele proposta um projeto emancipatório, capaz de oferecer uma regulação jurídica favorável aos seus interesses. Estabelece-se, desse modo, uma tensão entre regulação e emancipação. Progressivamente os juristas vão aperfeiçoando seus estudos e se aproximam dos reis, transformando-os nas personagens centrais do edifício jurídico que se começava a construir, criando condições favoráveis ao fortalecimento das monarquias nacionais. Sem se limitarem ao direito privado e à aplicação da justiça, os juristas desenvolvem também atividades diplomáticas e administrativas, elaborando um suporte técnico em favor do poder real, muitas vezes autoritário e absolutista (cf. Ferraz Jr., 2001, pp. 61-65). 7 A idéia de um direito que é, ao mesmo tempo, regulador e motor de emancipação social é amplamente desenvolvida pelo sociólogo português Boaventura de Sousa Santos. Para maiores informações, consultar A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. 12 Finalmente, com a finalidade de legitimar a centralização do poder e o monopólio do uso da força surgirá, no Renascimento, o conceito de soberania, organizando o universo jurídico em torno da relação direta que se estabelece entre soberano e súdito. O que se justifica, de um lado, são os direitos legítimos da soberania real e, de outro, o dever legal da obediência. Um pouco mais tarde, os juristas adversários dos reis começam a se valer igualmente do conceito de soberania, dessa vez para questionar os seus privilégios e impor limites ao seu poder (cf. Foucault, 2001, pp. 181-182). Em suma, os juristas da Baixa Idade Média, ao recuperarem o direito romano, estavam contribuindo de modo intenso e fundamental não só com a construção de um novo edifício jurídico, centrado no poder do rei (e que, mais tarde, se abaterá sobre ele), como também com a construção do próprio Estado moderno racionalizado e burocratizado. V. O ESTADO MODERNO E O DIREITO COMO ORDENAÇÃO RACIONAL O fim da Idade Média representa, também, o fim de um período teocêntrico. Com o Renascimento, isto é, desde o século XV, a racionalidade e a individualidade do ser humano voltam a ser valorizadas. A mentalidade antropocêntrica somada ao advento da Revolução Científica, no início do século XVII, mudam a face do mundo. A busca de um saber objetivo e pretensamente neutro impulsionará o progresso científico, resultando no aumento de produtividade e gerando, por conseqüência, a aceleração das mudanças sociais e a solidificação do capitalismo. Aos poucos, as monarquias nacionais, com o apoio da burguesia, passam a dispor de um aparato administrativo centralizado capaz de prestar serviços públicos, de recolher impostos, de manter um exército, além de cunhar moedas com exclusividade e deter o monopólio não só da elaboração e aplicação das leis mas também do uso da força. Começa a nascer aí o Estado moderno. Esse cenário estende suas influências também sobre o mundo jurídico: enquanto os pensadores antigos partiam de pressupostos morais, tendo por fim a busca e a confirmação do certo e do justo, os pensadores modernos preocupam- 13 se com as condições racionais de sobrevivência. Dito de outro modo: se, até então, o que se procurava era uma adequação à ordem natural, a partir da modernidade o que se pretende é dominar a natureza ameaçadora e, consequentemente, criar uma ordenação racional capaz de proteger a vida contra a agressão dos outros. É notável, nesse período, a influência intelectual dos jusnaturalistas modernos. Sem recorrer a um direito de origem divina, invocam a existência de um direito natural ditado pela razão – independente não só da vontade de Deus como também da sua própria existência, conforme dirá Hugo Grócio (1583-1645) – para justificar a obrigatoriedade da obediência. Em oposição ao “estado de natureza”, carente de organização política, o Estado politicamente organizado é visto como um pacto entre soberano e cidadãos (contrato social) e cuja finalidade é tutelar e garantir os direitos naturais (cf. Fassò, 2000, pp. 657/658). Assim é que a noção ética e religiosa que atravessava o jusnaturalismo antigo e medieval é substituída pela noção de “estado de natureza”: uma situação hipotética do convívio humano anterior à organização social e que serve de padrão para analisar e compreender o homem civilizado. Em tais circunstâncias, o que se vai exigir do direito é a sua progressiva racionalização, formalização e neutralização, como exigem as questões técnicas. Se a teoria da exegese e da interpretação desenvolvida na Idade Média restringia- se a textos específicos e isolados, não alcançando um refinamento sistemático, o que se desenvolve na modernidade é uma nova interpretação de caráter lógico- demonstrativo de um sistema fechado que procura garantir à teoria jurídica uma dignidade metodológica e a sua entrada na ciência moderna. É correto afirmar, então, que o direito não rompe com o caráter dogmático iniciado com os glosadores. Na verdade, modifica-o e aperfeiçoa-o. Desvinculados da idéia de transcendência divina, os dogmas jurídicos transformam-se em premissas inatacáveis que vão garantir ao direito a qualidade de um sistema lógico- demonstrativo (cf. Ferraz Jr., 2001, pp. 66-67). No embate entre as novas exigências científicas e os distintos e extremados anseios políticos e sociais de um mundo em crescente transformação, 14 as teorias jurídicas, ao longo dos séculos XVII e XVIII, apresentam uma tensão entre regulação e emancipação. Essa tensão revela um dos paradoxos do pensamento moderno que procura ora legitimar o absolutismo e o despotismo e ora defender as idéias liberais que, mais tarde, conduziriam à Revolução Francesa.São exemplos dessa tensão, de um lado, o pensamento de Thomas Hobbes (1588-1679) e, de outro, o pensamentos de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). Hobbes, seduzido pela metodologia da ciência moderna e sua potencialidade em descobrir uma ordem incontroversa, procura atingir, em seu pensamento jurídico-político, um elevado grau de certeza. Em seu pensamento, os termos aparentemente opostos da regulação e da emancipação tornam-se próximos e confundem-se. Se a guerra permanente é o que caracteriza o estado de natureza (“... tudo aquilo que é valido para um tempo de guerra, em que todo homem é inimigo de todo homem, o mesmo é válido também para o tempo durante o qual os homens vivem sem outra segurança senão a que lhes pode ser oferecida por sua própria força e sua própria intenção. Numa tal situação (...) não há sociedade; e o que é pior de tudo, um constante temor e perigo de morte violenta. E a vida do homem é solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta”, Hobbes, 1974, p. 80), então a regulação jurídica e absoluta é a única forma de emancipação possível. Regular equivale a garantir a paz, ou seja, equivale a emancipar o ser humano, libertando- o da indesejável situação de guerra. Compreende-se, assim, que a noção de justiça seja atrelada por Hobbes à paz e à vontade do soberano. No estado de natureza, argumenta o pensador inglês, cada um dispõe da própria força para impor, na medida do possível, sua própria noção pessoal e relativa de justiça. A justiça, porém, torna-se objetiva no estado juridicamente organizado. Se a paz depende da força da autoridade do soberano, então a lei posta por ele é necessariamente justa. E injusta é toda a ação que viola a vontade do soberano, colocando a paz em xeque: “Dado que todo súdito é por instituição autor de todos os atos e decisões do soberano instituído, segue-se que nada do que este faça pode ser considerado injúria para 15 com qualquer de seus súditos, e que nenhum deles pode acusá-lo de injustiça. Pois quem faz alguma coisa em virtude da autoridade de um outro não pode nunca causar injúria àquele em virtude de cuja autoridade está agindo. Por esta instituição de um Estado, cada indivíduo é autor de tudo quanto o soberano fizer, por conseqüência aquele que se queixar de uma injúria feita por seu soberano estar-se-á queixando daquilo de que ele próprio é autor, portanto não deve acusar ninguém a não ser a si próprio, e não pode acusar-se a si próprio de injúria, pois causar injúria a si próprio é impossível. É certo que os detentores do poder soberano podem cometer iniqüidades, mas não podem cometer injustiça nem injúria em sentido próprio” (Hobbes, 1974, p. 113). Não é à toa que Hobbes exalta a lei em detrimento dos costumes e do common law: nenhum deles possui o selo da autoridade do soberano. Não é à toa, igualmente, que Norberto Bobbio identifica em Hobbes o embrião do processo de estatização do direito e de juridificação do Estado que tem em Max Weber e Hans Kelsen sua expressão mais acabada (cf. Bobbio, 2000, pp. 350-352). Rousseau, por sua vez, critica a ciência moderna, julgando-a incapaz de resolver o mais grave problema ético e político da época: o de criar uma obrigação política erigida sobre a liberdade. Para ele, não faz sentido a noção de contrato hobbesiano: seria um absurdo aceitar de livre e espontânea vontade uma relação contratual que resultasse na perda da liberdade. A tensão que irá se estabelecer no pensamento rousseauniano é entre a certeza e a justiça, ambas necessárias ao projeto de sociedade pelo qual o ser humano é moralmente responsável. Contudo, a síntese rousseauniana entre regulação e emancipação é identificada no conceito de vontade geral, ou seja, no exercício essencial de soberania inalienável e indivisível. A contradição entre “só obedecer a si próprio” e a idéia de “ser forçado a ser livre”, presente na obra de Rousseau, é apenas aparente. A vontade individual pode ser boa ou má, em todo o caso ela é sempre contingente. Em contrapartida, aquele que age contra a vontade geral não é moralmente livre, mas escravo de suas paixões e apetites. Ser moralmente livre significa agir de acordo com leis que o próprio indivíduo prescreveu e que promovem o bem comum definido pela 16 vontade geral. A vontade geral, diferentemente da individual, é sempre boa e nem sempre coincide com a vontade da maioria. O que caracteriza a vontade geral não é o número de vozes que a endossa, mas o interesse comum. Atrás da idéia de “só obedecer a si próprio” e de “ser forçado a ser livre” reside o desejo de uma prática baseada na obrigação política horizontal, de cidadão para cidadão, e em relação à qual a obrigação vertical, entre cidadão e Estado, é derivada e secundária. Assim, a vontade geral consiste na elaboração de leis que preservem o bem comum, de modo que cada indivíduo não obedeça senão a si próprio. Concomitantemente, “(...) aquele que recusar obedecer à vontade geral a tanto será constrangido por todo um corpo, o que não significa senão que o forçarão a ser livre” (Rousseau, 1973, p. 42). O exercício da regulação, assim, torna-se exercício de emancipação. VI. AS CODIFICAÇÕES DO DIREITO A PARTIR DO SÉCULO XIX Assim como o edifício jurídico construído na Idade Média, com a finalidade de fortalecer a figura do rei, acaba por gerar o seu declínio, também o jusnaturalismo moderno, ao celebrar o seu apogeu, produz involuntariamente a sua própria ruína. No século XVIII, o Código de Justiniano continuava sendo fonte do direito, só que modificado e complicado através dos tempos, misturando-se com outras e distintas fontes. Era quase impossível conhecer e dominar o universo jurídico com segurança. O confronto entre os diversos conjuntos normativos dificultava a interpretação sistemática, disseminando-se um grave estado de incerteza e confusão desfavorável, sobretudo, à burguesia ascendente que se via prejudicada na realização de seus negócios. Sentia-se a necessidade de reformas que dessem maior certeza ao direito (Fassò, 2000, p. 659). É nesse contexto que se operam algumas transformações substanciais. De natureza política, duas delas contribuem para o golpe de morte do absolutismo: a transformação do conceito de soberania e o desenvolvimento do princípio da separação dos poderes. A soberania, assim, deixa de ser conceito personalíssimo, 17 substituindo-se a figura concreta do rei pelo conceito mais abstrato e maleável de nação (o artigo 3º da Declaração dos Direitos dos Homens e do Cidadão, de 1789, proclamava: “O princípio de toda soberania reside essencialmente na nação”). Já o princípio da separação dos poderes, ao mesmo tempo em que limita, confere uma autonomia original ao poder judiciário, separando-o da administração (poder executivo) e da produção de leis (poder legislativo). Após a Revolução Francesa, a Constituição daquele país, promulgada em 1791, estabelecerá: “O poder judiciário não pode em nenhum caso ser exercido pelo corpo legislativo, nem pelo rei” (art. 1º, cap. V) e “Os tribunais não podem se imiscuir no exercício do poder legislativo, nem suspender a execução das leis” (art. 3º, cap. V) – (cf. Ferraz Jr., 2001, p. 73). Na esteira dessas transformações políticas, impõe-se outra, de natureza técnico-jurídica: a lei assume, cada vez mais, um caráter privilegiado como fonte do direito. É aí que o jusnaturalismo moderno experimenta o seu apogeu: ao defender a existência de um direito universalmente válido porque ditado pela razão, é considerado o modelo perfeito para orientar a reforma legislativa, bastando converter as normas do direito natural em normas positivas que, uma vezpromulgadas, deveriam ser seguidas para todo o sempre. Todavia, a promulgação dos Códigos (com especial destaque para o napoleônico, de 1804) foi acompanhada pela Revolução Industrial e, consequentemente, por fortes mudanças sociais e culturais. Nota-se, ao longo do século XIX, não apenas o significativo aumento de relações sociais não contempladas pela legislação positiva como, também, a mudança de mentalidade que levou, por exemplo, a “escola histórica do direito” a acusar as teorias jusnaturalistas de “abstratismo intelectualista ao pretender determinar normas e valores imunes ao devir histórico” (Fassò, 2000, p. 659). Ou seja, a idéia de um direito natural imutável e eterno, cujo fundamento se achava na razão, perde a consistência, revelando-se pouco operante em uma sociedade cada vez mais complexa. Ao mesmo tempo em que o jusnaturalismo exaure sua função, o universo jurídico reduz-se às normas postas pelo legislador competente, iniciando- se o fenômeno da crescente positivação do direito pelo Estado. 18 Até então, o direito havia conservado uma essência que o tornava, em certa medida, refratário a grandes mudanças. O direito romano estava atado à tradição (ao mito da fundação de Roma); o direito medieval, à revelação divina; o direito moderno dos séculos XVII e XVIII, à razão. Com as codificações do século XIX, porém, a estabilidade social passa a ser garantida mais pela institucionalização formal do direito do que por seu variável conteúdo ético. Em suma, uma vez divorciado da prudência greco-romana e medieval, assim como da racionalidade pretensamente universal do Renascimento, o conteúdo do direito passa a ser visto como fenômeno histórico, sujeito às mudanças políticas e sociais. Ao contrário do que pode parecer à primeira vista, essa mutabilidade do conteúdo do direito fortalece a segurança jurídica tão desejada pela burguesia. O valor que a norma traz embutida em si não é mais tão relevante. O que importa, agora, é que as leis tenham sido postas pelo poder legislativo e que o poder judiciário, ao julgar os fatos, atenha-se aos termos das leis. No espaço aberto pela derrocada do jusnaturalismo fortaleceram-se as teorias do positivismo jurídico, chamando para si a responsabilidade de sistematizar e interpretar as normas postas pelo Estado. Limitando-se ao estudo das leis positivas, o pensamento jurídico faz-se profundamente dogmático e supostamente neutro. Na primeira metade do século XX acentua-se o caráter dogmático da ciência do direito, privilegiando-se as questões formais. Em resumo, o que se observa, desde o século XIX, é o predomínio de teorias segundo as quais o direito não possui essência. O que se procura, então, é estudar a forma do direito. Forma essa que passa a admitir qualquer conteúdo. O ápice dessa visão teórica, fortemente influenciada pelo pensamento científico moderno, dá-se com Hans Kelsen, para quem a legitimidade do direito é igual à sua legalidade. VII. A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL E A CRISE DO POSITIVISMO A experiência dos totalitarismos do século XX elevou o respeito à lei a um patamar mítico e acabou por colocar em xeque os paradigmas do positivismo 19 jurídico, afinal, foi dentro da legalidade estatal que se praticaram os maiores genocídios e expurgos do século passado. Vale dizer, o Estado, inicialmente criado para tutelar e garantir os direitos outrora considerados inatos, passa a ser o grande agressor e violador da dignidade humana. O respeito cego a leis absolutamente desumanas foi chamado por Hannah Arendt de “banalização do mal”: o apego à burocracia somado à incapacidade crítica, podem transformar o direito em um eficiente mecanismo de dominação e, pior, de extermínio, como aconteceu na Alemanha, na China ou na União Soviética, isso sem falar nas ditaduras latino-americanas e africanas Acrescente-se, ainda, que o mundo vem passando por novas e radicais transformações de caráter irreversível. A própria soberania que, num primeiro momento, pretendeu defender o poder dos reis e, depois, passou a integrar o conceito liberal de nação, parece passar agora, com a globalização econômica, por nova e decisiva transformação. Tem-se observado a fusão de grandes corporações multinacionais. Ao enriquecimento de pequenos grupos, corresponde o empobrecimento de enormes parcelas da população mundial e a crescente vulnerabilidade econômica dos Estados denominados “emergentes”. O século XXI assiste também a intensificação do terrorismo e sua organização em redes transnacionais. Diversos países vem sendo chacoalhados por protestos nem sempre pacíficos, conflitos separatistas e guerras civis. E, por ora, pouca coisa tem sido feita para que se consiga delinear uma sociedade transnacional minimamente organizada, com governos e justiça próprios, capaz de deter os malefícios do novo século e distribuir justiça. Como reação aos abusos cometidos pelos Estados totalitários do século XX e aos trágicos “efeitos colaterais” da globalização, reaparecem, de um lado, as velhas doutrinas jusnaturalistas e, de outro, começam lentamente a se desenvolver e se firmar teorias de Direitos Humanos. Seja como for, a maior ambição do pensamento jurídico-filosófico atual é superar o divórcio entre o direito e a ética que persiste em nossa cultura altamente tecnicizada e resgatar a dignidade inalienável do ser humano. 20 Do mesmo modo que os glosadores medievais e os jusnaturalistas modernos, cada um a seu tempo, não se limitaram a descrever como era o direito existente em sua época, mas esforçaram-se para criar uma nova ordem jurídica, mais eficaz e emancipadora, a ambição das teorias contemporâneas de Direitos Humanos não está em contradição com a existência de Estados reguladores e não raro violadores da dignidade humana: ao contrário, denuncia a sua crise. Em suma, o que se exige, em termos éticos, é a elaboração de um novo paradigma jurídico. Pensá-lo é o desafio do nosso tempo. Referência Bibliográfica: ARANHA, Maria Lúcia de Arruda e MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando, introdução à filosofia. 2ª ed. São Paulo: Moderna, 1993. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Mário da Gama Kury. 4ª ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001. BOBBIO, Norberto. MATTEUCCI, Nicola. PASQUINO, Gianfranco. [et al] Dicionário de Política. 5ª ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2000. CHAUI, Marilena. Introdução à história da filosofia. 2ª ed., rev. e ampl. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 1999. FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2001. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 16ª ed. Rio de Janeiro: Edições Graal 2001. HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Abril Cultural, 1974, Col. Os pensadores. LAFER, Celso. A reconstrução dos direito humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. LOPES, José Reinaldo de Lima. O direito na história, lições introdutórias. 2ª ed. São Paulo: Max Limonad, 2002. LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito I. Rio de Janeiro: Tempo Universitário, 1983. MARTINS, Argemiro Cardoso Moreira. O direito romano e seu ressurgimento no final da Idade Média. In: WOLKMER, Antonio Carlos (org.). Fundamentos de história do direito. 2ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural, 1973, Col. Os Pensadores. SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra a desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2000. VERNANT, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego. 11ª ed.Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
Compartilhar