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CONTO O BEIJO DA PALAVRINHA

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75 
 
 
 
 
O BEIJO DA PALAVRINHA: 
UM CONTO MÁGICO À LUZ DA COSMOVISÃO AFRICANA 
 
Claudia Regina Bergamim∗ 
 
 
Introdução 
 
O conto O beijo da palavrinha, do escritor moçambicano Mia 
Couto, recolhido entre contos tradicionais africanos e recontado pelo 
autor, faz parte de uma coleção de livros destinados ao público 
infanto-juvenil, da Editora Língua Geral. A coleção visa recuperar 
histórias da tradição oral africana, reescritas por autores africanos e 
ilustradas por artistas plásticos também africanos e contemporâneos. 
O resultado é uma coleção de livros infanto-juvenis, com o 
sugestivo nome de “Mama África”, de apresentação muito parecida no 
formato (amplo, fino, quadrado, com muitas gravuras acompanhando 
o texto escrito), com os livros de histórias infantis das quais me 
recordo (compostas, basicamente, por contos de fadas dos irmãos 
Grimm e também por lendas e histórias do folclore brasileiro). 
À primeira vista, o formato de um livro com texto desta natureza 
foi o sinal imediato de reconhecimento e lembrança com aqueles 
títulos de contos de fadas e do folclore brasileiro, até porque as 
ilustrações de Malangatana Valente, para a obra de Mia Couto, de um 
colorido forte e marcante, nada suave e celestial, com contornos por 
vezes sombrios, e as personagens de olhos tristes e desconfiados 
certamente não fizeram recordar os belos príncipes donos de 
 
∗ Doutoranda em Estudos Literários na Universidade Estadual Júlio de 
Mesquita Filho, UNESP / Araraquara. 
 
 76
magníficos castelos, com os quais sempre acabavam as lindas princesas 
daquelas histórias tantas vezes ouvidas. 
Nem por isso, entretanto, O beijo da palavrinha deixa de ser uma 
história para o público infanto-juvenil, repleta de magia e 
encantamento. Aliás, ainda que a coleção “Mama África” tenha este 
objetivo, percebemos que os textos que a compõem ultrapassam tal 
categorização e podem, portanto, servir de objeto de leitura para um 
outro público. Em virtude disto, propomos ler este conto africano e, 
dentro das limitações esperadas, devido ao recente conhecimento em 
relação à cultura africana, tentar elucidar alguns elementos 
representados na narrativa que traduzem, de certa forma, essa magia 
peculiar ao universo moçambicano. 
Para tanto, está análise será dividida em duas partes. Na primeira 
parte, serão apresentados aspectos da cosmovisão africana, a partir de 
textos de estudiosos africanos. Na segunda parte, será feita a análise do 
livro, embasada por alguns pontos elucidados no primeiro capítulo e 
considerados significativos na tradição literária configurada pelo conto. 
 
Cosmovisão africana 
 
Este capítulo destina-se a esclarecer alguns pontos do pensamento 
africano, relacionados com a maneira de os povos daquele continente 
entenderem aspectos que dizem respeito ao funcionamento do 
mundo. 
Antes de dar início aos esclarecimentos sobre esses aspectos, 
cumpre salientar que, em se tratando dos países africanos, “a 
dominante, em matéria de cultura, desloca-se do escrito para o oral” 
(AGUESSY, 1977, p. 95), diferentemente do que ocorre com o 
pensamento ocidental, o qual pode orientar-se a partir das mais 
diversas fontes de referências escritas. 
Isso implica, pois, que a tradição africana seja veiculada, 
principalmente, pela oralidade, e os textos teóricos referidos neste 
trabalho apontam para elementos da cosmovisão africana depreendidos 
da tradição oral. Dentre esses elementos, serão destacados aqui a 
questão da ancestralidade e a importância da palavra, uma vez que tais 
 
 77 
elementos serão relevantes para o posterior entendimento que se dará 
ao conto O beijo da palavrinha. 
 
Ancestralidade: força vital 
 
Em África, o respeito ao idoso está ligado com a visão cíclica da 
vida, e a velhice, diferentemente do que ocorre no mundo ocidental, é 
uma fase privilegiada e é almejada por todos. Nsang O’Khan Kabwasa, 
estudioso das concepções sociais e culturais africanas, discorre sobre o 
papel das pessoas idosas em sociedades africanas. Kabwasa explica que, 
nessas sociedades, ser idoso é ter papel específico e importante, pois 
“os velhos são o alicerce da vida na aldeia” (KABWASA, 1982, p. 14). 
Kabwasa chama ainda a atenção para a “visão animista africana do 
universo, segundo a qual a vida é uma corrente eterna que flui através 
dos homens em gerações sucessivas” (Ibidem). Nessa concepção, há o 
elo com os valores tradicionais, fazendo com que os seres viventes 
estejam interligados, mesmo antes do nascimento, aos que vieram 
antes deles e, também, aos que virão depois deles. Segundo Kabwasa, 
 
Nesta visão africana de mundo, ligada à força vital, a velhice é uma etapa da 
existência humana a que todos aspiram, pois a crença na sobrevivência, na 
continuidade da vida e no culto dos antepassados privilegia os anciãos, que são o 
vínculo entre os vivos e os mortos (Ibidem). 
 
Trata-se, portanto, de uma concepção circular em que estão 
dispostos o nascimento, a morte e o novo nascimento. Ou seja: a 
criança tornar-se-á um mais velho, que será um antepassado, o qual, 
“como força vital renascerá para completar o círculo de vida do 
universo” (Ibidem). Dessa forma, a força vital transita no mundo dos 
vivos e no mundo dos antepassados. 
As três idades do homem têm funções específicas. Na infância, 
ocorre a aprendizagem; na maturidade, a produtividade; e na velhice, 
a sabedoria. Os velhos são os sábios, e a vida espiritual deles se 
intensifica. São procurados para opinar em vários domínios do saber. 
Estes também são temidos e, caso algum ancião esteja em desacordo 
com a família, seu poder pode atingi-lo. Nesse caso, ele se torna um 
 
 78
feiticeiro e é afastado da aldeia. Entretanto, envidam-se esforços entre 
os familiares para que isso não ocorra e para que o ancião se acalme. 
Pelo que se pode concluir da explanação de Kabwasa, dentro dessa 
perspectiva animista, a morte não significa o fim de uma pessoa, pois, 
toda vez que o ensinamento de um ancestral é repetido por um ancião 
a um jovem, ocorre um equilíbrio das forças vitais. É possível 
depreender, então, a partir do estudo de Kabwasa, que a visão 
animista africana pressupõe o equilíbrio que existe entre o mundo dos 
antepassados e o mundo dos vivos. Não há, conforme ocorre no 
pensamento ocidental, um estranhamento entre esses dois mundos. 
Kabengele Munanga, antropólogo e professor da Universidade de 
São Paulo, também escreve sobre a importância da ancestralidade no 
universo africano, descrevendo a relação de linhagem e parentesco 
como forma de organização. Segundo ele, em África, a criança deve 
receber os “ritos de iniciação”, que a preparam para o mundo adulto. 
Além disso, a criança tem muito contato com a mãe e é dependente do 
sistema de linhagem. Os casamentos, inclusive, são realizados tendo 
em vista essa questão da linhagem. 
Os sistemas de “matrilinearidade” e de “patrilinearidade” são 
fundamentais para identificar a linhagem da criança, a qual se liga a 
seus ancestrais por meio desses sistemas de parentescos. Essa ligação 
com os ancestrais é forte e significativa em África. Segundo Munanga, 
“Os vivos são unidos aos mortos porque é através desses que a força é 
transmitida. São unidos entre eles, pois todos participam da mesma 
vida” (1986, p. 61). 
Como se pode notar, pela síntese das idéias desses dois pensadores 
africanos, predomina, na concepção africana de mundo, uma visão que 
pressupõe um equilíbrio natural entre as fases da vida e a 
ancestralidade. Esse equilíbrio garante ao ser humano força e sabedoria 
necessárias para poder viver e, também, morrer bem. 
 
Palavra: Força Vital 
 
Amadou Hampâté Ba (1982), estudioso de questões africanas, 
discorre sobre a importância da palavra no mundo africano.Segundo 
 
 79 
ele, a palavra é “o instrumento de criação”, é o instrumento que coloca 
em movimento o “poder”, o “querer” e o “saber” (1982, p. 183), três 
capacidades colocadas no homem pelo Ser Supremo, Maa Ngala, 
criador de todas as coisas. 
De acordo com Hampâté Ba, a palavra é “força” e impulsiona o ser 
humano, criando “um vínculo de vaivém gerador de movimento e 
ritmo, conseqüentemente, de vida e ação”, e esse vaivém pode ser 
representado pelos pés do tecelão, cujos gestos “representam a criação 
em sua ação: suas palavras acompanham seus gestos; é o próprio cantar 
da vida” (Ibidem, p. 197). A palavra humana faz vibrar as forças 
latentes, pode movê-las, agindo como “eco” da palavra de Maa Ngala, 
o Ser Supremo. 
A força da palavra humana atua tanto para “preservar” como para 
“destruir” a paz. Ou seja: sua força pode ser canalizada na direção do 
bem ou do mal, daí o fato de a palavra ser “por excelência, o grande 
agente ativo da magia africana” (Ibidem, p. 186). 
O crítico malês comenta o ritual do trabalho artesanal, mais 
especificamente do tecelão e do ferreiro, para explicar o poder criador 
da palavra, pois, na sociedade africana tradicional, o trabalho artesanal 
baseava-se em conhecimentos sobrenaturais transmitidos entre as 
gerações, a partir de uma revelação inicial. Segundo ele, “os gestos de 
cada ofício reproduzem, no simbolismo que lhes é próprio, o mistério 
da criação primeira que (...) se ligava ao poder da Palavra” (Ibidem, p. 
196). De acordo com Hampâté Bã, 
 
(...) o artesão tradicional, imitando o Maa Ngala, “repetindo” com seus gestos a 
criação primordial, não realizava um “trabalho” no sentido puramente 
econômico da palavra, mas uma função sagrada (...) Na intimidade da oficina ou 
da forja, participava do mistério renovado da criação eterna (Ibidem, p. 198). 
 
Kabengele Munanga também discorre sobre a importância da 
palavra na cosmogonia africana. Segundo ele, “pelo uso da palavra e do 
gesto, o homem pretende apropriar-se de uma parte importante da 
força que irriga o universo” (MUNANGA, 1986, p. 61). 
Ainda de acordo com Munanga, as “palavras são eficazes, pois 
carregam energias” (Ibidem). O africano acredita na existência de uma 
 
 80
força cósmica, que a ele pode ser integrada por meio da palavra. O 
universo africano pressupõe, assim, uma “simbiose” entre seres e 
coisas. Diz Munanga: 
 
O mundo é um conjunto de forças hierarquizadas: deuses, ancestrais, mortos da 
família, chefes, pais etc. até as crianças. Através dessas categorias circula uma 
energia vital, na direção dos deuses, passando pelos ancestrais que são 
intermediários entre os vivos e os mortos até chegar aos mais jovens, comum 
dos mortais (Ibidem). 
 
Essa força vital pode ser diminuída ou aumentada, por meio de 
práticas mágicas. Segundo Munanga, a morte representa “a diminuição 
da força vital”, mas a morte “não tem caráter trágico” (Ibidem). No 
universo africano, a morte implica somente no desaparecimento do 
corpo do campo de visão de todos, pois, como afirma Munanga, o ser 
que morre está em ligação com 
 
(...) entidades preexistentes que sobrevivem a ele: linhagem, sociedade, 
mundo. Como nunca se separou completamente deles durante a vida, ele não 
percebe a morte como uma ruptura total. Logo, ela não representa um corte, e 
sim uma mudança de vida, uma passagem para outro ciclo; o morto entra na 
categoria dos ancestrais, participando de maior fonte energética (Ibidem, p. 
62). 
 
É possível concluir, pela retomada das idéias de Hampâté Bã e de 
Kabengele Munanga, que, na cosmovisão africana, a força da palavra é 
fundamental para o homem dispor da energia vital que flui pelo 
universo. Veremos, a seguir, como esta força vital se transfigura, no 
conto O beijo da palavrinha. 
 
Um conto mágico 
 
Conforme já apontado na introdução deste estudo, O beijo da 
palavrinha é um conto do continente africano, reescrito pelo escritor 
moçambicano Mia Couto. Graças à “força realizadora” (JOLLES, 
1976, p. 195) de Mia Couto enquanto escritor, aliada à sua fama de 
 
 81 
“griot dos tempos atuais” (MARTINS, 2008, p. 117), é possível ter 
acesso a essa mágica história oral africana.1 
O conto narra a história de Maria Poeirinha, “uma menina que 
nunca vira o mar”, que “só ganhara um irmão” e que vivia com a 
família, numa aldeia de grande miséria. Um dia, chega à aldeia Jaime 
Litorâneo, tio de Maria Poeirinha, que fica indignado diante do fato de 
a família nunca ter visto o mar. 
Maria Poeirinha, que “tinha sonhos pequenos, mais de areia do que 
castelos”, contrai grave doença. Jaime Litorâneo, imediatamente, 
aconselha que a menina seja levada para conhecer o mar e, assim, 
curar-se da doença. Entretanto, ela estava muito fraca, e a “salvadora 
viagem” até o mar não podia ser realizada. 
Zeca Zonzo, irmão de Maria Poeirinha, “desprovido de juízo”, 
como todos diziam, decide mostrar o mar para a irmã. Zeca pega 
papel e caneta, e, em vez de fazer um desenho com a imagem e as 
cores do mar, ele escreve as letras da palavra MAR e faz com que 
Maria Poeirinha toque, com os dedos, cada letra da palavra. Diante do 
espanto de todos, a menina conseguiu vislumbrar o mar, e, conforme 
as palavras de Zeca, “se afogou numa palavrinha.” 
 
Jaime Litorâneo: A porta para o infinito 
 
Pela linha que se tenta estabelecer nesta análise, O beijo da 
palavrinha pode ser interpretado à luz de alguns elementos da 
cosmovisão africana. Tais elementos consistem, mais especificamente, 
na figura do idoso e na importância da palavra, e estão associados ao 
conhecimento e à apropriação do equilíbrio vital, a força que garante 
ao homem a sabedoria da vida e da morte. 
Este estudo trata inicialmente da personagem Jaime Litorâneo, tio 
de Maria Poeirinha, um homem que conhece o mar. Para ele, o mar 
 
1 Segundo Hampâté Bâ, “(…) a música, a poesia lírica e os contos que 
animam as recreações populares, e normalmente também a história, são 
privilégio dos griots, espécie de trovadores ou menestréis que percorrem o 
país ou estão ligados a uma família” (1982, p. 202). 
 
 82
“havia aberto a porta para o infinito”. Sob seu olhar, o leitor depreende 
a lição de que o mar representa a liberdade e também a solução para os 
sofrimentos da vida. 
Acredita-se que a figura de Jaime Litorâneo pode ser associada à 
figura do ancião, que, na tradição africana, é símbolo de respeito, “pois 
a crença na sobrevivência, na continuidade da vida e no culto dos 
antepassados privilegia os anciãos, que são o vínculo entre os vivos e os 
mortos” (KABWASA, 1982, p. 14). 
Quando Maria Poeirinha adoece, Jaime Litorâneo afirma que a 
salvação para sua sobrinha é fazer com que ela veja o mar, pois apenas 
o encontro com o mar pode ajudar a menina. Ele explica que o mundo 
só faz sentido para quem conhece o mar. A luz das águas profundas do 
oceano é tão importante quanto a luz solar, diz ele. A pessoa, segundo 
o tio, pode ser pobre, mas tem que conhecer o mar, e os males de sua 
família, como a “fome, a solidão, a palermice do Zeca”, podiam ser 
decorrentes da “falta de maresia”. 
À luz desses conhecimentos, Jaime Litorâneo parece ilustrar o que 
diz Kabwasa, quando afirma que 
 
Os velhos continuam a assumir funções importantes na sociedade, funções que 
apelam para seus conhecimentos das tradições em vários domínios: jurídico, 
religioso, médico-mágico, educacional e econômico (KABWASA, 1982, p. 14). 
 
 Parece ser esta a dimensão do tio de Maria Poeirinha, posto que 
ele tem certeza da força do mar, e mesmo quando o questionam sobre 
o poder de cura das águas salgadas, não hesita e insiste para que 
“Metam a menina no barco, que a corrente a leva em salvadora 
viagem.” Essa orientação de Jaime pode ser explicada pelo 
conhecimentoque ele, na condição de ancião, possui da força vital que 
une vivos e mortos. 
Assim, a salvação de Maria Poeirinha, representada pela visão do 
mar, da qual fala Jaime, pode significar a transformação da menina, a 
passagem para outro plano, o mundo dos mortos, quem sabe, pois, na 
cosmovisão africana, “os vivos são unidos aos mortos porque é através 
 
 83 
desses que a força é transmitida. São unidos entre eles, pois todos 
participam da mesma vida” (MUNANGA, 1986, p. 61). 
Conhecer o mar, conhecer, segundo as palavras de Jaime 
Litorâneo, “do outro lado do horizonte uma luz que fazia a espera 
valer a pena” e “que nasce não do sol, mas das águas profundas”, pode 
significar o conhecimento da força que emana do plano dos mortos, 
pois a morte, na cosmovisão africana, “não representa um corte, e sim 
uma mudança de vida, uma passagem para outro ciclo” (MUNANGA, 
1986, p. 62). 
Tendo em vista tais afirmações, acreditamos, pois, ser possível 
associar a personagem Jaime Litorâneo à figura do ancião da tradição 
africana, conhecedor do segredo da força vital, que flui, naturalmente, 
no plano dos vivos e no plano dos mortos. 
Parece possível, também, associar essa força vital, sinônimo de 
equilíbrio, ao conhecimento decorrente dos ensinamentos sobre o 
mar, a “porta para o infinito”, pela qual deveria passar Maria 
Poeirinha, em “salvadora viagem”. 
Tais elementos podem ser recuperados com base no que se 
representa na narrativa, daí a recuperação de imagens ligadas à 
ancestralidade, um dos elementos da cosmovisão africana. Neste caso, 
a ênfase foi dada à figura de Jaime Litorâneo e aos ensinamentos deste 
homem sobre o mar. Veremos, em seguida, uma leitura a respeito da 
transformação operada pela palavra “mar” (objeto indicado pelo tio 
como fonte de cura da menina) na trajetória da personagem de Maria 
Poeirinha. 
 
M...A...R... : a força da palavra 
 
Conforme visto no tópico anterior, o mar representa, segundo 
Jaime Litorâneo, a libertação de Maria Poeirinha do sofrimento. 
Entretanto, na trama, a saúde extremamente debilitada da menina 
impede que ela seja colocada em um barco e enviada, pelo rio, rumo 
ao mar, conforme deseja o tio. 
Entra em cena, então, a personagem Zeca Zonzo, irmão de Maria 
Poeirinha, cujas idéias “voavam como balões em final de festa”. Zeca 
 
 84
decide mostrar à irmã o mar e, com papel e caneta, dá início à 
salvadora missão anunciada pelo tio.2 
Zeca escreve na folha a palavra MAR, “a palavra inteira e por 
extenso”. Ninguém entendeu o que queria Zeca, e Poeirinha disse ao 
irmão que era inútil tentar, pois nem letra ela distinguia. Ele, 
entretanto, “tomou na sua mão os dedos magritos de Maria Poeirinha e 
os guiou por cima dos traços que desenhara.” 
Ressalta-se aqui a ênfase dada no conto à cena em que Zeca faz 
Maria Poeirinha “brincar” com a palavra MAR. A descrição da cena 
lembra um ritual, em que cada etapa consiste em fazer a menina 
decifrar os segredos da palavra. Esse procedimento, ou esse ritual, da 
palavra praticado por Zeca, faz pensar na importância desta no 
universo africano. Segundo Hampâté Bã, 
 
Nas tradições africanas (...) a palavra falada se empossava, além de um valor 
fundamental, de um caráter sagrado vinculado à sua origem divina e às forças 
ocultas nela depositadas. Agente mágico por excelência, grande vetor de “forças 
etéreas”, não era utilizada sem prudência. (HAMPÂTÉ BÂ, 1982, p. 182). 
 
Hapâté Bã, no ensaio “A tradição viva”, refere-se à importância da 
oralidade na tradição africana. Julga-se pertinente, porém, fazer uso 
das idéias do pesquisador para embasar esta leitura, que toma a 
representação do significado da palavra MAR como elemento 
transformador no conto. 
Embora, no caso da história de Maria Poeirinha, Zeca utilize o 
recurso da escrita da palavra, lançando mão, inclusive, do papel e da 
caneta, a serviço de sua imaginação fértil, parece possível, também, 
 
2 A operação realizada por Zeca, a partir da elaboração da imagem 
representada pela escrita das letras da palavra mar, remete-nos ao 
pensamento de António Martins sobre a técnica do escritor Mia Couto, o 
qual “mantém, ao longo de sua obra, uma proximidade muito grande com 
o texto poético” (2008, p. 39). 
 
 85 
pensar na magia3 representada para a menina, que se transforma sob o 
efeito da palavra MAR. 
Essa transformação pode remeter à eficácia da palavra, no universo 
africano, como elemento capaz de transmitir energia, como elemento 
capaz de integrar homem e força do universo (MUNANGA, 1986, p. 
61). É importante recordar a crença do africano de que, por meio de 
práticas mágicas e de feitiçaria, a força vital da palavra pode aumentar 
ou diminuir, o que, então, leva a refletir sobre o efeito mágico da 
palavra MAR, na forma como ela foi elaborada por Zeca. 
Zeca faz, pois, a menina pensar numa imagem, a cada letra que 
toca. Assim, Poeirinha toca o “M”, e imagina a onda do mar, como a 
onda do rio da aldeia em que ela mora. Ela toca o “A” e imagina uma 
gaivota, uma ave que ela já conhece. Ela toca o “R” e imagina uma 
rocha, como a pedra que ela também sabe o que significa. 
“Já se escuta o marulhar”, anuncia a personagem Jaime Litorâneo, 
diante da constatação de que Maria Poeirinha acompanha a imaginação 
de Zeca, conseguindo, quem sabe, a salvação de que falara o tio e 
ilustrando, talvez, aquela explicação de que “Pelo uso da palavra e do 
gesto, o homem pretende apropriar-se de uma parte importante da 
força que irriga o universo” (MUNANGA, 1986, p. 61). 
Assim, no leito da morte, Maria Poeirinha vê e é “beijada pelo 
mar”. A palavra MAR transforma Maria Poeirinha, posto que, diante 
da leitura pelo toque, pelo gesto e pelo exercício da imaginação 
criadora, parece que ela se ergue do leito em que estava e segue no 
rio, “debaixo do manto feito de remoinhos, remendos e retalhos.” 
A descrição final da transformação de Poeirinha retoma a imagem 
que a menina costumava ter em sonhos. Pode-se pensar que ela está 
realizando o sonho de ir embora. Porém, essa partida remete-nos à 
passagem de Maria Poeirinha para outro plano, o plano dos mortos, o 
qual, na cosmovisão africana, constitui uma seqüência natural na 
 
3 De acordo com Hampâté Bâ, em África “a palavra ‘magia’ (...) designa 
unicamente o controle das forças, em si uma coisa neutra que pode se tornar 
benéfica ou maléfica conforme a direção que se lhe dê”. (1982, p. 186). 
 
 86
ordem dos acontecimentos da vida, não um “corte”, mas uma 
“mudança” (MUNANGA, 1986, p. 62). 
Poeirinha “foi beijada pelo mar. E se afogou numa palavrinha.”, 
explicará Zeca sobre o que aconteceu à irmã, que, depois daquele dia, 
será recordada pela imagem da fotografia. Pela imagem do MAR, a 
menina segue seu rumo nas águas. Pela imagem da foto, Poerinha 
permanece presente aos olhares dos seus. 
 
Considerações finais 
 
O beijo da palavrinha foi interpretado, nesta análise, à luz de 
elementos da cosmovisão africana, que se encontram representados na 
versão literária desta narrativa, recolhida da tradição oral africana e 
reescrita por Mia Couto. 
Assim, a partir do entendimento do papel do ancião e do valor 
atribuído à palavra na sociedade africana, foi possível entender a figura 
da personagem Jaime Litorâneo e a transformação operada pela 
palavra “mar”, na vida e na história de Maria Poeirinha. 
Jaime Litorâneo revela seus ensinamentos sobre o poder do mar e, 
através deles, fez com que a menina “renascesse tomando conta 
daquelas praias de areia e onda. E descobrisse outras praias dentro 
dela”. Neste sentido, pode configurar-se como o ancião do universo 
africano, capaz de fazer conhecer aos homens o mistério da força vital. 
Além disso, a transformaçãosofrida por Maria Poeirinha, graças à 
criatividade de “mano Zonzo”, parece possível de ser relacionada 
também com o conhecimento da força cósmica que pode ser atingida 
pelo homem, graças ao efeito da palavra. 
Nessa história, então, a protagonista não foi contemplada com a 
riqueza, o castelo e o príncipe das conhecidas histórias para crianças do 
mundo ocidental. Maria Poeirinha, a princesa do “manto feito de 
remoinhos, remendos e retalhos”, foi contemplada com a sabedoria, 
com o conhecimento da força vital que une vivos e mortos no universo 
africano. Assim, neste cenário mágico, ela nos ensina um algo mais não 
só sobre a cultura africana, mas sobretudo sobre a vida. Afinal, esta é 
feita mais do que simplesmente de castelos e príncipes, é feita também 
 
 87 
de sonhos, de desejos, de anseios e de criação. E não são estes bens tão 
alvissareiros quanto castelos e príncipes? Aí parece estar a sua riqueza, 
aí parece estar o seu mágico legado. 
 
 
 
Referências 
 
AGUESSY, Honorat. “Visões e percepções tradicionais”. In : BALOGUN, Ola et 
alii. Introdução à cultura africana. Trad. Emanuel L. Godinho, Germiniano C. 
Franco e Ana Mafalda Leite. Lisboa: Edições 70. 1977, p. 95-136. 
BÂ, Amadou Hampaté. “A tradição viva”. In: História Geral da África I. Metodologia 
e pré-história da África. Trad.: Beatriz Turquetti et alii. São Paulo: Ática, 1982, p. 
181-218. 
COUTO, Mia. O beijo da palavrinha. Ilustrações: Malangatana Valente. Rio de 
Janeiro: Língua Geral, 2006. 
ELÍADE, Mircea. Mito e realidade. Trad.: Pola Civelli. São Paulo: Perspectiva, 
2002. 
______. Mito do eterno retorno. Trad.: José Antônio Ceschin. São Paulo: 
Mercuryio, 1992. 
JOLLES, André. Formas simples. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Cultrix, 1976. 
KABWASA, N. O. “O eterno retorno”. Correio da Unesco. (Brasi). Ano 10. n. 12. 
p. 14-15, dez. 1982. 
MARTINS, António. O fantástico nos contos de Mia Couto. Porto: Papiro Editora, 
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