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0 Miguel Reale A Civilização do Orgasmo

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A CIVILIZAÇÃO DO ORGASMO
I
Não se me apaga da memoria a impressão causada pelo 
histerismo coletivo que se apossou da gente paulista, sobretudo de 
nossos adolescentes, com os espetáculos alucinantes de Michael 
Jackson e Madonna, convertidos em ídolos de nosso tempo e em 
suas figuras mais representativas.
Desde a era clássica, a humanidade não dispensa seus heróis, 
em geral vencedores das olimpíadas gregas ou das trágicas arenas 
romanas, e com eles se identifica, numa impressionante transfigu­
ração emocional que nos revela bem o quadro de valores próprios 
de cada época, de cada civilização, entendida esta como fase ou 
momento do processo histórico-cultural.
Essas formas de mimetismo passional constituem autênticos 
retratos axiológicos dos modos de ser e de viver social peculiares 
a cada período histórico, como o demonstra a sucessão de nomes 
extraídos, por exemplo, da vida teatral, como os de Enrico Caruso 
e Eleonora Duse; Beniamino Gigli e María Callas; Edith Piaff e 
Frank Sinatra, que também, a seu modo e com diverso estilo, lo­
graram arrastar multidões.
O que, porém, assinala, em nossos dias, o triunfo de Jackson 
e Madonna é a vulgaridade intencional e a corporalidade sexual da 
comunhão estabelecida entre os popstars e seus vassalos, numa 
explosão de palavras e gestos obscenos. Não está, evidentemente,
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em foco o valor artístico dos espetáculos, se é que seu mérito esté­
tico pode ser medido segundo a multidão que os aplaude, porque o 
que interessa é a sua análise como sintoma da forma de vida desta 
enigmática antevéspera de um novo milênio.
Já se começa a admitir que as últimas décadas do século XX 
apresentam figuras menos representativas do que as das anterio­
res, em quase todos os domínios da atividade humana, desde o 
plano político ao filosófico, do literário ou artístico ao científico, 
abstração feita dos aspectos negativos que possam ter certos per­
sonagens, como Hitler ou Stalin. O certo é que vivemos mais como 
herdeiros dos valores que nos transmitiram figuras pinaculares, 
como as de Husserl e Heidegger na filosofia; de Einstein e Planck 
na ciência; de Chagal e Picasso na arte; de Proust e Joyce no ro­
mance, ou de Elliot e Femando Pessoa na poesia, bastando, no 
caso brasileiro, lembrar os nomes de Euclides da Cunha, Portinari, 
Guimarães Rosa e Gilberto Freyre.
Somos urna pobre humanidade perplexa no início do terceiro 
milênio, exausta, sem rumos certos, procurando agónicamente abrir 
seu caminho entre os restos das ideologias destruídas pelos incên­
dios de duas guerras universais. Vivemos, pois, desprovidos de um 
sentido comum e ideal de vida, em assustadora disponibilidade. O 
pior é que, quando se julga estar fazendo uma opção fundamental, 
o que na realidade ocorre é a repetição de antigos equívocos, como, 
por exemplo, o dos que pretendem subordinar as atividades da 
mente ou do espírito a supostas predeterminações reveladas pela 
nova biologia. Deposita-se na engenharia biológica a esperança 
de construção de uma nova humanidade...
Nem sequer se poderá afirmar que nosso tempo é de um 
hedonismo comparável ao dominante no eclipse do Império Ro­
mano, quando o poeta Horácio aconselhava a carpere diem a apro­
veitar para o prazer cada minuto que passa. Havia, porém, certa 
finesse, uma estudada compostura mesmo quando primavam os 
impulsos dos instintos sobre o alado projetar-se do espírito.
O que notamos, hoje em dia, é a angústia, o medo de não se 
chegar a tirar proveito do instante que se está vivendo, o que tem
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como conseqüência uma total subversão da ordem do tempo, com 
a criança vivendo antecipadamente, por instigação dos pais ou sob 
a pressão do meio ambiente, a vida do adolescente, que, por sua 
vez, vive a do jovem e este a do adulto, o qual, por fim, se vê num 
vazio existencial, desprovido dos horizontes que somente a come­
dida experiência pode delinear. Tudo, em suma, se precipita de 
maneira vertiginosa, não raro sob o acicate de auferir vantagens, 
sob a pressão da “lei de Gerson” (denominação que injustamente 
estigmatiza uma grande figura de nosso futebol), da qual foram 
repugnantes exemplos os escândalos do PC e da máfia da Previ­
dência Social e do orçamento, quer para granjear popularidade 
graças a agressões traiçoeiras a homens dignos, quer para parecer 
um feliz Casanova nos arrebates sexuais.
Queiramos ou não, o que acabou prevalecendo na civiliza­
ção tribal de massa, como o anunciara McLuhan — ao analisar a 
sociedade emergente do impacto uniformizante das ciências na­
turais —, foi a contracultura do profeta Marcuse, cujas idéias 
inspiraram à Primavera de Paris, em 1968, o mote decisivo: “é 
proibido proibir!”
Passou a ser considerado sinal de atraso, quando não de 
reacionarismo, respeitar as regras que marcam a superioridade da 
razão sobre o instinto; preferir as civilizadas formas de vida que 
dão ritmo de beleza às relações sexuais; amar a virtude superior do 
diálogo, de preferência ao ímpeto bárbaro de agredir e espezinhar; 
não aceitar como arte o barulho instrumental em sua rudeza, com 
acintoso desprezo pelos possíveis valores estéticos da dissonância 
cacofónica. Tudo o que é anormal, destoante e transgressivo tende, 
em suma, a converter-se em norma vital coletiva, na insana preci­
pitação de atingir resultados imediatos e escandalosos.
Como tenho dó desse mundo que se dilacera em busca de um 
prazer impossível porque reduzido à angústia de um pronto e even­
tual orgasmo, quando este só pode representar o acme e a culmi­
nância da comum entrega amorosa de si à margem do sentido do 
tempo! Sinto-me um pobre ser marginal, incapaz de me extasiar 
com o paroxismo do rock-and-roll, apresentado como sinal de
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suprema libertação, quando antes me parece ser a desesperada busca 
do que já se perdeu!
Seria necessária uma longa e ampla pesquisa social e históri­
ca para identificar as razões determinantes do sentido agônico da 
cultura contemporânea, com apurado estudo dos múltiplos fatores 
que atuaram sobre os indivíduos e as coletividades, esvaziando-os 
tanto de sua destinação ética essencial quanto da serena confiança 
que se deve depositar na ação desveladora do tempo amadurecen­
do e potenciando as intuições criadoras. Para completo diagnósti­
co da angústia dominante — até o ponto de ser ela considerada 
por Heidegger a prevalecente categoria existencial — não podere­
mos olvidar causas aparentemente remotas, como as ligadas às 
ideologias que geraram a estatolatria hitlerista ou stalinista, redu­
zindo a história do homem a conflitos de classes ou de raças, com 
o trágico sacrifício do valor transcendental da pessoa humana, da 
autonomia da consciência subjetiva que faz do homem um ser es­
piritual livre, irredutível aos processos causais da natureza, por 
mais que estes possam ser explicados pelas ciências positivas.
Quando o homem é valorado apenas em função de interesses 
transpessoais, ou, então, no jogo sartriano de seus imprevisíveis 
impulsos subjetivos, o que resta dele é tão-somente a sua 
materialidade corpórea e instrumental, posta a serviço deste ou 
daquele outro fim extrínseco de ordem coletiva e massificante, ou, 
então, convertida em centro avassalador de interesses e prazeres 
imediatos, tendo o sexo como fator determinante, consoante cou­
be a Freud diagnosticar em significativa correlação com pressões 
ideológicas, tal como o desenvolvimento da psicanálise veio a de­
monstrar.
Não se pense, todavia, que essa dominante atração pelo ime­
diato, pelo ilusório e pelo efêmero se limita às relações sexuais, 
pois se estende a todas as formas de ação, transformada a socieda­
de inteira em um cassino sob o permanente assédio de todas as 
modalidades de jogo e de aposta que a mídia a todo instante enaltece 
como fontes de enriquecimento rápido e fácil. O consumo cada 
vez mais generalizado das drogas nãoé porventura motivado pela
137
desesperada esperança do orgasmo proporcionado pelo mundo 
fantástico do sonho? O que impera, por conseguinte, é a disponi­
bilidade do ser pessoal, a oferta da vida a todas as experiências, 
desde que se vislumbre uma réstea de prazer e de gozo, de fuga do 
real que oprime. Daí a assustadora proliferação dos crimes perpe­
trados contra a Fazenda Pública e o patrimônio individual, envol­
vendo desde menores inexperientes até altas personalidades da 
administração ou da magistratura.
Situada a “civilização do orgasmo” na globalidade da cultura 
contemporânea, poder-se-á dizer que ela é caracterizada, de um 
lado, pela sofreguidão do gozo incontinenti de todos os prazeres 
que a vida possa proporcionar, tendo o sexo como centro 
referencial; e, de outro, pela carência de um ideal ético, tanto indi­
vidual como coletivo, em virtude de ter-se perdido a consciência 
de que o significado maior da existência consiste na oportunidade 
de aperfeiçoamento espiritual que ela proporciona.
Ora, a mutilação operada no ser individual, com o predomí­
nio de sua materialidade, reflete-se na sociedade, cujos membros 
se perdem nos mais variados e apaixonantes empenhos, sem per­
ceberem que o fazem, no mais das vezes, numa visão unilateral e 
imediatista da vida, sem a alegria superior que só pode resultar de 
atos individuais válidos de per si e como elementos componentes 
de uma comunidade de homens regida por iguais imperativos de 
liberdade e justiça, compreendidos complementar e integralmente 
com base em condições existenciais tanto de caráter espiritual como 
material, o que seria inviável se persistisse a tese marxista de que 
são as condições materiais de vida numa sociedade que determi­
nam nosso pensamento e nossa consciência.
II
Lembrados, assim, alguns dos aspectos característicos da “ci­
vilização do orgasmo”, cuja nota distintiva é a “angústia dos resul­
tados”, penso que não será exagero afirmar que estamos perante
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uma “sociedade decepada”, formada de indivíduos que se consi­
deram íntegros e livres, mas que, a bem ver, sobrevivem como 
seres mutilados devido à unilateralidade da visão existencial que 
os condiciona.
Se, no fundo, somos o que escolhemos e decidimos, e se as 
escolhas e decisões tomadas pela imensa maioria das pessoas, no 
mundo atual, se acha subordinada a programas de vida impostos por 
forças extrínsecas à sua subjetividade, condicionadas que estão pela 
rede poderosamente envolvente das informações globais, não se pode 
afirmar que elas constituem seres integrais e efetivamente livres.
Assim sendo, ao invés do super-homem, proclamado com tanta 
ênfase pelo gênio de Nietzsche, o que o progresso científico nos 
proporciona, dada a quebra do suporte ético próprio da subjetivi­
dade autônoma, é o sub-homem massificado e uniformizado, fi­
cando submersa e comprometida no bojo da consciência coletiva a 
consciência individual, sem cuja autonomia e singularidade não 
há que falar em “ser pessoal” em sua plenitude. Há, certamente, 
vida, mas vida em massa, unilateral e mutilada, muito embora com 
ilusória aparência de integralidade.
Num dos episódios mais vivos do poema Orlando Furioso, 
Ludovico Ariosto canta uma batalha heróica com os mouros, na 
qual um cavalheiro cristão combate com tanto ardor que, tendo a 
cabeça cortada por violento golpe de sabre, “andava comattendo 
ed era morto” (“continuava a lutar e estava morto”).
Talvez inspirado em Ariosto, que ele tinha em grande conta, 
ítalo Calvino, no mais prodigioso de seus romances, II Visconte 
Dimezzato (“O visconde cortado ao meio”), nos fala de outro fidal­
go, Medardo di Terralba, que, em guerra contra os turcos, é dividido 
ao meio por uma bala de canhão atacado frontalmente. Graças, po­
rém, a miraculosas operações e curativos, cada uma das partes é 
salva, sendo uma toda boa, e a outra toda má. Com tal imagem 
Calvino satiriza com profundo sarcasmo a sociedade atual, vazia de 
homens íntegros e integrais. É só no final do romance que, graças a 
sortilégios de amor, as duas partes novamente se fundem, dando 
nascimento a um ser dotado de médias qualidades humanas.
139
É esse símbolo que efetivamente se aplica às vicissitudes da 
sociedade contemporânea, cortada ao meio por uma infinidade de 
fatores, sendo deveras impressionante observar que, quanto mais 
se multiplicam e se aceleram os processos de informação e de co­
municação — os quais, em tese, deveriam abastecer o homem de 
crescentes meios e recursos para melhor escolher e decidir —, é o 
contrário que acontece: a massa de informações, cada vez mais 
controlada por um número cada vez menor de detentores do 
hardware e do software, isto é, das estruturas técnicas e dos res­
pectivos programas informativos, converte o homem comum em 
um impotente ser programado, posto na contingência de sujeitar- 
se a formas de vida traçadas pela nova classe dominante. O pior é 
que, por sua vez, os “senhores da informação”, em virtude do jogo 
da livre concorrência que os leva a explorar sempre mais as ten­
dências e inclinações humanas inferiores, mais favoráveis ao seu 
domínio, têm apostado na conquista de novas clientelas, ou me­
lhor, dos “sub-homens da nova ordem global”, lançando mão da 
força aliciante e degradante do vício, desde os delírios e deprava­
ções sociais até as mais repugnantes expressões de violência, ten­
do a droga como instrumento vil de submissão e dependência. Na 
realidade, tudo isso redunda em uma operação de bumerangue, 
pois os potentados da informação — às vezes cidadãos dos mais 
úteis e benéficos à coletividade, em razão dos planos de solidarie­
dade social por eles promovidos — acabam sendo enredados pelo 
sistema entregue à tática guerreira dos comunicólogos, também 
eles dominados pelas exigências objetivas de uma competição sem 
fim, tomada a palavra fim no sêu duplo sentido temporal e ético.
A rigor, os donos das empresas produtoras de espetáculos e 
programas, bem como das redes de jornais, rádios e televisão que 
os disseminam pelo mundo, poderiam ser considerados a versão 
atual do super-homem, o qual, em última análise, foi concebido 
como um ser a partir do qual tudo começa, um pequeno deus 
instaurador soberano dos valores a serem vividos pelos “sub-ho­
mens” deslumbrados pela fascinação de sua suprema potência, mas 
é possível que também eles sejam, muito embora sem o perceber,
140
prisioneiros do sistema que constituíram, uma vez que o sistema 
automatizado da informação, como um novo rei Midas, absorve 
em suas engrenagens todos os que nela ingressam. Nada há de 
mais trágico do que essa despersonalização global.
É essa operação de bumerangue que atinge o cerne da civili­
zação contemporânea, visto como pouco ou nada se pode esperar 
da iniciativa dos “senhores da informação” ora à testa de organiza­
ções governamentais e não-governamentais, iluminados que fos­
sem pela consciência dos altos valores do espírito, à cuja luz se 
dispusessem a corrigir heroicamente a rota até agora seguida, pondo 
fim ao horrendo sistema de forças que se apóia sobre as tendências 
mais elementares do ser humano.
Dir-se-á que, como o notou Nicolai Hartmann, o espírito hu­
mano corre sempre o risco de tornar-se prisioneiro de idéias e ins­
trumentos por ele criados e “objetivizados”, isto é, convertidos em 
entes objetivos de per si válidos, às vezes contrapostos a novos 
atos livres de seus criadores. Não comungo, porém, com o pessi­
mismo desse pensador germânico até o ponto de transformar o 
mundo objetivado da cultura em um caput mortuum que progres­
sivamente se contrapõe à liberdade do homem, pois todo estágio 
da cultura alberga sempre um conjunto de valores positivos susce­
tível de servir de plataforma a partir da qual a inteligência se pro­
jeta para novos vôos de descoberta e desenvolvimento em benefí­
cio da espécie humana. Essa temsido, aliás, a trajetória da ciência 
que até agora, via de regra, tem superado os transtornos e malefícios 
que ela de início ocasiona com suas invenções e descobertas.
III
Sob esse prisma, não há como inventivar e deblaterar contra 
as conquistas da informática ou da cibernética, pregando o ana­
crônico retomo ao passado. O que antes cabe aos homens repre­
sentativos de todas as categorias sociais, e notadamente à aristo­
cracia da inteligência, é saber reconhecer a existência de valores
141
negativos no “discurso comunicativo”, sem se cair na ilusão de 
sua plena validade em si e de per si, independente do alcance ético 
de seu conteúdo. Não há dúvida que o discurso comunicativo é um 
elemento componente essencial da vida contemporânea, mas não 
exageremos: a comunicação pressupõe a formação intelectual e 
moral de quem o enuncia, assim como o conteúdo do que é enun­
ciado como valor positivo de natureza intelectiva ou ética. Os pre­
gadores de um direito absoluto de informar e comunicar, a pretex­
to de uma democracia totalmente aberta, ainda mesmo quando o 
vício e o crime são usados como instrumento de predomínio social, 
tecnológico ou político, abrem campo a abusos que, como vimos, 
culminam na criação de homens programados, meros objetos de 
um discurso que não raro lhes é sorrateiramente imposto.
Não ignoro, nem pretendo ocultar a gravidade desse proble­
ma, como acontece toda vez que se cogita da liberdade e de seus 
limites. Se é certo que o homem é um ser até certo ponto condicio­
nado por fatos naturais e por fatos culturais, pelo que acontece 
como factum e pelo que é instaurado como actum, a sabedoria 
consiste em reduzir ao mínimo possível esse condicionamento, 
preservando para cada pessoa a sua liberdade criadora: esse 
balanceamento prudente de valores constitui o cerne tanto da vida 
ética quanto da democracia.
Assim como homens e mulheres de todo o planeta se unem 
para salvar o valor ecológico, não apenas por amor e em razão da 
natureza — como o proclamam os exaltados pregadores de uma 
nova religião panteísta — mas sim e principalmente em função do 
homem como tal, tendo como alvo a sobrevivência da pessoa hu­
mana e o privilégio que temos de amar a natureza, dela nos servin­
do com exemplar moderação, da mesma forma deve ser universal 
a resistência aos processos opressivos e a-éticos da informação 
transpessoal massificante.
No caso, porém, da luta em prol do sub-homem programado 
pelo totalitarismo dos meios hodiernos de comunicação, não cabe 
fundar um partido verde ou azul, mas sim motivar a opinião públi­
ca universal visando a formar uma consciência transnacional e
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transpartidária a fim de instituir uma ordem legal que, preservan­
do a liberdade de informação, a situe em justos limites, com a 
aplicação de graves sanções a quantos dela se sirvam para o triun­
fo dos abusos e vícios que têm sido a causa principal da criação do 
“homem disponível”, desprovido de qualquer sentido ético e, como 
tal, inclinado a barganhar tudo pelo prazer fácil e imediato, como 
é próprio da civilização do orgasmo.
Não se compreende, em verdade, a perpetuação da cínica si­
tuação vigente, na qual aqueles mesmos que fazem dos excessos 
sexuais e da violência o ingrediente preferido e revoltante de seus 
aliciadores programas de comunicação de massa, por outro lado 
se apresentem como inimigos daqueles mesmos vícios, fonte de 
seus êxitos empresariais. Não creio sejam necessárias estatísticas 
para demonstrar que, se o narcotráfico, o terrorismo, o seqüestro e 
a chacina campeiam, sobretudo nos grandes centros urbanos — e 
São Paulo e o Rio de Janeiro são tristes exemplos dessa tragédia —, 
seus agentes e participantes contam com a fonte inspiradora dos 
espetáculos radiofônicos, televisivos e teatrais, que fazem dos des­
varios do sexo e da violência a matéria-prima de suas pseudocria- 
ções artísticas.
Entra pelos olhos a repugnante contradição que há entre o 
empenho de todos os Estados, na debelação, por exemplo, do 
narcotráfico ou da prostituição de menores, despendendo colos­
sais verbas orçamentárias e sacrificando milhares de vidas, e a omis­
são deles no tocante a abusos manifestos do sistema de informa­
ção de massa, a começar pelas colossais produtoras internacionais 
de espetáculos para o cinema e a televisão que representam a fonte 
de excelência de inspiração das vítimas das drogas, dos agentes de 
inauditos atos de violência e dos mais repugnantes delírios sexuais. 
O pior é que todas essas degradantes imagens são disseminadas 
por concessionários de serviços públicos, sem qualquer ressalva 
no concernente a um mínimo de respeito aos valores éticos.
Cumpre assinalar que a ação do Estado, no exercício de sua 
competência reguladora, não se deve limitar à edição de medidas 
repressivas, devendo ser antes o centro inspirador e promotor de
143
um programa educacional do mais alto alcance, que, a partir do 
ensino fundamental, não se limite à educação para a cidadania e a 
fruição dos conhecimentos científicos, mas também e sobretudo 
vise a desenvolver na criança e no adolescente a consciência de 
sua autonomia existencial, o privilégio de ser o único ser dotado 
de liberdade e de capacidade de ideal, a salvo de compressões ex­
ternas de qualquer natureza.
Nunca a questão pedagógica esteve tão ligada, como agora, à 
problemática do destino do homem e da sociedade, o que impõe 
que, além da ação estatal, a própria sociedade civil assuma a sua 
imprescindível responsabilidade, constituindo-se organismos não 
governamentais, as ONGs destinadas à reconquista do homem co­
mum demezzato, privado de parte essencial de sua personalidade 
em virtude da programação a ela imposta pela mídia de informa­
ção de massa.
Como se vê, a civilização do orgasmo não constitui mero tema 
de dissertação acadêmica sobre um período histórico que se possa 
considerar, como tantos outros, de caráter transitório, porque ela, 
tanto como os atentados à camada de ozônio que protege nosso 
planeta, representa uma ameaça-limite contra a sobrevivência do 
homem sobre a face da Terra.
Mas, retomando a ítalo Calvino, se, como ele afirma, somen­
te o amor logrou restituir ao fidalgo fragmentado a sua integralidade 
pessoal, cumpre reconhecer, igualmente, que é somente o amoro­
so e comum empenho das mentes alertadas, em esforço conjunto 
para efetivação das medidas supra-aventadas de natureza legislativa 
e pedagógica, que poderá criar as condições indispensáveis ao 
superamento da civilização do orgasmo, recuperando-se a via racio­
nal de um novo ciclo cultural iluminado por lúcida serenidade.
Para tanto será indispensável que, tanto no campo liberal como 
no socialista, haja revisão crítica de posições geradas pelas contin­
gências de antigos conflitos de idéias e interesses, a fim de que pre­
valeça uma atitude de sadio realismo pragmático, que, sem ceder às 
pressões do utilitarismo sôfrego, não veja na queda do Muro de 
Berlim um absurdo fim da história, mas antes um ponto de partida
144
para a comum reconquista do humanismo integral iniciado pelos 
gregos e potenciado pelos pensadores, dentistas e artistas do 
Renascimento e por quatro séculos de atrasos em experiências.
A retomada do humanismo integral pressupõe, penso eu, a 
consciência de um revisionismo integral no plano das idéias polí­
tico-sociais até agora dominantes, a fim de se poder determinar 
com serena objetividade qual deve ser a atual missão da sociedade 
civil e do Estado em um mundo cada vez mais unificado em virtu­
de da globalidade da economia e das conquistas científicas e 
tecnológicas. Esse revisionismo ainda mais se impõe em razão da 
atual conjuntura histórica, uma vez que a angustia resultante da 
perda de um ideal comunitário tornou-se ainda mais trágica após o 
repentino sossobro do chamado “socialismo real”, quando a per­
plexidade tomouconta de milhões e milhões de seres que, de uma 
hora para outra, se viram reduzidos a “desconsolados órfãos de 
Karl Marx”, não sendo demais salientar que, segundo sábio diag­
nóstico de Raymond Aron, o marxismo constituiu o opio dos inte­
lectuais durante a maior parte de nosso século.
Carecemos ainda de horizontes para poder avaliar as conse­
qüências da reviravolta histórica que inopinadamente irrompeu após 
quase oito décadas de avassalador predomínio da ideologia mar­
xista, envolvendo, de um lado, a minoría que compunha o quadro 
dos dirigentes intelectuais, políticos e militares dogmaticamente 
encastelados em numerosos Estados da Europa, da Asia e da Amé­
rica; e, de outro, a colossal maioria formada por uma sociedade 
civil submissa e burocratizada, cujos membros não tinham idéia 
da cidadania senão como uma situação de obediência e confor­
mismo ante o valor supremo do Estado.
Em ambos os casos, o que reina é uma dolorosa perplexida­
de, tal a dificuldade sentida pelos povos, por tanto tempo sujeitos 
ao estatismo soviético, ao se defrontarem com a livre iniciativa 
exigida pela economia do mercado. Não menos difícil tem sido a 
adaptação dos intelectuais a novas idéias, sem se esquecer que o 
saudosismo marxista é tão forte que ainda prevalecem, pelo menos 
na França e no Brasil, meras combinações de retalhos de antigas
145
crenças sob uma ridícula roupagem. Quer-se a todo custo creditar 
ao passado marxista tudo o que possa apresentar algum valor posi­
tivo, como se deu com a tentativa estranha de um mestre paulista 
ao vincular a eleição de Fernando Henrique Cardoso a um longín­
quo seminário, realizado em 1958, para leitura de O Capital, de 
Karl Marx, quando é bem mais plausível reconhecer que aquele 
resultado eleitoral se deveu, antes, não ao repúdio propriamente 
dito, mas ao superamento crítico daquela leitura...
Com tais desvios e inconformismos, ao invés de se conside­
rar Marx apenas um (mas apenas um) dos grandes pensadores de 
nosso tempo, recai-se em dogmatismos unilaterais que impedem a 
visão serena e global dos problemas fundamentais de nossa época. 
Desse modo, estendem-se às antigas ideologias apressados ajustes 
e acomodações doutrinárias de emergência, cujo efeito é impedir 
que, tanto no campo liberal como no socialista, a pesquisa se oriente 
no sentido de encontrar as novas soluções político-sociais exigidas 
pelo gigantesco impacto da informática e da automação que está 
dissolvendo as estruturas das economias nacionais, assim como 
subvertendo os quadros do pleno emprego e da justiça social.
Se focalizo, pois, as conseqüências do sossobro do totalitaris­
mo soviético, ao analisar as notas caracterizadoras do que deno­
mino “civilização do orgasmo”, é que, repito, estou convencido de 
que ela somente poderá ser superada graças a um programa co­
mum superior a insubsistentes antagonismos.
Pode parecer paradoxal, mas é substancialmente verdadeira a 
afirmação de que, quanto mais são vertiginosas as mutações resul­
tantes do desenvolvimento científico e tecnológico, mais ainda se 
impõe o encontro de soluções serenamente baseadas no primado 
da razão tendo como referencial a integralidade da pessoa huma­
na, valor-fonte de todos os valores e direitos universais, por ser o 
homem o único ente cujo ser é o seu dever ser.
“M ehrLichf, diria o sempre sereno e lúcido gênio de Goethe, 
mas ao imperativo de racionalidade mister é acrescentar a inspira­
ção espiritual de Dante, o outro pólo da cultura do Ocidente, para 
podermos uscir a riveder le stelle.
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