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X A CIVILIZAÇÃO DO ORGASMO I Não se me apaga da memoria a impressão causada pelo histerismo coletivo que se apossou da gente paulista, sobretudo de nossos adolescentes, com os espetáculos alucinantes de Michael Jackson e Madonna, convertidos em ídolos de nosso tempo e em suas figuras mais representativas. Desde a era clássica, a humanidade não dispensa seus heróis, em geral vencedores das olimpíadas gregas ou das trágicas arenas romanas, e com eles se identifica, numa impressionante transfigu ração emocional que nos revela bem o quadro de valores próprios de cada época, de cada civilização, entendida esta como fase ou momento do processo histórico-cultural. Essas formas de mimetismo passional constituem autênticos retratos axiológicos dos modos de ser e de viver social peculiares a cada período histórico, como o demonstra a sucessão de nomes extraídos, por exemplo, da vida teatral, como os de Enrico Caruso e Eleonora Duse; Beniamino Gigli e María Callas; Edith Piaff e Frank Sinatra, que também, a seu modo e com diverso estilo, lo graram arrastar multidões. O que, porém, assinala, em nossos dias, o triunfo de Jackson e Madonna é a vulgaridade intencional e a corporalidade sexual da comunhão estabelecida entre os popstars e seus vassalos, numa explosão de palavras e gestos obscenos. Não está, evidentemente, 134 em foco o valor artístico dos espetáculos, se é que seu mérito esté tico pode ser medido segundo a multidão que os aplaude, porque o que interessa é a sua análise como sintoma da forma de vida desta enigmática antevéspera de um novo milênio. Já se começa a admitir que as últimas décadas do século XX apresentam figuras menos representativas do que as das anterio res, em quase todos os domínios da atividade humana, desde o plano político ao filosófico, do literário ou artístico ao científico, abstração feita dos aspectos negativos que possam ter certos per sonagens, como Hitler ou Stalin. O certo é que vivemos mais como herdeiros dos valores que nos transmitiram figuras pinaculares, como as de Husserl e Heidegger na filosofia; de Einstein e Planck na ciência; de Chagal e Picasso na arte; de Proust e Joyce no ro mance, ou de Elliot e Femando Pessoa na poesia, bastando, no caso brasileiro, lembrar os nomes de Euclides da Cunha, Portinari, Guimarães Rosa e Gilberto Freyre. Somos urna pobre humanidade perplexa no início do terceiro milênio, exausta, sem rumos certos, procurando agónicamente abrir seu caminho entre os restos das ideologias destruídas pelos incên dios de duas guerras universais. Vivemos, pois, desprovidos de um sentido comum e ideal de vida, em assustadora disponibilidade. O pior é que, quando se julga estar fazendo uma opção fundamental, o que na realidade ocorre é a repetição de antigos equívocos, como, por exemplo, o dos que pretendem subordinar as atividades da mente ou do espírito a supostas predeterminações reveladas pela nova biologia. Deposita-se na engenharia biológica a esperança de construção de uma nova humanidade... Nem sequer se poderá afirmar que nosso tempo é de um hedonismo comparável ao dominante no eclipse do Império Ro mano, quando o poeta Horácio aconselhava a carpere diem a apro veitar para o prazer cada minuto que passa. Havia, porém, certa finesse, uma estudada compostura mesmo quando primavam os impulsos dos instintos sobre o alado projetar-se do espírito. O que notamos, hoje em dia, é a angústia, o medo de não se chegar a tirar proveito do instante que se está vivendo, o que tem 135 como conseqüência uma total subversão da ordem do tempo, com a criança vivendo antecipadamente, por instigação dos pais ou sob a pressão do meio ambiente, a vida do adolescente, que, por sua vez, vive a do jovem e este a do adulto, o qual, por fim, se vê num vazio existencial, desprovido dos horizontes que somente a come dida experiência pode delinear. Tudo, em suma, se precipita de maneira vertiginosa, não raro sob o acicate de auferir vantagens, sob a pressão da “lei de Gerson” (denominação que injustamente estigmatiza uma grande figura de nosso futebol), da qual foram repugnantes exemplos os escândalos do PC e da máfia da Previ dência Social e do orçamento, quer para granjear popularidade graças a agressões traiçoeiras a homens dignos, quer para parecer um feliz Casanova nos arrebates sexuais. Queiramos ou não, o que acabou prevalecendo na civiliza ção tribal de massa, como o anunciara McLuhan — ao analisar a sociedade emergente do impacto uniformizante das ciências na turais —, foi a contracultura do profeta Marcuse, cujas idéias inspiraram à Primavera de Paris, em 1968, o mote decisivo: “é proibido proibir!” Passou a ser considerado sinal de atraso, quando não de reacionarismo, respeitar as regras que marcam a superioridade da razão sobre o instinto; preferir as civilizadas formas de vida que dão ritmo de beleza às relações sexuais; amar a virtude superior do diálogo, de preferência ao ímpeto bárbaro de agredir e espezinhar; não aceitar como arte o barulho instrumental em sua rudeza, com acintoso desprezo pelos possíveis valores estéticos da dissonância cacofónica. Tudo o que é anormal, destoante e transgressivo tende, em suma, a converter-se em norma vital coletiva, na insana preci pitação de atingir resultados imediatos e escandalosos. Como tenho dó desse mundo que se dilacera em busca de um prazer impossível porque reduzido à angústia de um pronto e even tual orgasmo, quando este só pode representar o acme e a culmi nância da comum entrega amorosa de si à margem do sentido do tempo! Sinto-me um pobre ser marginal, incapaz de me extasiar com o paroxismo do rock-and-roll, apresentado como sinal de 136 suprema libertação, quando antes me parece ser a desesperada busca do que já se perdeu! Seria necessária uma longa e ampla pesquisa social e históri ca para identificar as razões determinantes do sentido agônico da cultura contemporânea, com apurado estudo dos múltiplos fatores que atuaram sobre os indivíduos e as coletividades, esvaziando-os tanto de sua destinação ética essencial quanto da serena confiança que se deve depositar na ação desveladora do tempo amadurecen do e potenciando as intuições criadoras. Para completo diagnósti co da angústia dominante — até o ponto de ser ela considerada por Heidegger a prevalecente categoria existencial — não podere mos olvidar causas aparentemente remotas, como as ligadas às ideologias que geraram a estatolatria hitlerista ou stalinista, redu zindo a história do homem a conflitos de classes ou de raças, com o trágico sacrifício do valor transcendental da pessoa humana, da autonomia da consciência subjetiva que faz do homem um ser es piritual livre, irredutível aos processos causais da natureza, por mais que estes possam ser explicados pelas ciências positivas. Quando o homem é valorado apenas em função de interesses transpessoais, ou, então, no jogo sartriano de seus imprevisíveis impulsos subjetivos, o que resta dele é tão-somente a sua materialidade corpórea e instrumental, posta a serviço deste ou daquele outro fim extrínseco de ordem coletiva e massificante, ou, então, convertida em centro avassalador de interesses e prazeres imediatos, tendo o sexo como fator determinante, consoante cou be a Freud diagnosticar em significativa correlação com pressões ideológicas, tal como o desenvolvimento da psicanálise veio a de monstrar. Não se pense, todavia, que essa dominante atração pelo ime diato, pelo ilusório e pelo efêmero se limita às relações sexuais, pois se estende a todas as formas de ação, transformada a socieda de inteira em um cassino sob o permanente assédio de todas as modalidades de jogo e de aposta que a mídia a todo instante enaltece como fontes de enriquecimento rápido e fácil. O consumo cada vez mais generalizado das drogas nãoé porventura motivado pela 137 desesperada esperança do orgasmo proporcionado pelo mundo fantástico do sonho? O que impera, por conseguinte, é a disponi bilidade do ser pessoal, a oferta da vida a todas as experiências, desde que se vislumbre uma réstea de prazer e de gozo, de fuga do real que oprime. Daí a assustadora proliferação dos crimes perpe trados contra a Fazenda Pública e o patrimônio individual, envol vendo desde menores inexperientes até altas personalidades da administração ou da magistratura. Situada a “civilização do orgasmo” na globalidade da cultura contemporânea, poder-se-á dizer que ela é caracterizada, de um lado, pela sofreguidão do gozo incontinenti de todos os prazeres que a vida possa proporcionar, tendo o sexo como centro referencial; e, de outro, pela carência de um ideal ético, tanto indi vidual como coletivo, em virtude de ter-se perdido a consciência de que o significado maior da existência consiste na oportunidade de aperfeiçoamento espiritual que ela proporciona. Ora, a mutilação operada no ser individual, com o predomí nio de sua materialidade, reflete-se na sociedade, cujos membros se perdem nos mais variados e apaixonantes empenhos, sem per ceberem que o fazem, no mais das vezes, numa visão unilateral e imediatista da vida, sem a alegria superior que só pode resultar de atos individuais válidos de per si e como elementos componentes de uma comunidade de homens regida por iguais imperativos de liberdade e justiça, compreendidos complementar e integralmente com base em condições existenciais tanto de caráter espiritual como material, o que seria inviável se persistisse a tese marxista de que são as condições materiais de vida numa sociedade que determi nam nosso pensamento e nossa consciência. II Lembrados, assim, alguns dos aspectos característicos da “ci vilização do orgasmo”, cuja nota distintiva é a “angústia dos resul tados”, penso que não será exagero afirmar que estamos perante 138 uma “sociedade decepada”, formada de indivíduos que se consi deram íntegros e livres, mas que, a bem ver, sobrevivem como seres mutilados devido à unilateralidade da visão existencial que os condiciona. Se, no fundo, somos o que escolhemos e decidimos, e se as escolhas e decisões tomadas pela imensa maioria das pessoas, no mundo atual, se acha subordinada a programas de vida impostos por forças extrínsecas à sua subjetividade, condicionadas que estão pela rede poderosamente envolvente das informações globais, não se pode afirmar que elas constituem seres integrais e efetivamente livres. Assim sendo, ao invés do super-homem, proclamado com tanta ênfase pelo gênio de Nietzsche, o que o progresso científico nos proporciona, dada a quebra do suporte ético próprio da subjetivi dade autônoma, é o sub-homem massificado e uniformizado, fi cando submersa e comprometida no bojo da consciência coletiva a consciência individual, sem cuja autonomia e singularidade não há que falar em “ser pessoal” em sua plenitude. Há, certamente, vida, mas vida em massa, unilateral e mutilada, muito embora com ilusória aparência de integralidade. Num dos episódios mais vivos do poema Orlando Furioso, Ludovico Ariosto canta uma batalha heróica com os mouros, na qual um cavalheiro cristão combate com tanto ardor que, tendo a cabeça cortada por violento golpe de sabre, “andava comattendo ed era morto” (“continuava a lutar e estava morto”). Talvez inspirado em Ariosto, que ele tinha em grande conta, ítalo Calvino, no mais prodigioso de seus romances, II Visconte Dimezzato (“O visconde cortado ao meio”), nos fala de outro fidal go, Medardo di Terralba, que, em guerra contra os turcos, é dividido ao meio por uma bala de canhão atacado frontalmente. Graças, po rém, a miraculosas operações e curativos, cada uma das partes é salva, sendo uma toda boa, e a outra toda má. Com tal imagem Calvino satiriza com profundo sarcasmo a sociedade atual, vazia de homens íntegros e integrais. É só no final do romance que, graças a sortilégios de amor, as duas partes novamente se fundem, dando nascimento a um ser dotado de médias qualidades humanas. 139 É esse símbolo que efetivamente se aplica às vicissitudes da sociedade contemporânea, cortada ao meio por uma infinidade de fatores, sendo deveras impressionante observar que, quanto mais se multiplicam e se aceleram os processos de informação e de co municação — os quais, em tese, deveriam abastecer o homem de crescentes meios e recursos para melhor escolher e decidir —, é o contrário que acontece: a massa de informações, cada vez mais controlada por um número cada vez menor de detentores do hardware e do software, isto é, das estruturas técnicas e dos res pectivos programas informativos, converte o homem comum em um impotente ser programado, posto na contingência de sujeitar- se a formas de vida traçadas pela nova classe dominante. O pior é que, por sua vez, os “senhores da informação”, em virtude do jogo da livre concorrência que os leva a explorar sempre mais as ten dências e inclinações humanas inferiores, mais favoráveis ao seu domínio, têm apostado na conquista de novas clientelas, ou me lhor, dos “sub-homens da nova ordem global”, lançando mão da força aliciante e degradante do vício, desde os delírios e deprava ções sociais até as mais repugnantes expressões de violência, ten do a droga como instrumento vil de submissão e dependência. Na realidade, tudo isso redunda em uma operação de bumerangue, pois os potentados da informação — às vezes cidadãos dos mais úteis e benéficos à coletividade, em razão dos planos de solidarie dade social por eles promovidos — acabam sendo enredados pelo sistema entregue à tática guerreira dos comunicólogos, também eles dominados pelas exigências objetivas de uma competição sem fim, tomada a palavra fim no sêu duplo sentido temporal e ético. A rigor, os donos das empresas produtoras de espetáculos e programas, bem como das redes de jornais, rádios e televisão que os disseminam pelo mundo, poderiam ser considerados a versão atual do super-homem, o qual, em última análise, foi concebido como um ser a partir do qual tudo começa, um pequeno deus instaurador soberano dos valores a serem vividos pelos “sub-ho mens” deslumbrados pela fascinação de sua suprema potência, mas é possível que também eles sejam, muito embora sem o perceber, 140 prisioneiros do sistema que constituíram, uma vez que o sistema automatizado da informação, como um novo rei Midas, absorve em suas engrenagens todos os que nela ingressam. Nada há de mais trágico do que essa despersonalização global. É essa operação de bumerangue que atinge o cerne da civili zação contemporânea, visto como pouco ou nada se pode esperar da iniciativa dos “senhores da informação” ora à testa de organiza ções governamentais e não-governamentais, iluminados que fos sem pela consciência dos altos valores do espírito, à cuja luz se dispusessem a corrigir heroicamente a rota até agora seguida, pondo fim ao horrendo sistema de forças que se apóia sobre as tendências mais elementares do ser humano. Dir-se-á que, como o notou Nicolai Hartmann, o espírito hu mano corre sempre o risco de tornar-se prisioneiro de idéias e ins trumentos por ele criados e “objetivizados”, isto é, convertidos em entes objetivos de per si válidos, às vezes contrapostos a novos atos livres de seus criadores. Não comungo, porém, com o pessi mismo desse pensador germânico até o ponto de transformar o mundo objetivado da cultura em um caput mortuum que progres sivamente se contrapõe à liberdade do homem, pois todo estágio da cultura alberga sempre um conjunto de valores positivos susce tível de servir de plataforma a partir da qual a inteligência se pro jeta para novos vôos de descoberta e desenvolvimento em benefí cio da espécie humana. Essa temsido, aliás, a trajetória da ciência que até agora, via de regra, tem superado os transtornos e malefícios que ela de início ocasiona com suas invenções e descobertas. III Sob esse prisma, não há como inventivar e deblaterar contra as conquistas da informática ou da cibernética, pregando o ana crônico retomo ao passado. O que antes cabe aos homens repre sentativos de todas as categorias sociais, e notadamente à aristo cracia da inteligência, é saber reconhecer a existência de valores 141 negativos no “discurso comunicativo”, sem se cair na ilusão de sua plena validade em si e de per si, independente do alcance ético de seu conteúdo. Não há dúvida que o discurso comunicativo é um elemento componente essencial da vida contemporânea, mas não exageremos: a comunicação pressupõe a formação intelectual e moral de quem o enuncia, assim como o conteúdo do que é enun ciado como valor positivo de natureza intelectiva ou ética. Os pre gadores de um direito absoluto de informar e comunicar, a pretex to de uma democracia totalmente aberta, ainda mesmo quando o vício e o crime são usados como instrumento de predomínio social, tecnológico ou político, abrem campo a abusos que, como vimos, culminam na criação de homens programados, meros objetos de um discurso que não raro lhes é sorrateiramente imposto. Não ignoro, nem pretendo ocultar a gravidade desse proble ma, como acontece toda vez que se cogita da liberdade e de seus limites. Se é certo que o homem é um ser até certo ponto condicio nado por fatos naturais e por fatos culturais, pelo que acontece como factum e pelo que é instaurado como actum, a sabedoria consiste em reduzir ao mínimo possível esse condicionamento, preservando para cada pessoa a sua liberdade criadora: esse balanceamento prudente de valores constitui o cerne tanto da vida ética quanto da democracia. Assim como homens e mulheres de todo o planeta se unem para salvar o valor ecológico, não apenas por amor e em razão da natureza — como o proclamam os exaltados pregadores de uma nova religião panteísta — mas sim e principalmente em função do homem como tal, tendo como alvo a sobrevivência da pessoa hu mana e o privilégio que temos de amar a natureza, dela nos servin do com exemplar moderação, da mesma forma deve ser universal a resistência aos processos opressivos e a-éticos da informação transpessoal massificante. No caso, porém, da luta em prol do sub-homem programado pelo totalitarismo dos meios hodiernos de comunicação, não cabe fundar um partido verde ou azul, mas sim motivar a opinião públi ca universal visando a formar uma consciência transnacional e 142 transpartidária a fim de instituir uma ordem legal que, preservan do a liberdade de informação, a situe em justos limites, com a aplicação de graves sanções a quantos dela se sirvam para o triun fo dos abusos e vícios que têm sido a causa principal da criação do “homem disponível”, desprovido de qualquer sentido ético e, como tal, inclinado a barganhar tudo pelo prazer fácil e imediato, como é próprio da civilização do orgasmo. Não se compreende, em verdade, a perpetuação da cínica si tuação vigente, na qual aqueles mesmos que fazem dos excessos sexuais e da violência o ingrediente preferido e revoltante de seus aliciadores programas de comunicação de massa, por outro lado se apresentem como inimigos daqueles mesmos vícios, fonte de seus êxitos empresariais. Não creio sejam necessárias estatísticas para demonstrar que, se o narcotráfico, o terrorismo, o seqüestro e a chacina campeiam, sobretudo nos grandes centros urbanos — e São Paulo e o Rio de Janeiro são tristes exemplos dessa tragédia —, seus agentes e participantes contam com a fonte inspiradora dos espetáculos radiofônicos, televisivos e teatrais, que fazem dos des varios do sexo e da violência a matéria-prima de suas pseudocria- ções artísticas. Entra pelos olhos a repugnante contradição que há entre o empenho de todos os Estados, na debelação, por exemplo, do narcotráfico ou da prostituição de menores, despendendo colos sais verbas orçamentárias e sacrificando milhares de vidas, e a omis são deles no tocante a abusos manifestos do sistema de informa ção de massa, a começar pelas colossais produtoras internacionais de espetáculos para o cinema e a televisão que representam a fonte de excelência de inspiração das vítimas das drogas, dos agentes de inauditos atos de violência e dos mais repugnantes delírios sexuais. O pior é que todas essas degradantes imagens são disseminadas por concessionários de serviços públicos, sem qualquer ressalva no concernente a um mínimo de respeito aos valores éticos. Cumpre assinalar que a ação do Estado, no exercício de sua competência reguladora, não se deve limitar à edição de medidas repressivas, devendo ser antes o centro inspirador e promotor de 143 um programa educacional do mais alto alcance, que, a partir do ensino fundamental, não se limite à educação para a cidadania e a fruição dos conhecimentos científicos, mas também e sobretudo vise a desenvolver na criança e no adolescente a consciência de sua autonomia existencial, o privilégio de ser o único ser dotado de liberdade e de capacidade de ideal, a salvo de compressões ex ternas de qualquer natureza. Nunca a questão pedagógica esteve tão ligada, como agora, à problemática do destino do homem e da sociedade, o que impõe que, além da ação estatal, a própria sociedade civil assuma a sua imprescindível responsabilidade, constituindo-se organismos não governamentais, as ONGs destinadas à reconquista do homem co mum demezzato, privado de parte essencial de sua personalidade em virtude da programação a ela imposta pela mídia de informa ção de massa. Como se vê, a civilização do orgasmo não constitui mero tema de dissertação acadêmica sobre um período histórico que se possa considerar, como tantos outros, de caráter transitório, porque ela, tanto como os atentados à camada de ozônio que protege nosso planeta, representa uma ameaça-limite contra a sobrevivência do homem sobre a face da Terra. Mas, retomando a ítalo Calvino, se, como ele afirma, somen te o amor logrou restituir ao fidalgo fragmentado a sua integralidade pessoal, cumpre reconhecer, igualmente, que é somente o amoro so e comum empenho das mentes alertadas, em esforço conjunto para efetivação das medidas supra-aventadas de natureza legislativa e pedagógica, que poderá criar as condições indispensáveis ao superamento da civilização do orgasmo, recuperando-se a via racio nal de um novo ciclo cultural iluminado por lúcida serenidade. Para tanto será indispensável que, tanto no campo liberal como no socialista, haja revisão crítica de posições geradas pelas contin gências de antigos conflitos de idéias e interesses, a fim de que pre valeça uma atitude de sadio realismo pragmático, que, sem ceder às pressões do utilitarismo sôfrego, não veja na queda do Muro de Berlim um absurdo fim da história, mas antes um ponto de partida 144 para a comum reconquista do humanismo integral iniciado pelos gregos e potenciado pelos pensadores, dentistas e artistas do Renascimento e por quatro séculos de atrasos em experiências. A retomada do humanismo integral pressupõe, penso eu, a consciência de um revisionismo integral no plano das idéias polí tico-sociais até agora dominantes, a fim de se poder determinar com serena objetividade qual deve ser a atual missão da sociedade civil e do Estado em um mundo cada vez mais unificado em virtu de da globalidade da economia e das conquistas científicas e tecnológicas. Esse revisionismo ainda mais se impõe em razão da atual conjuntura histórica, uma vez que a angustia resultante da perda de um ideal comunitário tornou-se ainda mais trágica após o repentino sossobro do chamado “socialismo real”, quando a per plexidade tomouconta de milhões e milhões de seres que, de uma hora para outra, se viram reduzidos a “desconsolados órfãos de Karl Marx”, não sendo demais salientar que, segundo sábio diag nóstico de Raymond Aron, o marxismo constituiu o opio dos inte lectuais durante a maior parte de nosso século. Carecemos ainda de horizontes para poder avaliar as conse qüências da reviravolta histórica que inopinadamente irrompeu após quase oito décadas de avassalador predomínio da ideologia mar xista, envolvendo, de um lado, a minoría que compunha o quadro dos dirigentes intelectuais, políticos e militares dogmaticamente encastelados em numerosos Estados da Europa, da Asia e da Amé rica; e, de outro, a colossal maioria formada por uma sociedade civil submissa e burocratizada, cujos membros não tinham idéia da cidadania senão como uma situação de obediência e confor mismo ante o valor supremo do Estado. Em ambos os casos, o que reina é uma dolorosa perplexida de, tal a dificuldade sentida pelos povos, por tanto tempo sujeitos ao estatismo soviético, ao se defrontarem com a livre iniciativa exigida pela economia do mercado. Não menos difícil tem sido a adaptação dos intelectuais a novas idéias, sem se esquecer que o saudosismo marxista é tão forte que ainda prevalecem, pelo menos na França e no Brasil, meras combinações de retalhos de antigas 145 crenças sob uma ridícula roupagem. Quer-se a todo custo creditar ao passado marxista tudo o que possa apresentar algum valor posi tivo, como se deu com a tentativa estranha de um mestre paulista ao vincular a eleição de Fernando Henrique Cardoso a um longín quo seminário, realizado em 1958, para leitura de O Capital, de Karl Marx, quando é bem mais plausível reconhecer que aquele resultado eleitoral se deveu, antes, não ao repúdio propriamente dito, mas ao superamento crítico daquela leitura... Com tais desvios e inconformismos, ao invés de se conside rar Marx apenas um (mas apenas um) dos grandes pensadores de nosso tempo, recai-se em dogmatismos unilaterais que impedem a visão serena e global dos problemas fundamentais de nossa época. Desse modo, estendem-se às antigas ideologias apressados ajustes e acomodações doutrinárias de emergência, cujo efeito é impedir que, tanto no campo liberal como no socialista, a pesquisa se oriente no sentido de encontrar as novas soluções político-sociais exigidas pelo gigantesco impacto da informática e da automação que está dissolvendo as estruturas das economias nacionais, assim como subvertendo os quadros do pleno emprego e da justiça social. Se focalizo, pois, as conseqüências do sossobro do totalitaris mo soviético, ao analisar as notas caracterizadoras do que deno mino “civilização do orgasmo”, é que, repito, estou convencido de que ela somente poderá ser superada graças a um programa co mum superior a insubsistentes antagonismos. Pode parecer paradoxal, mas é substancialmente verdadeira a afirmação de que, quanto mais são vertiginosas as mutações resul tantes do desenvolvimento científico e tecnológico, mais ainda se impõe o encontro de soluções serenamente baseadas no primado da razão tendo como referencial a integralidade da pessoa huma na, valor-fonte de todos os valores e direitos universais, por ser o homem o único ente cujo ser é o seu dever ser. “M ehrLichf, diria o sempre sereno e lúcido gênio de Goethe, mas ao imperativo de racionalidade mister é acrescentar a inspira ção espiritual de Dante, o outro pólo da cultura do Ocidente, para podermos uscir a riveder le stelle. 146
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