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Mãos Dadas

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Mãos Dadas 
 
No carro, atrapalhou-se com o cinto de segurança e começou de mau humor o dia. Tentou filosofar 
sobre necessidade de segurança, de regras e de obediência. a pouca disciplina que restara de sua educação 
severa- ela a rebelde, sempre de castigo, sempre na sala do diretor, sempre desgostando a mãe e as tias – 
ajudaria ao menos nisso: a ser uma cidadã mais consciente. 
 Dos dez sinais de trânsito em que teve de parar – pois naquele dia, dando tudo errado, nem a onda 
verde conseguia pegar – vários já começavam a se povoar de crianças: brancas, morenas, pretas, de dois 
anos até doze ou mais, nunca se sabia apesar das carinhas envelhecidas, eram mirradas para a idade. E havia 
os homens, mulheres, famílias inteiras, morando debaixo dos viadutos, nas favelas, havia os sem-terra que 
vira uma vez à beira de uma estrada, quando viajavam para a praia: em barracas de plástico preto, num dia 
de chuva, e frio. Nunca esqueceria o ar determinado dos homens, a desesperança das mulheres, a 
perplexidade das crianças. E havia, em toda parte, desemprego e fome e dor. 
Comentava tudo isso com o marido, com colegas de trabalho, mas ninguém sabia as respostas. A 
maioria concordava em que era um horror, mas, de certa forma, davam de ombros: não era problema da 
gente. Ela não conseguia fazer o mesmo. Ficava remoendo, pensando, indagando, começava a aborrecer as 
pessoas. 
Nas esquinas de sua cidade, o coração se apertava mais, ali a realidade – uma realidade que 
aparentemente nem era sua – lhe apontava o dedo, e seu coração sofria de tristeza e vergonha, a razão, por 
outro lado, se irritava: parece mentira, todo dia a mesma chateação, angústia: fazer o quê? 
Em duas das dez paradas forçadas, catou na bolsa algumas moedas; não conseguia abri-la direito 
com uma só mão, a outra baixava a janela: não tinha vidros elétricos, a cunhada perua ria-se dela: “você tem 
mania de pobre.” 
Deu as moedas sem ver quanto era, sempre seria vergonhosamente insuficiente, sempre nada teria 
a ver com seu caro, sua bolsa, sua roupa. Deu com raiva, com frustração, deu como se desse tudo o que 
tinha, as crianças nunca entenderiam, ninguém podia entender. 
Na parada seguinte não tinha mais moedas, deu uma nota de cinco, a outra era de dez, ia precisar. 
Ficou irritada com isso também, tudo falso: se eu der para essas crianças de rua –que são as minhas crianças, 
da minha cidade, das esquinas onde passo todo dia – tudo o que tenho, haveria milhões de outras, nas ruas 
do mundo, das favelas, nas roças, nas beiras de estrada, nos desertos, sei lá, morrendo de indignidade, de 
modo que não adiantaria eu dar o que tenho. 
Fazer o quê? Ê a minha privacidade? Sempre esses olhos me encarando, pedindo, suplicando, ora 
vazios, ora com ironia, ou raiva... 
Graças a Deus pelo menos o último sinal estava verde. Entrou no estacionamento já com vontade de 
morrer. Não era um desgosto pessoal, até que as coisas em sua vida estavam direitas: era uma infelicidade 
obtusa e ampla, quase física, tristeza por ser gente, pela impotência diante do que escapava de sua pequena 
vida doméstica e simples. Culpa por ter casa, comida, família, limpeza, ordem, relativa segurança. 
Começavam a sentir-se perseguida, sabia disso: estava exagerando, o marido tinha razão, as amigas 
não aguentavam mais ouvi-la falar, era preciso fazer alguma coisa, mas ninguém tinha a solução, seria 
preciso mudar o mundo. 
- Então a gente muda o mundo, e pronto – insistira um dia, jantando com amigos, e tinham rido dela. 
 - Você está com ideias fixa, vai acabar maluca. 
Talvez. Talvez estivesse obcecada: aos poucos, cada vez mais depressa e com mais intensidade, os 
olhos, os rotos, as bocas das crianças, das mulheres, dos homens, nas ruas, nos barracos, debaixo dos 
viadutos, pareciam recobrir o rosto amado da sua própria filha, o rosto bondoso e atento do marido. Seu 
próprio rosto no espelho a acusava: e esses cremes, o batom, o cuidado com os cabelos, e apele macia? Com 
que direito, heim? 
Seu dia, atarefado como sempre, correu normal, a empregada telefonou para dizer que a filha 
pequena estava com um pouco de febre, devia ser a garganta, e só isso já deixou a mãe, no emprego, com 
mais uma carga de culpa .A velha história: se eu não trabalhasse fora e a gente morasse num apartamento 
pequeno, em um subúrbio pobre, podia cuidar melhor das crianças. Mas...e daí? 
O dia acabou, ela na cama, o marido ainda estudando alguma coisa na sala, a filha febril deitada a 
seu lado. Quem sabe esta noite você troca e dorme na cama dela? 
O pai concordara, beijara as duas e ficara na sala, ia dormir, mais tarde, tinha de rever problemas do 
escritório. 
Adormeceu, a mãe com sua filhinha, em seu último pensamento de vigília revendo os chavões, os 
filosofismos baratos e as teorias ineficazes, dos quis sempre sorria um pouco, numa auto ironia permanente. 
Estará certo termos tudo isso – que é apenas o confortável sem luxos – enquanto outros não têm 
nada? Como se resolverá isso, no mundo todo? Viajara uma, duas vezes ao exterior, e vira, em bairros de 
grandes cidades dos chamados países adiantados, miséria parecida, embora em menor quantidade, talvez 
não tão espalhada e evidente. 
Como resolver? Conhecia algumas teorias, fizera faculdade, lia jornais, falava com marido, colegas, 
discutia. Passara pelas fases de alienação, participação, movimentos estudantis, passeatas, arrogância; há 
algum tempo julgara-se dona da verdade. 
Depois, tivera de se adequar: casamento, marido, filhos, desejo de lhes dar conforto e segurança, 
formação de seu ninho, sua casa, sua vida. Os primeiros anos tinham sido muito difíceis. Mas em nenhum 
deles tivera que pedir esmola nas ruas... 
Mais tarde o primeiro apartamento, pequeno e num bairro apenas razoável. Sonhavam, 
remotamente, num uma casa num bairro sossegado, mas isso estava distante. 
E os que não tinham nada? Nem casa? Morando em um barraco, onde entravam chuva, frio, fome 
ou vagando pela rua? Vira coisas assim de perto quando estudante de faculdade, faziam campanhas para 
arrecadar comida e roupa, ensinavam higiene às mulheres nas favelas. De lá para cá, sabia, a pobreza se 
multiplicara espantosamente –e a riqueza também. 
Quando deslizou para dentro do sono, pensou ainda num lampejo que agora, ao menos, ia esquecer, 
por algumas horas ia esquecer. 
No dia seguinte decidiu que ia aumentar o salário da empregada: a caridade não começa em casa? Dava 
para aumentar, tirando algum gasto aqui e ali, os dispensáveis: mas, depois de algum tempo, percebeu que a 
moça gastava em batom e saídas com as amigas o que deveria reverter para as suas três crianças. 
Combinou com ela que daria material para reformar a casinhola 
Que dividia com a mãe e vários irmãos numa vila; mas, depois de comprarem o material, passaram-
se meses com tudo jogado diante da casa bamba, porque nem o namorado nem o irmão tinham vontade 
para arrumar as coisas; tinham bebido demais e o fim de semana se passava com bobagens. 
Queixou-se disso tudo ao marido, e ele, olhando por cima dos óculos e da papelada que 
inevitavelmente levava para casa, perguntara: 
- Quem sabe bebem porque estão sem esperança? quem sabe a gente faria o mesmo? e eu acho que 
você precisa sair dessa fase; ultimamente parece que só fala disso, da pobreza, da injustiça. Todo mundo 
sabe que elas existem, mas não há nada a fazer. 
Outra vez, ele respondeu, irritado: 
- Olha, tudo isso é velharia, é clichê, é frase feita. Você está se transformando num clichê ambulante. 
Faça política – acrescentou com ironia. Quem sabe aí está a solução? 
Por algum tempo, ela convenceu-se de que ele tinha razão e foi quase feliz. Viveria como suas 
amigas, as colegas: vendo o que estava errado, tentando administrar seu pequeno cotidianopessoal e 
entregando o resto à sorte. No fim tudo tem jeito, pensava. E o que eu posso fazer? Nessa manhã tudo 
funcionou melhor, o cinto de segurança deslizou fácil, sentia-se bem-disposta, o café da manhã com o 
marido e a filha fora divertido, ela olhava com um contentamento visceral as coisa e pessoas que amava. 
Na primeira parada, mal botou o carro em ponto morto, estendeu um pacote de biscoitos para a primeira 
mãozinha na janela, mas muitas outras se estenderam, as crianças quase subiam no capô do carro, ela teve 
de fechar a janela. Fazia algum tempo usava desse recurso: em lugar de dinheiro, coisas de comer Mas 
algumas crianças reclamavam, queriam “trocadinhos”, às vezes, dinheiro ou biscoitos, os maiores tiravam 
tudo dos menores, aos tapas. 
Numa das ocasiões, tentou censurar um meninote que tirava biscoitos de umas crianças. Ele parou 
e, olhando para a janela do carro, que ficava à altura de seus olhos – não pareceu nem assustado nem teve 
pressa -, então lançou-lhe na cara: - sua vaca! 
Ela, resolveu, mais uma vez, esquecer, tapar com raiva e com distrações aquele buraco no peito. Mas 
de noite, no escuro do quarto ou das pálpebras fechadas, as bocas abriam-se de fome, os olhos fuzilavam de 
acusação: todo o cortejo dos que não podiam ter nem esperança. 
Fora uma mulher discreta e absolutamente normal, mediana, em tudo; ninguém – a não ser marido 
e alguma amiga mais chegada – adivinharia seus conflitos interiores, pois aparentemente sua vida era uma 
rotina calma, e boa. Casal amoroso, filha pequena frequentando uma boa creche, amizades, sonhos. 
De repente, diziam que fora de repente, de um dia para o outro e sem explicação, largou tudo. 
Largou largado mesmo, sem aviso prévio. Deixou a filha com a mãe, disse que ia descansar o fim de semana 
na fazenda de uns amigos. Para o marido, deixou um bilhete meio desconexo. Descobriram de pois que tinha 
até fechado sua conta no banco, sumira com dinheiro e tudo. Não tinha havido nenhuma suspeita mais séria 
de que ela não estivesse bem, nem tempo de botar em clínica, nada. Nem um telefonema para sabe da 
criança, da família. Desapareceu como se o mar a tivesse tragado. 
Que sombria força, que desespero estranho, que insuspeitado torvelinho interior arrancara essa 
mulher comum de sua casa e de seu marido, separara essa mãe terna de sua filhinha? Pensaram em 
sequestro, em acidente, em suicídio, mas o tempo foi passando sem nenhum rastro, nenhuma explicação 
razoável. Desaparecera, sumira, com certeza estava morta. Sem sepultura, sem missa, sem luto normal. Foi 
considerada morta. 
Uns três anos de pois – polícia, parentes e amigos há muito tendo aceitado aquele desaparecimento 
– alguém jurou que a tinha visto numa esquina, mãos dadas com duas crianças de rua. Descolorida e 
trapenta, cabeça quase raspada, olhar vazio. Recolhia esmola, sentava na beira da calçada e dividia com as 
crianças o pão, a bolacha, as moedas. Nem falava nem ria com elas, pouco olhava também. Outro a viu por 
ali, mais outro, no fim começaram a procurar, a esperar por ela, mas era arisca: chegava, fugia. Ao escurecer, 
ninguém a via mais. 
A notícia chegou à família: os pais, incrédulos; o marido, agora com a vida refeita, tinha nova mulher, 
que o ajudava a criar a menina, no começo nem quis ouvir falar. 
Ninguém queria insistir, afinal já tinha havido tanto sofrimento. Podia ser parecença, claro, afinal ela 
era do tipo comum, nem alta demais, nem baixa, moreno-clara, magrinha sempre fora, apenas o cabelo até 
o ombro, pele e roupa bem-tratadas. 
Mas, depois de alguns meses, um amigo resolveu que era demais: muitos já a tinham visto, alguns a 
chamavam pelo nome, uns achavam ter percebido alguma reação, outros pareciam confusos. Fosse como 
fosse, aquele decidiu falar: 
- Olha, eu sei que estou parecendo doido, mas acho, ou melhor, tenho certeza de que vi sua mulher, 
quer dizer, sua ex- numa esquina, até meio perto de sua antiga zona, aquele apartamento onde moravam, 
quando ela sumiu. Olha, posso jurar que era ela, quis chamar o nome, mas aí abriu um sinal e tive de seguir. 
Mas tem gente que diz que ela reagiu quando ouviu seu nome, só que fugiu. 
O marido negou, mas, depois que várias pessoas o procuraram, pensou nisso por muito tempo e 
aconselhou-se com a atual mulher. 
- É a mãe da menina. E, se eu vejo essa mulher, claro que me convenço de que não é ela, e tudo 
acaba de uma vez. O que você acha? 
Ela teve certeza de que era confusão, semelhança, desejo de que ela reaparecesse, fora muito 
querida de todos, mas concordou: pelo menos, se ele visse a moça na rua, ia se convencer de que não era 
ela. 
O homem então começou a passar pelas antigas esquinas, procurando nos bandos de pedintes 
alguém que fosse adulta – alguém de rosto fino, olhos grandes, cabelo quase raspado, mãos dadas com as 
crianças. 
Ao fim de um tempo, desistiu: não vira ninguém que correspondesse à descrição e não comunicou o 
fato à polícia para que reabrisse o caso :era loucura. 
Era meio da noite. A moça deitada no chão do barraco ao lado de várias outras, homens, mulheres e 
crianças embolados, revirava-se sem poder dormir, apesar do cansaço. Talvez a fome a mantivesse alerta; 
talvez antigas lembranças, de um quarto, cama de colchão macio, ao lado de um marido limpo, no berço 
perto uma criança cheirosa, saudável, protegida, que ela deixara, há uns três anos para dar sua vida pelas 
crianças abandonadas; nas favelas, nos bairros obscuros, experimentara de tudo. Alugara uma casinha 
modesta para acolher mães com crianças; a maior parte não queria vir, ou os companheiros vinham apanhá-
las, e ameaçaram-na de morte ou vingança. Tentara, então, reunir mulheres para lhes ensinar higiene e 
cuidados com as crianças, algumas horas por semana que fosse; a maioria desistira, não tinham tempo para 
isso; outras voltariam ao desalento do seu cotidiano duro demais. 
Quando o dinheiro tinha acabado, pensou em voltar para sua casa, mas já não pertencia àquele 
mundo limpo e organizado. Talvez tivesse feito tudo errado. Talvez fosse preciso começar de outro jeito, 
mas ninguém lhe tinha apontado um jeito certo. Sentia vagamente que seus pensamentos eram difusos e 
enevoados, que se descontrolava, se perdia, naufragava, sem orientação, sem ajuda, sem ter a quem dar as 
mãos. 
Havia se tornado uma daquelas pessoas de rua, de barraco, de fome, de sujeira e de doença, cujo 
coração, cuja esperança, cujo brilho se recobriam de camadas e camadas de desânimo e isolamento. 
No começo devorada por uma do profunda, passou a postar-se nas esquinas, como uma delas; 
depois transformou-se nesses olhos vazios, coração abafado, memória sepultada. Não soubera o jeito certo 
de agir, dedicara-se em vão, desordenadamente e, quando descobrira que esse não era o caminho, não via 
mais caminho algum para si: não tinha quem lhe desse as mãos para fazer nada de concreto e eficaz. 
Finalmente, entregou-se, desistiu. 
Mas, naquele dia, ela o tinha visto: no carro, no sinal vermelho, com a menina no banco de trás, 
segurando algum bicho de pelúcia, e ao lado outra mulher: moça, falando com ele animadamente, 
sacudindo os cabelos. Riram os dois, ao mesmo tempo. E ele nem olhou para os lados. 
Ela não sentiu vontade de voltar, esquisito aquilo. No começo, a saudade a apunhalara cada vez que 
respirava, tinha pensado em morrer; agora estava embotada. Aos poucos, o coração se aquietara, a 
memória recobrindo-se de uma água barrenta e parada, e ela passara a ser um daqueles deserdados da vida. 
Nessa noite também, as águas escuras taparam a memória, e afinal ela adormeceu sem maior 
sofrimento. 
Na manhã seguinte, os jornais noticiaram todas as mortes por violência, por fome, por solidão, por 
miséria, por injustiça, por cegueira. Muitas ninguém descobririanunca; muitas era doloroso demais publicar; 
mesmo aquelas, comentadas publicamente, eram tantas que, por fim, se recobriam umas às outras, se 
tornavam cotidianas, comuns, banais, faziam parta da vida. 
Em suas belas casas cercadas de altas grades, em seus apartamentos guardados por porteiros 
fardados, em seus escritórios de vidro e aço, as pessoas diziam: 
- A vida é assim, e vai ser sempre assim. Se há alguma coisa a fazer, não é conosco; é coisa do 
governo; é da prefeitura; é a reforma agrária, a tributária, é a educação, a saúde, são os políticos, os 
empresários, é a igreja, é a caridade de cada um com cada um, é a redistribuição de renda, é uma fatalidade 
e, sendo assim em todos os países, nada vai mudar. 
Ou então diziam que tinha de ser uma solução individual: cada um que distribuísse evangelicamente 
as suas coisas e fosse viver no meio dos pobres, dos miseráveis. Isso seria um caminho? 
Ninguém realmente fazia nada, exceto alguns idealistas, sonhadores talvez: porque o ônibus vinha 
chegando, o ponto precisava ser batido, o almoço comprado ou feito, a conta paga, a escola escolhida, a 
noite dormida, a vida vivida, com mais ou menos esforço, com mais ou menos dificuldade e com alguma 
esperança. 
Havia os compromissos, a eficiência, a competência e a competição; havia ainda o pouco tempo para 
os amores, para o carinho, para a conversa, para o ombro amigo, para a confiança e a esperança. Havia 
poucas organizações, poucos grupos, pouca boa vontade, pouco ideal firme, pouca generosidade de alma. O 
olhar raramente erguia um vôo muito tímido para além dos próprios muros, da própria conta bancária, dos 
próprios laços de família e amizades: o ser humano eram assim, diziam, nada havia a fazer. 
Aumentavam os bandos de gente nas ruas, nas favelas, nos desertos, nas beiras de estrada, debaixo 
de pontes e viadutos, e as facas nas trevas, e os olhos no escuro, e as bocas abertas para pedir e acusar, ou 
apenas para respirar mais uma vez, e empurrar a vida, e vivê-la assim mesmo, do jeito que desse. 
No barraco, ela dormia sem sonhar. Antes de pegar no sono, tinha lutado debilmente: contra a 
fome, contra o pequeno espaço entre aqueles corpos murchos e os odores ruins, contra os rostos do marido 
e da filha, contra seu próprio destino – que insistiam em aparecer no escuro do quarto ou das pálpebras 
fechadas. 
Lya Luft.

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