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História geral da Africa, VIII Africa desde 1935 2010 CAPITULO 16

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C A P Í T U L O 1 6
565Construção da nação e evolução dos valores políticos
Duas dialéticas familiares condicionaram os valores políticos na África: a 
dialética que, por uma parte, opõe o coletivismo e o individualismo e a sua cor-
relata interposta entre o pluralismo e o nacionalismo, por outra. Vimos as antigas 
tradições coletivistas eventualmente entrarem em conflito com as formas mais 
recentes de individualismo, também observamos a interação entre os princípios 
do pluralismo e os valores do nacionalismo.
Na opinião de pensadores tais como o tanzaniano Julius Nyerere ou o que-
niano Tom Mboya, o coletivismo tradicional podia servir de base a modernas 
formas de socialismo (nós retomaremos esse tema, ulterior e mais detalhada-
mente). Mboya sustentou nestes termos: “O socialismo [...] é uma tradição 
permanente do nosso povo [...]. Trata -se de uma atitude das nossas sociedades 
em respeito às pessoas, postura esta que não exige ser codificada sob o prisma 
da teoria científica1.” 
Sékou Touré invocou o coletivismo tradicional, recusando praticamente 
todas as formas de individualismo na Guiné pós -colonial. “A África é, essen-
cialmente, “comunocrática”. A vida coletiva, marcada pela solidariedade social, 
confere aos seus hábitos um caráter humanístico que muitos povos podem inve-
jar. Igualmente em razão destas qualidades humanas, na África, um ser não pode 
1 T. MBOYA, 1963a.
Construção da nação e evolução dos 
valores políticos
Joseph Ki -Zerbo, Ali A. Mazrui e Christophe Wondji, 
em colaboração com A. Boahen
566 África desde 1935
conceber a organização da sua vida à margem da estrutura própria à sociedade 
familiar fundada sobre pequenas comunidades ou clânica. [...] Intelectuais ou 
artistas, pensadores ou pesquisadores, as suas capacidades não têm valor, senão 
à condição de concorrerem em prol da vida do povo, salvo se estiverem inte-
gradas, de modo fundamental, à ação, ao pensamento, assim como às aspirações 
da população2.” 
Sékou Touré serviu -se do coletivismo tradicional, a um só tempo, contra o 
individualismo e o pluralismo. A Guiné e outros países da África pós -colonial 
igualmente inspiraram -se nas ideias coletivistas para racionalmente fundar o seu 
regime de Estado unipartidário. 
Nós mostramos como, em outras circunstâncias, Gamāl ’Abd al -Nasser, 
em sua Filosofia da revolução, vinculou o nacionalismo às três esferas que 
interpenetraram -se no Egito e no tocante às quais este país figura como um 
ator de primeira grandeza, nas esferas árabe, muçulmana e africana. A ideologia 
de al -Nasser, em concomitância, coletivista e nacionalista, era essencialmente 
antipluralista e não confiável sob a perspectiva do individualismo.
Quais teriam sido as fases da história da ideologia da África após 1935? 
Poderíamos nós subdividir este período em fases ideológicas distintas? 
Os últimos anos do regime colonial (1945 -1960) compõem o cenário para 
os belos dias de compatibilidade entre nacionalismo e pluralismo, em grande 
parte da África anglófona e francófona. Durante este período, o nacionalismo 
africano − como estratégia de luta contra o colonialismo − antecipava reivin-
dicações liberais: sufrágio universal, democracia e pluripartidarismo, liberdade 
de imprensa e o fim das detenções arbitrárias. Distantes entre si do conflito, o 
nacionalismo e o pluralismo apresentavam -se à ocasião, estratégica e pratica-
mente, como aliados. Líderes como Kenneth Kaunda, Hastings Kamuzu Banda, 
Habib Bourguiba ou Léopold Sédar Senghor eram à época, simultaneamente 
grandes nacionalistas e grandes democratas liberais. Em luta contra os imperia-
lismos britânico e francês, era de bom grado invocar os valores liberais ocidentais 
contra o Ocidente, ele próprio. Entretanto esta pratica demonstrou -se inócua 
contra o colonialismo português. 
Após a independência, muitos países africanos viram declinar respectiva-
mente (de 1965 a 1985) o nacionalismo e a democracia liberal. O coletivismo 
era invocado pelos ideólogos do partido único e pelos socialistas, ao passo que 
o pluralismo e o individualismo perdiam ímpeto. A bem da verdade, o próprio 
2 Citado por C. WAUTHIER, 1964, pp. 182 -183.
567Construção da nação e evolução dos valores políticos
nacionalismo está em declínio, quase de forma generalizada e salvo na África 
Austral, no transcorrer dos anos 1960 e 1970. O jugo do autoritarismo e do 
pseudocoletivismo estrangularia grande parte da África até os anos 1980. O 
Senegal, a Gâmbia, as Ilhas Maurício e o Botsuana configuram raríssimas exce-
ções. A este tema retornaremos ulteriormente. 
No imediato posterior, a que tem lugar a renovação liberal, ocorrida do 
final dos anos 1980 ao início dos anos 1990, da Argélia a Moçambique, com 
o ressurgimento de reivindicações populares em favor de uma democracia plu-
ralista e de uma agitação pleiteando maior privatização na economia. Os regi-
mes militares e os Estados de partido único encontram -se na defensiva. Do 
pluralismo respira -se o ar neste período e a opinião pública africana torna -se 
verdadeiramente militante. O presente capítulo aprofundará estes temas. Ser-
-nos -ia possível dizer que a moral coletivista encontrar -se -ia recolocada em 
questão? Um vento liberal sopraria ele novamente na África? Os valores polí-
ticos na África foram condicionados, não somente pela dupla oposição envol-
vendo coletivismo -individualismo e pluralismo -nacionalismo, mas, outrossim, 
pelo denominado por Kwane Nkruma “consciencismo”, em outras palavras, a 
interação entre a tradição autóctone, o islã e a cultura eurocristã. A democracia 
liberal da Nigéria favorecia ela os muçulmanos? O islã na Argélia, corroboraria 
ele a democracia liberal? Nas duas primeiras repúblicas nigerianas, muçulmanos 
ocuparam o poder (Abubakar Tafawa Balewa dirigindo a primeira República 
e al -Haji Shehu Shagari encabeçando a segunda). Em contrapartida e mais 
recentemente, na Argélia, o temor provocado pela oposição islâmica forçou o 
presidente do regime da FLN a buscar aliados junto aos opositores não islâmi-
cos e a acelerar a democratização. Se, nas duas primeiras repúblicas da Nigéria, 
o pluralismo favoreceu o islã, por sua vez, na Argélia do último período, o islã 
favoreceu o pluralismo. 
Construção da nação e valores políticos
O sucesso que o liberalismo conheceu em 1989 -1990, fato mundialmente 
generalizado e singularmente manifesto na África, impõe com acuidade enfren-
tar os problemas relativos aos valores políticos e à ação subjacente a estes últi-
mos, há algumas décadas levada a cabo pelos dirigentes africanos. 
A quase totalidade dos países do continente aceitou submeter -se aos progra-
mas estruturais de ajuste “propostos” pelas instituições financeiras internacionais. 
Haveria um despertar do liberalismo na África nos últimos anos do século XX? 
568 África desde 1935
Constata -se em paralelo uma espetacular renúncia aos valores e às instituições 
do marxismo -leninismo em outros países (Benin, Moçambique, Etiópia...), a 
denotar que estes valores não estavam ancorados de fato na classe política, a 
fortiori na sociedade civil. 
Novamente, os países africanos parecem imperativamente conduzidos a esco-
lher entre vários sistemas de valores; ou antes, à imagem dos primórdios da 
colonização, eles são forçados a inscrever as suas políticas em um conjunto de 
valores que permanecem frequentemente implícitos. O colonialismo desmante-
lara o essencial das instituições políticas africanas e, na mesma ocasião, os valores 
a elas ligados. Todavia certos valores africanos sobreviveram às instituições, ao 
passo que estruturas suprimidas pelo colonizador ou preservadas pelos coloni-
zados continuavam a gerar valores autóctones. A luta anticolonial, em especial 
antes e após a Segunda Guerra Mundial, também representou um debate no 
combate de valores políticos. Tratava -se de retomar o controlesobre os fins e as 
motivações da ação política. 
Igualmente, no momento do advento da independência, nos anos 1960, os 
Estados africanos foram confrontados a duas cruciais escolhas em matéria de 
valores políticos, as suas decisões ou a sua indecisão correlatas viriam a influir 
sobre o futuro por um longo período. 
Importava, na aurora das independências, construir Estados e comunidades 
nacionais, edificar economias aptas a satisfazerem as necessidades dos povos, 
criar relações interafricanas e mundiais susceptíveis de contribuir na realiza-
ção das opções políticas globais, transformando contudo os valores que regem 
as transações internacionais. Diante deste projeto, impunham -se importantes 
obstáculos: a integração nacional chocava -se com certos interesses étnicos ou 
pseudoétnicos e a integração africana era bloqueada por ambições “micronacio-
nais”. Por outro lado, os projetos de sociedade destinados a garantirem o pro-
gresso socioeconômico, na mais ampla acepção, chocavam -se com certos valores 
“negativos” das sociedades pré -coloniais e do sistema colonial.
Perante esta rede de círculos viciosos, os dirigentes africanos escolheram, em 
princípio, ora gerar o statu quo neocolonial, ora optar pela reviravolta nos valores 
sociopolíticos africanos e internacionais. Entretanto, ao final dos anos 1980, eles 
encontram -se a professar, quase todos, valores idênticos ou análogos, quer seja 
em razão do peso das estruturas objetivas, ou em função das mutações nos valo-
res, sobrevindas no estrangeiro, e a refletirem -se nas orientações africanas. Os 
países compartilham tradições políticas pré -coloniais e coloniais, muito amiúde 
similares. Eles têm um duplo patrimônio de valores políticos. Estes constituem 
569Construção da nação e evolução dos valores políticos
referência para a análise e a ação, são ideias motrizes, ideais que iluminam e 
orientam sistematicamente as escolhas individuais e coletivas.
Mas, os valores não representam entidades transcendentes imunes à ação do 
tempo. Produtores da história, os valores políticos dela também constituem um 
produto, influenciado e transformado por ela. Eis o porquê do imperativo de 
certas questões. Quais seriam os traços duráveis das transformações dos valores 
políticos africanos após 1935? Qual seria a contraditória dinâmica dos grandes 
vetores, na obra de construção nacional, desde as lutas pela independência até o 
último decênio do século XX? Quais valores subjazem dos acontecimentos, das 
instituições e das ideologias constituintes desta evolução? 
Da dominação colonial ao pluralismo político 
no curso das lutas pela independência
O sistema colonial estava construído sobre um corpus assaz coerente de valo-
res políticos. Lord Lugard expressou, a este respeito e com justeza, em O duplo 
mandato na África tropical britânica3, livro no qual ele expunha a detenção 
pelos colonizadores de dois mandatos, um civilizatório e outro de exploração, 
portadores de valores implícitos e explícitos. Segundo o autor, a gestão indireta 
era o sistema mais apto a conciliar estes dois objetivos. Nos países colonizadores 
assimilacionistas, à imagem da França e de Portugal, a imposição dos valores 
políticos metropolitanos era mais flagrante4. Justamente após a Segunda Guerra 
Mundial, apresentar -se -ia a afirmação das reivindicações africanas em favor da 
autonomia e da independência, de forma generalizada em todos os territórios 
coloniais, geradoras ou promotoras de duas ordens de valores políticos destina-
das a um promissor futuro. Os valores do pluralismo e do nacionalismo.
O legado do pluralismo
O pluralismo esteve à origem dos próprios movimentos de libertação nacio-
nal, ao menos inicialmente, em Angola, na Rodésia do Sul (atual Zimbábue) 
ou em Moçambique, por exemplo. Entretanto, foi com maior ênfase nos casos 
de evolução pacífica rumo à independência que o valor do pluralismo político 
3 LUGARD (Lord), 1922.
4 R. F. BETTS, 1985.
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surgiu mais fortemente. Esta afirmação apoiava -se sobre o liberalismo, funda-
mentado pelo princípio da liberdade individual em todos os domínios, a pro-
fessar, junto a elas, as potências coloniais. A ideologia liberal concedia, portanto, 
um arsenal de fórmulas jurídicas e métodos políticos aos dirigentes africanos 
em luta contra o colonialismo pois, aludindo à própria essência dos princípios e 
dos valores de liberdade, proclamados pelos colonizadores, intelectuais coloni-
zados reivindicaram a igualdade dos direitos e, posteriormente a independência 
das colônias, muito amiúde com o apoio de grupos oposicionistas da própria 
metrópole. 
Na África do Norte, excetuando -se a Argélia que instaura o presidencialismo 
e o regime do partido único desde a sua independência, em 1962, o pluralismo 
prevalece. Este é o caso do Egito, regido pela constituição de 1923 até o Golpe 
de Estado dos Oficiais livres, em 1952, ou da Tunísia, cuja Constituição de 1955, 
sucessora do regime protetoral francês, respira uma essência liberal. O Néo-
-Destour inclusive reforma as instituições sociais em conformidade ao código 
liberal ocidental: abolição da poligamia, direitos civis, direito ao voto e a elegi-
bilidade das mulheres. O Marrocos, de Mohammed V (1956 -1961), apresenta 
um compromisso entre a monarquia tradicional e as instituições parlamentares. 
Contudo, após ter proclamado os valores liberais como normas para a recons-
tituição das sociedades, os Estados norte -africanos darão, em maior ou menor 
medida, as costas ao liberalismo.
Na África negra ao sul do Saara, dezenas de partidos ou movimentos, legais 
ou não, proliferaram entre 1945 e 1960, baseados nos valores do pluralismo 
inspirados na política europeia, proposição esta a constituir, amplamente, o 
modelo dominante. Situação peculiar tanto aos países anglófonos quanto aos 
francófonos. Na Costa do Ouro (atual Gana), a coalizão política fundada por J. 
B. Danquah, em 1947, a United Gold Coast Convention, não duraria nada além 
de dois anos, antes que Kwame Nkruma ainda não tivesse ganho a proeminência 
e fundado o Convention People’s Party (CPP). Na Nigéria, as constituições 
outorgadas, em 1945 -1948, permitem o surgimento de uma imprensa dinâmica 
e animada pelas associações dos jovens, pelos sindicatos e pelos partidos implan-
tados nas grandes regiões do país. Em Serra Leoa e na Gâmbia, o pluralismo 
liberal afronta os “crioulos” da “colônia” e os povos autóctones majoritários dos 
protetorados da hinterlândia. Na Federação da África Central britânica (atuais 
Malaui, Zâmbia e Zimbábue), longas e sinuosas negociações tripartites intervie-
ram entre os africanos, divididos em vários partidos, os colonos brancos, também 
eles por vezes fracionados e o governo de Londres. 
571Construção da nação e evolução dos valores políticos
Nos territórios francófonos, constata -se a mesma proliferação política, entre 
1935 e 1960, essencialmente a partir do final da Segunda Guerra Mundial. 
A assimilação, aqui inscrita nas próprias estruturas políticas, viria conduzir os 
eleitos africanos nos limites parlamentares impostos pela metrópole, em Paris 
ou Versalhes, reforçando, em suplemento e junto aos líderes políticos africanos, 
o ideário composto pelos valores políticos prevalecentes no sistema francês.
Originalmente, estes partidos não atuavam com independência face aos seus 
correlatos na metrópole. Assim sendo, os Grupos de Estudos Comunistas fran-
ceses (GEC) demonstravam extrema atividade em numerosas cidades africanas. 
No Senegal, estes GEC dedicados à formação sob patrocínio do RDA foram 
superados pelos militantes africanos do Partido Socialista Francês (SFIO).
Em suma, antes das independências, os valores políticos, preconizados pelos 
países africanos, constituíam uma transferência cultural sobre a batuta do famoso 
“mandato civilizatório”. Esta transferência ignorava os elementosdemocráticos 
endógenos, comprometendo, igual e gravemente, o ajuste orgânico interno entre 
a sociedade política e a sociedade civil. Entretanto, esta transferência, dos ideais 
políticos ocidentais em direção à África, sobretudo quando a ela agregavam-
-se os valores do socialismo marxista, não podia senão acelerar a dinâmica da 
edificação nacional e, antes e primeiramente, a luta pela independência africana. 
Entre 1945 -1960, os partidos progressistas, marxistas (como o Partido 
Africano da Independência, PAI) ou não (como o Movimento de Libertação 
Nacional, MLN)5, embora minoritários, puderam, desta forma e graças aos 
valores do pluralismo político, ganhar audiência e desempenhar um papel motor 
de vanguarda, atraindo os partidos moderados ou conservadores próximos da 
administração colonial. As próprias potências coloniais, conquanto defendessem 
com unhas e dentes os seus enormes interesses materiais investidos na África, 
deveriam, cedo ou tarde, de bom ou mau grado, aceitar as exigências dos nacio-
nalistas africanos, sob pena de repudiar os seus próprios valores políticos. 
Os valores do nacionalismo
Paralelamente aos valores do pluralismo democrático, veiculados pelas insti-
tuições políticas liberais, tomadas em empréstimo à Europa, bem como em inte-
ração dialética com elas, os valores ligados ao nacionalismo assim expandiram -se 
na África: em meio ao caldo de cultura da resistência e da luta armada, assim 
5 Libérons l’Áfrique, Manifesto do MLN, 1958.
572 África desde 1935
figura 16.1 Franz Fanon, autor francês nascido na Martinica. (Fonte: Com a autorização das Éditions du 
Seuil, Paris)
573Construção da nação e evolução dos valores políticos
como no quadro da evolução pacífica do sistema colonial. Justamente, foi 
sobretudo através das violentas lutas que os valores do nacionalismo africano 
apresentaram -se de forma mais contundente. Na realidade, estas lutas armadas 
não eram explosões nascidas no vazio mas, representavam a continuidade histó-
rica dos movimentos de luta e de resistência que se haviam constituídos contra 
a invasão e o regime dos colonizadores.
T. O. Ranger pôs em evidência as relações entre o movimento nacionalista 
na África subsaariana e a resistência multiforme à dominação estrangeira. Os 
militantes do partido de Julius Nyerere consideravam -se herdeiros diretos do 
movimento maji -maji, opositor do imperialismo alemão, de 1904 a 1906, a tal 
ponto que o líder da Tangayika African National Union (TANU), ele próprio, 
declarava: “É sobre as cinzas dos maji -maji que a nossa nova nação fundou -se.6” 
No Zimbábue, igualmente, os nacionalistas recorriam a memória da rebelião 
anticolonial de 1896 -1897, conferindo honra ao conceito relativo à chimurenga 
(resistência armada), expressão do patriotismo africano da época. Na África do 
Sul, o próprio Nelson Mandela buscou a sua inspiração nestas palavras: ”guerras 
que os ancestrais travaram em defesa da pátria e que constituem a glória e o 
orgulho da nação africana em sua totalidade”. Além do legado da resistência 
armada e política, o patrimônio da resistência cultural, de conotação religiosa, 
foi da mesma forma chamado a contribuir. Entre as duas guerras mundiais e 
no pós -guerra, os militantes da Kenya African National Union (KANU), por 
exemplo, extraíram fundamentos da herança ideológica do culto Mumbi e do 
culto Dini Ya Musambwa. Desta forma e portanto, a luta de libertação estava 
ligada, através da mediação da memória histórica, a um passado mobilizador, a 
conferir -lhe a sua legitimidade.
De forma ainda mais geral, a necessidade de afirmação, pela força do direito, 
dos povos explorados frente à dominação dos colonizadores viria magnificar o 
“valor” da violência em sua qualidade terapêutica para o progresso histórico. 
Todo o contexto a isto contribuía: a exaltação do militarismo no curso das guer-
ras mundiais, as exações das tropas coloniais ditas de “pacificação”, o emprego 
dos negros, recrutados em massa, para as guerras de reconquista colonial na 
Indochina, na Argélia e em Madagascar... Se a isto acrescentarmos o uniforme, 
as pensões e o nível de vida dos antigos combatentes, veremos como o mito do 
guerreiro foi, formidavelmente, estimulado no imaginário popular.
6 T. O. RANGER, 1968a, p. 636.
574 África desde 1935
Inclusive, os combates anticoloniais desenrolar -se -iam por vezes nas próprias 
localidades das heroicas lutas dos ancestrais, contra o jugo estrangeiro: por 
exemplo, quando a FLN argelina estabeleceu as suas retaguardas operacionais 
no maciço de Aurèz, na Kabília ou no Chouf. Igualmente, Houari Boumediene 
forjou seu apelido a partir do nome de dois santos do islã argelino: Houari e 
Bou Medin7. Habib Bourguiba, quanto a ele, auto intitular -se -ia “combatente 
supremo”, Jomo Kenyatta, “A lança ardente do Quênia”, Hophouët -Boigny, 
“Aríete defensor do povo”, Kwame Nkrumah, “Osagyefo” ou o “General vito-
rioso”, Amilcar Cabral, “Abdel Jessi” ou o “justiceiro de sabre em mãos”.
Estes valores do nacionalismo militante também serão alimentados pela 
teoria marxista -leninista que enxerga na violência, sob todas as suas formas, 
o demiurgo da história, fazendo do imperialismo o estádio supremo do capi-
talismo. Os continentes colonizados, a África em primeiro plano, tornam -se 
portanto o “ventre mole” onde golpes mortais podem ser desferidos no sistema 
capitalista mundial. Tais eram as mensagens do congresso de Moscou da IIIa 
Internacional, em 1919, e do congressos dos povos oprimidos de Bakou, em 
1920.
O nacionalismo e a cultura, em sentido amplo
À margem das lutas armadas ou diretamente ligados à ação política, os africa-
nos cultivaram os valores do nacionalismo em um contexto histórico particular, 
sob fórmulas ora originais, ora miméticas. 
A ideologia do Estado -nação era, juntamente com o imperialismo capi-
talista, um dos dois pilares da conquista colonial e as fronteiras africanas, por 
exemplo, não passavam de uma projeção das fronteiras europeias. Embora esta 
ideologia se tenha comprovado válida para a Europa, bem como para a esfera 
das guerras locais e dos holocaustos planetários, os territórios colonizados her-
daram estes valorações europeias do Estado -nação europeu, no momento da 
sua independência.
A religião, de papel crucial, constitui outro importante aspecto do nacio-
nalismo. A sublevação mahdista contra o poder estrangeiro, ao final do século 
XIX, inspirava -se amplamente nos valores de um nacionalismo de fundamento 
religioso. Junto aos somalis, também apareceu, em 1899, um Mahdy erigido 
contra a colonização britânica e italiana: era Muhammad ‘Abdallāh Hassan, 
7 Conferir o artigo sobre Boumediene, em M. MOURRE, 1978, vol. I, p. 619. 
575Construção da nação e evolução dos valores políticos
apelidado pelos imperialistas o “Mullah louco”. Na África ocidental, movimen-
tos mahdistas eclodiram esporadicamente, fazendo eco às múltiplas resistências 
opostas por líderes muçulmanos como Shaykh Amadu Bamba, no Senegal ou 
Shaykh Hāmallāh, no Mali e na Mauritânia. Mas, os valores de recusa contra 
qualquer submissão a uma autoridade externa foram abundantemente ilustrados 
também pelos chefes da religião tradicional africana. Desta forma, os maji -maji 
da Tanganyika combateram os alemães, de 1905 a 1907, utilizando água benta 
para protegerem -se contra as balas. Os levantes no leste e no sul de Madagascar, 
em 1947, constituíram outro dramático exemplo da mesma ordem, os rebeldes 
malgaches julgavam -se, também eles, magicamente protegidos contra as balas. 
Esta insurreição, reprimida de forma selvagem, é considerada pelos malgaches 
como uma importante etapa em sua marcha pela independência, mesmo se toda 
ilha não se associou a ela. 
Outro elemento característico do nacionalismo, muito amiúde próximo da 
língua e da religião, é a etnicidade − conceito muito ambíguo a ser usado commuita precaução. Assim sendo, o movimento mau -mau no Quênia (1952 -1960) 
era um combate originado na disputa por terras entre os povos do Quênia 
central e contra o monopólio dos melhores territórios agrícolas pelos europeus. 
Entretanto, tratava -se igualmente de uma batalha pela libertação política e 
cultural. Os rituais simbólicos inicialmente praticados pelos guerrilheiros − as 
cerimônias de prestação de juramento, nas quais eles assumiam, por exemplo, um 
compromisso sagrado, destinado a desencorajar qualquer ideia ligada à traição − 
eram tomados em empréstimo do patrimônio religioso dos kikuyu e dos grupos 
étnicos aparentados (meru e embu). Da mesma forma, o exército de Mugabe, 
na Rodésia do Sul, duas décadas mais tarde, compunha -se sobretudo de shona, 
entretanto, os objetivos do movimento faziam dele uma luta de libertação para 
o conjunto do Zimbábue. Em suma, a resistência dos shona, dos ndebele e dos 
fon, em Daomé, dos ashanti e dos samo, no Burkina Fasso, dos wolof e dos jula, 
no Senegal, tomavam, simultaneamente, o caráter de uma luta para preservar o 
grupo étnico e de uma luta em favor de interesses e valores mais amplos, de tipo 
nacional. Trata -se da própria erupção colonial que, ao deslocar o mapa anterior, 
desagregou a adequação entre as identidades “nacionais” e “étnicas”. 
O território consiste, evidentemente, em outra dimensão fundamental do 
Estado -nação; mas, contrariamente à Europa e à África pré -colonial, onde a 
criação do perfil “nacional” pelos povos e pelos Estados exigiu séculos de esfor-
ços, o traçado das fronteiras dos Estados africanos modernos é o fruto do ardor 
pela conquista que um punhado de estrangeiros demonstrou durante uma ou 
duas décadas. Ora, alguns territórios federados sob a autoridade colonial, na 
576 África desde 1935
África Oriental britânica ou na África Ocidental francesa, foram fracionados. 
Os nacionalistas africanos lutavam, inclusive e frequentemente, não para libertar 
algum território em particular mas, para imporem um fim ao estatuto de submis-
são dos povos africanos. Os valores do nacionalismo eram quase invariavelmente 
indissociáveis dos valores da unidade africana.
Enfim, devemos abordar o tema, simultaneamente, o mais vago, o mais ambí-
guo mas, igualmente, o mais fundamental do nacionalismo africano: aquele 
concernente à “raça” e à “civilização”. Segundo René Pléven, homem de Estado 
francês, “colonizar, isto consiste em estender a sua civilização no espaço”. A 
colonização, ato eminentemente econômico, era portanto também um fenômeno 
cultural e, por conseguinte, a descolonização deveria assumir uma dimensão 
de combate cultural. Era preciso operar uma arbitragem entre os valores do 
patrimônio autóctone e os princípios culturais veiculados pelos colonizadores. 
Desde o final do século XIX, o movimento de despertar cultural do mundo 
árabe -muçulmano (nahda) e o movimento do renascimento negro nas Amé-
ricas haviam sido confrontados a este problema. No seio da civilização negro-
-africana, este esforço impingiu aos movimentos ideias, compondo um leque 
que compreendia desde a African Personality e do pan -africanismo à negritude, 
tema desenvolvido pelo círculo intelectual reunido em torno da revista Présence 
Africaine e do seu diretor, Alioune Diop.
A interrogação fundamental partiu de Edward Wilmot Blyden. Após ter 
proposto em 1887, em sua obra Christianity, Islam and the Negro race, uma 
síntese dos valores das sociedades no Sudão ocidental e daqueles do Ocidente 
cristão, Blyden constituiu -se, na realidade, em advogado da consciência do orgu-
lho racial junto aos Negros do continente e daqueles da diáspora, contribuindo 
desta forma para o nascimento do movimento pan -africano. Justamente nesta 
corrente situa -se a negritude e o seu projeto de “civilização do universal”. Na 
primeira metade do século, como abordado no volume VII da presente obra, 
o movimento pan -africano foi animado pelos descendentes de africanos habi-
tantes nas Américas, sobretudo nos Estados Unidos da América do Norte e 
nas Antilhas. Homens como Marcus Garvey, na Jamaica, George Padmore, em 
Trinidad e Tobago, e W. E. B. Du Bois, nos Estados Unidos da América do 
Norte, aparecem na qualidade de pais fundadores do pan -africanismo. A partir 
de 1900, Congressos pan -africanos dedicaram -se a reforçar a solidariedade 
racial, a organizar a luta contra a discriminação e a promover a dignidade racial 
dos povos negros, tanto na África quanto no mundo ocidental.
Seria necessário esperar o advento do quinto Congresso Pan -africano, rea-
lizado em Manchester (Grã -Bretanha), em 1945, para observar a passagem 
577Construção da nação e evolução dos valores políticos
da direção do movimento dos Negros das Américas para os Negros da África. 
Dois entre os participantes deste Congresso tornaram -se posteriormente os pais 
fundadores de novos países independentes. Trata -se, como exposto em outros 
capítulos deste volume, do ganense Kwame Nkrumah e do queniano Jomo 
Kenyatta. Os africanos presentes a este Congresso encontravam -se, todavia e 
em certa medida, um pouco ofuscados pela estatura de alguns dentre os gigantes 
do nacionalismo negro nas Américas, mas o ano de 1945 ainda assim marca um 
ponto de inflexão na reafricanização do pan -africanismo: a passagem da tocha 
das mãos dos Negros da diáspora, descendentes de africanos no estrangeiro, 
para as mãos de cidadãos dos países africanos. Doze anos mais tarde, Kwame 
Nkrumah dirigia o primeiro governo independente de Gana, este mesmo país 
seria o primeiro país da África negra a ser libertado da dominação colonial 
europeia. O pan -africanismo tomou, desde então, uma forma mais militante, 
retomaremos este tema mais adiante. 
Os debates acerca da orientação geral a ser tomada pelos países da África do 
Norte, no tocante aos valores essenciais formadores destas diretrizes, opuseram 
partidários de uma via baseada no Corão ou islâmica do nacionalismo, àqueles 
ligados a uma via liberal ou modernista, reformistas favoráveis ao individualismo 
misturado ao islã, a ocuparem posições intermediárias. 
Ao final do século XIX, o egípcio Muhammad´Abduh, possuidor de discí-
pulos no Magreb (´Allāl al -Fāsī), anima um movimento de retorno às origens 
do Corão, ou salafiyya, sem absolutamente rejeitar as contribuições estrangeiras 
nem a evolução para instituições representativas. O seu condiscípulo A. Raseq, 
baseado na natureza essencialmente política do califado, admite o princípio da 
separação dos poderes espiritual e temporal. Posteriormente, durante os anos 
1930, Taha Hussein aparece como defensor resoluto do modernismo liberal, o 
qual por ele é inclusive considerado como o herdeiro da civilização helenística 
mediterrânea. Mas, alguns adotam posições extremas, como os irmãos muçul-
manos, opostos a qualquer reformismo, e os socialistas, críticos vigorosos do 
modernismo liberal burguês. Escritores e artistas constituem -se em campeões 
da criatividade individual.
A aceleração do processo histórico a conduzir às independências sobreveio 
quando nenhum pensamento social integrado havia logrado assumir, não mais 
na África do Norte que na África Subsaariana, os valores exógenos do moder-
nismo ocidental, em uma reflexão autônoma ancorada nos patrimônios culturais 
endógenos, pois a maturação das ideologias caminha mais lentamente que os 
acontecimentos. Esta ausência de filosofia global da cultura e da libertação 
nacional pesará sobremaneira na ulterior evolução dos países africanos.
578 África desde 1935
Em resumo, o período de 1935 às independências está principalmente mar-
cado por dois grandes valores políticos, o pluralismo e o nacionalismo; todavia, 
estes valores não apagaram a tensão cultural de outrora, entre coletivismo e indi-
vidualismo. De certa forma, estas duas ideologias reforçavam -se mutuamente, 
mas os seus limites revelar -se -iammuito rapidamente e, a partir dos anos 1960, 
eles cederiam lugar a outros valores.
Os valores políticos desde a independência 
Com a conquista da independência nos países africanos, abre -se um período 
que teria potencialmente levado a um florescimento de valores originais e posi-
tivos, a partir de escolhas deliberadas, constituindo um amálgama do melhor das 
experiências pré -coloniais com as contribuições exógenas. Ora, frequentemente, 
assistir -se -á a um espetacular deperecimento dos valores do pluralismo; as moti-
vações e comportamentos endógenos e exógenos contribuindo a este efeito. Mas, 
este processo, ao desembocar em um poder pessoal, anuncia o fim dos valores 
ligados ao nacionalismo e ao pluralismo. 
Se considerarmos as divisas, os hinos e as bandeiras adotados pelos novos 
Estados independentes, perceberemos os valores que eles desejavam promover. 
As divisas estatais, fórmulas concisas que impactam pelo seu caráter imperativo 
e categórico, convocam para valores coletivos fundamentais como “a unidade, 
a paz e o desenvolvimento”: “um povo, um objetivo, uma fé” (Senegal); “união, 
disciplina, trabalho” (Costa do Marfim); “unidade e fé, paz e progresso” (Nigé-
ria); “unidade, liberdade, trabalho” (Zimbábue); “paz, trabalho, pátria” (Cama-
rões) ou “liberdade e justiça” (Gana). Os hinos nacionais, quanto a eles, exaltam 
a luta comum, a unidade e fraternidade, africana e universal (hino senegalês), 
relembram a honra aos ancestrais, a liberdade e a unidade (hinos camaronês e 
nigeriano). As cores das bandeiras e dos emblemas ou brasões nacionais reme-
tem, sobretudo, aos animais -símbolo: o leão do Senegal, o elefante da Costa do 
Marfim, a águia da Nigéria, o leopardo do Zaire e a ave misteriosa que sobrevoa 
as ruínas do Zimbábue. As cores das bandeiras nacionais mostram a predomi-
nância do verde, a simbolizar os recursos vegetais, o islã ou ainda a esperança 
no futuro; faz -se mister notar a frequência do vermelho em homenagem ao 
sangue dos mártires, ao heroísmo das lutas ou à revolução, bem como a presença 
do amarelo (o ouro das minas, o sol africano). O branco, quando figura (assaz 
raramente), é a cor da paz e da unidade. Finalmente, o negro identifica a raça 
ou remete a uma referência islâmica. 
579Construção da nação e evolução dos valores políticos
Ao total, quatro mensagens ideológicas predominam neste denso e imagé-
tico discurso dos emblemas e dos símbolos: a afirmação de uma identidade, a 
busca do desenvolvimento, o desejo de unidade, o apelo à liberdade e à justiça 
social. Tudo isso manifesta fortemente uma exigência de liberdade coletiva 
e testemunha uma continuidade com os valores imediatamente anteriores à 
independência.
Novas ideologias políticas
Paralelamente a estas divisas, hinos e emblemas, alguns dos novos dirigentes 
africanos formularam as suas próprias ideologias, tal é o caso de al -Nasser, Nkru-
mah, Senghor, Bourguiba, Sékou Touré, Nyerere, Amilcar Cabral e Kaunda. 
Desde A Filosofia da Revolução Egípcia (1954) até A Carta Nacional (1962), 
o egípcio Gamāl ´Abd al -Nasser, acentuou o seu abandono dos valores liberais 
ocidentais em prol do recurso ao pan -arabismo, ao islã, ao socialismo árabe, ao 
pan -africanismo e ao poder presidencial carismático. A Carta Nacional denuncia 
com vigor a enganação da democracia de tipo ocidental, a funcionar no interesse 
das classes dirigentes, feudal e capitalista, além de apresentar, por outro lado, um 
julgamento favorável sobre o socialismo, sistema cujo caráter garantiria às massas 
a democracia econômica e a liberdade coletiva. O socialismo nela está descrito 
como “a via que conduz à liberdade social8”, de onde deriva a necessidade do 
povo em possuir os instrumentos de produção e de orientar o excedente desta 
produção segundo um plano determinado. O nasserismo era uma ideologia, a 
uma só vez, pró -socialista e antimarxista. 
O socialismo árabe, a também expressar -se pelo partido único, em contra-
partida, rejeita categoricamente o ateísmo como antivalor absoluto, assim como 
a ditadura do proletariado. Ele preconiza a assimilação das classes no poder 
democrático de todo o povo, cuja confiança legitima e inspira os dirigentes. 
Enfim, o socialismo árabe postula o imperativo da unidade árabe. Esta última 
opção aproxima al -Nasser dos tenentes do Ba’th, como o sírio Michel Aflaq, 
para quem o real problema consiste em “dar novamente a sua alma à nossa nação, 
fazer com que o árabe e a nação, em sua totalidade, empreendam um retorno a 
esta atitude positiva, atuante, voluntária e correta que representa, para o árabe, 
dominar o destino”. Disto resulta que o imperativo de uma revolução baassista 
8 Para maiores detalhes sobre esta questão, conferir os textos reunidos por A. ABDEL -MALEK (org.), 
1980, e J. -P. CHARNAY, 1966.
580 África desde 1935
na qual “o socialismo é o corpo e a unidade é a alma; esta ressurgência (ba’th) 
deveria apoiar -se no povo, única força capaz de realizar a unidade”. 
Estas ideias -mestras do nasserismo e do baassismo − democracia teísta, valo-
res autênticos do islã (fraternidade, defesa da comunidade), unidade árabe e 
apelo ao povo − germinarão na África do Norte. 
Na Argélia, um socialismo revolucionário camponês e islâmico, originado 
em uma longa e sangrenta luta de libertação, tenta conjugar os valores políticos 
do nacionalismo, da autogestão, sob a égide de Ben Bella e, a partir de 1976, 
sob a direção de uma FLN transformada em partido único, cujo papel dirigente 
deveria confirmar a democracia socialista, neste mesmo processo o islã torna -se 
religião de Estado9. 
Na Tunísia, é o triunfo de um socialismo neodestouriano de tipo coope-
rativista, associando as noções de lucro e de acumulação de capital àquelas de 
empresas públicas e com participação estatal. Segundo o seu teórico e protago-
9 J. -P. CHARNAY, 1966, p. 245.
figura 16.2 Chegada de Ahmed Ben Bella na Argélia em 5 de julho de 1962. (Foto: M. Riboud. Magnum, 
Paris.)
581Construção da nação e evolução dos valores políticos
nista, A. Ben Salāh, trata -se de conjurar as atrocidades da luta de classes através 
de uma revolução “nos espíritos muito mais que nas estruturas”, com vistas a 
tornar aceitáveis os sacrifícios impostos pela decolagem econômica10.
Na Líbia, após a derrubada da monarquia em 1969, em seguida, após a 
instauração de uma república socialista árabe fundada nas nacionalizações e no 
pan -arabismo, el -Khadafi empreende, no seu Livro Verde (1976), uma destrui-
ção sistemática das teses liberais, apostando no islã como uma terceira via entre 
os imperfeitos capitalismo e socialismo. A democracia representativa não passa, 
nos diz ele, de um circo; o referendo é uma impostura. Em razão disto há um 
recurso à democracia direta dos comitês e dos congressos populares (jamahiriah) 
de inspiração tradicional11.
Na África Subsaariana, Kwame Nkrumah formula, em O Consciencismo 
(1964), uma das mais importantes doutrinas de descolonização e de desenvol-
vimento para a África. Ele escreve: “Não se pode sonhar rejeitar todas as influ-
ências islâmicas ou da Europa colonialista, em uma vã tentativa de recriar um 
passado que não mais pode renascer. Para seguir adiante, somente é possível ir 
em frente, rumo a uma forma de sociedade mais elevada e mais equilibrada, na 
qual o essencial dos valores humanos da sociedade tradicional será reafirmado 
em um contexto moderno12.”
O consciencismo consiste, portanto, em um esforço simples que, à imagem 
do projeto nassariano, combina os valores do nacionalismo anti -imperialista, da 
modernidade técnica e científica, bem como do patrimônio africano e islâmico, 
tudo isto graças ao socialismo e à unidade africana.
Julius Nyerere, quanto a ele, aposta antes de tudo, no legado africano dos 
valores sociais, cujo aspecto mais decisivo seria a solidariedade comunitária: “A 
África, diz -nos ele, nãotem lições sobre o socialismo a receber da Europa; ela 
poderia, antes, conceder alguns ensinamentos a respeito.” Tal socialismo consiste 
antes de tudo em uma atitude que implica a “preocupação de cada um com o 
bem estar alheio13”. A ujamaa é “a comunidade soldada graças ao afeto e à solida-
riedade entre os seus membros, os quais trabalham para enriquecer o patrimônio 
comum e, através deste trabalho, satisfazer as suas necessidades pessoais”. Se 
Nkrumah é aquele que mais contribuiu para integrar os valores considerados, 
talvez caiba a Nyerere ser o maior artífice na promoção do desenvolvimento e 
10 Textos de A. Ben SALĀH em A. ABDEL -MALEK (org.), 1980, pp. 255 -258.
11 Texto de M. EL -KHADAFI em A. ABDEL -MALEK (org.), 1980, pp. 337 -341.
12 K. NKRUMAH, citado por Y. BENOT, 1969, p. 394.
13 J. K. NYERERE, 1963b, p. 8.
582 África desde 1935
no tocante à exploração crítica e criadora do patrimônio dos valores da África. 
Assim sendo, àqueles que temem o eclipsar do espírito de iniciativa individual 
e do imperativo do trabalho pelo valor da solidariedade, ele replica que a soli-
dariedade de todos implica no trabalho de todos. Se existe um dever de hospi-
talidade, o indivíduo que dele beneficia -se tem, no que lhe diz respeito, o dever 
de participar do trabalho da comunidade. Deriva que a ênfase é colocada nos 
valores de um “socialismo africano”, animador tanto da sociedade civil quanto 
da sociedade política.
Pelo intermédio da disciplina do marxismo -leninista, Amilcar Cabral, funda-
dor do Partido Africano pela Independência da Guiné Bissau e do Cabo Verde 
(PAIGC), igualmente tentou uma integração entre os valores do socialismo 
e do nacionalismo. Segundo ele, somente esta associação orgânica permitiria 
fazer valer o direito às aspirações do povo no domínio político, através do poder 
popular, na esfera socioeconômica e cultural, graças à justiça social e ao enrai-
figura 16.3 Amilcar Cabral, presidente do PAIGC, na frente militar oriental da Guiné Bissau. (Foto: Le 
Nouvel Afrique -Asie, Paris.)
583Construção da nação e evolução dos valores políticos
zamento nos valores civilizatórios da gente ordinária. Tal projeto de sociedade 
fora lançado nas zonas libertas pelos combatentes do PAIGC, na Guiné Bissau.
Léopold Sédar Senghor, finalmente adepto do socialismo africano, não dei-
xaria de reconhecer a utilidade do quadro conceitual oferecido pelo marxismo, 
recusando -se, contudo, a aderir a uma ideologia que supõe a luta de classes e 
o ateísmo: “nós podemos, portanto e legitimamente, conquanto empreguemos 
o método de Marx para analisar a situação econômico -social no Senegal e na 
África negra, sob domínio do capitalismo, conceder, aos nossos valores religiosos 
e culturais, o seu posto natural em nossa vida espiritual14.” 
Todas estas ideias, dispostas sob a apelação genérica socialismo africano, 
foram, evidente e fortemente, influenciadas pelo islã, pelo marxismo -leninismo 
e pelos valores tradicionais africanos.
Quais tipos de regime a África colonial viu nascer sob o efeito de todas estas 
antigas e novas ideologias?
Os regimes pós ‑coloniais na África
Ao total, aproximadamente cinco tipos de regime estabeleceram -se na África 
durante a era pós -colonial. Primeiramente, surgiram regimes socialistas funda-
dos por estes dirigentes de cujas ideias fizemos acima uma análise. Al -Nasser 
tomou a dianteira no movimento, no ano de 1952, ao pronunciar a dissolução 
de todos os partidos egípcios, instituindo a União Socialista Árabe, partido de 
Estado ou, antes e sobretudo, organismo estatal encarregado de enquadrar poli-
ticamente as massas15. Este precedente foi amplamente copiado na África, sob 
diversas denominações: assembleias, movimento, frente, convenção, congresso, 
união e assim, sucessivamente. Em sua totalidade representavam uniformemente 
um aparato sociopolítico e ideológico a funcionar como um sistema destinado a 
monopolizar a comunicação entre os adeptos e a base popular. Kwame Nkrumah 
seguiu, também ele, esta via e transformou Gana, no ano de 1964, em regime 
socialista de partido único, após ter suprimido as organizações étnicas, regiona-
listas e religiosas. Sékou Touré, durante os anos de 1960, igualmente procedeu 
na Guiné, assim como Modibo Keita no Mali e Julius Nyerere na Tanzânia. 
Em Moçambique, no ano de 1974, a Frente de Libertação de Moçambique 
(FRELIMO) foi, desta mesma forma, constituída na qualidade de partido único, 
14 L. S. SENGHOR, 1971, p. 58.
15 P. WANYANDE, 1987, p. 71.
584 África desde 1935
exclusivo instrumento para a integração da sociedade rural ao projeto de criação 
de uma nação patrocinada pelo aparelho de Estado. Amilcar Cabral, na Guiné 
Bissau e Agostinho Neto, em Angola alinharam, por sua vez e ao menos por 
um período, os seus países com bloco de países socialistas.
O segundo tipo de regime é o regime militar. Os regimes desta natureza, 
cujo número é variável segundo o período em questão, foram estudados no 
capítulo XV. Digamos aqui simplesmente que se trata de regimes nos quais os 
dirigentes civis foram substituídos por soldados, posteriormente a um golpe de 
Estado militar. Estas brutais intervenções, contadas às dezenas, estabelecem 
novos valores políticos, em suma, reduzidos à submissão ao consenso, mediante 
a força das armas e a rejeição do primado do direito. 
O terceiro tipo de regime é o regime do apartheid, cujo reinado, felizmente, 
esteve restrito à África do Sul. Não o estudaremos nesta oportunidade, ateremo-
-nos simplesmente a precisar que ele constitui um caso extremo de teorização e 
imposição de monstruosos “valores” políticos: a desigualdade, a segregação e o 
racismo sanguinário. A própria religião foi convocada em socorro para justificar 
o statu quo. No curso dos decênios, a presença deste regime conduziu os Estados 
da linha de frente na África Austral a um encadeamento de violências travestidas 
sob múltiplas formas: guerras étnicas, guerras conduzidas pelo Estado ou guerras 
de libertação (Namíbia), revoltas de bandidos e mercenários, golpes de Estado, 
forçadas migrações em massa, atos de sabotagem, e outros que tais, sucessiva-
mente. O apartheid impediu, em numerosos países a construção da nação. 
O quarto tipo de regime é o regime conservador. Os regimes desta categoria, 
professores de fé e de respeito aos olhos da abordagem capitalista do desenvol-
vimento e da construção da nação, abandonaram o liberalismo e a democracia, 
subjacentes a esta abordagem, em proveito de um sistema fundado sobre um 
partido único ou dominante e sobre a autocracia. Eles estão instaurados em 
grande número de Estados africanos: Costa do Marfim, Serra Leoa, Senegal 
(até 1978), Camarões, Quênia, Zâmbia, Zaire (atual RDC), Malaui e Gabão um 
dos seus valores fundamentais é a “modernização”, em outros termos, a corrida 
ao crescimento extrovertido. Entre 60 e 80% das suas receitas de exportação 
provêm da venda de um, dois ou três produtos agrícolas ou minerais. O capi-
talismo de Estado canaliza vastos recursos aos cofres públicos, dispondo -os à 
classe política. A corrida pelo dinheiro inspira todas as motivações, atitudes e 
comportamentos. Poder e riqueza tornaram -se vasos comunicantes. Em todos 
estes Estados, o sentido do serviço público e o senso das responsabilidades estão 
comprometidos, os indivíduos aqui estão privados de certos direitos e valores, 
correlatos aos primeiros. Igualmente, as classes pobres, espoliadas dos frutos 
585Construção da nação e evolução dos valores políticos
do crescimento, não têm o direito à expressão pois, conceder -lhes esta virtude 
representaria um perigo para a estabilidade necessária a um desenvolvimento, 
cuja consumação, inclusive, não está garantida.
Assim estão reunidas as condições ideais para uma acumulação sem freio de 
capital mediante a exploração de um lumpemproletariado indefeso: um “sistema 
políticohíbrido”, de acordo com a declaração feita em 15 de março de 1990, pela 
conferência episcopal zairense, a título de contribuição para a “consulta nacio-
nal sobre a situação geral do país”. O sistema, prosseguem os bispos, “extrai do 
liberalismo as vantagens que oferece − na realidade a uma minoria − o usufruto 
da propriedade privada e, por outro lado, toma emprestados ao totalitarismo 
os métodos de conquista e de manutenção no poder16”. A incoerência desta 
contradição calculada, transformada em um perverso “valor” político, é a raiz do 
mal africano, na justa medida em que ela acumulou todos os aspectos negativos 
de três sistemas: a herança africana, o liberalismo capitalista e o marxismo-
-leninismo dos países do antigo Bloco Oriental.
Finalmente há aqueles países que se ativeram aos valores do pluralismo e da 
democracia parlamentar. Infelizmente, eles formam o grupo mais reduzido, cinco 
países ao todo e no máximo: a Gâmbia, o Botsuana, o Senegal, a Namíbia e as 
Ilhas Maurício. Estes países são os únicos que ainda autorizam eleições políticas 
realizadas sob o signo da concorrência e nos quais os partidos de oposição não 
se encontram atados. Não se pode negar que, nestes países, a situação econômica 
não é muito mais brilhante que alhures mas, como veremos em outros capítulos, 
este fato demonstra simplesmente a identidade dos limites estruturais em todos 
os países africanos. A situação apresenta -se, todavia e qualitativamente, de forma 
distinta sob a ótica dos valores políticos, notadamente quando existem, entre 
outros, uma imprensa independente, um sistema judicial autônomo gozando 
de garantias legais, uma relativa separação dos poderes, eleições abertas, senão 
totalmente livres, e as liberdade de manifestação e de reunião.
Pan ‑africanismo e não alinhamento
Paralelamente às novas ideologias e aos novos regimes advindos na África 
pós -colonial, dois temas também integraram o campo dos valores políticos 
africanos. Trata -se, primeiramente, de uma abordagem mais radical e africani-
zada do pan -africanismo e, em segundo lugar, da questão do não alinhamento. 
16 Jeune Afrique, no 1527, 9 de abril 1990.
586 África desde 1935
Estas duas temáticas serão aprofundadas nos posteriores capítulos 24, 25 e 28. 
Talvez nos bastasse aqui dizer, antes de mais nada, que embora as rédeas do 
movimento pan -africano tenham passado das mão dos Negros das Américas 
àquelas dos Negros da África, durante o quinto Congresso Pan -Africano rea-
lizado em Manchester, no ano de 1945, foi somente após a conquista da inde-
pendência em Gana, no ano de 1957, que o pan -africanismo, como movimento 
e do ponto de vista operacional, foi transferido das Américas e da Europa 
para o próprio continente africano. Os primeiros sinais desta mudança foram 
dados durante as duas conferências organizadas em Accra, no ano de 1958, 
pelo novo dirigente de Gana, Kwame Nkrumah, que se apresentara como 
um dos cossecretários do Congresso de Manchester, foram elas: a Conferên-
cia dos Chefes de Estado Africanos, então independentes, e a Conferência 
dos Povos da África. Igualmente, foi a partir deste momento que a questão 
territorial acrescentou -se ao universo do pan -africanismo. Desde logo, este 
movimento assumiria duas dimensões: aquela do pan -africanismo transaa-
riano e aquela do pan -africanismo transatlântico, a primeira apelando para 
a unidade, com base na mística do território continental africano, a segunda 
fundamentando -a sobre a mística da raça negra. Por outro lado e no plano 
ideológico, o pan -africanismo enfatizava, doravante, duas temáticas: o pan-
-africanismo de libertação e o pan -africanismo de integração, ambos objetos 
de posterior análise.
A segunda nova ideologia, integrada à visão do mundo própria aos Esta-
dos africanos e especialmente no domínio das relações exteriores e mundiais, 
é aquela referente ao não alinhamento. No transcorrer da segunda metade 
do século XX e no tocante às relações entre os pequenos países e as grandes 
potências, pode -se dizer de imediato não haver nenhum princípio de polí-
tica externa de maior impacto que o não alinhamento. O significado destes 
conceitos e as modalidades da sua tradução no plano operacional mudaram 
desde o seu surgimento, durante os anos 1950. Entretanto, ele não cessou de 
manifestar importante influência nas orientações diplomáticas da maioria dos 
Estados do mundo em desenvolvimento. Kwame Nkrumah e Gamāl ‘Abd 
al -Nasser figuraram entre os fundadores africanos do não alinhamento. Em 
princípio, o movimento representava a expressão de um protesto solidário e 
visava a modernização das relações Leste -Oeste. Entretanto, após os anos de 
1970 e mais particularmente a partir da cúpula argelina de setembro de 1973, 
o eixo do movimento transladou -se para privilegiar uma postura em defesa 
de uma reestruturação fundamental do sistema mundial, rumo e em prol de 
uma maior equidade nas relações Norte -Sul. 
587Construção da nação e evolução dos valores políticos
As novas tendências políticas na África
No curso dos anos 1970, não foi na ordem do não alinhamento e das relações 
mundiais que novas tendências surgiram mas, antes e sobretudo, na ordem da 
situação política interna da África. A sua aparição está, primeiramente, marcada 
pelo ocaso dos regimes socialistas na África, em seguida, pela retro -concessão do 
poder político do exército para os civis, com um temporário retorno de Gana e 
da Nigéria ao rol dos regimes civis, aproximadamente ao final dos anos 1970, e 
sobretudo pelo abandono do sistema de partido único e do regime autocrático, 
em direção ao retorno junto aos anteriores valores da democracia liberal e do 
multipartidarismo.
O fracasso do modelo socialista
Como indicado precedentemente, o modelo socialista − combinação do 
marxismo -leninismo, do socialismo islâmico e dos valores africanos tradicionais 
− esteve muito em voga no decorrer dos primeiros decênios da independência, 
sendo adotado por países como o Egito, a Guiné, o Mali, a Tanzânia, Gana, 
Moçambique e Angola. Ora, este modelo foi abandonado por todos estes países, 
sem exceção, segundo um processo iniciado no Egito, com al -Nasser, prosse-
guindo com a queda de Nkrumah, em Gana, e a saída do poder de Modibo 
Keita, no Mali, no curso dos anos 1960. Como poderíamos nós explicar este 
fracasso do socialismo na África? Aqui reside a questão imperativa. 
Inicialmente, faz -se mister precisar que se trata de um fracasso em nada 
ligado à derrocada do, soi -disant, comunismo, na União Soviética e na Europa 
Oriental, durante os anos 1980. O processo, como vimos, começou na África 
no curso dos anos 1960. A debacle, ocorrida na Europa Oriental, não fez senão 
acelerar um processo em desenlace na África. É verossímil que no continente 
africano, o fracasso do socialismo deva -se ao fato que, embora o clima intelectual 
lhe fosse propício, o campo sociológico e material não se revelou assaz fértil. O 
clima intelectual tornou -se favorável ao socialismo durante os primeiros decê-
nios da independência, primeiramente porque muitos nacionalistas africanos 
haviam logrado associar, no plano conceitual, o capitalismo ao imperialismo e 
ao colonialismo; desde logo os dirigentes africanos progressistas tornaram -se 
“socialistas” porque eles eram nacionalistas. Em segundo lugar, a abordagem 
capitalista do desenvolvimento durante os primeiros anos da independência 
tendo -se revelada inadequada, alguns dirigentes africanos tiveram tendência a 
588 África desde 1935
perceber, na via socialista, uma estratégia substituta, no sentido da melhoria e 
transformação da situação social e econômica.
O terceiro fator que predispunha favoravelmente muitos africanos em res-
peito ao socialismo era a corrupção endêmica que não tardara a surgir em meio 
aos dirigentes pós -coloniais do continente. Evidentemente, o capitalismo não 
possui emnada a exclusividade no referente à corrupção e esta última não era 
desconhecida nos países socialistas. Contudo, o sentimento prevalecente era 
aquele segundo o qual, eventualmente, seria mais difícil manter a disciplina 
social em condições baseadas no comportamento econômico regido pelo laisser-
-faire, comparativamente àquelas correlatas a uma planificação e controle relati-
vamente centralizado. O quarto fator era a ideia muito difundida segundo a qual 
a cultura africana tradicional era essencialmente coletivista e, por conseguinte, 
“socialista”. Tal era, em todo caso, o ponto de vista defendido pelos dirigentes 
africanos, como Senghor, Nyerere e Mboya. Acima de tudo, os regimes africa-
nos, pretensos engajados na via do Estado de partido único, encontravam -se 
particularmente fascinados pela simbólica socialista. Ao final das contas, as 
tendências centralizadoras do socialismo apresentavam uma natureza a justificar 
o monopólio do poder exclusivamente por um partido.
Por todas estas razões, o clima intelectual demonstrava -se, em seu conjunto, 
mais favorável ao socialismo. Consiste em fato consumado que, no imediato 
posterior à independência, a maioria dos governos africanos defendia, ao menos 
da boca para fora, os preceitos do socialismo, além de ser notório que os países 
precedentemente enumerados adotaram -no não somente do ponto de vista 
ideológico mas, igualmente na prática.
Ora, todos esses países fracassaram porque, malgrado um clima intelectual 
propício, o terreno sociológico revelou -se refratário ao socialismo. O primeiro 
fator sociológico desfavorável era, e continua a ser, a maior força da etnicidade 
na África, em grau muito superior ao demonstrado pela consciência de classe. A 
maioria dos africanos são, primeiramente, membros de sua etnia e em seguida, 
membros de certa classe social. Em caso de crise, respectivamente, os operários 
luo e os operários yoruba estão mais propensos a identificarem -se com a bur-
guesia luo, do Quênia, e com a burguesia yoruba, da Nigéria, comparativamente 
à possível identificação face aos seus irmãos camponeses; tal é a conclusão que 
Jaramogi Oginga Odinga e o chefe Obafemi Awolowo puderam tirar da sua 
experiência. Oginga Odinga tentou formar um partido socialista radical. Ele 
não tardou em descobrir que aqueles a lhe prestarem apoio não eram os desfa-
vorecidos do Quênia, mas quase exclusivamente indivíduos luo. Igualmente, o 
chefe Obafemi Awolowo pôde muito rápido perceber, durante a primeira e a 
589Construção da nação e evolução dos valores políticos
segunda repúblicas da Nigéria, que ele era, em que pese o seu discurso socialista, 
o herói não da classe operária do conjunto da Nigéria mas, de praticamente 
todas as classes do país yoruba. Ao considerarmos o todo em sua justa medida, 
estamos fadados a afirmar que na África, sempre que postas em disputa, quase 
ao limite do enfrentamento, por um lado, as forças da etnicidade, por outro, 
aquelas relativas à consciência de classe, por pouco que não invariavelmente, foi 
a pertinência étnica o vetor triunfante.
O segundo fator sociológico desfavorável está representado pela força das eli-
tes culturais africanas em suas relações com as classes econômicas enquanto tais. 
Em razão da fraqueza destas últimas, a única classe capaz de consumar a revo-
lução socialista na África somente podia ser a elite. Infelizmente, esta elite era, 
em sua totalidade, formada por africanos fortemente ocidentalizados, os quais 
alimentavam o seu poder, não através da posse de riquezas mas, graças à incor-
poração de uma educação ocidental e pela aptidão no manejo do verbo. Assim, 
embora tornada revolucionária, ela não era capaz de fazer a revolução socialista, 
pois como pressentira Karl Marx, unicamente a classe menos favorecida das 
figura 16.4 Tom Mboya, antigo dirigente sindical e ministro do Planejamento Econômico do Quênia, 
assassinado em 1969. (Foto: Foundations Books Limited, Nairóbi.)
590 África desde 1935
sociedades mais evoluídas – e não a classe mais favorecida constituída pela elite 
africana ocidentalizada – poderia consumá -la. Inclusive os africanos em viagem 
de estudos à União Soviética ou à China, forçosa e previamente, eram levados 
a ocidentalização pois, as obras de Marx, de Angels, de Lênin e de Mao não 
haviam sido traduzidas para as línguas africanas, como o kiswahili ou o yoruba. 
Consiste em um imperativo para um africano, trata -se de uma impossibilidade 
sociolinguística, ser um marxista por completo, sem, necessária e forçosamente, 
ser ocidentalizado. Pode -se, portanto e incontestavelmente, classificar a natureza 
da formação das elites africanas entre as características desfavoráveis do campo 
sociológico ao qual, no âmbito africano, foi confrontado o socialismo.
Um terceiro fator a comprovar a aridez do terreno, diz respeito às capaci-
dades organizacionais da África em sua fase histórica atual. Consta como ideia 
amplamente difundida, supor que uma tradição de coletivismo, em um contexto 
tradicional, esteja em condições de predispor o desenlace e o desenvolvimento 
de esforços coletivos organizados no contexto moderno. Infelizmente, constata-
-se antes o inverso. O esforço coletivo, fundado sobre os costumes e a tradição, 
bem como sobre os laços de parentesco, não preparou em nada o continente 
africano, no tocante ao tipo de coletivismo organizado, forçosamente assentado 
sobre o comando, e não sobre o ritual. Se, por sua vez, o socialismo exige uma 
estrutura eficaz e racional de comando, não fundada sobre os costumes nem 
sobre as afinidades étnicas ou os ritos, a sociedade em seu atual estágio evolutivo 
da experiência africana, quanto a ela, não está sempre preparada para acolher o 
modo de transformação socialista.
O quarto aspecto da inadequação do terreno sociológico africano à transposi-
ção do socialismo, leva -nos, quanto a ele, a questões em respeito à continuidade 
histórica. Muitas economias africanas integraram -se, em profundidade e desde 
outrora, a uma economia mundial dominada pelo Ocidente. Os países africanos, 
ao adotarem o socialismo em suas sociedades, descobrem a sua permanente 
integração ao sistema capitalista mundial. As regras deste sistema derivam mas-
sivamente de princípios elaborados no fio histórico do capitalismo. No comércio 
internacional, os países buscam captar o máximo de receitas e realizar lucros. 
As regras dos negócios e das trocas em nível internacional, o sistema bancá-
rio, subjacente a estas trocas, as moedas, efetivamente utilizadas nos mercados 
financeiros e para regular os pagamentos, estes elementos constituem, em si 
e contudo, produtos da experiência capitalista. Países como Vietnã, Angola e 
mesmo Cuba, compreendem, ao final das contas, que a melhor plataforma de 
sanidade econômica consiste em adquirir legitimidade internacional, conforme 
as normas ocidentais. Possivelmente, o Vietnã e Cuba não alcancem conquistar 
591Construção da nação e evolução dos valores políticos
a sua legitimidade mas, uma das suas ambições consiste em receber os benefícios 
do Ocidente, obter para os seus produtos um fácil acesso aos seus mercados e, 
igualmente, ter acesso aos seus mercados financeiros.
Este conjunto de circunstâncias, notoriamente, significa que os países do Ter-
ceiro Mundo podem incorporar modalidades de funcionamento interno socia-
listas, permanecendo, todavia, profundamente integrados ao sistema capitalista 
internacional. Igualmente fizemos valer que um país como a Tanzânia é mais 
dependente, nos dias atuais, do sistema capitalista mundial, comparativamente 
ao que era antes de inaugurar a sua experiência neosocialista, segundo os termos 
da Declaração de Arusha, em 1967.
Estamos diante de uma configuração de fatores, os quais, por um lado, reve-
lam que a África está intelectualmente pronta para o socialismo e, por outra 
parte, advertem -nos que as condiçõesmateriais para uma autêntica experiência 
socialista no continente ainda não estão reunidas. O clima intelectual é promis-
sor; o terreno sociológico é dissuasivo.
Retorno aos valores democráticos liberais
A entrada no obscurantismo dos valores socialistas na África acompanhou-
-se de um fluxo sustentado de retorno aos antigos valores democráticos liberais, 
próprios aos primórdios da independência. Existem, nos dias atuais e na maioria 
dos Estados africanos, movimentos democráticos liberais, a exigirem o fim da 
dominação do partido único e do exército, o retorno ao pluripartidarismo e elei-
ções políticas fundadas na disputa, bem como, o restabelecimento dos direitos 
humanos fundamentais, especialmente a liberdade de associação e a liberdade 
de imprensa, assim como a abolição do poder de prisão e detenção arbitrárias. 
Estes movimentos reivindicam, em suplemento à justiça social e ao controle das 
responsabilidades, a privatização, a liberação dos mercados e a descentralização, 
além de defenderem a participação de todas as classes nos processos decisórios 
e a aceleração do desenvolvimento. Até mesmo antigos pilares do sistema de 
partido único do modelo socialista de desenvolvimento, como Nyerere, toma-
ram o trem em movimento. É possível medir o sucesso manifesto deste novo 
movimento pelo fato de dirigentes tais como Mobutu, no Zaire (atual RDC), 
Houphouët -Boigny, na Costa do Marfim, e Kerekou, no Benin, terem conce-
dido o pluripartidarismo e as eleições livres. Eleições abertas à disputa foram, 
desde então, organizadas no Benin, em Cabo Verde, em São Tomé e Príncipe, 
no Gabão e no Senegal, países estes que decidiram, em sua totalidade, agregar -se 
592 África desde 1935
ao pequeno grupo de Estados democratas do continente. Uma vez mais, não nos 
resta senão reclamar a explicação para estes desdobramentos muito felizmente 
tomados pelos acontecimentos.
Atenhamo -nos aqui a acrescentar, igualmente, que estas evoluções não 
configuram nem ineditismo, nem tampouco consistem em reflexos da glasnost 
e da perestroïka de Gorbatchev, das pressões exercidas por instituições finan-
ceiras internacionais, como o Banco Mundial e o FMI, ou por países doadores 
de ajuda, tais como os Estados Unidos da América do Norte, a Grã -Bretanha e 
a França. Em alguns países africanos, à imagem de Gana, da Nigéria, da Costa 
do Marfim e do Quênia, o pleito por democracia e pelo regime civil começou 
a manifestar -se desde o final dos anos 1960 e no curso dos anos 1970, após a 
instauração do sistema de partido único ou de ditaduras militares. Ninguém 
seria capaz de esquecer a existência, no Quênia, do movimento Mwakenya, 
a prisão e o encarceramento do romancista Ngugi, de certos membros do 
parlamento e de outros intelectuais do país, durante os anos 1970. Tampouco, 
pessoa alguma deixaria cair no esquecimento a oposição ao governo de união 
em Gana no transcorrer destes mesmos anos, oposição esta dirigida pelo 
Movimento Popular pela Liberdade e pela Justiça, em luta contra o regime 
militar do Coronel I. K. Acheampong, e a reclamar o restabelecimento de 
um governo civil e da democracia parlamentar fundada sobre o sistema mul-
tipartidário. A débâcle do (soi -disant) comunismo na Europa Oriental e na 
União Soviética, assim como as pressões do FMI e dos países ocidentais 
industrializados, tiveram como consequência obrigar os dirigentes africanos a 
acatarem as exigências destes movimentos, em lugar de reprimi -los, arbitrária 
e brutalmente, como era lugar -comum durante os anos 1970 e ao início dos 
anos 1980. A verdadeira razão para o surgimento destes movimentos consiste 
no simples fato a revelar que, no desenrolar dos anos 1970, não somente os 
regimes socialistas mas, igualmente os sistemas baseados no partido único, 
mostraram -se incapazes de oferecer todo o esperado de sua parte, a saber, o 
desenvolvimento e a construção da nação.
Sublinhemos que dois argumentos -chave foram enunciados, ao final dos 
anos 1950 e durante os anos 1960, com o objetivo de justificar o estabelecimento 
dos regimes baseados no partido único: o imperativo da unidade nacional, além 
das classes ou das etnias e as exigências do desenvolvimento. Assim sendo, Julius 
Nyerere escrevia: “Agora que os colonialistas partiram, não há mais divisão entre 
dominadores, por um lado, e dominados, por outro [...]. O pluripartidarismo é 
um luxo que nós, aqui na África, não podemos nos permitir. Temos pouquíssimo 
593Construção da nação e evolução dos valores políticos
tempo e há demasiadas realizações relevantes a concretizarmos, a ponto de não 
podermos nos conceder este fútil passatempo17.”
No Mali, Madeira Keita sustentava, por sua vez, que o partido único, estru-
tura concentrada da nação, era “o crisol no qual se encontram o camponês e o 
homem citadino18”.
“O desenvolvimento contínuo, escrevia François Tombalbaye (Tchad), exige a 
adesão de todos a um objetivo instituído em comum, assim como a conjunção de 
todas as energias; e o partido único desempenhará, na qualidade de mobilizador, 
um papel central neste âmbito19.”
“Se o partido identificar -se com o povo, escrevia -nos Sékou Touré, é evidente 
que o Estado deva igualmente identificar -se com o partido, com o intuito de 
constituir a indissociável trilogia: povo, partido, Estado”. Desta forma, “não 
há possível razão partidária que deva prevalecer sobre a razão e o interesse do 
povo, igualmente, não existe nenhuma razão de Estado que possa prevalecer 
sobre a diretriz partidária20”. A Constituição de 1982, na Guiné, dispõe que “o 
poder revolucionário [...] seja exercido pelo povo, organizado no seio do Partido 
Democrático da Guiné, partido -Estado, com base no centralismo democrático”; 
todos os órgãos de poder apresentam -se como órgãos deste partido -Estado e “os 
juízes são eleitos pelas instâncias do partido, em todos os níveis”. Assim falavam 
os dirigentes do Togo, de Camarões, do Zimbábue e do Zaire (atual RDC); 
neste último país, o partido do presidente Mobutu era “a única instituição do 
Estado21”. O coletivismo tornara -se um monopólio político.
Entrementes, após dezenas de anos sob este sistema, nem a unidade nacio-
nal, nem o desenvolvimento se haviam realizado nestes países africanos. Ao 
contrário, era manifesto, ao final dos anos 1970, que os raros países democrá-
ticos, como o Botsuana e as Ilhas Maurício, haviam obtido resultados nitida-
mente melhores, em matéria de desenvolvimento econômico, de estabilidade 
política e de edificação nacional. Excetuando -se estes poucos países, na rea-
lidade, assistira -se à supressão dos Direitos Humanos fundamentais, ao esta-
belecimento de uma autocracia desavergonhada, da corrupção generalizada, 
do nepotismo, bem como à presença da mão -forte do aparato de Estado em 
todos os aspectos da vida social, através da monopolização dos recursos e da 
17 J. K. NYERERE, 1970a, p. 48.
18 M. KEITA, citado por L. SYLLA, 1977, p. 260.
19 F. TOMBALBAYE, citado por L. SYLLA, 1977, p. 260.
20 A. SÉKOU TOURÉ, 1977, citado por L. SYLLA, 1977, pp. 245 -247.
21 P. -F. GONIDEC, 1983, p. 72.
riqueza do Estado pelos dirigentes do partido ou pelas oligarquias militares e 
sua clientela. Ora, damo -nos de mais e mais conta que, embora o pluralismo 
não constitua, evidentemente, uma panaceia para os males políticos, ele é capaz 
de facilitar a concretização de um dos mais altivos valores políticos, a liber-
dade. Pois, finalmente e nos dias atuais, muitos africanos questionam -se sobre 
quais seriam as razões para a transformação do desenvolvimento e da unidade 
em valores absolutos. Desenvolvimento em proveito de quem? Unidade para 
quem? O que seria o desenvolvimento para aqueles situados à margem do 
aparelho partidário? Estas questões estão no cerne da revolução democrática 
que sacode a África no início dos anos 1990. Portanto, as reivindicações dos 
africanos, confluem para um retornonão somente aos valores democráticos 
liberais mas, igualmente, aos próprios valores que encarnam e simbolizam as 
suas divisas, os seus hinos e as suas bandeiras nacionais: a unidade nacional, o 
desenvolvimento, a liberdade e a justiça social.
figura 16.5 Ahmed Sékou Touré, presidente da República da Guiné de 1958 a 1984. (Foto: IMAPRESS, 
Paris.)
595Construção da nação e evolução dos valores políticos
Rumo a uma nova ética capitalista
Todavia, no seu impulso atual em favor do modelo de desenvolvimento 
liberal e democrático, a África, deveria ela percorrer todo o leque de priva-
tizações e assumir a postura ocidental relativa à liberdade de mercado? A 
experiência pregressa aconselha a África, neste âmbito, a adiantar -se com pru-
dência e a modificar, em certa medida, a sua postura. Primeiramente, todos os 
africanos puderam medir a força, ainda presente no continente, da pertinência 
étnica, com o seu correlato nepotismo e, por conseguinte, ao adotarem esta 
abordagem, não seria temeroso que o conjunto do mercado seja enquadrado ou 
esteja sobre o monopólio de uma ou duas etnias? Desde logo, não seria neces-
sário que a África estabelecesse uma espécie de “legislação antitruste” étnico, 
intuindo impedir ou quebrar os “monopólios étnicos”, à imagem daqueles 
mantidos, nos primórdios da independência, pelos ibo, na Nigéria, ou pelos 
kikuyu, no Quênia?
O segundo grande ensinamento da História consiste na maneira através da 
qual o móbil do prestígio, no tocante ao comportamento econômico africano, 
conduziu a um consumo ostentatório e a um exibicionismo “aristocrático” e 
monárquico desenfreado. A Mercedes é na África o símbolo permanente da 
vaidade ostentatória mas, há lugares, como a Nigéria, nos quais a onerosa frota 
de automóveis está, por vezes, arregimentada em meio a um ou dois palácios, um 
avião e um helicóptero privados e um trem ordinário, este conjunto em proveito 
de uma única família!
Se o móbil do lucro, na teoria econômica clássica, é supostamente capaz de 
incitar uma maior produção, o móbil do prestígio, no referente ao comporta-
mento econômico africano dos tempos atuais e quanto a ele, incita um maior 
consumo. Ademais, os produtos de consumo de maior prestígio são frequente-
mente importados e pagos em divisas. Em si, a privatização não provoca uma 
maior produção na economia africana. O móbil do prestígio funciona tanto 
no âmbito privado quanto ao nível do Estado e devora monstruosamente os 
recursos do país.
Quando os ocidentais exortam os países africanos a privatizar, eles contam 
com os efeitos da liberdade concedida ao móbil do lucro. Ora, na realidade, na 
maior parte do continente africano, não se trata simplesmente de liberar e ativar 
o móbil do lucro, mas, além disto, de dominar e reprimir o móbil do prestígio. 
Podemos sustentar que, entre as duas cruzadas, a mais urgente continua sendo 
a segunda.
596 África desde 1935
A bem da verdade, a cruzada das cruzadas poderia perfeitamente consistir em 
encontrar os meios capazes de levar o móbil do prestígio de tal forma a fazer -lhe 
servir aos fins da produção e não somente aos apetites do consumo. Não seria 
necessário que a África tornasse a criatividade e a produção mais prestigiadas 
que a posse? Não seria imperativo que os africanos se interessassem mais pro-
ximamente aos problemas ligados aos estímulos no continente? Como afinar a 
sensibilidade do equilíbrio africano entre o prestígio e o lucro? 
Um terceiro grande problema de ordem privada a pesar sobre o mercado 
(além do nepotismo étnico e do móbil do prestígio) é o problema geral das prá-
ticas de corrupção, comuns na África pós -colonial. A corrupção pode bloquear 
os procedimentos e ter um efeito paralisante sobre a produção e a distribuição. 
Ela pode incidir, simultaneamente, sobre o setor público e o setor privado; ela 
pode ser burocrática ou onipresente. A privatização da economia corre o risco 
de simplesmente traduzir -se pelo tráfico de influência ou, pela privatização da 
corrupção − por vezes o mal mais contagioso para o conjunto da sociedade, 
comparativamente à corrupção dos funcionários e dos burocratas. 
O capitalismo chegou à África sem a “ética protestante” do trabalho e da 
frugalidade. Em termos econômicos, o protestantismo não se posicionava contra 
o instinto de aquisição; ele desconfiava do instinto de consumo, sobretudo com 
a finalidade de obter prazer. Segundo um dito puritano da época da Reforma, 
“Trabalhe para tornar -se rico para Deus mas, não para a carne e o pecado!” A 
riqueza não era considerada como contrária à moral senão quando ela incitava 
a ociosidade e a uma complacência culpável. A aquisição de riquezas não era 
perigosa senão quando ela solapava os princípios gêmeos do trabalho e da fru-
galidade, em nome de Deus.
Em sua chegada à África, o capitalismo trouxe o imperativo da aquisição sem 
a disciplina do trabalho e da frugalidade. O próprio homem branco, quanto a 
isto, fornece -nos um perigoso exemplo. Ele jamais era visto lavando a sua pró-
pria roupa, cozinhando, engraxando os seus sapatos, arrumando a sua cama ou o 
seu próprio aposento, nem mesmo servir -se do álcool em seus aperitivos. O luxo 
da vida aristocrática dos colonos brancos, conduzindo -os a serem os mestres dos 
serviçais africanos, prestou um desserviço ao capitalismo trazido pelo homem 
branco. O móbil do prestígio propriamente africano, traço que em suas versões 
originais possuía um caráter convivial, foi transformado pelos estilos de vida 
aristocráticos importados pelo homem branco. O móbil do prestígio na África, 
desde então, encarnou -se na esbanjadora cultura de consumo à moda europeia, 
com as suas imensas mansões e os seus criados, domésticos e jardineiros. 
597Construção da nação e evolução dos valores políticos
Se a ideologia do espírito empreendedor reduz -se à necessidade de aquisição, 
é possível dizer que ela apresenta -se hoje como um fato consumado em boa 
parte do continente africano. A tal ponto que, eventualmente, faz -se chacota 
daqueles indivíduos avessos a tirarem proveito das possibilidades que lhes são 
oferecidas, tocantes ao seu enriquecimento e aos eventuais possíveis favores 
ofertados à sua parentela. 
A questão crucial é parcialmente relativa aos meios empregados para alcan-
çar a riqueza. Cabe saber se ela foi criada ou simplesmente obtida. Adquirir a 
riqueza por meio de uma firme dedicação é um processo criador. Enriquecer -se 
na qualidade de intermediário à custa de interesses externos ou pela corrupção 
pode nada ter a ver com algo criador. A questão consiste em saber se é pos-
sível transformar o instinto de aquisição na África em algo mais diretamente 
produtivo.
Entretanto, se é necessário que os meios para alcançar a riqueza sejam cria-
dores, faz -se igualmente mister que os fins próprios a esta aquisição sejam 
consequentes. Ora, o consumo ostentatório não figura, por via de regra, entre as 
finalidades mais sadias do sucesso econômico. Em suma, é preciso uma funda-
mental reforma da ideologia africana no que diz respeito ao espírito empreende-
dor, aos dois níveis, meios e fins, da busca pela riqueza em sociedade. Enquanto 
este processo não se consumar, a privatização das economias africanas, longe de 
ser o melhor meio para garantir a saúde e a liberdade do mercado, corre o risco, 
ela própria, de atuar em detrimento do mercado. Aos observadores suficiente-
mente perspicazes, a experiência africana comprova que a privatização não é, 
necessária nem integralmente, a melhor proteção, em todas as culturas, para a 
liberdade de mercado. Ela exige, muito amiúde, outras medidas de salvaguarda 
da ordem social, moral e jurídica. 
Conclusão: cronologia da ideologia
A história consiste parcialmente em uma tentativa de identificação das ten-
dências. Mas, as tendências da história, das ideias e dos valores são particular-
mente difíceis a apreender.

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