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4 POPULAÇÃO E POVO 1. Conceito de população — 2. Desafio do fantasma malthusiano ao Estado moderno — 3. A explosão demográfica ameaça o futuro da humanidade — 4. O pesadelo dos subdesenvolvidos — 5. O pessimismo das estatísticas — 6. A posição privilegiada dos países desenvolvidos — 7. Conceito político de povo — 8. Conceito jurídico — 9. Conceito sociológico. 1. Conceito de população Todas as pessoas presentes no território do Estado, num determinado momento, inclusive estrangeiros e apátridas, fazem parte da população. É por conseguinte a população sob esse aspecto um dado essencialmente quantitativo, que independe de qualquer laço jurídico de sujeição ao poder estatal. Não se confunde com a noção de povo, porquanto nesta, fundamental é o vínculo do indivíduo ao Estado através da nacionalidade ou cidadania. A população é conceito puramente demográfico e estatístico. Seu estudo científico tem sido feito pela demografia, uma das disciplinas auxiliares da Ciência Política e que se ocupa tanto dos aspectos quantitativos como qualitativos do elemento populacional. Do ponto de vista econômico, a população tanto pode significar fator de pujança, poderio e engrandecimento como também causa de debilidade para o ordenamento estatal. O aspecto econômico é solidário com o aspecto político, de modo que o maior ou menor coeficiente populacional, a maior ou menor extensão dos índices de crescimento demográfico hão igualmente de valer como dado variável de grandeza ou miséria do Estado. Caberia aqui reflexões acerca da importância política e econômica que assume, por exemplo, a população de um Estado como a China, de um bilhão de habitantes. Se ponderarmos que a quantidade de habitantes referida a um só Estado representa potencialmente considerável força de reserva, tal não exclui todavia o lado de fragilidade implícito em quadros demográficos transbordantes. Naturalmente, o significado político da população vai depender do correlato significado econômico da mesma população no Estado. Problema idêntico oferece a Índia. Os Estados do mundo antigo não ostentavam as dificuldades do Estado moderno. Eram Estados que se constituíam nas raias da comunidade, dentro de uma cidade, a polis, Estado-cidade. Entre os pensadores políticos da Grécia, houve quem pretendesse determinar o quantum mínimo desde o qual existiria o Estado, fixando-o arbitrariamente em vinte, trinta ou quarenta mil habitantes. Mas a fixação do mínimo populacional para o reconhecimento da ordem estatal é hoje na Ciência Política inteiramente destituído de importância. 2. Desafio do fantasma malthusiano ao Estado moderno O problema político-econômico mais curioso que o incremento populacional levanta contemporaneamente continua sendo, a despeito de tudo, aquele que a teoria malthusiana pôs de manifesto há cerca de duzentos anos. Dizia Malthus que a população crescia em proporção geométrica, ao passo que os gêneros alimentícios aumentavam segundo regra aritmética, de modo que na linha do tempo, a constante, a tendência permanente vinha a ser a de alargar a brecha entre a capacidade de manter as populações e a taxa de crescimento dessas mesmas populações. Quando esse fosso se alarga demasiado, surgem então, segundo Malthus, as guerras, as revoluções, as epidemias, as fomes devastadoras, para restaurarem, com a violência do sacrifício imposto, o equilíbrio rompido. Desaparecem os excedentes populacionais. As guerras, consoante a tese malthusiana, acarretando como se vê a destruição periódica dos efetivos populacionais excedentes, para os quais não chega o pão da subsistência, constituem fatalidade social. Apresentou Malthus sua tese, de fins do século XVIII para o começo do século XIX. Se aceitamos o princípio malthusiano do crescimento das populações, estamos aceitando as enfermidades sociais como oriundas de um determinismo social, das leis da natureza, contra as quais nada pode o homem em sociedade. Malthus lançou sua teoria com todo o aparato e ostentação de tese científica, verídica, comprovada, intocável. Mas vieram os críticos das concepções malthusianas, e entre os que investiram com mais ímpeto contra esta doutrina implacável das populações sobressaem precisamente os corifeus das correntes socialistas. Professaram hostilidade aberta e absoluta a Malthus, intentando demonstrar-lhe a falsidade da tese. Em que se apóia fundamentalmente a crítica antimalthusiana? Num otimismo que não vacila acerca das possibilidades da técnica e da ciência, no seu desenvolvimento, no seu contínuo progresso, de criarem para o homem as mais ricas e promissoras perspectivas de libertação econômica. Em conseqüência, dizem os socialistas, a resposta da ciência é clara e otimista: a ciência, por meio da técnica adiantada e racional, técnica altamente aprimorada, pode produzir, com capacidade ilimitada, quase infinita, os bens necessários à existência humana. Basta que se atente na libertação de forças poderosíssimas decorrentes, por exemplo, da desintegração do átomo. A era nuclear, que já se está oferecendo por realidade, na antemanhã de suas melhores promessas, daria resposta irretorquível aos que vêem cobertas de cinza as idades vindouras da humanidade. Temos condições de vencer a fome. Temos meios de tornar verdadeiramente ridículo e destituído de toda a base científica o sombrio prognóstico malthusiano. Mas surge o problema capital, que a reflexão já anteviu: é que não basta haver ciência desenvolvida ou técnica de produção excepcionalmente avançada. O problema malthusiano reaparecerá, porquanto não cabe apenas à ciência dispor de recursos e meios potenciais com que debelar ou obviar venha a consumar-se através dos tempos a profecia malthusiana. O grande enigma consiste em criar na sociedade as formas políticas e sociais de aplicação da ciência e da técnica. Em princípio, as sociedades não têm o que temer das conseqüências da progressão geométrica, com que o terror demográfico de Malthus as ameaça. Se não houver porém dentro da sociedade humana uma utilização da técnica e da ciência, em ordem a modificar, pelo máximo incremento produtivo, os dados contidos na proposição do pastor protestante, naturalmente Malthus despontará sempre sombrio. Com efeito, o que vemos ainda em nossos dias, a cada passo, é a presença do fantasma da fome nos países subdesenvolvidos, como a índia, e os seus 536 milhões de habitantes, dos quais 30 a 40 milhões são párias que morrem à míngua em plena idade dos progressos nucleares. 3. A explosão demográfica ameaça o futuro da humanidade A dimensão malthusiana do problema das populações constituíra simplesmente uma reflexão pessimista sobre a escassez de gêneros alimentícios, e sobre a fome, com suas implicações políticas e sociais. O tema populacional volveu porém a preocupar os cientistas sociais de nossa época numa perspectiva que é agora imensamente mais ampla: não se trata unicamente de saber se haverá gêneros bastantes para alimentar a humanidade, mas de conhecer ou prever a natureza ou média do padrão de vida que aguardará a sociedade humana, mormente os povos subdesenvolvidos, em face da explosão populacional na idade da industrialização. Estamos diante do “maior fenômeno demográfico da história universal”.1 Determinar a qualidade da vida humana para conter sua eventual deterioração, eis o interesse que a investigação científica do crescimento vertiginoso das populações deve produzir em primeiro lugar no ânimo de quantos se empenham em solucionar a questão demográfica. A Ciência Políticanão pode por conseguinte ficar indiferente, de braços cruzados, a esse problema que abala o século XX e é merecedor de largo desenvolvimento. Estamos em presença de um crescimento sem paradeiro, mormente nos países subdesenvolvidos. O professor Eynern, da Universidade de Berlim, distinguiu quatro fases no quadro dessa impressionante crise.2 A primeira fase é aquela em que as taxas de natalidade e mortalidade se equiparam, a saber, nascem e morrem em média 35 ou 40 pessoas por 1.000 habitantes anualmente. A segunda fase ocorre quando se dá a queda da taxa de mortalidade que desce para cerca de 20, em virtude dos progressos espetaculares da medicina, mediante o emprego de antibióticos, vacinas, sulfanilamidas, a adoção generalizada de regras elementares de higiene preventiva, uso de inseticidas em larga escala com saneamento completo de áreas dantes sujeitas a grandes moléstias endêmicas e outras medidas gerais de saúde pública que praticamente eliminaram o perigo das epidemias devastadoras. Nessa segunda fase a taxa de nascimento permanece alta e uma vez rompido o equilíbrio anterior verifica-se em conseqüência rápido incremento populacional. Na terceira fase, a taxa de nascimento entra em declínio, conforme Eynern, não por efeito de “impotência biológica”, mas exclusivamente em decorrência, segundo ele, de uma limitação racional do número de filhos no casamento. Faz-se então a política da “paternidade responsável” ou consciente, com a planificação da família, de acordo com os recursos de que dispõem os pais para a subsistência, sem quebra do respectivo padrão de vida, que a família numerosa acarretaria. Como a taxa de mortalidade continua todavia a diminuir, permanece ainda alto o excedente de natalidade posto que já se esteja de volta ao equilíbrio. A quarta fase testemunha a reaproximação das duas taxas: a da natalidade se situa, segundo Eynern, ao número de 10/1000, um pouco acima da de mortalidade e a tendência de crescimento se manifesta ligeiramente atenuada, a baixo nível, restaurando-se por conseguinte uma situação que se assemelha à da primeira fase e que significará decerto a travessia vitoriosa da crise. Nessa quarta fase se acham os países desenvolvidos, onde a explosão demográfica já foi posta debaixo de controle; na terceira fase não ingressou ainda nenhum país subdesenvolvido. Dos países orientais, onde o crescimento demográfico se manifesta com mais violência, a única exceção é o Japão, ora já na terceira fase. Na segunda fase — aquela que registra o desequilíbrio mais agudo — se acham os povos da Ásia, África e da maior parte da América Latina. 4. O pesadelo dos subdesenvolvidos O drama dos países subdesenvolvidos em presença do problema populacional decorre do fato de que o aumento da produção econômica não acompanha o aumento muito mais veloz da população, produzindo assim um fosso onde se despenham todas as esperanças de uma partida efetiva para o desenvolvimento. A taxa de incremento demográfico absorve toda a taxa de acréscimo da produtividade. As conseqüências dolorosas são o rebaixamento contínuo das condições de vida dos povos subdesenvolvidos, impotentes para satisfazer sequer as necessidades primárias de pão, roupa e teto, do mesmo passo que as demais necessidades secundárias do conforto proporcionado pela sociedade tecnológica ficam para eles como uma quimera ou esperança cada vez mais remota. Os economistas brasileiros Roberto Campos e Glycon de Paiva têm demonstrado viva preocupação com esse problema, colocando-o na pauta dos mais urgentes. Referem-se insistentemente à chamada “infra- estrutura onerosa” que faria fútil todo esforço de elevar “os níveis de conforto e bem-estar da população viva”, caso permaneça o desnível entre o aumento maior da população e o aumento menor da produção. Essa infra-estrutura que pesa sobre o erário reclama recursos para construção de mais escolas primárias, secundárias e superiores, serviços públicos de abastecimento d’água, eletricidade, esgotos e transportes, bem como produção suficiente de gêneros alimentícios básicos. Todo o esforço que o poder público fizesse naqueles domínios nunca seria bastante a produzir uma solução, porquanto os recursos limitados acabariam rapidamente absorvidos, restando sempre vastos excedentes humanos a impetrar o atendimento daquelas necessidades mínimas de habitação, educação e saúde, excedentes criados pela taxa maior de natalidade abundante. Conclusão política: as chamas do ódio social crepita-riam com mais força e mais acesa ficaria a luta de classes conduzida ao paroxismo e a eventual tragédia ideológica. Quantos contestam a ordem capitalista nos países subdesenvolvidos esperam contar com um aliado potencial: as futuras massas famintas e impacientes, cujo descontentamento seria o combustível da fogueira revolucionária. Daqui o silêncio com que muitos cobrem o aspecto “despolitizado” da questão demográfica, ou seja, evitam sua mensuração pelo crescimento quantitativo, em termos econômicos puros, subtraídos a toda inferência ou implicação político- ideológica, tendo em vista não quem se apoderará do poder, mas quem amanhã, debaixo de não importa que regime político, se achará em condições de corrigir ou tolher os catastróficos efeitos da “bomba populacional”. 5. O pessimismo das estatísticas A linguagem estatística entra na matéria falando com a frieza dos números palavras de pessimismo. Dados divulgados pela Organização das Nações Unidas mostram que o incremento maior ocorre nos países subdesenvolvidos . Em 1970 para 3,5 bilhões de habitantes, havia na faixa subdesenvolvida 2,5 bilhões, mais da metade do gênero humano. No ano 2.000, o quadro não se apresentará modificado, mas ao contrário muito mais sombrio: a 6,6 bilhões de seres humanos sobre a Terra corresponderão 5,4 bilhões de subdesenvolvidos, mais de 80 por cento de toda a humanidade! Numa conferência proferida em 1969 na Universidade Católica de Notre Dame, em South Bend, no Estado de Indiana, Roberto Mac Namara, Presidente do Banco Mundial e político norte-americano de renome em questões estratégicas fez prognósticos aterradores acerca do incremento demográfico, revelando os seguintes fatos que o futuro confirmará — diz ele — se a humanidade não adotar conscientemente urna nova política populacional: a) a população do mundo dobrará no curto espaço de 35 anos; b) uma criança nascida em nossos dias viverá aos 70 anos, curto prazo de uma geração, num planeta habitado por 15 bilhões de seres humanos; c) seus netos viverão entre 60 bilhões de seres humanos; d) um quadro dantesco, pior talvez que o inferno do poeta, aguardará a humanidade nos próximos 6 séculos e meio: um ser humano para cada polegada quadrada de terra! O Estado de S. Paulo, que comentou em sua edição de 4 de maio de 1969 a oração de Mac Namara e de onde extraímos os dados acima reproduzidos também se referiu a um documento da ONU no qual se lia: “Se foram necessários 200.000 anos para atingir 2,5 bilhões de seres humanos sobre a Terra, eis que vão ser suficientes trinta anos para acrescentar mais dois bilhões”. 6. A posição privilegiada dos países desenvolvidos A situação dos países desenvolvidos é privilegiada, com todas as previsões indicando um vertiginoso aumento do padrão de vida nas próximas décadas. O resultado será porém o aprofundamento do abismo que os separa já das nações subdesenvolvidas. Ocorre com eles precisamente o contrário: o aumento da população é inferior ao aumento da produção econômica. Cria-se assim uma sociedade deabundância, cada vez mais opulenta, servida de impressionante progresso tecnológico que eleva rapidamente os níveis de bem-estar geral das populações afortunadas. Nessas sociedades, segundo Hauriou, ao invés da penúria de pessoal qualificado, observada nos países subdesenvolvidos, são numerosos e de excelente nível os quadros políticos, técnicos, administrativos e científicos. Os povos desenvolvidos dispõem não só de larga experiência como de um know-how superior no domínio tecnológico. Investindo maciçamente na pesquisa científica, rasgam horizontes novos de prosperidade material e preparam uma civilização de conforto que a elevadíssima renda per capita lhes proporcionará. Do ponto de vista político, prevê-se nesse quadro de otimismo um declínio maior da luta de classes, uma acomodação cooperativa mais estreita da classe obreira com a classe patronal, uma perspectiva de paz social favorável à definitiva consolidação dos princípios democráticos e enfim uma despolitização crescente da questão ideológica, que arderá com menos intensidade do que nas áreas do subdesenvolvimento, expostas ao atraso que a explosão populacional poderá tornar irremediável. Mas a coexistência com o subdesenvolvimento não desenha todavia uma paisagem tão risonha para os desenvolvidos. O clima de apreensão já domina hoje o sentimento das elites ocidentais, conscientes da tempestade que o futuro vai aparelhando. Sitiados pela miséria da periferia, sabem os povos desenvolvidos que ali se forjam armas revolucionárias a serviço de sistemas autocráticos que revogam o regime democrático das liberdades humanas, obstruindo-lhe o exercício e confiando o poder ao partido único da ideologia totalitária, cuja missão messiânica consistirá numa inflexível política de holocaustos sociais, em nome de uma eventual e incerta eliminação do subdesenvolvimento. 7. Conceito político de povo O conceito de povo pode ser estabelecido do ponto de vista político, jurídico e sociológico. A antigüidade já o conhecera, dando-nos disso testemunho a obra de Cícero. Com efeito, segundo o escritor romano, povo é “a reunião da multidão associada pelo consenso do direito e pela comunhão da utilidade” e não simplesmente todo conjunto de homens congregados de qualquer maneira.3 A modernidade do conceito é porém afirmada por alguns autores, que vão buscar-lhe a nascente nas idéias da Revolução francesa. Fora desconhecido à Idade Média, cuja teoria do Estado partia do território, da organização feudal, onde o poder se assentava em relações de propriedade. A nova teoria do Estado que começa com a implantação da sociedade liberal-burguesa, na segunda metade do século XVIII, parte do povo. No absolutismo o povo fora objeto, com a democracia ele se transforma em sujeito.4 Teve início esse princípio com o Estado liberal, constitucional e representativo. A história que vai do sufrágio restrito ao sufrágio universal é a própria história da implantação do princípio democrático e da formação política do conceito de povo. Embora restrito, o sufrágio inaugura a participação dos governados, sua presença oficial no poder mediante o sistema representativo, elegendo representantes que intervirão na elaboração das leis e que exprimirão pela primeira vez na sociedade moderna uma vontade política nova e distinta da vontade dos reis absolutos. Povo é então o quadro humano sufragante, que se politizou (quer dizer, que assumiu capacidade decisória), ou seja, o corpo eleitoral. O conceito de povo traduz por conseguinte uma formação histórica recente, sendo estranho ao direito público das realezas absolutas, que conheciam súditos e dinastias, mas não conheciam povos e nações. Esse conceito político de povo prende-se evidentemente a uma concepção ideológica: a das burguesias ocidentais que implantaram o sistema representativo e impuseram a participação dos governados, desencadeando o processo que converteria estes de objeto em sujeito da ordem política. Sem a compreensão desse confinamento do conceito às suas raízes históricas, poderia parecer absurdo o conceito de povo do professor Afonso Arinos, povo político, porquanto, tomado fora da qualificação política, não seriam povo os menores, os analfabetos, os que por este ou aquele motivo, de ordem particular ou de ordem geral, estivessem excluídos do direito de sufrágio, nem tampouco haveria povo nos países totalitários, onde a livre participação dos governados na criação da vontade estatal se achasse sufocada ou interditada. Com efeito, escreveu com brilho e elegância o nosso Afonso Arinos: “nossa Constituição diz que todo poder emana do povo e em seu nome será exercido. Vejamos o que isto quer dizer. Em primeiro lugar, o que é povo? Os constitucionalistas não hesitam. Povo, no sentido jurídico, não é o mesmo que população, no sentido demográfico. Povo é aquela parte da população capaz de participar, através de eleições, do processo democrático, dentro de um sistema variável de limitações, que depende de cada país e de cada época. “Visivelmente, no nosso País e na época atual, certas limitações impostas pela Constituição de 1946 estão obsoletas. Por exemplo, no caso dos sargentos. Daqui a algum tempo é possível que outras limitações precisem desaparecer, como, por exemplo, a dos analfabetos, que votam em países como a Itália e já votaram no Brasil imperial”.5 De acordo com Aurelino Leal povo “indica a massa geral dos habitantes de um país e a parte dela a que se atribui capacidade de concorrer para a investidura do poder público”.6 Afonso Arinos foi muito mais preciso do que Aurelino Leal. Este, buscando exprimir o mesmo conceito político de povo, somou duas quantidades heterogêneas: a população e o quadro eleitoral. Na população podem figurar estrangeiros que não fazem parte do povo e todavia entram naquela “massa geral dos habitantes de um país” a que se reportou Aurelino Leal. Com efeito, a incorreta formulação de Aurelino Leal só tem válida a segunda parte que, destacada da primeira, encerra o conceito político de povo na acepção em que ele se formou para a sociedade moderna, até que tomasse ulteriormente, como já ocorre em nossos dias, sua perfeita e inobjetável caracterização jurídica, a única, a nosso ver, colocada fora de todo âmbito de controvérsia e de aplicação universal a qualquer substrato humano, não importa os laços políticos e ideológicos a que esteja vinculado. 8. Conceito Jurídico Só o direito pode explicar plenamente o conceito de povo. Se há um traço que o caracteriza, esse traço é sobretudo jurídico e onde ele estiver presente, as objeções não prevalecerão. Com efeito, o povo exprime o conjunto de pessoas vinculadas de forma institucional e estável a um determinado ordenamento jurídico, ou, segundo Raneletti, “o conjunto de indivíduos que pertencem ao Estado, isto é, o conjunto de cidadãos”.7 Diz Ospitali que povo é “o conjunto de pessoas que pertencem ao Estado pela relação de cidadania”,8 ou no dizer de Virga “o conjunto de indivíduos vinculados pela cidadania a um determinado ordenamento jurídico”.9 É semelhante vínculo de cidadania que prende os indivíduos ao Estado e os constitui como povo. Aí está, no entender de Orlando e Gropalli o quid novi desse conceito. Fazem parte do povo tanto os que se acham no território como fora deste, no estrangeiro, mas presos a um determinado sistema de poder ou ordenamento normativo, pelo vínculo de cidadania. Não basta dizer conforme fazem aqueles dois autores que povo é o elemento humano como sujeito de direitos e obrigações. A afirmativa não é incorreta, masdemasiado lata. Um grupo social também pode abranger o elemento humano elevado a categoria de sujeito de direitos e obrigações e não constituir um povo. Urge por conseguinte dar ênfase ao laço de cidadania, ao vínculo particular ou específico que une o indivíduo a um certo sistema de leis, a um determinado ordenamento estatal. A cidadania é a prova de identidade que mostra a relação ou vínculo do indivíduo com o Estado. É mediante essa relação que uma pessoa constitui fração ou parte de um povo. O status de cidadania, segundo Chiarelli, implica numa situação jurídica subjetiva, consistente num complexo de direitos e deveres de caráter público. O status civitatis ou estado de cidadania define basicamente a capacidade pública do indivíduo, a soma dos direitos políticos e deveres que ele tem perante o Estado. Orlando foi demasiado longe na latitude do conceito quando abrangeu nesse status também os direitos e deveres de natureza privada.10 Da cidadania, que é uma esfera de capacidade, derivam direitos, quais o direito de votar e ser votado (status activae civitatis) ou deveres, como os de fidelidade à Pátria, prestação de serviço militar e observância das leis do Estado. Sendo a cidadania um círculo de capacidade conferido pelo Estado aos cidadãos, este poderá traçar-lhe limites, caso em que o status civitatis apresentará no seu exercício certa variação ou mudança de grau. De qualquer maneira é um status que define o vínculo nacional da pessoa, os seus direitos e deveres em presença do Estado e que normalmente acompanha cada indivíduo por toda a vida. Três sistemas determinam a cidadania: o jus sanguinis (determinação da cidadania pelo vínculo pessoal), o jus soli (a cidadania se determina pelo vínculo territorial) e o sistema misto (admite ambos os vínculos). Na terminologia do direito constitucional brasileiro ao invés da palavra cidadania, que tem uma acepção mais restrita, emprega-se com o mesmo sentido o vocábulo nacionalidade. A matéria se acha regulada no artigo 12 da Constituição federal, que define quem é brasileiro e por conseguinte, em face das nossas leis, quem constitui o nosso povo. 9. Conceito sociológico Tido também como conceito naturalista ou étnico, decorre porém com muito mais freqüência de dados culturais, que uma consideração unilateralmente jurídica não poderia exprimir. Desse ponto de vista — o sociológico — há equivalência do conceito de povo com o de nação. O povo é compreendido como toda a continuidade do elemento humano, projetado historicamente no decurso de várias gerações e dotado de valores e aspirações comuns. Compreende vivos e mortos, as gerações presentes e as gerações passadas, os que vivem e os que hão de viver. É enfim aquele mesmo povo político concebido, conforme vimos, de acordo com as características jurídicas que num determinado território lhe conferem a organização de Estado, mas ao mesmo tempo colocado numa dimensão histórica que liga o passado ao futuro e assim transcende o momento da contemporaneidade de sua existência concreta. O povo nesse sentido é a nação, e ainda debaixo desse aspecto pode tomar uma acepção tão lata que para sobreviver basta conservar acesa a chama da consciência nacional. Os judeus sem território e sem Estado próprio, disseminados no corpo político de sociedades que ora os acolhiam, ora os expeliam, nem por isso deixaram nunca de ser povo e nação, tendo as duas expressões aqui igual significado.11 1. Gert von Eynern, “Bevoelkerungspolitik”, in: Staat und Politik, p. 43. 2. Idem, ibidem, p. 43. 3. M. Tullius Cicero, De Re Publica, livro I, 25, p. 31. (“Res publica res populi, populus autem non omnis hominum coetus quoquo modo congregatus, sed coetus multitudinis juris consensu et utilitatis communione sociatus”.) 4. Salomon-Delatour, Politische Soziologie, p. 41. 5. Afonso Arinos de Melo Franco, Jornal do Brasil, edição de 22.8.1963. 6. Aurelino Leal, Teoria e Prática da Constituição Federal Brasileira, p. 18. 7. Oreste Raneletti, Istituzioni di Diritto Pubblico, 13ª ed., p. 18. 8. Giancarlo Ospitali, Istituzioni di Diritto Pubblico, 5ª ed., p. 31. 9. Veja-se Pietro Virga, Diritto Costituzionale, 6ª ed., pp. 43-44. 10. V. E. Orlando, Principii di Diritto Costituzionale, 5ª. ed., p. 26. 11. Inclinando-se a separar os dois conceitos, povo e nação, Aurelino Leal afirmou que “a nação comporta no seu conceito uma subjetividade que escapa à concepção do termo povo” (A. Leal. Ob. cit., p. 18). No entanto, nunca faltaram autores antigos e modernos para reputar idênticos aqueles conceitos. Orban, constitucionalista belga, citado por Aurelino, professava “o propósito deliberado” de adotar a sinonímia dos dois termos, da mesma maneira que Battaglia e Maggiore, autores mais modernos. Em verdade, a expressão povo só fica devidamente esclarecida face ao seu uso vulgar e científico, se atentarmos sempre para as distintas acepções que abrange, conforme já expusemos.
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