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75 O BEIJO DA PALAVRINHA: UM CONTO MÁGICO À LUZ DA COSMOVISÃO AFRICANA Claudia Regina Bergamim∗ Introdução O conto O beijo da palavrinha, do escritor moçambicano Mia Couto, recolhido entre contos tradicionais africanos e recontado pelo autor, faz parte de uma coleção de livros destinados ao público infanto-juvenil, da Editora Língua Geral. A coleção visa recuperar histórias da tradição oral africana, reescritas por autores africanos e ilustradas por artistas plásticos também africanos e contemporâneos. O resultado é uma coleção de livros infanto-juvenis, com o sugestivo nome de “Mama África”, de apresentação muito parecida no formato (amplo, fino, quadrado, com muitas gravuras acompanhando o texto escrito), com os livros de histórias infantis das quais me recordo (compostas, basicamente, por contos de fadas dos irmãos Grimm e também por lendas e histórias do folclore brasileiro). À primeira vista, o formato de um livro com texto desta natureza foi o sinal imediato de reconhecimento e lembrança com aqueles títulos de contos de fadas e do folclore brasileiro, até porque as ilustrações de Malangatana Valente, para a obra de Mia Couto, de um colorido forte e marcante, nada suave e celestial, com contornos por vezes sombrios, e as personagens de olhos tristes e desconfiados certamente não fizeram recordar os belos príncipes donos de ∗ Doutoranda em Estudos Literários na Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho, UNESP / Araraquara. 76 magníficos castelos, com os quais sempre acabavam as lindas princesas daquelas histórias tantas vezes ouvidas. Nem por isso, entretanto, O beijo da palavrinha deixa de ser uma história para o público infanto-juvenil, repleta de magia e encantamento. Aliás, ainda que a coleção “Mama África” tenha este objetivo, percebemos que os textos que a compõem ultrapassam tal categorização e podem, portanto, servir de objeto de leitura para um outro público. Em virtude disto, propomos ler este conto africano e, dentro das limitações esperadas, devido ao recente conhecimento em relação à cultura africana, tentar elucidar alguns elementos representados na narrativa que traduzem, de certa forma, essa magia peculiar ao universo moçambicano. Para tanto, está análise será dividida em duas partes. Na primeira parte, serão apresentados aspectos da cosmovisão africana, a partir de textos de estudiosos africanos. Na segunda parte, será feita a análise do livro, embasada por alguns pontos elucidados no primeiro capítulo e considerados significativos na tradição literária configurada pelo conto. Cosmovisão africana Este capítulo destina-se a esclarecer alguns pontos do pensamento africano, relacionados com a maneira de os povos daquele continente entenderem aspectos que dizem respeito ao funcionamento do mundo. Antes de dar início aos esclarecimentos sobre esses aspectos, cumpre salientar que, em se tratando dos países africanos, “a dominante, em matéria de cultura, desloca-se do escrito para o oral” (AGUESSY, 1977, p. 95), diferentemente do que ocorre com o pensamento ocidental, o qual pode orientar-se a partir das mais diversas fontes de referências escritas. Isso implica, pois, que a tradição africana seja veiculada, principalmente, pela oralidade, e os textos teóricos referidos neste trabalho apontam para elementos da cosmovisão africana depreendidos da tradição oral. Dentre esses elementos, serão destacados aqui a questão da ancestralidade e a importância da palavra, uma vez que tais 77 elementos serão relevantes para o posterior entendimento que se dará ao conto O beijo da palavrinha. Ancestralidade: força vital Em África, o respeito ao idoso está ligado com a visão cíclica da vida, e a velhice, diferentemente do que ocorre no mundo ocidental, é uma fase privilegiada e é almejada por todos. Nsang O’Khan Kabwasa, estudioso das concepções sociais e culturais africanas, discorre sobre o papel das pessoas idosas em sociedades africanas. Kabwasa explica que, nessas sociedades, ser idoso é ter papel específico e importante, pois “os velhos são o alicerce da vida na aldeia” (KABWASA, 1982, p. 14). Kabwasa chama ainda a atenção para a “visão animista africana do universo, segundo a qual a vida é uma corrente eterna que flui através dos homens em gerações sucessivas” (Ibidem). Nessa concepção, há o elo com os valores tradicionais, fazendo com que os seres viventes estejam interligados, mesmo antes do nascimento, aos que vieram antes deles e, também, aos que virão depois deles. Segundo Kabwasa, Nesta visão africana de mundo, ligada à força vital, a velhice é uma etapa da existência humana a que todos aspiram, pois a crença na sobrevivência, na continuidade da vida e no culto dos antepassados privilegia os anciãos, que são o vínculo entre os vivos e os mortos (Ibidem). Trata-se, portanto, de uma concepção circular em que estão dispostos o nascimento, a morte e o novo nascimento. Ou seja: a criança tornar-se-á um mais velho, que será um antepassado, o qual, “como força vital renascerá para completar o círculo de vida do universo” (Ibidem). Dessa forma, a força vital transita no mundo dos vivos e no mundo dos antepassados. As três idades do homem têm funções específicas. Na infância, ocorre a aprendizagem; na maturidade, a produtividade; e na velhice, a sabedoria. Os velhos são os sábios, e a vida espiritual deles se intensifica. São procurados para opinar em vários domínios do saber. Estes também são temidos e, caso algum ancião esteja em desacordo com a família, seu poder pode atingi-lo. Nesse caso, ele se torna um 78 feiticeiro e é afastado da aldeia. Entretanto, envidam-se esforços entre os familiares para que isso não ocorra e para que o ancião se acalme. Pelo que se pode concluir da explanação de Kabwasa, dentro dessa perspectiva animista, a morte não significa o fim de uma pessoa, pois, toda vez que o ensinamento de um ancestral é repetido por um ancião a um jovem, ocorre um equilíbrio das forças vitais. É possível depreender, então, a partir do estudo de Kabwasa, que a visão animista africana pressupõe o equilíbrio que existe entre o mundo dos antepassados e o mundo dos vivos. Não há, conforme ocorre no pensamento ocidental, um estranhamento entre esses dois mundos. Kabengele Munanga, antropólogo e professor da Universidade de São Paulo, também escreve sobre a importância da ancestralidade no universo africano, descrevendo a relação de linhagem e parentesco como forma de organização. Segundo ele, em África, a criança deve receber os “ritos de iniciação”, que a preparam para o mundo adulto. Além disso, a criança tem muito contato com a mãe e é dependente do sistema de linhagem. Os casamentos, inclusive, são realizados tendo em vista essa questão da linhagem. Os sistemas de “matrilinearidade” e de “patrilinearidade” são fundamentais para identificar a linhagem da criança, a qual se liga a seus ancestrais por meio desses sistemas de parentescos. Essa ligação com os ancestrais é forte e significativa em África. Segundo Munanga, “Os vivos são unidos aos mortos porque é através desses que a força é transmitida. São unidos entre eles, pois todos participam da mesma vida” (1986, p. 61). Como se pode notar, pela síntese das idéias desses dois pensadores africanos, predomina, na concepção africana de mundo, uma visão que pressupõe um equilíbrio natural entre as fases da vida e a ancestralidade. Esse equilíbrio garante ao ser humano força e sabedoria necessárias para poder viver e, também, morrer bem. Palavra: Força Vital Amadou Hampâté Ba (1982), estudioso de questões africanas, discorre sobre a importância da palavra no mundo africano.Segundo 79 ele, a palavra é “o instrumento de criação”, é o instrumento que coloca em movimento o “poder”, o “querer” e o “saber” (1982, p. 183), três capacidades colocadas no homem pelo Ser Supremo, Maa Ngala, criador de todas as coisas. De acordo com Hampâté Ba, a palavra é “força” e impulsiona o ser humano, criando “um vínculo de vaivém gerador de movimento e ritmo, conseqüentemente, de vida e ação”, e esse vaivém pode ser representado pelos pés do tecelão, cujos gestos “representam a criação em sua ação: suas palavras acompanham seus gestos; é o próprio cantar da vida” (Ibidem, p. 197). A palavra humana faz vibrar as forças latentes, pode movê-las, agindo como “eco” da palavra de Maa Ngala, o Ser Supremo. A força da palavra humana atua tanto para “preservar” como para “destruir” a paz. Ou seja: sua força pode ser canalizada na direção do bem ou do mal, daí o fato de a palavra ser “por excelência, o grande agente ativo da magia africana” (Ibidem, p. 186). O crítico malês comenta o ritual do trabalho artesanal, mais especificamente do tecelão e do ferreiro, para explicar o poder criador da palavra, pois, na sociedade africana tradicional, o trabalho artesanal baseava-se em conhecimentos sobrenaturais transmitidos entre as gerações, a partir de uma revelação inicial. Segundo ele, “os gestos de cada ofício reproduzem, no simbolismo que lhes é próprio, o mistério da criação primeira que (...) se ligava ao poder da Palavra” (Ibidem, p. 196). De acordo com Hampâté Bã, (...) o artesão tradicional, imitando o Maa Ngala, “repetindo” com seus gestos a criação primordial, não realizava um “trabalho” no sentido puramente econômico da palavra, mas uma função sagrada (...) Na intimidade da oficina ou da forja, participava do mistério renovado da criação eterna (Ibidem, p. 198). Kabengele Munanga também discorre sobre a importância da palavra na cosmogonia africana. Segundo ele, “pelo uso da palavra e do gesto, o homem pretende apropriar-se de uma parte importante da força que irriga o universo” (MUNANGA, 1986, p. 61). Ainda de acordo com Munanga, as “palavras são eficazes, pois carregam energias” (Ibidem). O africano acredita na existência de uma 80 força cósmica, que a ele pode ser integrada por meio da palavra. O universo africano pressupõe, assim, uma “simbiose” entre seres e coisas. Diz Munanga: O mundo é um conjunto de forças hierarquizadas: deuses, ancestrais, mortos da família, chefes, pais etc. até as crianças. Através dessas categorias circula uma energia vital, na direção dos deuses, passando pelos ancestrais que são intermediários entre os vivos e os mortos até chegar aos mais jovens, comum dos mortais (Ibidem). Essa força vital pode ser diminuída ou aumentada, por meio de práticas mágicas. Segundo Munanga, a morte representa “a diminuição da força vital”, mas a morte “não tem caráter trágico” (Ibidem). No universo africano, a morte implica somente no desaparecimento do corpo do campo de visão de todos, pois, como afirma Munanga, o ser que morre está em ligação com (...) entidades preexistentes que sobrevivem a ele: linhagem, sociedade, mundo. Como nunca se separou completamente deles durante a vida, ele não percebe a morte como uma ruptura total. Logo, ela não representa um corte, e sim uma mudança de vida, uma passagem para outro ciclo; o morto entra na categoria dos ancestrais, participando de maior fonte energética (Ibidem, p. 62). É possível concluir, pela retomada das idéias de Hampâté Bã e de Kabengele Munanga, que, na cosmovisão africana, a força da palavra é fundamental para o homem dispor da energia vital que flui pelo universo. Veremos, a seguir, como esta força vital se transfigura, no conto O beijo da palavrinha. Um conto mágico Conforme já apontado na introdução deste estudo, O beijo da palavrinha é um conto do continente africano, reescrito pelo escritor moçambicano Mia Couto. Graças à “força realizadora” (JOLLES, 1976, p. 195) de Mia Couto enquanto escritor, aliada à sua fama de 81 “griot dos tempos atuais” (MARTINS, 2008, p. 117), é possível ter acesso a essa mágica história oral africana.1 O conto narra a história de Maria Poeirinha, “uma menina que nunca vira o mar”, que “só ganhara um irmão” e que vivia com a família, numa aldeia de grande miséria. Um dia, chega à aldeia Jaime Litorâneo, tio de Maria Poeirinha, que fica indignado diante do fato de a família nunca ter visto o mar. Maria Poeirinha, que “tinha sonhos pequenos, mais de areia do que castelos”, contrai grave doença. Jaime Litorâneo, imediatamente, aconselha que a menina seja levada para conhecer o mar e, assim, curar-se da doença. Entretanto, ela estava muito fraca, e a “salvadora viagem” até o mar não podia ser realizada. Zeca Zonzo, irmão de Maria Poeirinha, “desprovido de juízo”, como todos diziam, decide mostrar o mar para a irmã. Zeca pega papel e caneta, e, em vez de fazer um desenho com a imagem e as cores do mar, ele escreve as letras da palavra MAR e faz com que Maria Poeirinha toque, com os dedos, cada letra da palavra. Diante do espanto de todos, a menina conseguiu vislumbrar o mar, e, conforme as palavras de Zeca, “se afogou numa palavrinha.” Jaime Litorâneo: A porta para o infinito Pela linha que se tenta estabelecer nesta análise, O beijo da palavrinha pode ser interpretado à luz de alguns elementos da cosmovisão africana. Tais elementos consistem, mais especificamente, na figura do idoso e na importância da palavra, e estão associados ao conhecimento e à apropriação do equilíbrio vital, a força que garante ao homem a sabedoria da vida e da morte. Este estudo trata inicialmente da personagem Jaime Litorâneo, tio de Maria Poeirinha, um homem que conhece o mar. Para ele, o mar 1 Segundo Hampâté Bâ, “(…) a música, a poesia lírica e os contos que animam as recreações populares, e normalmente também a história, são privilégio dos griots, espécie de trovadores ou menestréis que percorrem o país ou estão ligados a uma família” (1982, p. 202). 82 “havia aberto a porta para o infinito”. Sob seu olhar, o leitor depreende a lição de que o mar representa a liberdade e também a solução para os sofrimentos da vida. Acredita-se que a figura de Jaime Litorâneo pode ser associada à figura do ancião, que, na tradição africana, é símbolo de respeito, “pois a crença na sobrevivência, na continuidade da vida e no culto dos antepassados privilegia os anciãos, que são o vínculo entre os vivos e os mortos” (KABWASA, 1982, p. 14). Quando Maria Poeirinha adoece, Jaime Litorâneo afirma que a salvação para sua sobrinha é fazer com que ela veja o mar, pois apenas o encontro com o mar pode ajudar a menina. Ele explica que o mundo só faz sentido para quem conhece o mar. A luz das águas profundas do oceano é tão importante quanto a luz solar, diz ele. A pessoa, segundo o tio, pode ser pobre, mas tem que conhecer o mar, e os males de sua família, como a “fome, a solidão, a palermice do Zeca”, podiam ser decorrentes da “falta de maresia”. À luz desses conhecimentos, Jaime Litorâneo parece ilustrar o que diz Kabwasa, quando afirma que Os velhos continuam a assumir funções importantes na sociedade, funções que apelam para seus conhecimentos das tradições em vários domínios: jurídico, religioso, médico-mágico, educacional e econômico (KABWASA, 1982, p. 14). Parece ser esta a dimensão do tio de Maria Poeirinha, posto que ele tem certeza da força do mar, e mesmo quando o questionam sobre o poder de cura das águas salgadas, não hesita e insiste para que “Metam a menina no barco, que a corrente a leva em salvadora viagem.” Essa orientação de Jaime pode ser explicada pelo conhecimentoque ele, na condição de ancião, possui da força vital que une vivos e mortos. Assim, a salvação de Maria Poeirinha, representada pela visão do mar, da qual fala Jaime, pode significar a transformação da menina, a passagem para outro plano, o mundo dos mortos, quem sabe, pois, na cosmovisão africana, “os vivos são unidos aos mortos porque é através 83 desses que a força é transmitida. São unidos entre eles, pois todos participam da mesma vida” (MUNANGA, 1986, p. 61). Conhecer o mar, conhecer, segundo as palavras de Jaime Litorâneo, “do outro lado do horizonte uma luz que fazia a espera valer a pena” e “que nasce não do sol, mas das águas profundas”, pode significar o conhecimento da força que emana do plano dos mortos, pois a morte, na cosmovisão africana, “não representa um corte, e sim uma mudança de vida, uma passagem para outro ciclo” (MUNANGA, 1986, p. 62). Tendo em vista tais afirmações, acreditamos, pois, ser possível associar a personagem Jaime Litorâneo à figura do ancião da tradição africana, conhecedor do segredo da força vital, que flui, naturalmente, no plano dos vivos e no plano dos mortos. Parece possível, também, associar essa força vital, sinônimo de equilíbrio, ao conhecimento decorrente dos ensinamentos sobre o mar, a “porta para o infinito”, pela qual deveria passar Maria Poeirinha, em “salvadora viagem”. Tais elementos podem ser recuperados com base no que se representa na narrativa, daí a recuperação de imagens ligadas à ancestralidade, um dos elementos da cosmovisão africana. Neste caso, a ênfase foi dada à figura de Jaime Litorâneo e aos ensinamentos deste homem sobre o mar. Veremos, em seguida, uma leitura a respeito da transformação operada pela palavra “mar” (objeto indicado pelo tio como fonte de cura da menina) na trajetória da personagem de Maria Poeirinha. M...A...R... : a força da palavra Conforme visto no tópico anterior, o mar representa, segundo Jaime Litorâneo, a libertação de Maria Poeirinha do sofrimento. Entretanto, na trama, a saúde extremamente debilitada da menina impede que ela seja colocada em um barco e enviada, pelo rio, rumo ao mar, conforme deseja o tio. Entra em cena, então, a personagem Zeca Zonzo, irmão de Maria Poeirinha, cujas idéias “voavam como balões em final de festa”. Zeca 84 decide mostrar à irmã o mar e, com papel e caneta, dá início à salvadora missão anunciada pelo tio.2 Zeca escreve na folha a palavra MAR, “a palavra inteira e por extenso”. Ninguém entendeu o que queria Zeca, e Poeirinha disse ao irmão que era inútil tentar, pois nem letra ela distinguia. Ele, entretanto, “tomou na sua mão os dedos magritos de Maria Poeirinha e os guiou por cima dos traços que desenhara.” Ressalta-se aqui a ênfase dada no conto à cena em que Zeca faz Maria Poeirinha “brincar” com a palavra MAR. A descrição da cena lembra um ritual, em que cada etapa consiste em fazer a menina decifrar os segredos da palavra. Esse procedimento, ou esse ritual, da palavra praticado por Zeca, faz pensar na importância desta no universo africano. Segundo Hampâté Bã, Nas tradições africanas (...) a palavra falada se empossava, além de um valor fundamental, de um caráter sagrado vinculado à sua origem divina e às forças ocultas nela depositadas. Agente mágico por excelência, grande vetor de “forças etéreas”, não era utilizada sem prudência. (HAMPÂTÉ BÂ, 1982, p. 182). Hapâté Bã, no ensaio “A tradição viva”, refere-se à importância da oralidade na tradição africana. Julga-se pertinente, porém, fazer uso das idéias do pesquisador para embasar esta leitura, que toma a representação do significado da palavra MAR como elemento transformador no conto. Embora, no caso da história de Maria Poeirinha, Zeca utilize o recurso da escrita da palavra, lançando mão, inclusive, do papel e da caneta, a serviço de sua imaginação fértil, parece possível, também, 2 A operação realizada por Zeca, a partir da elaboração da imagem representada pela escrita das letras da palavra mar, remete-nos ao pensamento de António Martins sobre a técnica do escritor Mia Couto, o qual “mantém, ao longo de sua obra, uma proximidade muito grande com o texto poético” (2008, p. 39). 85 pensar na magia3 representada para a menina, que se transforma sob o efeito da palavra MAR. Essa transformação pode remeter à eficácia da palavra, no universo africano, como elemento capaz de transmitir energia, como elemento capaz de integrar homem e força do universo (MUNANGA, 1986, p. 61). É importante recordar a crença do africano de que, por meio de práticas mágicas e de feitiçaria, a força vital da palavra pode aumentar ou diminuir, o que, então, leva a refletir sobre o efeito mágico da palavra MAR, na forma como ela foi elaborada por Zeca. Zeca faz, pois, a menina pensar numa imagem, a cada letra que toca. Assim, Poeirinha toca o “M”, e imagina a onda do mar, como a onda do rio da aldeia em que ela mora. Ela toca o “A” e imagina uma gaivota, uma ave que ela já conhece. Ela toca o “R” e imagina uma rocha, como a pedra que ela também sabe o que significa. “Já se escuta o marulhar”, anuncia a personagem Jaime Litorâneo, diante da constatação de que Maria Poeirinha acompanha a imaginação de Zeca, conseguindo, quem sabe, a salvação de que falara o tio e ilustrando, talvez, aquela explicação de que “Pelo uso da palavra e do gesto, o homem pretende apropriar-se de uma parte importante da força que irriga o universo” (MUNANGA, 1986, p. 61). Assim, no leito da morte, Maria Poeirinha vê e é “beijada pelo mar”. A palavra MAR transforma Maria Poeirinha, posto que, diante da leitura pelo toque, pelo gesto e pelo exercício da imaginação criadora, parece que ela se ergue do leito em que estava e segue no rio, “debaixo do manto feito de remoinhos, remendos e retalhos.” A descrição final da transformação de Poeirinha retoma a imagem que a menina costumava ter em sonhos. Pode-se pensar que ela está realizando o sonho de ir embora. Porém, essa partida remete-nos à passagem de Maria Poeirinha para outro plano, o plano dos mortos, o qual, na cosmovisão africana, constitui uma seqüência natural na 3 De acordo com Hampâté Bâ, em África “a palavra ‘magia’ (...) designa unicamente o controle das forças, em si uma coisa neutra que pode se tornar benéfica ou maléfica conforme a direção que se lhe dê”. (1982, p. 186). 86 ordem dos acontecimentos da vida, não um “corte”, mas uma “mudança” (MUNANGA, 1986, p. 62). Poeirinha “foi beijada pelo mar. E se afogou numa palavrinha.”, explicará Zeca sobre o que aconteceu à irmã, que, depois daquele dia, será recordada pela imagem da fotografia. Pela imagem do MAR, a menina segue seu rumo nas águas. Pela imagem da foto, Poerinha permanece presente aos olhares dos seus. Considerações finais O beijo da palavrinha foi interpretado, nesta análise, à luz de elementos da cosmovisão africana, que se encontram representados na versão literária desta narrativa, recolhida da tradição oral africana e reescrita por Mia Couto. Assim, a partir do entendimento do papel do ancião e do valor atribuído à palavra na sociedade africana, foi possível entender a figura da personagem Jaime Litorâneo e a transformação operada pela palavra “mar”, na vida e na história de Maria Poeirinha. Jaime Litorâneo revela seus ensinamentos sobre o poder do mar e, através deles, fez com que a menina “renascesse tomando conta daquelas praias de areia e onda. E descobrisse outras praias dentro dela”. Neste sentido, pode configurar-se como o ancião do universo africano, capaz de fazer conhecer aos homens o mistério da força vital. Além disso, a transformaçãosofrida por Maria Poeirinha, graças à criatividade de “mano Zonzo”, parece possível de ser relacionada também com o conhecimento da força cósmica que pode ser atingida pelo homem, graças ao efeito da palavra. Nessa história, então, a protagonista não foi contemplada com a riqueza, o castelo e o príncipe das conhecidas histórias para crianças do mundo ocidental. Maria Poeirinha, a princesa do “manto feito de remoinhos, remendos e retalhos”, foi contemplada com a sabedoria, com o conhecimento da força vital que une vivos e mortos no universo africano. Assim, neste cenário mágico, ela nos ensina um algo mais não só sobre a cultura africana, mas sobretudo sobre a vida. Afinal, esta é feita mais do que simplesmente de castelos e príncipes, é feita também 87 de sonhos, de desejos, de anseios e de criação. E não são estes bens tão alvissareiros quanto castelos e príncipes? Aí parece estar a sua riqueza, aí parece estar o seu mágico legado. Referências AGUESSY, Honorat. “Visões e percepções tradicionais”. In : BALOGUN, Ola et alii. Introdução à cultura africana. Trad. Emanuel L. Godinho, Germiniano C. Franco e Ana Mafalda Leite. Lisboa: Edições 70. 1977, p. 95-136. BÂ, Amadou Hampaté. “A tradição viva”. In: História Geral da África I. Metodologia e pré-história da África. Trad.: Beatriz Turquetti et alii. São Paulo: Ática, 1982, p. 181-218. COUTO, Mia. O beijo da palavrinha. Ilustrações: Malangatana Valente. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2006. ELÍADE, Mircea. Mito e realidade. Trad.: Pola Civelli. São Paulo: Perspectiva, 2002. ______. Mito do eterno retorno. Trad.: José Antônio Ceschin. São Paulo: Mercuryio, 1992. JOLLES, André. Formas simples. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Cultrix, 1976. KABWASA, N. O. “O eterno retorno”. Correio da Unesco. (Brasi). Ano 10. n. 12. p. 14-15, dez. 1982. MARTINS, António. O fantástico nos contos de Mia Couto. Porto: Papiro Editora, 2008. MUNANGA, Kabengele. Negritude: usos e sentidos. São Paulo: Ática, 1986.
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