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C A P Í T U L O 1 6 565Construção da nação e evolução dos valores políticos Duas dialéticas familiares condicionaram os valores políticos na África: a dialética que, por uma parte, opõe o coletivismo e o individualismo e a sua cor- relata interposta entre o pluralismo e o nacionalismo, por outra. Vimos as antigas tradições coletivistas eventualmente entrarem em conflito com as formas mais recentes de individualismo, também observamos a interação entre os princípios do pluralismo e os valores do nacionalismo. Na opinião de pensadores tais como o tanzaniano Julius Nyerere ou o que- niano Tom Mboya, o coletivismo tradicional podia servir de base a modernas formas de socialismo (nós retomaremos esse tema, ulterior e mais detalhada- mente). Mboya sustentou nestes termos: “O socialismo [...] é uma tradição permanente do nosso povo [...]. Trata -se de uma atitude das nossas sociedades em respeito às pessoas, postura esta que não exige ser codificada sob o prisma da teoria científica1.” Sékou Touré invocou o coletivismo tradicional, recusando praticamente todas as formas de individualismo na Guiné pós -colonial. “A África é, essen- cialmente, “comunocrática”. A vida coletiva, marcada pela solidariedade social, confere aos seus hábitos um caráter humanístico que muitos povos podem inve- jar. Igualmente em razão destas qualidades humanas, na África, um ser não pode 1 T. MBOYA, 1963a. Construção da nação e evolução dos valores políticos Joseph Ki -Zerbo, Ali A. Mazrui e Christophe Wondji, em colaboração com A. Boahen 566 África desde 1935 conceber a organização da sua vida à margem da estrutura própria à sociedade familiar fundada sobre pequenas comunidades ou clânica. [...] Intelectuais ou artistas, pensadores ou pesquisadores, as suas capacidades não têm valor, senão à condição de concorrerem em prol da vida do povo, salvo se estiverem inte- gradas, de modo fundamental, à ação, ao pensamento, assim como às aspirações da população2.” Sékou Touré serviu -se do coletivismo tradicional, a um só tempo, contra o individualismo e o pluralismo. A Guiné e outros países da África pós -colonial igualmente inspiraram -se nas ideias coletivistas para racionalmente fundar o seu regime de Estado unipartidário. Nós mostramos como, em outras circunstâncias, Gamāl ’Abd al -Nasser, em sua Filosofia da revolução, vinculou o nacionalismo às três esferas que interpenetraram -se no Egito e no tocante às quais este país figura como um ator de primeira grandeza, nas esferas árabe, muçulmana e africana. A ideologia de al -Nasser, em concomitância, coletivista e nacionalista, era essencialmente antipluralista e não confiável sob a perspectiva do individualismo. Quais teriam sido as fases da história da ideologia da África após 1935? Poderíamos nós subdividir este período em fases ideológicas distintas? Os últimos anos do regime colonial (1945 -1960) compõem o cenário para os belos dias de compatibilidade entre nacionalismo e pluralismo, em grande parte da África anglófona e francófona. Durante este período, o nacionalismo africano − como estratégia de luta contra o colonialismo − antecipava reivin- dicações liberais: sufrágio universal, democracia e pluripartidarismo, liberdade de imprensa e o fim das detenções arbitrárias. Distantes entre si do conflito, o nacionalismo e o pluralismo apresentavam -se à ocasião, estratégica e pratica- mente, como aliados. Líderes como Kenneth Kaunda, Hastings Kamuzu Banda, Habib Bourguiba ou Léopold Sédar Senghor eram à época, simultaneamente grandes nacionalistas e grandes democratas liberais. Em luta contra os imperia- lismos britânico e francês, era de bom grado invocar os valores liberais ocidentais contra o Ocidente, ele próprio. Entretanto esta pratica demonstrou -se inócua contra o colonialismo português. Após a independência, muitos países africanos viram declinar respectiva- mente (de 1965 a 1985) o nacionalismo e a democracia liberal. O coletivismo era invocado pelos ideólogos do partido único e pelos socialistas, ao passo que o pluralismo e o individualismo perdiam ímpeto. A bem da verdade, o próprio 2 Citado por C. WAUTHIER, 1964, pp. 182 -183. 567Construção da nação e evolução dos valores políticos nacionalismo está em declínio, quase de forma generalizada e salvo na África Austral, no transcorrer dos anos 1960 e 1970. O jugo do autoritarismo e do pseudocoletivismo estrangularia grande parte da África até os anos 1980. O Senegal, a Gâmbia, as Ilhas Maurício e o Botsuana configuram raríssimas exce- ções. A este tema retornaremos ulteriormente. No imediato posterior, a que tem lugar a renovação liberal, ocorrida do final dos anos 1980 ao início dos anos 1990, da Argélia a Moçambique, com o ressurgimento de reivindicações populares em favor de uma democracia plu- ralista e de uma agitação pleiteando maior privatização na economia. Os regi- mes militares e os Estados de partido único encontram -se na defensiva. Do pluralismo respira -se o ar neste período e a opinião pública africana torna -se verdadeiramente militante. O presente capítulo aprofundará estes temas. Ser- -nos -ia possível dizer que a moral coletivista encontrar -se -ia recolocada em questão? Um vento liberal sopraria ele novamente na África? Os valores polí- ticos na África foram condicionados, não somente pela dupla oposição envol- vendo coletivismo -individualismo e pluralismo -nacionalismo, mas, outrossim, pelo denominado por Kwane Nkruma “consciencismo”, em outras palavras, a interação entre a tradição autóctone, o islã e a cultura eurocristã. A democracia liberal da Nigéria favorecia ela os muçulmanos? O islã na Argélia, corroboraria ele a democracia liberal? Nas duas primeiras repúblicas nigerianas, muçulmanos ocuparam o poder (Abubakar Tafawa Balewa dirigindo a primeira República e al -Haji Shehu Shagari encabeçando a segunda). Em contrapartida e mais recentemente, na Argélia, o temor provocado pela oposição islâmica forçou o presidente do regime da FLN a buscar aliados junto aos opositores não islâmi- cos e a acelerar a democratização. Se, nas duas primeiras repúblicas da Nigéria, o pluralismo favoreceu o islã, por sua vez, na Argélia do último período, o islã favoreceu o pluralismo. Construção da nação e valores políticos O sucesso que o liberalismo conheceu em 1989 -1990, fato mundialmente generalizado e singularmente manifesto na África, impõe com acuidade enfren- tar os problemas relativos aos valores políticos e à ação subjacente a estes últi- mos, há algumas décadas levada a cabo pelos dirigentes africanos. A quase totalidade dos países do continente aceitou submeter -se aos progra- mas estruturais de ajuste “propostos” pelas instituições financeiras internacionais. Haveria um despertar do liberalismo na África nos últimos anos do século XX? 568 África desde 1935 Constata -se em paralelo uma espetacular renúncia aos valores e às instituições do marxismo -leninismo em outros países (Benin, Moçambique, Etiópia...), a denotar que estes valores não estavam ancorados de fato na classe política, a fortiori na sociedade civil. Novamente, os países africanos parecem imperativamente conduzidos a esco- lher entre vários sistemas de valores; ou antes, à imagem dos primórdios da colonização, eles são forçados a inscrever as suas políticas em um conjunto de valores que permanecem frequentemente implícitos. O colonialismo desmante- lara o essencial das instituições políticas africanas e, na mesma ocasião, os valores a elas ligados. Todavia certos valores africanos sobreviveram às instituições, ao passo que estruturas suprimidas pelo colonizador ou preservadas pelos coloni- zados continuavam a gerar valores autóctones. A luta anticolonial, em especial antes e após a Segunda Guerra Mundial, também representou um debate no combate de valores políticos. Tratava -se de retomar o controlesobre os fins e as motivações da ação política. Igualmente, no momento do advento da independência, nos anos 1960, os Estados africanos foram confrontados a duas cruciais escolhas em matéria de valores políticos, as suas decisões ou a sua indecisão correlatas viriam a influir sobre o futuro por um longo período. Importava, na aurora das independências, construir Estados e comunidades nacionais, edificar economias aptas a satisfazerem as necessidades dos povos, criar relações interafricanas e mundiais susceptíveis de contribuir na realiza- ção das opções políticas globais, transformando contudo os valores que regem as transações internacionais. Diante deste projeto, impunham -se importantes obstáculos: a integração nacional chocava -se com certos interesses étnicos ou pseudoétnicos e a integração africana era bloqueada por ambições “micronacio- nais”. Por outro lado, os projetos de sociedade destinados a garantirem o pro- gresso socioeconômico, na mais ampla acepção, chocavam -se com certos valores “negativos” das sociedades pré -coloniais e do sistema colonial. Perante esta rede de círculos viciosos, os dirigentes africanos escolheram, em princípio, ora gerar o statu quo neocolonial, ora optar pela reviravolta nos valores sociopolíticos africanos e internacionais. Entretanto, ao final dos anos 1980, eles encontram -se a professar, quase todos, valores idênticos ou análogos, quer seja em razão do peso das estruturas objetivas, ou em função das mutações nos valo- res, sobrevindas no estrangeiro, e a refletirem -se nas orientações africanas. Os países compartilham tradições políticas pré -coloniais e coloniais, muito amiúde similares. Eles têm um duplo patrimônio de valores políticos. Estes constituem 569Construção da nação e evolução dos valores políticos referência para a análise e a ação, são ideias motrizes, ideais que iluminam e orientam sistematicamente as escolhas individuais e coletivas. Mas, os valores não representam entidades transcendentes imunes à ação do tempo. Produtores da história, os valores políticos dela também constituem um produto, influenciado e transformado por ela. Eis o porquê do imperativo de certas questões. Quais seriam os traços duráveis das transformações dos valores políticos africanos após 1935? Qual seria a contraditória dinâmica dos grandes vetores, na obra de construção nacional, desde as lutas pela independência até o último decênio do século XX? Quais valores subjazem dos acontecimentos, das instituições e das ideologias constituintes desta evolução? Da dominação colonial ao pluralismo político no curso das lutas pela independência O sistema colonial estava construído sobre um corpus assaz coerente de valo- res políticos. Lord Lugard expressou, a este respeito e com justeza, em O duplo mandato na África tropical britânica3, livro no qual ele expunha a detenção pelos colonizadores de dois mandatos, um civilizatório e outro de exploração, portadores de valores implícitos e explícitos. Segundo o autor, a gestão indireta era o sistema mais apto a conciliar estes dois objetivos. Nos países colonizadores assimilacionistas, à imagem da França e de Portugal, a imposição dos valores políticos metropolitanos era mais flagrante4. Justamente após a Segunda Guerra Mundial, apresentar -se -ia a afirmação das reivindicações africanas em favor da autonomia e da independência, de forma generalizada em todos os territórios coloniais, geradoras ou promotoras de duas ordens de valores políticos destina- das a um promissor futuro. Os valores do pluralismo e do nacionalismo. O legado do pluralismo O pluralismo esteve à origem dos próprios movimentos de libertação nacio- nal, ao menos inicialmente, em Angola, na Rodésia do Sul (atual Zimbábue) ou em Moçambique, por exemplo. Entretanto, foi com maior ênfase nos casos de evolução pacífica rumo à independência que o valor do pluralismo político 3 LUGARD (Lord), 1922. 4 R. F. BETTS, 1985. 570 África desde 1935 surgiu mais fortemente. Esta afirmação apoiava -se sobre o liberalismo, funda- mentado pelo princípio da liberdade individual em todos os domínios, a pro- fessar, junto a elas, as potências coloniais. A ideologia liberal concedia, portanto, um arsenal de fórmulas jurídicas e métodos políticos aos dirigentes africanos em luta contra o colonialismo pois, aludindo à própria essência dos princípios e dos valores de liberdade, proclamados pelos colonizadores, intelectuais coloni- zados reivindicaram a igualdade dos direitos e, posteriormente a independência das colônias, muito amiúde com o apoio de grupos oposicionistas da própria metrópole. Na África do Norte, excetuando -se a Argélia que instaura o presidencialismo e o regime do partido único desde a sua independência, em 1962, o pluralismo prevalece. Este é o caso do Egito, regido pela constituição de 1923 até o Golpe de Estado dos Oficiais livres, em 1952, ou da Tunísia, cuja Constituição de 1955, sucessora do regime protetoral francês, respira uma essência liberal. O Néo- -Destour inclusive reforma as instituições sociais em conformidade ao código liberal ocidental: abolição da poligamia, direitos civis, direito ao voto e a elegi- bilidade das mulheres. O Marrocos, de Mohammed V (1956 -1961), apresenta um compromisso entre a monarquia tradicional e as instituições parlamentares. Contudo, após ter proclamado os valores liberais como normas para a recons- tituição das sociedades, os Estados norte -africanos darão, em maior ou menor medida, as costas ao liberalismo. Na África negra ao sul do Saara, dezenas de partidos ou movimentos, legais ou não, proliferaram entre 1945 e 1960, baseados nos valores do pluralismo inspirados na política europeia, proposição esta a constituir, amplamente, o modelo dominante. Situação peculiar tanto aos países anglófonos quanto aos francófonos. Na Costa do Ouro (atual Gana), a coalizão política fundada por J. B. Danquah, em 1947, a United Gold Coast Convention, não duraria nada além de dois anos, antes que Kwame Nkruma ainda não tivesse ganho a proeminência e fundado o Convention People’s Party (CPP). Na Nigéria, as constituições outorgadas, em 1945 -1948, permitem o surgimento de uma imprensa dinâmica e animada pelas associações dos jovens, pelos sindicatos e pelos partidos implan- tados nas grandes regiões do país. Em Serra Leoa e na Gâmbia, o pluralismo liberal afronta os “crioulos” da “colônia” e os povos autóctones majoritários dos protetorados da hinterlândia. Na Federação da África Central britânica (atuais Malaui, Zâmbia e Zimbábue), longas e sinuosas negociações tripartites intervie- ram entre os africanos, divididos em vários partidos, os colonos brancos, também eles por vezes fracionados e o governo de Londres. 571Construção da nação e evolução dos valores políticos Nos territórios francófonos, constata -se a mesma proliferação política, entre 1935 e 1960, essencialmente a partir do final da Segunda Guerra Mundial. A assimilação, aqui inscrita nas próprias estruturas políticas, viria conduzir os eleitos africanos nos limites parlamentares impostos pela metrópole, em Paris ou Versalhes, reforçando, em suplemento e junto aos líderes políticos africanos, o ideário composto pelos valores políticos prevalecentes no sistema francês. Originalmente, estes partidos não atuavam com independência face aos seus correlatos na metrópole. Assim sendo, os Grupos de Estudos Comunistas fran- ceses (GEC) demonstravam extrema atividade em numerosas cidades africanas. No Senegal, estes GEC dedicados à formação sob patrocínio do RDA foram superados pelos militantes africanos do Partido Socialista Francês (SFIO). Em suma, antes das independências, os valores políticos, preconizados pelos países africanos, constituíam uma transferência cultural sobre a batuta do famoso “mandato civilizatório”. Esta transferência ignorava os elementosdemocráticos endógenos, comprometendo, igual e gravemente, o ajuste orgânico interno entre a sociedade política e a sociedade civil. Entretanto, esta transferência, dos ideais políticos ocidentais em direção à África, sobretudo quando a ela agregavam- -se os valores do socialismo marxista, não podia senão acelerar a dinâmica da edificação nacional e, antes e primeiramente, a luta pela independência africana. Entre 1945 -1960, os partidos progressistas, marxistas (como o Partido Africano da Independência, PAI) ou não (como o Movimento de Libertação Nacional, MLN)5, embora minoritários, puderam, desta forma e graças aos valores do pluralismo político, ganhar audiência e desempenhar um papel motor de vanguarda, atraindo os partidos moderados ou conservadores próximos da administração colonial. As próprias potências coloniais, conquanto defendessem com unhas e dentes os seus enormes interesses materiais investidos na África, deveriam, cedo ou tarde, de bom ou mau grado, aceitar as exigências dos nacio- nalistas africanos, sob pena de repudiar os seus próprios valores políticos. Os valores do nacionalismo Paralelamente aos valores do pluralismo democrático, veiculados pelas insti- tuições políticas liberais, tomadas em empréstimo à Europa, bem como em inte- ração dialética com elas, os valores ligados ao nacionalismo assim expandiram -se na África: em meio ao caldo de cultura da resistência e da luta armada, assim 5 Libérons l’Áfrique, Manifesto do MLN, 1958. 572 África desde 1935 figura 16.1 Franz Fanon, autor francês nascido na Martinica. (Fonte: Com a autorização das Éditions du Seuil, Paris) 573Construção da nação e evolução dos valores políticos como no quadro da evolução pacífica do sistema colonial. Justamente, foi sobretudo através das violentas lutas que os valores do nacionalismo africano apresentaram -se de forma mais contundente. Na realidade, estas lutas armadas não eram explosões nascidas no vazio mas, representavam a continuidade histó- rica dos movimentos de luta e de resistência que se haviam constituídos contra a invasão e o regime dos colonizadores. T. O. Ranger pôs em evidência as relações entre o movimento nacionalista na África subsaariana e a resistência multiforme à dominação estrangeira. Os militantes do partido de Julius Nyerere consideravam -se herdeiros diretos do movimento maji -maji, opositor do imperialismo alemão, de 1904 a 1906, a tal ponto que o líder da Tangayika African National Union (TANU), ele próprio, declarava: “É sobre as cinzas dos maji -maji que a nossa nova nação fundou -se.6” No Zimbábue, igualmente, os nacionalistas recorriam a memória da rebelião anticolonial de 1896 -1897, conferindo honra ao conceito relativo à chimurenga (resistência armada), expressão do patriotismo africano da época. Na África do Sul, o próprio Nelson Mandela buscou a sua inspiração nestas palavras: ”guerras que os ancestrais travaram em defesa da pátria e que constituem a glória e o orgulho da nação africana em sua totalidade”. Além do legado da resistência armada e política, o patrimônio da resistência cultural, de conotação religiosa, foi da mesma forma chamado a contribuir. Entre as duas guerras mundiais e no pós -guerra, os militantes da Kenya African National Union (KANU), por exemplo, extraíram fundamentos da herança ideológica do culto Mumbi e do culto Dini Ya Musambwa. Desta forma e portanto, a luta de libertação estava ligada, através da mediação da memória histórica, a um passado mobilizador, a conferir -lhe a sua legitimidade. De forma ainda mais geral, a necessidade de afirmação, pela força do direito, dos povos explorados frente à dominação dos colonizadores viria magnificar o “valor” da violência em sua qualidade terapêutica para o progresso histórico. Todo o contexto a isto contribuía: a exaltação do militarismo no curso das guer- ras mundiais, as exações das tropas coloniais ditas de “pacificação”, o emprego dos negros, recrutados em massa, para as guerras de reconquista colonial na Indochina, na Argélia e em Madagascar... Se a isto acrescentarmos o uniforme, as pensões e o nível de vida dos antigos combatentes, veremos como o mito do guerreiro foi, formidavelmente, estimulado no imaginário popular. 6 T. O. RANGER, 1968a, p. 636. 574 África desde 1935 Inclusive, os combates anticoloniais desenrolar -se -iam por vezes nas próprias localidades das heroicas lutas dos ancestrais, contra o jugo estrangeiro: por exemplo, quando a FLN argelina estabeleceu as suas retaguardas operacionais no maciço de Aurèz, na Kabília ou no Chouf. Igualmente, Houari Boumediene forjou seu apelido a partir do nome de dois santos do islã argelino: Houari e Bou Medin7. Habib Bourguiba, quanto a ele, auto intitular -se -ia “combatente supremo”, Jomo Kenyatta, “A lança ardente do Quênia”, Hophouët -Boigny, “Aríete defensor do povo”, Kwame Nkrumah, “Osagyefo” ou o “General vito- rioso”, Amilcar Cabral, “Abdel Jessi” ou o “justiceiro de sabre em mãos”. Estes valores do nacionalismo militante também serão alimentados pela teoria marxista -leninista que enxerga na violência, sob todas as suas formas, o demiurgo da história, fazendo do imperialismo o estádio supremo do capi- talismo. Os continentes colonizados, a África em primeiro plano, tornam -se portanto o “ventre mole” onde golpes mortais podem ser desferidos no sistema capitalista mundial. Tais eram as mensagens do congresso de Moscou da IIIa Internacional, em 1919, e do congressos dos povos oprimidos de Bakou, em 1920. O nacionalismo e a cultura, em sentido amplo À margem das lutas armadas ou diretamente ligados à ação política, os africa- nos cultivaram os valores do nacionalismo em um contexto histórico particular, sob fórmulas ora originais, ora miméticas. A ideologia do Estado -nação era, juntamente com o imperialismo capi- talista, um dos dois pilares da conquista colonial e as fronteiras africanas, por exemplo, não passavam de uma projeção das fronteiras europeias. Embora esta ideologia se tenha comprovado válida para a Europa, bem como para a esfera das guerras locais e dos holocaustos planetários, os territórios colonizados her- daram estes valorações europeias do Estado -nação europeu, no momento da sua independência. A religião, de papel crucial, constitui outro importante aspecto do nacio- nalismo. A sublevação mahdista contra o poder estrangeiro, ao final do século XIX, inspirava -se amplamente nos valores de um nacionalismo de fundamento religioso. Junto aos somalis, também apareceu, em 1899, um Mahdy erigido contra a colonização britânica e italiana: era Muhammad ‘Abdallāh Hassan, 7 Conferir o artigo sobre Boumediene, em M. MOURRE, 1978, vol. I, p. 619. 575Construção da nação e evolução dos valores políticos apelidado pelos imperialistas o “Mullah louco”. Na África ocidental, movimen- tos mahdistas eclodiram esporadicamente, fazendo eco às múltiplas resistências opostas por líderes muçulmanos como Shaykh Amadu Bamba, no Senegal ou Shaykh Hāmallāh, no Mali e na Mauritânia. Mas, os valores de recusa contra qualquer submissão a uma autoridade externa foram abundantemente ilustrados também pelos chefes da religião tradicional africana. Desta forma, os maji -maji da Tanganyika combateram os alemães, de 1905 a 1907, utilizando água benta para protegerem -se contra as balas. Os levantes no leste e no sul de Madagascar, em 1947, constituíram outro dramático exemplo da mesma ordem, os rebeldes malgaches julgavam -se, também eles, magicamente protegidos contra as balas. Esta insurreição, reprimida de forma selvagem, é considerada pelos malgaches como uma importante etapa em sua marcha pela independência, mesmo se toda ilha não se associou a ela. Outro elemento característico do nacionalismo, muito amiúde próximo da língua e da religião, é a etnicidade − conceito muito ambíguo a ser usado commuita precaução. Assim sendo, o movimento mau -mau no Quênia (1952 -1960) era um combate originado na disputa por terras entre os povos do Quênia central e contra o monopólio dos melhores territórios agrícolas pelos europeus. Entretanto, tratava -se igualmente de uma batalha pela libertação política e cultural. Os rituais simbólicos inicialmente praticados pelos guerrilheiros − as cerimônias de prestação de juramento, nas quais eles assumiam, por exemplo, um compromisso sagrado, destinado a desencorajar qualquer ideia ligada à traição − eram tomados em empréstimo do patrimônio religioso dos kikuyu e dos grupos étnicos aparentados (meru e embu). Da mesma forma, o exército de Mugabe, na Rodésia do Sul, duas décadas mais tarde, compunha -se sobretudo de shona, entretanto, os objetivos do movimento faziam dele uma luta de libertação para o conjunto do Zimbábue. Em suma, a resistência dos shona, dos ndebele e dos fon, em Daomé, dos ashanti e dos samo, no Burkina Fasso, dos wolof e dos jula, no Senegal, tomavam, simultaneamente, o caráter de uma luta para preservar o grupo étnico e de uma luta em favor de interesses e valores mais amplos, de tipo nacional. Trata -se da própria erupção colonial que, ao deslocar o mapa anterior, desagregou a adequação entre as identidades “nacionais” e “étnicas”. O território consiste, evidentemente, em outra dimensão fundamental do Estado -nação; mas, contrariamente à Europa e à África pré -colonial, onde a criação do perfil “nacional” pelos povos e pelos Estados exigiu séculos de esfor- ços, o traçado das fronteiras dos Estados africanos modernos é o fruto do ardor pela conquista que um punhado de estrangeiros demonstrou durante uma ou duas décadas. Ora, alguns territórios federados sob a autoridade colonial, na 576 África desde 1935 África Oriental britânica ou na África Ocidental francesa, foram fracionados. Os nacionalistas africanos lutavam, inclusive e frequentemente, não para libertar algum território em particular mas, para imporem um fim ao estatuto de submis- são dos povos africanos. Os valores do nacionalismo eram quase invariavelmente indissociáveis dos valores da unidade africana. Enfim, devemos abordar o tema, simultaneamente, o mais vago, o mais ambí- guo mas, igualmente, o mais fundamental do nacionalismo africano: aquele concernente à “raça” e à “civilização”. Segundo René Pléven, homem de Estado francês, “colonizar, isto consiste em estender a sua civilização no espaço”. A colonização, ato eminentemente econômico, era portanto também um fenômeno cultural e, por conseguinte, a descolonização deveria assumir uma dimensão de combate cultural. Era preciso operar uma arbitragem entre os valores do patrimônio autóctone e os princípios culturais veiculados pelos colonizadores. Desde o final do século XIX, o movimento de despertar cultural do mundo árabe -muçulmano (nahda) e o movimento do renascimento negro nas Amé- ricas haviam sido confrontados a este problema. No seio da civilização negro- -africana, este esforço impingiu aos movimentos ideias, compondo um leque que compreendia desde a African Personality e do pan -africanismo à negritude, tema desenvolvido pelo círculo intelectual reunido em torno da revista Présence Africaine e do seu diretor, Alioune Diop. A interrogação fundamental partiu de Edward Wilmot Blyden. Após ter proposto em 1887, em sua obra Christianity, Islam and the Negro race, uma síntese dos valores das sociedades no Sudão ocidental e daqueles do Ocidente cristão, Blyden constituiu -se, na realidade, em advogado da consciência do orgu- lho racial junto aos Negros do continente e daqueles da diáspora, contribuindo desta forma para o nascimento do movimento pan -africano. Justamente nesta corrente situa -se a negritude e o seu projeto de “civilização do universal”. Na primeira metade do século, como abordado no volume VII da presente obra, o movimento pan -africano foi animado pelos descendentes de africanos habi- tantes nas Américas, sobretudo nos Estados Unidos da América do Norte e nas Antilhas. Homens como Marcus Garvey, na Jamaica, George Padmore, em Trinidad e Tobago, e W. E. B. Du Bois, nos Estados Unidos da América do Norte, aparecem na qualidade de pais fundadores do pan -africanismo. A partir de 1900, Congressos pan -africanos dedicaram -se a reforçar a solidariedade racial, a organizar a luta contra a discriminação e a promover a dignidade racial dos povos negros, tanto na África quanto no mundo ocidental. Seria necessário esperar o advento do quinto Congresso Pan -africano, rea- lizado em Manchester (Grã -Bretanha), em 1945, para observar a passagem 577Construção da nação e evolução dos valores políticos da direção do movimento dos Negros das Américas para os Negros da África. Dois entre os participantes deste Congresso tornaram -se posteriormente os pais fundadores de novos países independentes. Trata -se, como exposto em outros capítulos deste volume, do ganense Kwame Nkrumah e do queniano Jomo Kenyatta. Os africanos presentes a este Congresso encontravam -se, todavia e em certa medida, um pouco ofuscados pela estatura de alguns dentre os gigantes do nacionalismo negro nas Américas, mas o ano de 1945 ainda assim marca um ponto de inflexão na reafricanização do pan -africanismo: a passagem da tocha das mãos dos Negros da diáspora, descendentes de africanos no estrangeiro, para as mãos de cidadãos dos países africanos. Doze anos mais tarde, Kwame Nkrumah dirigia o primeiro governo independente de Gana, este mesmo país seria o primeiro país da África negra a ser libertado da dominação colonial europeia. O pan -africanismo tomou, desde então, uma forma mais militante, retomaremos este tema mais adiante. Os debates acerca da orientação geral a ser tomada pelos países da África do Norte, no tocante aos valores essenciais formadores destas diretrizes, opuseram partidários de uma via baseada no Corão ou islâmica do nacionalismo, àqueles ligados a uma via liberal ou modernista, reformistas favoráveis ao individualismo misturado ao islã, a ocuparem posições intermediárias. Ao final do século XIX, o egípcio Muhammad´Abduh, possuidor de discí- pulos no Magreb (´Allāl al -Fāsī), anima um movimento de retorno às origens do Corão, ou salafiyya, sem absolutamente rejeitar as contribuições estrangeiras nem a evolução para instituições representativas. O seu condiscípulo A. Raseq, baseado na natureza essencialmente política do califado, admite o princípio da separação dos poderes espiritual e temporal. Posteriormente, durante os anos 1930, Taha Hussein aparece como defensor resoluto do modernismo liberal, o qual por ele é inclusive considerado como o herdeiro da civilização helenística mediterrânea. Mas, alguns adotam posições extremas, como os irmãos muçul- manos, opostos a qualquer reformismo, e os socialistas, críticos vigorosos do modernismo liberal burguês. Escritores e artistas constituem -se em campeões da criatividade individual. A aceleração do processo histórico a conduzir às independências sobreveio quando nenhum pensamento social integrado havia logrado assumir, não mais na África do Norte que na África Subsaariana, os valores exógenos do moder- nismo ocidental, em uma reflexão autônoma ancorada nos patrimônios culturais endógenos, pois a maturação das ideologias caminha mais lentamente que os acontecimentos. Esta ausência de filosofia global da cultura e da libertação nacional pesará sobremaneira na ulterior evolução dos países africanos. 578 África desde 1935 Em resumo, o período de 1935 às independências está principalmente mar- cado por dois grandes valores políticos, o pluralismo e o nacionalismo; todavia, estes valores não apagaram a tensão cultural de outrora, entre coletivismo e indi- vidualismo. De certa forma, estas duas ideologias reforçavam -se mutuamente, mas os seus limites revelar -se -iammuito rapidamente e, a partir dos anos 1960, eles cederiam lugar a outros valores. Os valores políticos desde a independência Com a conquista da independência nos países africanos, abre -se um período que teria potencialmente levado a um florescimento de valores originais e posi- tivos, a partir de escolhas deliberadas, constituindo um amálgama do melhor das experiências pré -coloniais com as contribuições exógenas. Ora, frequentemente, assistir -se -á a um espetacular deperecimento dos valores do pluralismo; as moti- vações e comportamentos endógenos e exógenos contribuindo a este efeito. Mas, este processo, ao desembocar em um poder pessoal, anuncia o fim dos valores ligados ao nacionalismo e ao pluralismo. Se considerarmos as divisas, os hinos e as bandeiras adotados pelos novos Estados independentes, perceberemos os valores que eles desejavam promover. As divisas estatais, fórmulas concisas que impactam pelo seu caráter imperativo e categórico, convocam para valores coletivos fundamentais como “a unidade, a paz e o desenvolvimento”: “um povo, um objetivo, uma fé” (Senegal); “união, disciplina, trabalho” (Costa do Marfim); “unidade e fé, paz e progresso” (Nigé- ria); “unidade, liberdade, trabalho” (Zimbábue); “paz, trabalho, pátria” (Cama- rões) ou “liberdade e justiça” (Gana). Os hinos nacionais, quanto a eles, exaltam a luta comum, a unidade e fraternidade, africana e universal (hino senegalês), relembram a honra aos ancestrais, a liberdade e a unidade (hinos camaronês e nigeriano). As cores das bandeiras e dos emblemas ou brasões nacionais reme- tem, sobretudo, aos animais -símbolo: o leão do Senegal, o elefante da Costa do Marfim, a águia da Nigéria, o leopardo do Zaire e a ave misteriosa que sobrevoa as ruínas do Zimbábue. As cores das bandeiras nacionais mostram a predomi- nância do verde, a simbolizar os recursos vegetais, o islã ou ainda a esperança no futuro; faz -se mister notar a frequência do vermelho em homenagem ao sangue dos mártires, ao heroísmo das lutas ou à revolução, bem como a presença do amarelo (o ouro das minas, o sol africano). O branco, quando figura (assaz raramente), é a cor da paz e da unidade. Finalmente, o negro identifica a raça ou remete a uma referência islâmica. 579Construção da nação e evolução dos valores políticos Ao total, quatro mensagens ideológicas predominam neste denso e imagé- tico discurso dos emblemas e dos símbolos: a afirmação de uma identidade, a busca do desenvolvimento, o desejo de unidade, o apelo à liberdade e à justiça social. Tudo isso manifesta fortemente uma exigência de liberdade coletiva e testemunha uma continuidade com os valores imediatamente anteriores à independência. Novas ideologias políticas Paralelamente a estas divisas, hinos e emblemas, alguns dos novos dirigentes africanos formularam as suas próprias ideologias, tal é o caso de al -Nasser, Nkru- mah, Senghor, Bourguiba, Sékou Touré, Nyerere, Amilcar Cabral e Kaunda. Desde A Filosofia da Revolução Egípcia (1954) até A Carta Nacional (1962), o egípcio Gamāl ´Abd al -Nasser, acentuou o seu abandono dos valores liberais ocidentais em prol do recurso ao pan -arabismo, ao islã, ao socialismo árabe, ao pan -africanismo e ao poder presidencial carismático. A Carta Nacional denuncia com vigor a enganação da democracia de tipo ocidental, a funcionar no interesse das classes dirigentes, feudal e capitalista, além de apresentar, por outro lado, um julgamento favorável sobre o socialismo, sistema cujo caráter garantiria às massas a democracia econômica e a liberdade coletiva. O socialismo nela está descrito como “a via que conduz à liberdade social8”, de onde deriva a necessidade do povo em possuir os instrumentos de produção e de orientar o excedente desta produção segundo um plano determinado. O nasserismo era uma ideologia, a uma só vez, pró -socialista e antimarxista. O socialismo árabe, a também expressar -se pelo partido único, em contra- partida, rejeita categoricamente o ateísmo como antivalor absoluto, assim como a ditadura do proletariado. Ele preconiza a assimilação das classes no poder democrático de todo o povo, cuja confiança legitima e inspira os dirigentes. Enfim, o socialismo árabe postula o imperativo da unidade árabe. Esta última opção aproxima al -Nasser dos tenentes do Ba’th, como o sírio Michel Aflaq, para quem o real problema consiste em “dar novamente a sua alma à nossa nação, fazer com que o árabe e a nação, em sua totalidade, empreendam um retorno a esta atitude positiva, atuante, voluntária e correta que representa, para o árabe, dominar o destino”. Disto resulta que o imperativo de uma revolução baassista 8 Para maiores detalhes sobre esta questão, conferir os textos reunidos por A. ABDEL -MALEK (org.), 1980, e J. -P. CHARNAY, 1966. 580 África desde 1935 na qual “o socialismo é o corpo e a unidade é a alma; esta ressurgência (ba’th) deveria apoiar -se no povo, única força capaz de realizar a unidade”. Estas ideias -mestras do nasserismo e do baassismo − democracia teísta, valo- res autênticos do islã (fraternidade, defesa da comunidade), unidade árabe e apelo ao povo − germinarão na África do Norte. Na Argélia, um socialismo revolucionário camponês e islâmico, originado em uma longa e sangrenta luta de libertação, tenta conjugar os valores políticos do nacionalismo, da autogestão, sob a égide de Ben Bella e, a partir de 1976, sob a direção de uma FLN transformada em partido único, cujo papel dirigente deveria confirmar a democracia socialista, neste mesmo processo o islã torna -se religião de Estado9. Na Tunísia, é o triunfo de um socialismo neodestouriano de tipo coope- rativista, associando as noções de lucro e de acumulação de capital àquelas de empresas públicas e com participação estatal. Segundo o seu teórico e protago- 9 J. -P. CHARNAY, 1966, p. 245. figura 16.2 Chegada de Ahmed Ben Bella na Argélia em 5 de julho de 1962. (Foto: M. Riboud. Magnum, Paris.) 581Construção da nação e evolução dos valores políticos nista, A. Ben Salāh, trata -se de conjurar as atrocidades da luta de classes através de uma revolução “nos espíritos muito mais que nas estruturas”, com vistas a tornar aceitáveis os sacrifícios impostos pela decolagem econômica10. Na Líbia, após a derrubada da monarquia em 1969, em seguida, após a instauração de uma república socialista árabe fundada nas nacionalizações e no pan -arabismo, el -Khadafi empreende, no seu Livro Verde (1976), uma destrui- ção sistemática das teses liberais, apostando no islã como uma terceira via entre os imperfeitos capitalismo e socialismo. A democracia representativa não passa, nos diz ele, de um circo; o referendo é uma impostura. Em razão disto há um recurso à democracia direta dos comitês e dos congressos populares (jamahiriah) de inspiração tradicional11. Na África Subsaariana, Kwame Nkrumah formula, em O Consciencismo (1964), uma das mais importantes doutrinas de descolonização e de desenvol- vimento para a África. Ele escreve: “Não se pode sonhar rejeitar todas as influ- ências islâmicas ou da Europa colonialista, em uma vã tentativa de recriar um passado que não mais pode renascer. Para seguir adiante, somente é possível ir em frente, rumo a uma forma de sociedade mais elevada e mais equilibrada, na qual o essencial dos valores humanos da sociedade tradicional será reafirmado em um contexto moderno12.” O consciencismo consiste, portanto, em um esforço simples que, à imagem do projeto nassariano, combina os valores do nacionalismo anti -imperialista, da modernidade técnica e científica, bem como do patrimônio africano e islâmico, tudo isto graças ao socialismo e à unidade africana. Julius Nyerere, quanto a ele, aposta antes de tudo, no legado africano dos valores sociais, cujo aspecto mais decisivo seria a solidariedade comunitária: “A África, diz -nos ele, nãotem lições sobre o socialismo a receber da Europa; ela poderia, antes, conceder alguns ensinamentos a respeito.” Tal socialismo consiste antes de tudo em uma atitude que implica a “preocupação de cada um com o bem estar alheio13”. A ujamaa é “a comunidade soldada graças ao afeto e à solida- riedade entre os seus membros, os quais trabalham para enriquecer o patrimônio comum e, através deste trabalho, satisfazer as suas necessidades pessoais”. Se Nkrumah é aquele que mais contribuiu para integrar os valores considerados, talvez caiba a Nyerere ser o maior artífice na promoção do desenvolvimento e 10 Textos de A. Ben SALĀH em A. ABDEL -MALEK (org.), 1980, pp. 255 -258. 11 Texto de M. EL -KHADAFI em A. ABDEL -MALEK (org.), 1980, pp. 337 -341. 12 K. NKRUMAH, citado por Y. BENOT, 1969, p. 394. 13 J. K. NYERERE, 1963b, p. 8. 582 África desde 1935 no tocante à exploração crítica e criadora do patrimônio dos valores da África. Assim sendo, àqueles que temem o eclipsar do espírito de iniciativa individual e do imperativo do trabalho pelo valor da solidariedade, ele replica que a soli- dariedade de todos implica no trabalho de todos. Se existe um dever de hospi- talidade, o indivíduo que dele beneficia -se tem, no que lhe diz respeito, o dever de participar do trabalho da comunidade. Deriva que a ênfase é colocada nos valores de um “socialismo africano”, animador tanto da sociedade civil quanto da sociedade política. Pelo intermédio da disciplina do marxismo -leninista, Amilcar Cabral, funda- dor do Partido Africano pela Independência da Guiné Bissau e do Cabo Verde (PAIGC), igualmente tentou uma integração entre os valores do socialismo e do nacionalismo. Segundo ele, somente esta associação orgânica permitiria fazer valer o direito às aspirações do povo no domínio político, através do poder popular, na esfera socioeconômica e cultural, graças à justiça social e ao enrai- figura 16.3 Amilcar Cabral, presidente do PAIGC, na frente militar oriental da Guiné Bissau. (Foto: Le Nouvel Afrique -Asie, Paris.) 583Construção da nação e evolução dos valores políticos zamento nos valores civilizatórios da gente ordinária. Tal projeto de sociedade fora lançado nas zonas libertas pelos combatentes do PAIGC, na Guiné Bissau. Léopold Sédar Senghor, finalmente adepto do socialismo africano, não dei- xaria de reconhecer a utilidade do quadro conceitual oferecido pelo marxismo, recusando -se, contudo, a aderir a uma ideologia que supõe a luta de classes e o ateísmo: “nós podemos, portanto e legitimamente, conquanto empreguemos o método de Marx para analisar a situação econômico -social no Senegal e na África negra, sob domínio do capitalismo, conceder, aos nossos valores religiosos e culturais, o seu posto natural em nossa vida espiritual14.” Todas estas ideias, dispostas sob a apelação genérica socialismo africano, foram, evidente e fortemente, influenciadas pelo islã, pelo marxismo -leninismo e pelos valores tradicionais africanos. Quais tipos de regime a África colonial viu nascer sob o efeito de todas estas antigas e novas ideologias? Os regimes pós ‑coloniais na África Ao total, aproximadamente cinco tipos de regime estabeleceram -se na África durante a era pós -colonial. Primeiramente, surgiram regimes socialistas funda- dos por estes dirigentes de cujas ideias fizemos acima uma análise. Al -Nasser tomou a dianteira no movimento, no ano de 1952, ao pronunciar a dissolução de todos os partidos egípcios, instituindo a União Socialista Árabe, partido de Estado ou, antes e sobretudo, organismo estatal encarregado de enquadrar poli- ticamente as massas15. Este precedente foi amplamente copiado na África, sob diversas denominações: assembleias, movimento, frente, convenção, congresso, união e assim, sucessivamente. Em sua totalidade representavam uniformemente um aparato sociopolítico e ideológico a funcionar como um sistema destinado a monopolizar a comunicação entre os adeptos e a base popular. Kwame Nkrumah seguiu, também ele, esta via e transformou Gana, no ano de 1964, em regime socialista de partido único, após ter suprimido as organizações étnicas, regiona- listas e religiosas. Sékou Touré, durante os anos de 1960, igualmente procedeu na Guiné, assim como Modibo Keita no Mali e Julius Nyerere na Tanzânia. Em Moçambique, no ano de 1974, a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) foi, desta mesma forma, constituída na qualidade de partido único, 14 L. S. SENGHOR, 1971, p. 58. 15 P. WANYANDE, 1987, p. 71. 584 África desde 1935 exclusivo instrumento para a integração da sociedade rural ao projeto de criação de uma nação patrocinada pelo aparelho de Estado. Amilcar Cabral, na Guiné Bissau e Agostinho Neto, em Angola alinharam, por sua vez e ao menos por um período, os seus países com bloco de países socialistas. O segundo tipo de regime é o regime militar. Os regimes desta natureza, cujo número é variável segundo o período em questão, foram estudados no capítulo XV. Digamos aqui simplesmente que se trata de regimes nos quais os dirigentes civis foram substituídos por soldados, posteriormente a um golpe de Estado militar. Estas brutais intervenções, contadas às dezenas, estabelecem novos valores políticos, em suma, reduzidos à submissão ao consenso, mediante a força das armas e a rejeição do primado do direito. O terceiro tipo de regime é o regime do apartheid, cujo reinado, felizmente, esteve restrito à África do Sul. Não o estudaremos nesta oportunidade, ateremo- -nos simplesmente a precisar que ele constitui um caso extremo de teorização e imposição de monstruosos “valores” políticos: a desigualdade, a segregação e o racismo sanguinário. A própria religião foi convocada em socorro para justificar o statu quo. No curso dos decênios, a presença deste regime conduziu os Estados da linha de frente na África Austral a um encadeamento de violências travestidas sob múltiplas formas: guerras étnicas, guerras conduzidas pelo Estado ou guerras de libertação (Namíbia), revoltas de bandidos e mercenários, golpes de Estado, forçadas migrações em massa, atos de sabotagem, e outros que tais, sucessiva- mente. O apartheid impediu, em numerosos países a construção da nação. O quarto tipo de regime é o regime conservador. Os regimes desta categoria, professores de fé e de respeito aos olhos da abordagem capitalista do desenvol- vimento e da construção da nação, abandonaram o liberalismo e a democracia, subjacentes a esta abordagem, em proveito de um sistema fundado sobre um partido único ou dominante e sobre a autocracia. Eles estão instaurados em grande número de Estados africanos: Costa do Marfim, Serra Leoa, Senegal (até 1978), Camarões, Quênia, Zâmbia, Zaire (atual RDC), Malaui e Gabão um dos seus valores fundamentais é a “modernização”, em outros termos, a corrida ao crescimento extrovertido. Entre 60 e 80% das suas receitas de exportação provêm da venda de um, dois ou três produtos agrícolas ou minerais. O capi- talismo de Estado canaliza vastos recursos aos cofres públicos, dispondo -os à classe política. A corrida pelo dinheiro inspira todas as motivações, atitudes e comportamentos. Poder e riqueza tornaram -se vasos comunicantes. Em todos estes Estados, o sentido do serviço público e o senso das responsabilidades estão comprometidos, os indivíduos aqui estão privados de certos direitos e valores, correlatos aos primeiros. Igualmente, as classes pobres, espoliadas dos frutos 585Construção da nação e evolução dos valores políticos do crescimento, não têm o direito à expressão pois, conceder -lhes esta virtude representaria um perigo para a estabilidade necessária a um desenvolvimento, cuja consumação, inclusive, não está garantida. Assim estão reunidas as condições ideais para uma acumulação sem freio de capital mediante a exploração de um lumpemproletariado indefeso: um “sistema políticohíbrido”, de acordo com a declaração feita em 15 de março de 1990, pela conferência episcopal zairense, a título de contribuição para a “consulta nacio- nal sobre a situação geral do país”. O sistema, prosseguem os bispos, “extrai do liberalismo as vantagens que oferece − na realidade a uma minoria − o usufruto da propriedade privada e, por outro lado, toma emprestados ao totalitarismo os métodos de conquista e de manutenção no poder16”. A incoerência desta contradição calculada, transformada em um perverso “valor” político, é a raiz do mal africano, na justa medida em que ela acumulou todos os aspectos negativos de três sistemas: a herança africana, o liberalismo capitalista e o marxismo- -leninismo dos países do antigo Bloco Oriental. Finalmente há aqueles países que se ativeram aos valores do pluralismo e da democracia parlamentar. Infelizmente, eles formam o grupo mais reduzido, cinco países ao todo e no máximo: a Gâmbia, o Botsuana, o Senegal, a Namíbia e as Ilhas Maurício. Estes países são os únicos que ainda autorizam eleições políticas realizadas sob o signo da concorrência e nos quais os partidos de oposição não se encontram atados. Não se pode negar que, nestes países, a situação econômica não é muito mais brilhante que alhures mas, como veremos em outros capítulos, este fato demonstra simplesmente a identidade dos limites estruturais em todos os países africanos. A situação apresenta -se, todavia e qualitativamente, de forma distinta sob a ótica dos valores políticos, notadamente quando existem, entre outros, uma imprensa independente, um sistema judicial autônomo gozando de garantias legais, uma relativa separação dos poderes, eleições abertas, senão totalmente livres, e as liberdade de manifestação e de reunião. Pan ‑africanismo e não alinhamento Paralelamente às novas ideologias e aos novos regimes advindos na África pós -colonial, dois temas também integraram o campo dos valores políticos africanos. Trata -se, primeiramente, de uma abordagem mais radical e africani- zada do pan -africanismo e, em segundo lugar, da questão do não alinhamento. 16 Jeune Afrique, no 1527, 9 de abril 1990. 586 África desde 1935 Estas duas temáticas serão aprofundadas nos posteriores capítulos 24, 25 e 28. Talvez nos bastasse aqui dizer, antes de mais nada, que embora as rédeas do movimento pan -africano tenham passado das mão dos Negros das Américas àquelas dos Negros da África, durante o quinto Congresso Pan -Africano rea- lizado em Manchester, no ano de 1945, foi somente após a conquista da inde- pendência em Gana, no ano de 1957, que o pan -africanismo, como movimento e do ponto de vista operacional, foi transferido das Américas e da Europa para o próprio continente africano. Os primeiros sinais desta mudança foram dados durante as duas conferências organizadas em Accra, no ano de 1958, pelo novo dirigente de Gana, Kwame Nkrumah, que se apresentara como um dos cossecretários do Congresso de Manchester, foram elas: a Conferên- cia dos Chefes de Estado Africanos, então independentes, e a Conferência dos Povos da África. Igualmente, foi a partir deste momento que a questão territorial acrescentou -se ao universo do pan -africanismo. Desde logo, este movimento assumiria duas dimensões: aquela do pan -africanismo transaa- riano e aquela do pan -africanismo transatlântico, a primeira apelando para a unidade, com base na mística do território continental africano, a segunda fundamentando -a sobre a mística da raça negra. Por outro lado e no plano ideológico, o pan -africanismo enfatizava, doravante, duas temáticas: o pan- -africanismo de libertação e o pan -africanismo de integração, ambos objetos de posterior análise. A segunda nova ideologia, integrada à visão do mundo própria aos Esta- dos africanos e especialmente no domínio das relações exteriores e mundiais, é aquela referente ao não alinhamento. No transcorrer da segunda metade do século XX e no tocante às relações entre os pequenos países e as grandes potências, pode -se dizer de imediato não haver nenhum princípio de polí- tica externa de maior impacto que o não alinhamento. O significado destes conceitos e as modalidades da sua tradução no plano operacional mudaram desde o seu surgimento, durante os anos 1950. Entretanto, ele não cessou de manifestar importante influência nas orientações diplomáticas da maioria dos Estados do mundo em desenvolvimento. Kwame Nkrumah e Gamāl ‘Abd al -Nasser figuraram entre os fundadores africanos do não alinhamento. Em princípio, o movimento representava a expressão de um protesto solidário e visava a modernização das relações Leste -Oeste. Entretanto, após os anos de 1970 e mais particularmente a partir da cúpula argelina de setembro de 1973, o eixo do movimento transladou -se para privilegiar uma postura em defesa de uma reestruturação fundamental do sistema mundial, rumo e em prol de uma maior equidade nas relações Norte -Sul. 587Construção da nação e evolução dos valores políticos As novas tendências políticas na África No curso dos anos 1970, não foi na ordem do não alinhamento e das relações mundiais que novas tendências surgiram mas, antes e sobretudo, na ordem da situação política interna da África. A sua aparição está, primeiramente, marcada pelo ocaso dos regimes socialistas na África, em seguida, pela retro -concessão do poder político do exército para os civis, com um temporário retorno de Gana e da Nigéria ao rol dos regimes civis, aproximadamente ao final dos anos 1970, e sobretudo pelo abandono do sistema de partido único e do regime autocrático, em direção ao retorno junto aos anteriores valores da democracia liberal e do multipartidarismo. O fracasso do modelo socialista Como indicado precedentemente, o modelo socialista − combinação do marxismo -leninismo, do socialismo islâmico e dos valores africanos tradicionais − esteve muito em voga no decorrer dos primeiros decênios da independência, sendo adotado por países como o Egito, a Guiné, o Mali, a Tanzânia, Gana, Moçambique e Angola. Ora, este modelo foi abandonado por todos estes países, sem exceção, segundo um processo iniciado no Egito, com al -Nasser, prosse- guindo com a queda de Nkrumah, em Gana, e a saída do poder de Modibo Keita, no Mali, no curso dos anos 1960. Como poderíamos nós explicar este fracasso do socialismo na África? Aqui reside a questão imperativa. Inicialmente, faz -se mister precisar que se trata de um fracasso em nada ligado à derrocada do, soi -disant, comunismo, na União Soviética e na Europa Oriental, durante os anos 1980. O processo, como vimos, começou na África no curso dos anos 1960. A debacle, ocorrida na Europa Oriental, não fez senão acelerar um processo em desenlace na África. É verossímil que no continente africano, o fracasso do socialismo deva -se ao fato que, embora o clima intelectual lhe fosse propício, o campo sociológico e material não se revelou assaz fértil. O clima intelectual tornou -se favorável ao socialismo durante os primeiros decê- nios da independência, primeiramente porque muitos nacionalistas africanos haviam logrado associar, no plano conceitual, o capitalismo ao imperialismo e ao colonialismo; desde logo os dirigentes africanos progressistas tornaram -se “socialistas” porque eles eram nacionalistas. Em segundo lugar, a abordagem capitalista do desenvolvimento durante os primeiros anos da independência tendo -se revelada inadequada, alguns dirigentes africanos tiveram tendência a 588 África desde 1935 perceber, na via socialista, uma estratégia substituta, no sentido da melhoria e transformação da situação social e econômica. O terceiro fator que predispunha favoravelmente muitos africanos em res- peito ao socialismo era a corrupção endêmica que não tardara a surgir em meio aos dirigentes pós -coloniais do continente. Evidentemente, o capitalismo não possui emnada a exclusividade no referente à corrupção e esta última não era desconhecida nos países socialistas. Contudo, o sentimento prevalecente era aquele segundo o qual, eventualmente, seria mais difícil manter a disciplina social em condições baseadas no comportamento econômico regido pelo laisser- -faire, comparativamente àquelas correlatas a uma planificação e controle relati- vamente centralizado. O quarto fator era a ideia muito difundida segundo a qual a cultura africana tradicional era essencialmente coletivista e, por conseguinte, “socialista”. Tal era, em todo caso, o ponto de vista defendido pelos dirigentes africanos, como Senghor, Nyerere e Mboya. Acima de tudo, os regimes africa- nos, pretensos engajados na via do Estado de partido único, encontravam -se particularmente fascinados pela simbólica socialista. Ao final das contas, as tendências centralizadoras do socialismo apresentavam uma natureza a justificar o monopólio do poder exclusivamente por um partido. Por todas estas razões, o clima intelectual demonstrava -se, em seu conjunto, mais favorável ao socialismo. Consiste em fato consumado que, no imediato posterior à independência, a maioria dos governos africanos defendia, ao menos da boca para fora, os preceitos do socialismo, além de ser notório que os países precedentemente enumerados adotaram -no não somente do ponto de vista ideológico mas, igualmente na prática. Ora, todos esses países fracassaram porque, malgrado um clima intelectual propício, o terreno sociológico revelou -se refratário ao socialismo. O primeiro fator sociológico desfavorável era, e continua a ser, a maior força da etnicidade na África, em grau muito superior ao demonstrado pela consciência de classe. A maioria dos africanos são, primeiramente, membros de sua etnia e em seguida, membros de certa classe social. Em caso de crise, respectivamente, os operários luo e os operários yoruba estão mais propensos a identificarem -se com a bur- guesia luo, do Quênia, e com a burguesia yoruba, da Nigéria, comparativamente à possível identificação face aos seus irmãos camponeses; tal é a conclusão que Jaramogi Oginga Odinga e o chefe Obafemi Awolowo puderam tirar da sua experiência. Oginga Odinga tentou formar um partido socialista radical. Ele não tardou em descobrir que aqueles a lhe prestarem apoio não eram os desfa- vorecidos do Quênia, mas quase exclusivamente indivíduos luo. Igualmente, o chefe Obafemi Awolowo pôde muito rápido perceber, durante a primeira e a 589Construção da nação e evolução dos valores políticos segunda repúblicas da Nigéria, que ele era, em que pese o seu discurso socialista, o herói não da classe operária do conjunto da Nigéria mas, de praticamente todas as classes do país yoruba. Ao considerarmos o todo em sua justa medida, estamos fadados a afirmar que na África, sempre que postas em disputa, quase ao limite do enfrentamento, por um lado, as forças da etnicidade, por outro, aquelas relativas à consciência de classe, por pouco que não invariavelmente, foi a pertinência étnica o vetor triunfante. O segundo fator sociológico desfavorável está representado pela força das eli- tes culturais africanas em suas relações com as classes econômicas enquanto tais. Em razão da fraqueza destas últimas, a única classe capaz de consumar a revo- lução socialista na África somente podia ser a elite. Infelizmente, esta elite era, em sua totalidade, formada por africanos fortemente ocidentalizados, os quais alimentavam o seu poder, não através da posse de riquezas mas, graças à incor- poração de uma educação ocidental e pela aptidão no manejo do verbo. Assim, embora tornada revolucionária, ela não era capaz de fazer a revolução socialista, pois como pressentira Karl Marx, unicamente a classe menos favorecida das figura 16.4 Tom Mboya, antigo dirigente sindical e ministro do Planejamento Econômico do Quênia, assassinado em 1969. (Foto: Foundations Books Limited, Nairóbi.) 590 África desde 1935 sociedades mais evoluídas – e não a classe mais favorecida constituída pela elite africana ocidentalizada – poderia consumá -la. Inclusive os africanos em viagem de estudos à União Soviética ou à China, forçosa e previamente, eram levados a ocidentalização pois, as obras de Marx, de Angels, de Lênin e de Mao não haviam sido traduzidas para as línguas africanas, como o kiswahili ou o yoruba. Consiste em um imperativo para um africano, trata -se de uma impossibilidade sociolinguística, ser um marxista por completo, sem, necessária e forçosamente, ser ocidentalizado. Pode -se, portanto e incontestavelmente, classificar a natureza da formação das elites africanas entre as características desfavoráveis do campo sociológico ao qual, no âmbito africano, foi confrontado o socialismo. Um terceiro fator a comprovar a aridez do terreno, diz respeito às capaci- dades organizacionais da África em sua fase histórica atual. Consta como ideia amplamente difundida, supor que uma tradição de coletivismo, em um contexto tradicional, esteja em condições de predispor o desenlace e o desenvolvimento de esforços coletivos organizados no contexto moderno. Infelizmente, constata- -se antes o inverso. O esforço coletivo, fundado sobre os costumes e a tradição, bem como sobre os laços de parentesco, não preparou em nada o continente africano, no tocante ao tipo de coletivismo organizado, forçosamente assentado sobre o comando, e não sobre o ritual. Se, por sua vez, o socialismo exige uma estrutura eficaz e racional de comando, não fundada sobre os costumes nem sobre as afinidades étnicas ou os ritos, a sociedade em seu atual estágio evolutivo da experiência africana, quanto a ela, não está sempre preparada para acolher o modo de transformação socialista. O quarto aspecto da inadequação do terreno sociológico africano à transposi- ção do socialismo, leva -nos, quanto a ele, a questões em respeito à continuidade histórica. Muitas economias africanas integraram -se, em profundidade e desde outrora, a uma economia mundial dominada pelo Ocidente. Os países africanos, ao adotarem o socialismo em suas sociedades, descobrem a sua permanente integração ao sistema capitalista mundial. As regras deste sistema derivam mas- sivamente de princípios elaborados no fio histórico do capitalismo. No comércio internacional, os países buscam captar o máximo de receitas e realizar lucros. As regras dos negócios e das trocas em nível internacional, o sistema bancá- rio, subjacente a estas trocas, as moedas, efetivamente utilizadas nos mercados financeiros e para regular os pagamentos, estes elementos constituem, em si e contudo, produtos da experiência capitalista. Países como Vietnã, Angola e mesmo Cuba, compreendem, ao final das contas, que a melhor plataforma de sanidade econômica consiste em adquirir legitimidade internacional, conforme as normas ocidentais. Possivelmente, o Vietnã e Cuba não alcancem conquistar 591Construção da nação e evolução dos valores políticos a sua legitimidade mas, uma das suas ambições consiste em receber os benefícios do Ocidente, obter para os seus produtos um fácil acesso aos seus mercados e, igualmente, ter acesso aos seus mercados financeiros. Este conjunto de circunstâncias, notoriamente, significa que os países do Ter- ceiro Mundo podem incorporar modalidades de funcionamento interno socia- listas, permanecendo, todavia, profundamente integrados ao sistema capitalista internacional. Igualmente fizemos valer que um país como a Tanzânia é mais dependente, nos dias atuais, do sistema capitalista mundial, comparativamente ao que era antes de inaugurar a sua experiência neosocialista, segundo os termos da Declaração de Arusha, em 1967. Estamos diante de uma configuração de fatores, os quais, por um lado, reve- lam que a África está intelectualmente pronta para o socialismo e, por outra parte, advertem -nos que as condiçõesmateriais para uma autêntica experiência socialista no continente ainda não estão reunidas. O clima intelectual é promis- sor; o terreno sociológico é dissuasivo. Retorno aos valores democráticos liberais A entrada no obscurantismo dos valores socialistas na África acompanhou- -se de um fluxo sustentado de retorno aos antigos valores democráticos liberais, próprios aos primórdios da independência. Existem, nos dias atuais e na maioria dos Estados africanos, movimentos democráticos liberais, a exigirem o fim da dominação do partido único e do exército, o retorno ao pluripartidarismo e elei- ções políticas fundadas na disputa, bem como, o restabelecimento dos direitos humanos fundamentais, especialmente a liberdade de associação e a liberdade de imprensa, assim como a abolição do poder de prisão e detenção arbitrárias. Estes movimentos reivindicam, em suplemento à justiça social e ao controle das responsabilidades, a privatização, a liberação dos mercados e a descentralização, além de defenderem a participação de todas as classes nos processos decisórios e a aceleração do desenvolvimento. Até mesmo antigos pilares do sistema de partido único do modelo socialista de desenvolvimento, como Nyerere, toma- ram o trem em movimento. É possível medir o sucesso manifesto deste novo movimento pelo fato de dirigentes tais como Mobutu, no Zaire (atual RDC), Houphouët -Boigny, na Costa do Marfim, e Kerekou, no Benin, terem conce- dido o pluripartidarismo e as eleições livres. Eleições abertas à disputa foram, desde então, organizadas no Benin, em Cabo Verde, em São Tomé e Príncipe, no Gabão e no Senegal, países estes que decidiram, em sua totalidade, agregar -se 592 África desde 1935 ao pequeno grupo de Estados democratas do continente. Uma vez mais, não nos resta senão reclamar a explicação para estes desdobramentos muito felizmente tomados pelos acontecimentos. Atenhamo -nos aqui a acrescentar, igualmente, que estas evoluções não configuram nem ineditismo, nem tampouco consistem em reflexos da glasnost e da perestroïka de Gorbatchev, das pressões exercidas por instituições finan- ceiras internacionais, como o Banco Mundial e o FMI, ou por países doadores de ajuda, tais como os Estados Unidos da América do Norte, a Grã -Bretanha e a França. Em alguns países africanos, à imagem de Gana, da Nigéria, da Costa do Marfim e do Quênia, o pleito por democracia e pelo regime civil começou a manifestar -se desde o final dos anos 1960 e no curso dos anos 1970, após a instauração do sistema de partido único ou de ditaduras militares. Ninguém seria capaz de esquecer a existência, no Quênia, do movimento Mwakenya, a prisão e o encarceramento do romancista Ngugi, de certos membros do parlamento e de outros intelectuais do país, durante os anos 1970. Tampouco, pessoa alguma deixaria cair no esquecimento a oposição ao governo de união em Gana no transcorrer destes mesmos anos, oposição esta dirigida pelo Movimento Popular pela Liberdade e pela Justiça, em luta contra o regime militar do Coronel I. K. Acheampong, e a reclamar o restabelecimento de um governo civil e da democracia parlamentar fundada sobre o sistema mul- tipartidário. A débâcle do (soi -disant) comunismo na Europa Oriental e na União Soviética, assim como as pressões do FMI e dos países ocidentais industrializados, tiveram como consequência obrigar os dirigentes africanos a acatarem as exigências destes movimentos, em lugar de reprimi -los, arbitrária e brutalmente, como era lugar -comum durante os anos 1970 e ao início dos anos 1980. A verdadeira razão para o surgimento destes movimentos consiste no simples fato a revelar que, no desenrolar dos anos 1970, não somente os regimes socialistas mas, igualmente os sistemas baseados no partido único, mostraram -se incapazes de oferecer todo o esperado de sua parte, a saber, o desenvolvimento e a construção da nação. Sublinhemos que dois argumentos -chave foram enunciados, ao final dos anos 1950 e durante os anos 1960, com o objetivo de justificar o estabelecimento dos regimes baseados no partido único: o imperativo da unidade nacional, além das classes ou das etnias e as exigências do desenvolvimento. Assim sendo, Julius Nyerere escrevia: “Agora que os colonialistas partiram, não há mais divisão entre dominadores, por um lado, e dominados, por outro [...]. O pluripartidarismo é um luxo que nós, aqui na África, não podemos nos permitir. Temos pouquíssimo 593Construção da nação e evolução dos valores políticos tempo e há demasiadas realizações relevantes a concretizarmos, a ponto de não podermos nos conceder este fútil passatempo17.” No Mali, Madeira Keita sustentava, por sua vez, que o partido único, estru- tura concentrada da nação, era “o crisol no qual se encontram o camponês e o homem citadino18”. “O desenvolvimento contínuo, escrevia François Tombalbaye (Tchad), exige a adesão de todos a um objetivo instituído em comum, assim como a conjunção de todas as energias; e o partido único desempenhará, na qualidade de mobilizador, um papel central neste âmbito19.” “Se o partido identificar -se com o povo, escrevia -nos Sékou Touré, é evidente que o Estado deva igualmente identificar -se com o partido, com o intuito de constituir a indissociável trilogia: povo, partido, Estado”. Desta forma, “não há possível razão partidária que deva prevalecer sobre a razão e o interesse do povo, igualmente, não existe nenhuma razão de Estado que possa prevalecer sobre a diretriz partidária20”. A Constituição de 1982, na Guiné, dispõe que “o poder revolucionário [...] seja exercido pelo povo, organizado no seio do Partido Democrático da Guiné, partido -Estado, com base no centralismo democrático”; todos os órgãos de poder apresentam -se como órgãos deste partido -Estado e “os juízes são eleitos pelas instâncias do partido, em todos os níveis”. Assim falavam os dirigentes do Togo, de Camarões, do Zimbábue e do Zaire (atual RDC); neste último país, o partido do presidente Mobutu era “a única instituição do Estado21”. O coletivismo tornara -se um monopólio político. Entrementes, após dezenas de anos sob este sistema, nem a unidade nacio- nal, nem o desenvolvimento se haviam realizado nestes países africanos. Ao contrário, era manifesto, ao final dos anos 1970, que os raros países democrá- ticos, como o Botsuana e as Ilhas Maurício, haviam obtido resultados nitida- mente melhores, em matéria de desenvolvimento econômico, de estabilidade política e de edificação nacional. Excetuando -se estes poucos países, na rea- lidade, assistira -se à supressão dos Direitos Humanos fundamentais, ao esta- belecimento de uma autocracia desavergonhada, da corrupção generalizada, do nepotismo, bem como à presença da mão -forte do aparato de Estado em todos os aspectos da vida social, através da monopolização dos recursos e da 17 J. K. NYERERE, 1970a, p. 48. 18 M. KEITA, citado por L. SYLLA, 1977, p. 260. 19 F. TOMBALBAYE, citado por L. SYLLA, 1977, p. 260. 20 A. SÉKOU TOURÉ, 1977, citado por L. SYLLA, 1977, pp. 245 -247. 21 P. -F. GONIDEC, 1983, p. 72. riqueza do Estado pelos dirigentes do partido ou pelas oligarquias militares e sua clientela. Ora, damo -nos de mais e mais conta que, embora o pluralismo não constitua, evidentemente, uma panaceia para os males políticos, ele é capaz de facilitar a concretização de um dos mais altivos valores políticos, a liber- dade. Pois, finalmente e nos dias atuais, muitos africanos questionam -se sobre quais seriam as razões para a transformação do desenvolvimento e da unidade em valores absolutos. Desenvolvimento em proveito de quem? Unidade para quem? O que seria o desenvolvimento para aqueles situados à margem do aparelho partidário? Estas questões estão no cerne da revolução democrática que sacode a África no início dos anos 1990. Portanto, as reivindicações dos africanos, confluem para um retornonão somente aos valores democráticos liberais mas, igualmente, aos próprios valores que encarnam e simbolizam as suas divisas, os seus hinos e as suas bandeiras nacionais: a unidade nacional, o desenvolvimento, a liberdade e a justiça social. figura 16.5 Ahmed Sékou Touré, presidente da República da Guiné de 1958 a 1984. (Foto: IMAPRESS, Paris.) 595Construção da nação e evolução dos valores políticos Rumo a uma nova ética capitalista Todavia, no seu impulso atual em favor do modelo de desenvolvimento liberal e democrático, a África, deveria ela percorrer todo o leque de priva- tizações e assumir a postura ocidental relativa à liberdade de mercado? A experiência pregressa aconselha a África, neste âmbito, a adiantar -se com pru- dência e a modificar, em certa medida, a sua postura. Primeiramente, todos os africanos puderam medir a força, ainda presente no continente, da pertinência étnica, com o seu correlato nepotismo e, por conseguinte, ao adotarem esta abordagem, não seria temeroso que o conjunto do mercado seja enquadrado ou esteja sobre o monopólio de uma ou duas etnias? Desde logo, não seria neces- sário que a África estabelecesse uma espécie de “legislação antitruste” étnico, intuindo impedir ou quebrar os “monopólios étnicos”, à imagem daqueles mantidos, nos primórdios da independência, pelos ibo, na Nigéria, ou pelos kikuyu, no Quênia? O segundo grande ensinamento da História consiste na maneira através da qual o móbil do prestígio, no tocante ao comportamento econômico africano, conduziu a um consumo ostentatório e a um exibicionismo “aristocrático” e monárquico desenfreado. A Mercedes é na África o símbolo permanente da vaidade ostentatória mas, há lugares, como a Nigéria, nos quais a onerosa frota de automóveis está, por vezes, arregimentada em meio a um ou dois palácios, um avião e um helicóptero privados e um trem ordinário, este conjunto em proveito de uma única família! Se o móbil do lucro, na teoria econômica clássica, é supostamente capaz de incitar uma maior produção, o móbil do prestígio, no referente ao comporta- mento econômico africano dos tempos atuais e quanto a ele, incita um maior consumo. Ademais, os produtos de consumo de maior prestígio são frequente- mente importados e pagos em divisas. Em si, a privatização não provoca uma maior produção na economia africana. O móbil do prestígio funciona tanto no âmbito privado quanto ao nível do Estado e devora monstruosamente os recursos do país. Quando os ocidentais exortam os países africanos a privatizar, eles contam com os efeitos da liberdade concedida ao móbil do lucro. Ora, na realidade, na maior parte do continente africano, não se trata simplesmente de liberar e ativar o móbil do lucro, mas, além disto, de dominar e reprimir o móbil do prestígio. Podemos sustentar que, entre as duas cruzadas, a mais urgente continua sendo a segunda. 596 África desde 1935 A bem da verdade, a cruzada das cruzadas poderia perfeitamente consistir em encontrar os meios capazes de levar o móbil do prestígio de tal forma a fazer -lhe servir aos fins da produção e não somente aos apetites do consumo. Não seria necessário que a África tornasse a criatividade e a produção mais prestigiadas que a posse? Não seria imperativo que os africanos se interessassem mais pro- ximamente aos problemas ligados aos estímulos no continente? Como afinar a sensibilidade do equilíbrio africano entre o prestígio e o lucro? Um terceiro grande problema de ordem privada a pesar sobre o mercado (além do nepotismo étnico e do móbil do prestígio) é o problema geral das prá- ticas de corrupção, comuns na África pós -colonial. A corrupção pode bloquear os procedimentos e ter um efeito paralisante sobre a produção e a distribuição. Ela pode incidir, simultaneamente, sobre o setor público e o setor privado; ela pode ser burocrática ou onipresente. A privatização da economia corre o risco de simplesmente traduzir -se pelo tráfico de influência ou, pela privatização da corrupção − por vezes o mal mais contagioso para o conjunto da sociedade, comparativamente à corrupção dos funcionários e dos burocratas. O capitalismo chegou à África sem a “ética protestante” do trabalho e da frugalidade. Em termos econômicos, o protestantismo não se posicionava contra o instinto de aquisição; ele desconfiava do instinto de consumo, sobretudo com a finalidade de obter prazer. Segundo um dito puritano da época da Reforma, “Trabalhe para tornar -se rico para Deus mas, não para a carne e o pecado!” A riqueza não era considerada como contrária à moral senão quando ela incitava a ociosidade e a uma complacência culpável. A aquisição de riquezas não era perigosa senão quando ela solapava os princípios gêmeos do trabalho e da fru- galidade, em nome de Deus. Em sua chegada à África, o capitalismo trouxe o imperativo da aquisição sem a disciplina do trabalho e da frugalidade. O próprio homem branco, quanto a isto, fornece -nos um perigoso exemplo. Ele jamais era visto lavando a sua pró- pria roupa, cozinhando, engraxando os seus sapatos, arrumando a sua cama ou o seu próprio aposento, nem mesmo servir -se do álcool em seus aperitivos. O luxo da vida aristocrática dos colonos brancos, conduzindo -os a serem os mestres dos serviçais africanos, prestou um desserviço ao capitalismo trazido pelo homem branco. O móbil do prestígio propriamente africano, traço que em suas versões originais possuía um caráter convivial, foi transformado pelos estilos de vida aristocráticos importados pelo homem branco. O móbil do prestígio na África, desde então, encarnou -se na esbanjadora cultura de consumo à moda europeia, com as suas imensas mansões e os seus criados, domésticos e jardineiros. 597Construção da nação e evolução dos valores políticos Se a ideologia do espírito empreendedor reduz -se à necessidade de aquisição, é possível dizer que ela apresenta -se hoje como um fato consumado em boa parte do continente africano. A tal ponto que, eventualmente, faz -se chacota daqueles indivíduos avessos a tirarem proveito das possibilidades que lhes são oferecidas, tocantes ao seu enriquecimento e aos eventuais possíveis favores ofertados à sua parentela. A questão crucial é parcialmente relativa aos meios empregados para alcan- çar a riqueza. Cabe saber se ela foi criada ou simplesmente obtida. Adquirir a riqueza por meio de uma firme dedicação é um processo criador. Enriquecer -se na qualidade de intermediário à custa de interesses externos ou pela corrupção pode nada ter a ver com algo criador. A questão consiste em saber se é pos- sível transformar o instinto de aquisição na África em algo mais diretamente produtivo. Entretanto, se é necessário que os meios para alcançar a riqueza sejam cria- dores, faz -se igualmente mister que os fins próprios a esta aquisição sejam consequentes. Ora, o consumo ostentatório não figura, por via de regra, entre as finalidades mais sadias do sucesso econômico. Em suma, é preciso uma funda- mental reforma da ideologia africana no que diz respeito ao espírito empreende- dor, aos dois níveis, meios e fins, da busca pela riqueza em sociedade. Enquanto este processo não se consumar, a privatização das economias africanas, longe de ser o melhor meio para garantir a saúde e a liberdade do mercado, corre o risco, ela própria, de atuar em detrimento do mercado. Aos observadores suficiente- mente perspicazes, a experiência africana comprova que a privatização não é, necessária nem integralmente, a melhor proteção, em todas as culturas, para a liberdade de mercado. Ela exige, muito amiúde, outras medidas de salvaguarda da ordem social, moral e jurídica. Conclusão: cronologia da ideologia A história consiste parcialmente em uma tentativa de identificação das ten- dências. Mas, as tendências da história, das ideias e dos valores são particular- mente difíceis a apreender.
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