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See discussions, stats, and author profiles for this publication at: https://www.researchgate.net/publication/295861691 Quantos sons existem na palavra ler? Contribuições da pesquisa científica em Psicologia Cognitiva da Leitura e análise do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC) ARTICLE · AUGUST 2015 READS 20 4 AUTHORS, INCLUDING: Antonio Roazzi Federal University of Pernambuco 263 PUBLICATIONS 310 CITATIONS SEE PROFILE Carla Moita Minervino Universidade Federal da Paraíba 16 PUBLICATIONS 7 CITATIONS SEE PROFILE All in-text references underlined in blue are linked to publications on ResearchGate, letting you access and read them immediately. Available from: Antonio Roazzi Retrieved on: 30 March 2016 - Revista EDUCAmazônia - Educação Sociedade e Meio Ambiente, Humaitá, LAPESAM/GISREA/UFAM/CNPq/EDUA – ISSN 1983-3423 – IMPRESSA – ISSN 2318 – 8766 – CDROOM – ISSN 2358-1468 - DIGITAL ON LINE 277 Ano 8, Vol XIV, Número 1, Jan-Jun, 2015, pág. 277-293. Quantos sons existem na palavra ler? Contribuições da pesquisa científica em Psicologia Cognitiva da Leitura e análise do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC) Monilly Ramos Araujo Melo Universidade Federal de Campina Grande Antonio Roazzi Universidade Federal de Pernambuco Carla Alexandra da Silva Moita Minervino Universidade Federal da Paraíba Alexsandro Medeiros do Nascimento Universidade Federal de Pernambuco Resumo: O Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC), criado no ano de 2012, configura um compromisso dos governos federal, estaduais e municipais para garantir que todas as crianças estejam alfabetizadas quando concluírem o 3º ano do fundamental. Faz parte do pacto a Avaliação Nacional da Alfabetização - ANA, com duas provas, uma de Língua Portuguesa e outra de Matemática. Os primeiros resultados divulgados indicam que a maioria dos estudantes do 3º ano do ensino fundamental – a idade em que termina o ciclo de alfabetização nas escolas, não demonstrou o domínio da leitura esperado. O quadro preocupante alerta que esse novo chamamento público para a reversão da crise instalada na educação básica brasileira não tem sido bem-sucedido e convoca os que lidam diretamente com o problema para analisá-lo e discuti-lo, assumindo o compromisso social que suas práticas profissionais preconizam. O artigo resume as principais evidências da pesquisa cognitiva sobre a leitura, discutindo as suas contribuições para o desenvolvimento das crianças no curso inicial do ensino fundamental. Apresenta também um sumário de pesquisa recente na área da neurociência da leitura e discute a importância da descoberta por Stanilas Dehaene dos neurônios da leitura, e seu possível impacto sobre os processos de literácia na escola. Conclui-se que as ações das políticas públicas de formação de professores devem caminhar no sentido de unir os achados da pesquisa científica com as demandas sociais, promovendo experiências que os professores possam analisar coletivamente, examinando novas concepções de ensino e de aprendizagem e, finalmente, encontrando formas de responder às diferenças e aos conflitos. Palavras-chave: leitura; fonemas; alfabetização; neurônios da leitura. Abstract: The National Pact for Literacy in the Right Age (PNAIC), created in 2012, establish as a goal of the federal, state and local governments to ensure that every child is alphabetized when completing the 3rd year of primary education. It is part of the pact the National Literacy Assessment - ANA, with two tests: Portuguese and Mathematics. The first results released show that most of the students of the 3rd grade of primary - Revista EDUCAmazônia - Educação Sociedade e Meio Ambiente, Humaitá, LAPESAM/GISREA/UFAM/CNPq/EDUA – ISSN 1983-3423 – IMPRESSA – ISSN 2318 – 8766 – CDROOM – ISSN 2358-1468 - DIGITAL ON LINE 278 education - the age at which ends the alphabetization cycle in schools, did not show the expected level of reading. The alarming situation warns that this new public call for the reversal of the crisis installed in Brazilian basic education has not been successful and invites those who deal directly with the problem to analyse it and discuss it, taking the social commitment that their professional practices advocate. The article summarizes the main findings of cognitive research on reading, discussing their contributions to the development of children in early elementary school. It is also presented a recent research summary in the area of reading neuroscience and it is discussed the importance of the finding by Stanislas Dehaene on reading neurons, and its possible impact on the literacy process in school. It is concluded that public policy actions aimed at teacher training should move towards making a connection between scientific research findings with social demands, promoting experiences that teachers could analyse collectively, examining new concepts of teaching and learning and, finally finding ways of answering to differences and conflicts. Keywords: reading; phonemes; literacy; neurons of reading. Introdução O Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC), criado no ano de 2012, configura um compromisso dos governos federal, estaduais e municipais para garantir que todas as crianças estejam alfabetizadas quando concluírem o 3º ano do fundamental. Faz parte do pacto a Avaliação Nacional da Alfabetização - ANA, que começou a ser realizada em 2013, com os estudantes em duas provas: uma de língua portuguesa, com 17 questões de múltipla escolha e três de produção escrita e outra de matemática, com 20 questões de múltipla escolha. Essas questões estão dispostas em diferentes níveis de dificuldade indicando se a competência está adequada ou inadequada conforme o nível apresentado pelas crianças avaliadas. Na divulgação dos dados da ANA de 2014, a primeira vez que o resultado do Brasil foi divulgado publicamente, a maioria dos estudantes do 3º ano do ensino fundamental (33,96%) – a idade em que termina o ciclo de alfabetização nas escolas – só conseguiu localizar informações "explícitas" em textos curtos como poemas ou quadrinhos, mas (22,21%), ou seja, uma em cada cinco crianças, apresentou um déficit ainda maior: aos oito anos de idade, só desenvolveram a capacidade de ler palavras isoladas, enquanto que 32,63% dos alunos demonstraram, no máximo, localizar uma informação explícita em textos mais compridos se ela estiver na primeira linha. Complementado a amostra de crianças que participaram da avaliação, situam-se 11,20% de estudantes que alcançaram o desempenho adequado segundo os parâmetros da prova, com destaque para a capacidade de compreenderem o sentido de trechos de contos e o sentido de palavras empregadas ao longo de textos mais compridos (MEC/Inep, 2015). Na escala da escrita, os níveis 1, 2 e 3 são considerados de aprendizado inadequado. No nível 1 situaram-se 11,64% dos estudantes. Isso significa, segundo o MEC/Inep (2015), que eles "ainda não escrevem palavras alfabeticamente" e "provavelmente não escrevem o texto ou produzem textos ilegíveis”. No nível 2, em que os alunos "provavelmente escrevem alfabeticamente palavras com trocas ou omissão de letras, alterações na ordem das letras e outros desvios ortográficos", estão 15,03% dos estudantes. Ainda, segundo a ANA 2014, 7,79% dos estudantes estão no nível 3 de escrita, o que significa que devem ser capazes de escrever "palavras com estrutura - Revista EDUCAmazônia - Educação Sociedade e Meio Ambiente, Humaitá, LAPESAM/GISREA/UFAM/CNPq/EDUA– ISSN 1983-3423 – IMPRESSA – ISSN 2318 – 8766 – CDROOM – ISSN 2358-1468 - DIGITAL ON LINE 279 silábica consoante-vogal, apresentando alguns desvios ortográficos em palavras com estruturas silábicas mais complexas", e "escrevem de forma incipiente ou inadequada ao que foi proposto", ou escrevem frases, mas ainda sem conectivos, e "apresentam ainda grande quantidade de desvios ortográficos". A maioria das crianças de oito anos avaliadas (55,66%) se encontram no nível 4 de escrita, quando elas podem escrever com diferentes estruturas silábicas, dando continuidade a uma narrativa, mesmo que não consigam contar todas as partes da história. Finalmente, uma em cada dez crianças (9,88%) atingiu o nível mais alto de escrita no fim do ciclo de alfabetização. Isso quer dizer que elas provavelmente articulam as partes do texto, início, meio e fim, separam e escrevem as palavras corretamente, embora ainda possam apresentar "alguns desvios ortográficos e de pontuação que não comprometem a compreensão” (MEC/Inep, 2015). O quadro preocupante alerta que esse novo chamamento público para a reversão da crise instalada na educação básica brasileira não tem sido bem-sucedido e convoca os que lidam diretamente com o problema para analisá-lo e discuti-lo, assumindo o compromisso social que suas práticas profissionais preconizam. Somos professores, pesquisadores, psicólogos, pedagogos, psicopedagogos, médicos, fonoaudiólogos e assistentes sociais que encontramos todos os dias em nosso trabalho crianças e suas famílias que perderam ou se encontram em risco de perderem o direito básico a educação e, por consequência, a vida plena em uma sociedade cercada pela leitura. Esse é o real chamamento público. Aquele contra o qual não há estudos ou políticas que possam ignora-lo e que, por tal, foi eleito como fato gerador do estudo científico apresentado nesse texto, que teve o objetivo de resumir as principais evidências da pesquisa cognitiva sobre a leitura, discutindo as suas contribuições para o desenvolvimento das crianças no curso inicial do ensino fundamental, como também o significado para os processos de literácia de crianças pequenas da descoberta por Stanislas Dehaene e colaboradores dos neurônios da leitura (Dehaene, 2007, 2012, 2014; Dehaene, Dehaene-Lambertz, Gentaz, Huron, & Sprenger-Charolles, 2011; Dehaene, Nakamura, Jobert, Kuroki, Ogawa, & Cohen, 2010a; Dehaene, Pegado, Braga, Ventura, Nunes Filho, Jobert, Cohen, et al. 2010b). A Psicologia Cognitiva da Leitura: Evidências históricas e aplicações recentes A Psicologia Cognitiva da Leitura inferiu a existência de três grandes etapas que sistematizam esse aprendizado desde a sua aquisição até o seu uso eficiente. O modelo teórico dos estágios da leitura mais referenciado na literatura é o de Utah Frith. Segundo Frith (1985), o desenvolvimento da leitura e da escrita é um processo interativo que ocorre em três fases sequenciais, identificadas com três estratégias: logográfica, alfabética e ortográfica, cada uma delas subdividida em dois níveis, a e b. As diferentes fases são identificadas pela estratégia adotada no primeiro nível, o nível a. Na primeira fase, a criança utiliza uma estratégia logográfica e possui um vocabulário visual limitado, que permite que ela reconheça, instantaneamente, algumas palavras familiares pertencentes ao seu vocabulário de visão (Stuart & Coltheart, 1988). Essa fase é caracterizada pela incapacidade das crianças em analisar as palavras (Cordeiro, 1999), elas são tratadas como um todo, e só podem ser pronunciadas após serem reconhecidas. Portanto, o conhecimento fonológico cumpre papel secundário nesse estágio; as palavras são identificadas e diferenciadas entre si pela presença ou ausência de características gráficas evidentes (como a primeira letra) e não é levada em conta a posição das letras na palavra (Pinheiro, 1994). Além disso, a criança não - Revista EDUCAmazônia - Educação Sociedade e Meio Ambiente, Humaitá, LAPESAM/GISREA/UFAM/CNPq/EDUA – ISSN 1983-3423 – IMPRESSA – ISSN 2318 – 8766 – CDROOM – ISSN 2358-1468 - DIGITAL ON LINE 280 responde às palavras desconhecidas apresentadas isoladamente, mas utiliza pistas contextuais e pragmáticas para adivinhar as palavras não-familiares encontradas num texto (Stuart & Coltheart, 1988). De acordo com a hipótese de Frith, é somente quando a habilidade logográfica alcança o segundo nível na leitura, que a estratégia logográfica pode ser adotada na escrita (Pinheiro, 1994). Na segunda fase, destaca-se a compreensão do princípio alfabético, pois a criança passa a compreender que tanto a posição das letras na palavra quanto o som das letras são fundamentais em cada palavra específica (Cordeiro, 1999). Assim, tem-se nesse estágio a aquisição das habilidades fonológicas que tornam possível primeiro a escrita (codificação), depois a leitura (decodificação) de palavras não-familiares regulares e de palavras inventadas, com o emprego das regras de correspondência grafema-fonema. O segundo nível da fase alfabética é alcançado quando a criança é capaz de aplicar as regras de correspondência tanto para a escrita quanto para a leitura, demonstrando proficiência fonética (Pinheiro, 1994). Essa possibilidade de a criança ler e escrever estímulos novos indica que ela está funcionalmente alfabetizada. Essa fase, sugerem (Castles & Coltheart 1993), é comparável à operação do procedimento sublexical de leitura e representa um avanço no desenvolvimento, uma vez que permite a pronúncia de palavras que não fazem parte do vocabulário visual da criança. Na terceira fase são desenvolvidas habilidades ortográficas visuais, que permitem um reconhecimento automático das palavras, por meio da análise de suas unidades ortográficas, sem que haja necessidade de conversão fonológica (Stuart & Coltheart, 1988). Portanto, a principal característica dessa fase é que as crianças deixaram de codificar as palavras letra por letra. A partir desse estágio, elas são capazes de identificar grupos de letras, que correspondem a segmentos fonologicamente mais estáveis e que algumas vezes, como no caso dos morfemas, estão relacionados a propriedades sintáticas e semânticas das palavras. O uso da estratégia ortográfica ocorre primeiro na leitura e depois na escrita. Para Castles e Coltheart (1993) a fase ortográfica de desenvolvimento da leitura corresponde à ativação do procedimento lexical. Contudo, dependendo do nível de regularidade do sistema de escrita, a permanência nesse estágio pode envolver dificuldades (Pinheiro, 1994). A criança terá problemas com para lidar com palavras irregulares, que seriam regularizadas (erros fonéticos) principalmente na escrita. A principal característica desse tipo de erro, na escrita, é que as palavras irregulares, apesar de escritas de maneira errada, transmitem o som da palavra que a criança está tentando escrever. Para Frith (1985), a estratégia ortográfica distingue-se da estratégia logográfica por ser sistematicamente analítica e por não envolver acesso visual. Por outro lado, ela se distingue da estratégia alfabética por operar em unidades maiores e por não fazer uso de conversão fonológica. O que existe é uma fusão de reconhecimento instantâneo, estabelecido na fase logográfica, com a habilidade de análise sequencial, adquirida na fase alfabética. Unidades ortográficas são empregadas na leitura, ao invés de características grafêmicas salientes (fase logográfica) ou correspondência entre grafema e fonema (fase alfabética). No que diz respeito à interação entre o desenvolvimento da leitura e o da escrita, a hipótese de Frith (1985) é de que odesenvolvimento paralelo, mas não sincronizado dessas duas habilidades, impulsione o progresso da criança. Assim, a leitura pode abrir caminho para o desenvolvimento da escrita, que avança de um nível simbólico para o logográfico. Em seguida, a escrita impulsiona o desenvolvimento da leitura, que passa - Revista EDUCAmazônia - Educação Sociedade e Meio Ambiente, Humaitá, LAPESAM/GISREA/UFAM/CNPq/EDUA – ISSN 1983-3423 – IMPRESSA – ISSN 2318 – 8766 – CDROOM – ISSN 2358-1468 - DIGITAL ON LINE 281 do estágio logográfico para o estágio alfabético. E, finalmente, a leitura volta a estimular o desenvolvimento da escrita que avança do estágio alfabético para o estágio ortográfico. Em síntese, a teoria de Frith mostra que em cada fase de desenvolvimento existe um primeiro nível que envolve uma divergência entre as estratégias usadas para a leitura e para a escrita, e um segundo nível que envolve uma convergência de estratégias. Cabe ressaltar, como característica importante dessa teoria, que cada nova estratégia se desenvolve a partir da estratégia anterior. O desenvolvimento dessas estratégias é, pois, sequencial e resultante de uma fusão das habilidades características das fases anteriores. Os estudos de Stuart e Coltheart (1988) indicam que o conhecimento da relação letra-som do pré-escolar permite predizer sua futura habilidade de leitura, pois a criança com uma boa habilidade de segmentar fonemas e um adequado conhecimento da correspondência letra-som possui os requisitos necessários para construir um léxico ortográfico inicial, ao ser capaz de construir unidades de reconhecimento para palavras simples sem nunca as ter visto escritas. Desta forma, as crianças tornam-se capazes de usar o seu conhecimento fonológico para construir uma rota direta para o acesso ao léxico. A consciência fonológica, portanto, além de facilitar a leitura, também influencia a rapidez com que as unidades de reconhecimento são desenvolvidas. No estudo da relação entre a consciência dos sons da fala e o processo de aprendizagem da leitura, o termo consciência fonológica, entendido como a capacidade de reflexão e de representação da linguagem falada e escrita, é um termo genérico e se refere a capacidades como, por exemplo, discriminação de sílabas e fonemas, reconhecer que palavras diferentes possuem sons em comum (e.g., Roazzi & Dowker, 1989; Roazzi, Oliveira, Bryant, & Dowker, 1994; Harten, Roazzi, & Carvalho, 1995; Silva, Cordeiro, Queiroga, Rosal, Carvalho, & Roazzi, 2015). Algumas destas atividades são mais fáceis do que outras, implicando em diferentes relações com a leitura. Tem se demonstrado claramente a existência de uma correlação positiva entre a consciência fonológica e o aprendizado da leitura, isto é, quanto mais a criança é capaz de manipular unidades sublexicais da língua, ou seja, de analisar a fala em nível de segmentos, melhor e mais rapidamente aprenderá a ler. Apesar de não existirem controvérsias sobre a existência desta relação, existiu muita polêmica acerca de qual a relação causal destas duas variáveis, ou seja, quem é a causa e quem é o efeito. Os estudos realizados nesta área de pesquisa apresentam atualmente um certo consenso em torno desta relação, tomando a consciência fonológica como uma habilidade que é, em parte, pré-requisito para a aquisição da leitura e, em parte, consequência deste aprendizado. A este respeito Morais et al (1996) sugere uma interação entre as duas habilidades, assim, as capacidades de segmentação fonológica se desenvolveriam como resultados de progressos na leitura, apesar de que, uma vez adquiridas, elas poderiam contribuir para um ulterior desenvolvimento da leitura. A consciência fonológica é avaliada através de provas que testam a habilidade do sujeito de realizar julgamentos sobre características sonoras das palavras (tamanho, semelhança, diferença) e/ou isolar e manipular fonemas e outras unidades supra- segmentares da fala, tais como sílabas e rimas (Barrera & Maluf, 2003). Aprofundando a análise da consciência fonológica pode-se identificar três sub- habilidades: a consciência de nível da sílaba; a consciência fonológica no nível intrassilábico e a consciência fonológica no nível dos fonemas, cada uma com suas - Revista EDUCAmazônia - Educação Sociedade e Meio Ambiente, Humaitá, LAPESAM/GISREA/UFAM/CNPq/EDUA – ISSN 1983-3423 – IMPRESSA – ISSN 2318 – 8766 – CDROOM – ISSN 2358-1468 - DIGITAL ON LINE 282 contribuições características para o desenvolvimento da leitura e escrita (Lamprecht, 2011). No primeiro nível, o nível da sílaba, observa-se a habilidade que a criança possui em segmentar e manipular as sílabas das palavras. De acordo com Lamprecht (2012), nessa fase, competências como - contar número de sílabas de uma palavra, adicionar sílabas, excluir sílabas entre outras habilidades, devem ser desenvolvidas pelas crianças. No segundo nível, chamado de intrassilábico, demanda-se que a criança consiga aprender a identificar aliterações e rimas. Por fim e, considerada a mais apurada delas, a capacidade de operar no nível dos fonemas, situa a criança no terceiro nível da consciência fonológica, quando competências como: segmentar as palavras em sons, juntar sons isolados, apontar fonema inicial, formar novas palavras a partir de um fonema, entre outras são de significativa relevância para o eficiente aprendizado (Adams et al., 2006). Conforme explicitado nesta seção, as informações fonológicas têm sido reconhecidas pela maioria dos pesquisadores da área como um componente essencial no processo de desenvolvimento da leitura e da escrita. A consciência fonológica, aliada as habilidades de acesso ao léxico mental e a memória de trabalho fonológica, referem-se às operações mentais de processamento da informação que se baseiam na estrutura fonológica da linguagem oral e compõem o processamento fonológico (Torgensen, Wagner & Rashotte, 1994). A descrição anterior provê uma breve explanação acerca de uma das principais teorias e modelos do funcionamento cognitivo subjacente à aquisição e desenvolvimento da leitura e escrita, visando introduzir o quadro de referência para a presente discussão, partindo da premissa de que o estudo do processo de desenvolvimento cognitivo nos fornece diretrizes úteis sobre o que deve ser estudado nas crianças com dificuldades de aprendizagem da leitura e escrita. Uma vez conhecido como transcorre o seu desenvolvimento é possível investigar o impacto de programas de intervenção para a sua evolução. Em particular, há evidências de efeitos significativos de intervenções promotoras da consciência fonológica no desenvolvimento da leitura em crianças com dificuldades. Pesquisa-intervenção em consciência fonológica e desempenho na leitura e escrita: Um dos primeiros estudos de intervenção avaliou o efeito do treino em consciência fonológica sobre as habilidades fonológica e de leitura e escrita em 76 crianças de pré-escolar à segunda-série (Capovilla & Capovilla, 1998). O treino teve a duração de 18 semanas. Uma prova de consciência fonológica foi desenvolvida e utilizada a fim de avaliar as seguintes habilidades: julgamento de rimas e aliterações, síntese, segmentação, manipulação e transposição silábicas e fonêmicas. Além disso, foram aplicadas provas de leitura em voz alta e de escrita em forma de ditado, além de provas de memória fonológica de trabalho (subteste de dígitos do WISC) e, de longo prazo. Os resultados demonstraram que o treino de consciência fonológica aumentou significativamente as habilidades fonológicas, de leitura e escrita do pré-escolar, bem como as habilidadesfonológicas gerais e específicas do pré-escolar à segunda-série. Capellini e Ciasca (2004) verificaram a eficácia de um programa de treinamento com a consciência fonológica em crianças com distúrbios específicos de leitura e de escrita e distúrbios de aprendizagem e comparou as habilidades intelectuais de leitura e escrita ao funcionamento de áreas corticais nestas crianças com aquelas que leem conforme o esperado para a idade e para o nível intelectual. As crianças tiveram idades - Revista EDUCAmazônia - Educação Sociedade e Meio Ambiente, Humaitá, LAPESAM/GISREA/UFAM/CNPq/EDUA – ISSN 1983-3423 – IMPRESSA – ISSN 2318 – 8766 – CDROOM – ISSN 2358-1468 - DIGITAL ON LINE 283 variadas de 08, 09, 10 e 12 anos e foram submetidas a pré-teste, treino e pós-teste. Os participantes formaram grupos com e sem histórico de fracasso escolar ou com sinal neurológico de lateralidade não definida. As crianças com e sem histórico de fracasso escolar melhoraram significativamente em escrita. O treino em consciência fonológica estimulou as consciências fonológica e sintática, apresentando impacto positivo na aprendizagem da leitura e escrita. Capovilla e Capovilla (2003) investigaram os efeitos do treino de consciência fonológica, leitura, escrita, conhecimento de letras, memória de trabalho e acesso léxico à memória de longo prazo, em 55 crianças de ambos os sexos de primeira série do ensino público fundamental com baixo nível socioeconômico. De acordo com ou autores, os dados evidenciaram que o grupo experimental obteve ganhos em consciência fonológica, leitura e ditado de palavras e de pseudopalavras e conhecimento de letras. Foi demonstrado que este tipo de investigação permite tratar de atrasos em consciência fonológica, leitura e escrita de crianças. Através de uma experiência de intervenção experimental voltada para o desenvolvimento da consciência fonológica e para o estudo de sua importância na aquisição da escrita, Santos e Maluf (2004) estudaram 90 pré-escolares cujas idades variaram entre 5,4 e 6,5 anos e, cuja língua materna era o português brasileiro. Foram feitas 32 sessões de 30 minutos três vezes por semana. Encontraram que a consciência fonológica tem papel facilitador no início da aquisição da linguagem escrita e pode se desenvolver através de programas de intervenção. As autoras ressaltam a necessidade de ser incluída na formação de professores a interação entre consciência fonológica e escrita como objeto de estudo, dada a importância dessa interação no processo inicial de alfabetização. Paula, Mota e Keske-Soares (2005) examinaram a influência da terapia em consciência fonológica no processo de alfabetização. Foram avaliadas 46 crianças em leitura e escrita de palavras e pseudopalavras e em consciência fonológica. A terapia influenciou positivamente o desempenho das crianças do grupo experimental no que se referiu às tarefas de consciência fonológica e em relação ao seu desempenho em leitura e em escrita. Foi concluído que a terapia de consciência fonológica facilita a aquisição do código alfabético. Em um estudo de tipo longitudinal analisando a influência das consciências fonológica, lexical e sintática sobre a aquisição da linguagem escrita em 65 crianças ingressantes na primeira série do ensino público fundamental, Barrera e Maluf (2003) avaliaram os participantes no início e no final do ano letivo e encontraram correlações significativas entre os níveis iniciais de consciência fonológica e sintática e o desempenho final das crianças em leitura e escrita. Na análise essas autoras ressaltaram a importância de se favorecer o desenvolvimento da consciência metalinguística nas séries iniciais. No Brasil, o enfoque de intervenção nas dificuldades específicas de leitura e escrita é ainda pouco expandido. Os poucos estudos nacionais em geral enfocam a instrução em consciência fonológica e nas correspondências grafema-fonema (abordagem fônica) em crianças de pré-escola e séries iniciais com atrasos nas habilidades fonológicas como forma de prevenção de dificuldades (Capovilla & Capovilla, 2003, 2002; Santos & Navas, 2002). Portanto, a maior parte dessas concepções esta ainda presente no âmbito clínico e centradas na remediação de problemas de consciência fonológica, uma das habilidades preditoras da leitura e escrita proficiente. - Revista EDUCAmazônia - Educação Sociedade e Meio Ambiente, Humaitá, LAPESAM/GISREA/UFAM/CNPq/EDUA – ISSN 1983-3423 – IMPRESSA – ISSN 2318 – 8766 – CDROOM – ISSN 2358-1468 - DIGITAL ON LINE 284 Uma abordagem teórica que considere as habilidades cognitivas constituintes dos módulos cognitivos de processamento fonológico, visual, auditivo e lexical, conjuntamente, é necessária para uma melhor compreensão do problema, e consequentemente, a elaboração de estratégias mais eficientes de intervenção. Os achados científicos propostos pela Psicologia Cognitiva da Leitura, brevemente apresentados anteriormente nessa seção, pretendem atender a essa condição e tem fundamentado a construção de instrumentos de avaliação ao longo de décadas de investigação e mais recentemente de uso clínico e educacional, no entanto, esse último campo de atuação ainda carece de práticas docentes fundamentadas no ensino da competência metafonológica para a ampla população da educação básica brasileira. Análise do Sistema de Ensino Brasileiro quanto à promoção da leitura e escrita Uma análise comparativa entre iniciativas fundamentadas no trabalho explícito com os fonemas e o PNAIC foi implementada por Sousa, Nogueira e Melim (2015). Eles analisaram a matriz teórica de dois programas de estimulação ao desenvolvimento da leitura vigentes e os impactos destas ações na prática dos professores alfabetizadores. Os resultados demonstraram, no campo teórico, a divergência das matrizes quanto aos conceitos de alfabetização, letramento e formação de professores, indicando, assim, a incoerência em serem adotados simultaneamente, na mesma rede de ensino. Destacaram, também, a necessidade de investimentos em formações que promova a autonomia teórica dos alfabetizadores. Essas diferenças conceituais são relevantes, pois se refletem diretamente nas práticas pedagógicas utilizadas em sala de aula. Ao desconsiderar, por exemplo, que inicialmente a decodificação fonológica é a etapa chave da leitura e iniciar a alfabetização como se a criança já “pensasse” numa hipótese alfabética, tem-se uma abordagem didática diferente de quando se concebe que a criança precisa ser encaminhada a prestar atenção aos pequenos constituintes das palavras, formulando internamente essa hipótese alfabética, que não é “natural” a ela (Sousa, Nogueira & Melim, 2015). Embora existam várias pesquisas que comprovem e explicitem sobre o melhor método de ensino de leitura, muitas escolas brasileiras ainda não adotam os métodos que são considerados mais eficazes para o ensino. Segundo Lopes (2015) que analisou o impacto do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa nas práticas de ensino inicial da leitura nas escolas municipais e estaduais no município de Santa Cruz do Sul, com foco na formação dos professores, o ponto forte do estudo foi destacar a fragilidade na formação proporcionada pelo Pacto que não aprofundou a questão atual mais pertinente no processo de alfabetização: a sistematização de atividades de consciência fonológica com a instrução explícita dos fonemas e grafemas e suas relações. Preocupante pois se trata e u pr -requisito para a decodificação das palavras e, por consequência, garante a melhora e o incremento da leitura para compreensão. Apesar da proposta do ciclode alfabetização em três anos indicar que tem como objetivo reduzir a repetência e melhorar a qualidade da leitura e da escrita, tendo um prazo máximo para esse alcance, sobretudo nos casos de crianças que não requenta a pr -es ola o que se o serva que geral ente as aquelas que requenta a pr -escola ou creche tem sido apenas “ ui a as” não recebendo estímulo precoce quanto as habilidades preditoras da leitura. No caso do ciclo de alfabetização de três anos o tra al o o pro essor al a eti a or identificar rapidamente as dificuldades de aprendizagem e, - Revista EDUCAmazônia - Educação Sociedade e Meio Ambiente, Humaitá, LAPESAM/GISREA/UFAM/CNPq/EDUA – ISSN 1983-3423 – IMPRESSA – ISSN 2318 – 8766 – CDROOM – ISSN 2358-1468 - DIGITAL ON LINE 285 paralelamente (e não ao final do terceiro ano), oferecer apoio com atividades adequadas e específicas de decodificação, conteúdos que possam atender as convenções do sistema de escrita alfabético que precisam ser ensinadas e, ao mesmo tempo, a concepção do letramento. certo enaltecer a proposta de letramento, como prática social, tão bem trabalhada na formação proporcionada pelo Pacto, mas para que todos possam usufruir dos conhecimentos de mundo que a leitura e livros propor iona a necessário que possam desenvolver as competências e habilidades requeridas para a leitura eficiente, ou seja, a automatização da conversão grafema-fonema (Lopes, 2015). Com base nas evidências científicas propõe-se que, para ajudar o professor no ensino da aprendizagem da leitura e da escrita, o método que utiliza o ensino explícito do código alfabético e a instrução fônica indica o caminho mais adequado para alfabetizar todos e garantir que o Pacto atinja seus objetivos. Stanislas Dehaene e os Neurônios da Leitura Stanislas Dehaene é um matemático e neurocientista francês contemporâneo que tem se dedicado a elucidar as bases neuronais da consciência, do senso número e da escrita. Seu conceituado trabalho nestas áreas o tem elevado ao primeiro time na pesquisa em ciências cognitivas, o que o fez ser eleito em setembro de 2005 para a cátedra de Psicologia Cognitiva Experimental do Collège de France, em Paris. Ele tem estado sediado desde 1997 no Centro de Imageamento Cerebral Orsay no Service Hospitalier Frédéric Joliot do Commissariat à l'Énergie Atomique, onde tem dirigido a Unidade de Neuroimagem Cognitiva desde 2001 (Collège de France, 2015). Segundo informações disponibilizadas em sua Biografia na página do Collège de France, os principais interesses de pesquisa de Dehaene se referem as bases neuronais de funções cognitivas especificamente humanas como linguagem, cálculo e raciocínio, sendo tais tópicos de pesquisa abordados por uma variedade de métodos experimentais como cronometria mental em sujeitos normais oriundos de amostras não clínicas, análises de tarefas cognitivas em pacientes com lesões cerebrais, e estudos de imageamento cerebral com tomografia de emissão de pósitrons, imageamento por ressonância magnética funcional, e registros de potenciais relacionados a eventos de alta densidade. Esta variedade de dados é encaminhada à construção de modelos formais de redes neurais mínimas em que se procura simular e testar hipóteses sobre as relações entre dados moleculares, fisiológicos, comportamentais e de imageamento cerebral. O autor citado é extremamente prolífico e tem mais de 100 publicações científicas nos periódicos mais importantes de sua área, e tem publicado entre outros livros, o importante estudo O Sentido do Número (Dehaene, 1997), que tem sido traduzido em oito línguas. Além das importantes contribuições à literatura em neurociências cognitivas, o autor tem recebido vários prêmios internacionais importantes, dentre eles o McDonnell Centennial Fellowship e o prêmio Louis D. da Academia Francesa de Ciências, este compartilhado com Denis Le Bihan. Stanislas Dehaene tem se destacado em especial por suas contribuições a uma mais refinada compreensão da organização do sistema cerebral responsável pelo processamento de número, em que por meio de evidências recolhidas a partir de imageamento cerebral por PET, ERPs, fMRI, e lesões cerebrais, se demonstrou o papel central de uma região do sulco intraparietal na compreensão de quantidades e aritmética, ou o que se convencionou chamar de senso de número ou numerosidade (number sense). Seu pioneirismo tem se evidenciado também na proposição de um novo modelo para compreensão do processamento consciente e - Revista EDUCAmazônia - Educação Sociedade e Meio Ambiente, Humaitá, LAPESAM/GISREA/UFAM/CNPq/EDUA – ISSN 1983-3423 – IMPRESSA – ISSN 2318 – 8766 – CDROOM – ISSN 2358-1468 - DIGITAL ON LINE 286 não consciente no cérebro humano a partir de demonstrações de que apresentações subliminares de palavras podem produzir ativações detectáveis no córtex em técnica de ressonância magnética funcional (fMRI), além de suas importantes descobertas no processamento da leitura em colaboração com o neurologista Laurent Cohen que tem evidenciado o papel da região occipito-temporal esquerda em reconhecimento de palavras – a área da forma visual de palavras (Collège de France, 2015). Nos deteremos em sua contribuição específica ao processamento neuronal da leitura em humanos. Segundo sumário do pensamento de Dehaene realizado por Battro (2008), a tese principal esboçada na monogra ia “Os neurônios a leitura” que o re ro u ano te a apa i a e e ler porque as re es neuronais são “re i la as” a ins e pro essar informações veiculadas por letras, palavras, sentenças e toda a rica e complexa variedade de símbolos convencionais produzidos nas culturas humanas desde o início dos tempos históricos (Dehaene, 2007, 2012). A hipótese da reciclagem neuronal, central ao pensamento de Dehaene, se assenta sobre a visão de que o paradoxo da leitura é possível de ser dissolvido se considerarmos que o cérebro do Homo sapiens, apesar se ser tão bem adaptado a leitura, o fato de esta atividade ter sido inventada culturalmente há poucos milênios atrás e ter se iniciado do zero, de um vácuo cultural, e portanto, não ter permitido que neste escalão reduzido de tempo o cérebro desenvolver-se sob a pressão de leitura e escrita, nos faz perceber que tais habilidades se desenvolveram como possibilidades dentro de restrições biológicas do cérebro. Este insight original do modelo vai na contramão de modelos relativistas culturais que afirmam que o cérebro não conhece limitações em corporificar qualquer cultura possível, o que é contradito por Dehaene (2007, 2012), cujo modelo tem justamente como meta identificar os constrangimentos e limitações neuronais que modelam e tornam possíveis o desenvolvimento de artefatos culturais como religião, arte, escrita e leitura, e que explica tais aquisições pela produção de novas habilidades com base em habili a es já evolu ionaria ente esenvolvi as aí o ter o “re i lagem neuronal” a esta ipótese que reivin i a que os es os universais ere rais estão na base da imensa variedade de linguagens escritas. Em prosseguimento a descrição dos mecanismos de leitura formalizados no modelo em tela, a leitura começa na retina onde a fóvea detecta letras e sinais, e nesta fase do processamento são cruciais os movimentos sacádicos dos olhos os quais focalizam de sete a nove letras por fixação e pulam de uma palavra à seguinte. Sabe-se que há restrições na velocidade do padrão sacádico em torno de 400 palavras por minuto. A informação capturada pela fóvea segue em duas rotas paralelas no processamento da leitura, a saber, a rota fonológica e a rota léxica. Na rota fonológica, a informaçãoevolui de palavras a sons, os quais são pronunciados mentalmente durante o tempo da leitura silenciosa. Por sua vez, na rota léxica é especializada na recuperação do sentido - em termos de significado e referência – de palavras de uma biblioteca ou léxico mental em torno de 50.000 a 100.000 palavras no vocabulário comum. A pesquisa no cérebro tem revelado que a integração necessária no processamento da leitura entre os resultados dos subprocessamentos das rotas fonológica e léxica deixa de acontecer em lesões neurológicas específicas como na dislexia fonológica em que os pacientes se vêem impedidos de utilizar a rota fonológica, e na dislexia de superfície em que os pacientes não conseguem acessar as palavras diretamente sem leitura audível. Todavia, mesmo uma integração adequada entre os dois mecanismos não é isenta de tensões entre os mesmos dado o conhecido problema da transparência das linguagens existentes, onde algumas como no Italiano, há uma correspondência estreita entre - Revista EDUCAmazônia - Educação Sociedade e Meio Ambiente, Humaitá, LAPESAM/GISREA/UFAM/CNPq/EDUA – ISSN 1983-3423 – IMPRESSA – ISSN 2318 – 8766 – CDROOM – ISSN 2358-1468 - DIGITAL ON LINE 287 ortografia e pronúncia, portanto são línguas mais transparentes, enquanto em outras como o Inglês e o Francês o nível de transparência é bem menos acentuado (Battro, 2008). Um dos legados mais importantes de Dehaene à pesquisa em leitura trata-se de sua identificação do que ele e seus colaboradores tem nomeado de área de forma visual e palavras (“visual word form area”) no sul o o ipitotemporal ventral esquerdo, que evidencia uma região cortical associada a um evento puramente cultural para seres humanos - a leitura (Dehaene, 2007, 2012), e que ecoa outro de seus mais importantes achados à ciência relacionados à área na profundidade do sulco intraparietal direito e esquerdo, e responsável pelo desempenho em tarefas aritméticas ou senso de numerosidade (Dehaene, 1997, 2012). A descoberta destas duas áreas cerebrais lança um novo giro compreensivo sobre a evolução da cultura humana numa escala de tempo de alguns milhares de anos, dentro de um horizonte bem mais amplo e antigo de literalmente milhões de anos de tempo filogenético de evolução do cérebro dos primatas (Battro, 2008). Desde o século XIX sabe-se que lesões na área citada por Dehaene está na origem de impedimentos na leitura, embora não na escrita, a partir da descrição da alexia pura pelo neurologista francês Joseph-Jules Déjerine. No entanto, o uso contemporâneo ostensivo de técnicas de imageamento tem permitido a exploração extensa desta área em indivíduos vivos durante o ato de leitura, o que tem trazido evidências conclusivas para sua ativação para detecção de roteiros, alfabetos e ideogramas de criação cultural humana, estando ao encargo das culturas específicas o imprint sobre o córtex da leitura com invariantes de fonte, tamanho e forma, como negrito e itálico, caixa alta e baixa, etc. O cérebro, a partir destes imprints, aprende a ler diferentes formas gráficas como maiúsculas e minúsculas como sendo as mesmas letras em dois formatos, por exemplo, abstraindo suas diferenças de forma, sendo o grande mérito de Dehaene o de ter provado que esta área cortical (córtex occipitotemporal ventral esquerdo) é a única apta a aprender a adaptar-se a estas convenções culturais consoante ao processamento da leitura. A detecção dos sinais gráficos começa em 170ms após sua apresentação na retina, e uma vez realizada o processamento segue na direção de toda a área associativa relacionada a linguagem através de feixes de conexões que estão disponíveis a exame acurado atualmente por técnicas de imageamento como análise de matriz de valores (tensor analysis). Neste ponto do processamento da leitura as duas rotas para som e sentido (fonológica e léxica, respectivamente) estão envolvidas, mas modulações finas de natureza cultural incidem a depender das linguagens envolvidas: caracteres chineses, por exemplo, devem ativar pesadamente as regiões de sentido, enquanto linguagens alfabéticas como a língua kana do Japão ativam predominantemente regiões de som (Battro, 2008), o que evidencia para Dehaene (2007) que as redes cerebrais de leitura são um invariante antropológico da espécie humana. Em ordem de explorar a questão de como humanos dependentes de um primitivo cérebro visual primata lêem, Dehaene traz a primeiro plano um detalhamento sobre as diferenças entre objetos naturais e artificiais e sua detecção pela área visual de primatas. Sabe-se que nos seres humanos as lesões na área 37 de Brodmann produz cegueira psicológica ou agnosia visual, e dentro desta área cortical encontram-se os neurônios que detectam as formas de palavras visuais. Uma biblioteca de formas elementares nomeadas de proto-letras tem sido encontradas em cérebros de macacos por Dehaene, e que algumas delas são similares a letras e números, conformando um dicionário mental - Revista EDUCAmazônia - Educação Sociedade e Meio Ambiente, Humaitá, LAPESAM/GISREA/UFAM/CNPq/EDUA – ISSN 1983-3423 – IMPRESSA – ISSN 2318 – 8766 – CDROOM – ISSN 2358-1468 - DIGITAL ON LINE 288 relacionado às propriedades não acidentais de objetos tridimensionais, o qual está na origem do privilegiamento das áreas de forma de palavra visual humanas de um alfabeto de formas geométricas simples ou invariantes matemáticos que foram redescobertos quando das primeiras experiências dos escribas na criação da escrita e do alfabeto (Dehaene, 2007, 2012). Conforme pontuado argutamente por Battro (2008), esta afirmação dehaeneana traz profundas consequências para o entendimento das relações entre co- desenvolvimento cérebro-cultura e evolução da escrita e leitura, pois agora afirma-se que é a cultura quem se adapta ao cérebro, e não o contrário, o que logicamente conduz a uma ressignificação profunda para a cultura e educação na percepção de que existem limites importantes na arquitetura do cérebro do Homo sapiens que não podem ser escamoteadas, e que deveriam ser levadas em consideração na proposição de formas pedagógicas mais efetivas ao aprendizado cultural da leitura, escrita e outras competências escolares. A cultura se ajusta onde as restrições do cérebro humano permitem, e o cérebro não pode ser considerado uma máquina universal de aprendizado para todos os fins, existem limites à plasticidade neuronal a aprender a partir da flexibilidade adequada herdada pelo nosso sistema visual a possibilitar a reciclagem de informação no cérebro do leitor. De forma muito adaptativa, humanos não necessitam arregimentar grandes quantidades de neurônios na detecção de palavras, em fases posteriores há uma maior ativação de redes mais extensas do córtex nas redes associativas relacionadas a significado e som de palavras e sentenças, numa dinâmica funcional que tem permitido ao cérebro humano capacitar-nos a literal ente “apren er a trans itir linguage atrav s os ol os” o que oi per e i o o uita sa edoria há cerca de 5.000 anos atrás pelas primeiras gerações de escribas (Dehaene, 2007). A robusta base de pesquisa experimental e com técnicas de neuroimagem utilizada pela equipe de Dehaene permitem a reconstituição de forma minuciosa do ato de ler na perspectiva do processamento neuronal. Linguagem escrita em quaisquer das línguas naturais apresentam sinais gráficos a uma porção especializada da retina – a fóvea, a qual detecta as informações rapidamente durante movimentos sacádicos dos olhos; uma pré-seleção é instanciada a partir de um repositório de formas básicas selecionadas evolucionariamente, as proto-letras, e o material selecionadoé organizado hierarquicamente, pré-seleção esta que reduz o esforço de reciclagem neuronal, permitindo o advento da significação na leitura. Este processo tem sua história na ontogenia da criança, em fases de crescente complexidade de processamento da informação: no início, o cérebro infantil extrai seguimentos de linguagem que seguem as regras da língua da mãe nos primeiros meses; no segundo ano de vida, há um incremento revolucionário de material vocabular que adicionará centenas de novos itens lexicais e regras compartilhadas nas práticas linguísticas, concomitante ao processo de abstração e extração de inúmeras invariantes perceptuais de objetos como faces, objetos não humanos e lugares, sendo esta habilidade essencial ao ato de leitura. É importante se frisar que os processos relacionados a manipulação neuronal de sons e sentidos estão em franca atividade ao momento que a criança entra na escola, sendo este um momento de grande neuroplasticidade nas regiões envolvidas com a leitura, em especial no córtex visual ventral esquerdo descoberto por Dehaene (2007, 2012). Esta descoberta se alinha, conforme (Battro, 2008), aos mecanismos e processamentos instanciados nas fases de desenvolvimento da leitura propostas por Frith (1985), em que no início tem-se uma representação logográfica ou pictorial de - Revista EDUCAmazônia - Educação Sociedade e Meio Ambiente, Humaitá, LAPESAM/GISREA/UFAM/CNPq/EDUA – ISSN 1983-3423 – IMPRESSA – ISSN 2318 – 8766 – CDROOM – ISSN 2358-1468 - DIGITAL ON LINE 289 palavras com sua característica arbitrariedade, que segue a rota cortical visual, após o que adentra-se na fase em que representações fonológicas permitem a conversão dos grafemas em fonemas (letras em sons) – marco de entrada da mente da criança na fase revolucionária de uma consciência fonêmica - , e por fim, o estágio mais avançado da ortografia em que palavras longas e curtas são lidas na mesma rapidez, posto haver um alicerce robusto de léxico já pronto em termos de lugares e códigos, que são ativados automaticamente, desobrigando a criança de pesada tarefa de decodificação fonológica passo a passo. Em suma, a conjunção das duas visões pautadas nos mecanismos cognitivos fritheanos e neuronais dehaeneanos edificam um papel muito expressivo e singular aos processos de ensinagem da leitura na escola. A alfabetização em sentido lato, àquilo que comumente se entende como literácia (literacy) ou seja o ensino sistemático das competências em linguagem, incluídas aí as habilidades de ler e escrever, uso sistemático de números e imagens para entender e usar o sistema de símbolos dominantes numa cultura, enriquece o código fonológico e oportuniza ao leitor identificar com mais rapidez e propriedade fonemas em palavras e pseudopalavras. O aprendizado do alfabeto auxilia na detecção dos menores componentes dos sons (fonemas), além de permitir uma expansão da memória a partir dos inúmeros ciclos de leitura em sala de aula. A progressão no sentido da fase ortográfica em que há uma economia dos processos fonológicos é alimentada pelo treino da leitura oportunizado na escola, em que modificações importantes nas sinapses e na velocidade no processamento é incrementado literalmente dia a dia no cotidiano escolar (Dehaene, 2007). Cabe aos educadores investir em modelos de ensinagem comprovadamente eficazes e corroborados em pesquisa empírica com base nos achados importantes propiciados pela descoberta dos neurônios da leitura, a fim de cumprirmos a tarefa de construção de uma sociedade mais cognitivamente apta e reflexiva oportunizada pelo fomento das habilidades leitoras de seus cidadãos desde as fases mais iniciais do desenvolvimento cognitivo. Considerações finais A aprendizagem da leitura não constitui um fim em si mesma, antes se apresenta como um instrumento que permite melhorar o sistema linguístico e comunicativo do indivíduo, proporcionando-lhe a chave para o acesso a outras aprendizagens (Citoler, 1996; Cruz, 1999). No entanto, diferente de outras áreas do desenvolvimento humano, a leitura e a escrita não se adquire espontaneamente. A sua aprendizagem exige o ensino direto, que não termina com o domínio da correspondência grafema-fonema, prolonga- se por toda a vida (Sim-Sim, 1998). A sua importância e complexidade explica a razão porque esses processos constituem um campo de investigação intensiva, associado à procura da compreensão científica e multidisciplinar do ato de ler e escrever e do ato de ensiná-los (Soares, 1998, 2004). As questões associadas às dificuldades de aprendizagem de leitura e avaliação e intervenção têm constituído um foco de interesse adicional, nomeadamente nas fases iniciais de aprendizagem da leitura e da escrita. Verifica-se que o insucesso nesta aprendizagem tem vindo a constituir uma das principais razões de retenção no Ensino Fundamental, condicionando, frequentemente, a aprendizagem em outras áreas - Revista EDUCAmazônia - Educação Sociedade e Meio Ambiente, Humaitá, LAPESAM/GISREA/UFAM/CNPq/EDUA – ISSN 1983-3423 – IMPRESSA – ISSN 2318 – 8766 – CDROOM – ISSN 2358-1468 - DIGITAL ON LINE 290 disciplinares (Alves Martins, 1996; Alves Martins & Niza, 1998), pelo que se torna essencial uma abordagem mais específica deste problema a todos os que direta ou indiretamente se confrontem com ele. A hipótese verificada neste trabalho foi a distância entre experiências bem-sucedidas de alfabetização registradas na literatura científica da área e as práticas docentes do ensino da leitura nas séries iniciais. Vários estudos demonstram que perante as dificuldades de leitura e escrita é possível verificarem-se progressos, contudo estes dependem de alguns aspectos fundamentais: da identificação precoce, de realização de descrições detalhadas do perfil leitor e da disponibilidade de programas de intervenção adaptados ao tipo de problemática (Fayol, Dubois, David, & Remond, 2000). Todavia, o alerta lançado pela pesquisa em neurociências relacionado aos neurônios da leitura não deve ser negligenciado, e precisa ser criticamente assimilado pelos professores de alfabetização e pesquisadores da área no reconhecimento da neuroplasticidade limitada do cérebro leitor, e das importantes restrições que presidem os intercâmbios do cérebro no ato de leitura com as práticas culturais e pedagógicas relacionadas a alfabetização. A sistemática corroboração da hipótese da reciclagem neuronal e a robusta documentação do processamento de informação durante a leitura com apoio em técnicas atuais de imageamento cerebral oportunizada pela pesquisa de Dehaene e colaboradores (ver Dehaene, 2007, 2012) abre uma frutífera via de investimento em técnicas didáticas alicerçadas nas pesquisas do cérebro que viabilizem o incremento destas habilidades leitoras e melhor eficácia dos processos de reciclagem propostos pelo autor. Assim, reconhecendo que é no dia a dia das salas de aula que professores e alunos vivenciam empiricamente os saberes profissionais, decidindo em meio as dificuldades e exigências do cotidiano escolar, entende-se que as ações das políticas públicas de formação de professores, conforme argumenta Garcia (2010), devem caminhar no sentido de unir os achados da pesquisa científica com as demandas sociais, promovendo experiências que os professores possam analisar coletivamente, examinando novas concepções de ensino e de aprendizagem e, finalmente, encontrando formas de responder às diferenças e aos conflitos. Referências Alves Martins, M. (1996). Pré-história da Aprendizagem da Leitura. Lisboa: ISPA. Adams, M. J., Foorman,B. R., Lundberg, I., & Beeler, T. (2006). Consciência fonológica em crianças pequenas. Porto Alegre: Artes Médicas. Alves Martins, M., & Niza, I. (1998). Psicologia da Aprendizagem da Linguagem Escrita. Lisboa: Universidade Aberta. Barrera, S. D., & Maluf, M. R. (2003). 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