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TEXTO PARA DISCUSSÃO Nº 556 UTILIZAÇÃO DE CRITÉRIOS ECONÔMICOS PARA A VALORIZAÇÃO DA ÁGUA NO BRASIL* Ronaldo Seroa da Motta** Rio de Janeiro, abril de 1998 *O autor agradece a Wilfried Teuber (SEMA-GTZ), Michel Potier (Environment Directorate-OECD), Lucia Sena (Sema/SP) e Raimundo Garrido e Luciano Meneses Silva (SRH-MMA) pela atenção e presteza com que obtiveram referências bibliográficas das suas instituições. A Antonio Comune (Fipe-USP), Eduardo Lanna (IPH-UFRS) e Jerson Kelmam (Coppe-UFRJ) por colocarem prestativamente seus artigos à minha disposição via E-mail. A Wilfried Teuber gostaria também de agradecer o incentivo recebido para realizar este documento. Este estudo faz parte do Projeto Planagua de Cooperação Técnica Brasil-Alemanha, Sema-GTZ. ** Coordenador de Estudos do Meio Ambiente na Diretoria de Pesquisa do IPEA. O IPEA é uma fundação pública vinculada ao Ministério do Planejamento e Orçamento, cujas finalidades são: auxiliar o ministro na elaboração e no acompanhamento da política econômica e prover atividades de pesquisa econômica aplicada nas áreas fiscal, financeira, externa e de desenvolvimento setorial. Presidente Fernando Rezende Diretoria Claudio Monteiro Considera Luís Fernando Tironi Gustavo Maia Gomes Mariano de Matos Macedo Luiz Antonio de Souza Cordeiro Murilo Lôbo TEXTO PARA DISCUSSÃO tem o objetivo de divulgar resultados de estudos desenvolvidos direta ou indiretamente pelo IPEA, bem como trabalhos considerados de relevância para disseminação pelo Instituto, para informar profissionais especializados e colher sugestões. ISSN 1415-4765 SERVIÇO EDITORIAL Rio de Janeiro – RJ Av. Presidente Antônio Carlos, 51 – 14º andar – CEP 20020-010 Telefax: (021) 220-5533 E-mail: editrj@ipea.gov.br Brasília – DF SBS Q. 1 Bl. J, Ed. BNDES – 10º andar – CEP 70076-900 Telefax: (061) 315-5314 E-mail: editbsb@ipea.gov.br © IPEA, 1998 É permitida a reprodução deste texto, desde que obrigatoriamente citada a fonte. Reproduções para fins comerciais são rigorosamente proibidas. SUMÁRIO RESUMO ABSTRACT INTRODUÇÃO .........................................................................................1 1 - OS PRINCÍPIOS ECONÔMICOS DA COBRANÇA DA ÁGUA...........2 1.1 - Cobrança da Água para Financiamento ..........................................2 1.2 - Cobrança da Água por Externalidade ..............................................7 1.3 - Criação de Mercado de Direitos da Água ......................................14 1.4 - Conclusões ....................................................................................20 2 - A EXPERIÊNCIA INTERNACIONAL ................................................25 2.1 - A Experiência Francesa .................................................................26 2.2 - A Experiência Holandesa...............................................................30 2.3 - A Experiência Alemã......................................................................32 2.4 - A Experiência Mexicana.................................................................34 2.5 - A Experiência Colombiana.............................................................35 2.6 - A Experiência Americana...............................................................37 2.7 - A Experiência Chilena....................................................................39 2.8 - Conclusões ....................................................................................40 3 - A EXPERIÊNCIA BRASILEIRA ........................................................44 3.1 - Aspectos Políticos e Legais ...........................................................44 3.2 - A Cobrança nas Legislações Estaduais.........................................47 3.3 - Conclusões ....................................................................................55 4 - RECOMENDAÇÕES PARA A VALORIZAÇÃO ECONÔMICA DA ÁGUA NO BRASIL.....................................................................55 4.1 - Dez Critérios Econômicos para Valorização da Água....................56 4.2 - Custos de Transação.....................................................................57 4.3 - Critérios de Alocação das Receitas da Cobrança..........................60 APÊNDICE TÉCNICO............................................................................68 BIBLIOGRAFIA ......................................................................................77 RESUMO Este documento objetiva, primeiro, revisar e analisar os critérios econômicos da cobrança e criação de mercado de recursos naturais, em particular da água, no seu novo contexto legal das recentes leis de recursos hídricos do país. Segundo, analisar as experiências internacionais para subsidiar uma avaliação das propostas de cobrança desenvolvidas no Brasil que, nem sempre, explicitam suas justificativas e implicações econômicas. À luz dessas experiências, são propostos alguns princípios econômicos básicos para a cobrança e criação de mercado de água no Brasil considerando as nossas realidades legal e institucional. ABSTRACT This study, firstly, analyses and review the economic criteria of natural resources pricing and market creation, with special focus on water charges in its new legal context in Brazil. Secondly, international experiences are evaluated trying to bring about relevant issues for the current proposals for water charge in Brazil which are commonly presented without proper economic justification. Based on that, general and basic economic principles are enunciated to guide water pricing and market creation taking into account the legal and institutional constraints. UTILIZAÇÃO DE CRITÉRIOS ECONÔMICOS PARA A VALORIZAÇÃO DA ÁGUA NO BRASIL 1 INTRODUÇÃO A gestão dos recursos hídricos (RH) no Brasil inicia uma nova fase com a aprovação da Lei 9.433 da Política Nacional de Recursos Hídricos em janeiro de 1997. Além desta lei nacional, outros 12 estados também promulgaram legislações semelhantes. Quatro princípios desta lei são responsáveis por tal alteração de padrão: a gestão por bacia, a unicidade da outorga, a exigência de um plano de gestão e o instrumento de cobrança. Todas essas legislações encontram-se na fase de regulamentação, durante a qual os critérios de implementação desses instrumentos serão definidos. A gestão por bacia reconhece que o uso da água é múltiplo, excludente e gera externalidades e, portanto, a bacia representa o mercado de água onde seus usuários interagem. A unicidade da outorga permite uma melhor definição e garantia de direitos de uso da água. O plano de gestão introduz os elementos de disponibilidade e demanda do recurso no tempo. E por fim, a cobrança que determina diretamente um preço para a água. Note que a descrição acima das características da nova lei está estritamente associada a uma visão econômica da água. Tal percepção não é fortuita, pois a própria lei reconhece, explicitamente, que a água tem um valor econômico e o instrumento de cobrança almeja a racionalização do seu uso. A transformação desse valor em um preço, isto é, na cobrança, é o tema deste artigo. Ela depende dos critérios econômicos adotados na determinação dos valores da cobrança e da criação de mercado para o uso da água. Adicionalmente, serão analisadas as vantagens e desvantagens das opções de criação de mercado de direitos de uso e poluição da água como complemento ou substituição da cobrança. O documento está dividido em quatro seções. A primeira enuncia os principais critérios econômicos gerais da cobrança pelo uso ou criação de mercado de recursos naturais, em particular ao caso da água. Uma análise mais formal é deixada para o Apêndice Técnico, onde uma bibliografia especializada e tradicional é registrada. À luz desses critérios, as experiências internacionais e as propostas estaduaisbrasileiras são analisadas. Com base nessas experiências, alguns princípios econômicos para a cobrança e criação de mercado são propostos na última seção com base nas conclusões das seções anteriores. Na seção final também são apresentados critérios econômicos para a repartição das receitas da cobrança. Conforme o leitor poderá notar, este documento não tem o objetivo de propor fórmulas de cobrança ou estimar seus valores. O nosso objetivo é, primeiro, o de avaliar a base teórica dos critérios para valorização da água, os quais nem sempre estão explicitados e coerentes nas propostas de cobrança ou de criação de mercado. E, segundo, discutir a viabilidade legal e institucional de aplicá-los à luz da experiência internacional e da realidade brasileira. Para tal, o estudo oferece alguns princípios econômicos, básicos e de fácil implementação, para que a UTILIZAÇÃO DE CRITÉRIOS ECONÔMICOS PARA A VALORIZAÇÃO DA ÁGUA NO BRASIL 2 valorização econômica da água possa capturar alguns ganhos de eficiência no seu uso e, não represente somente algumas percepções pessoais, simplificadas matematicamente, sem a devida base teórica. 1 - OS PRINCÍPIOS ECONÔMICOS DA COBRANÇA DA ÁGUA A cobrança da água é um preço sobre o uso da água. Esta é também a base do chamado princípio do poluidor-usuário pagador.1 Este uso, por sua vez, pode se realizar por quantidade ou qualidade, tal como está reconhecido na nova gestão de recursos hídricos no país (NGRH). Do ponto de vista econômico, a cobrança da água deve atentar para dois objetivos: o de financiamento da gestão de RH e o de redução das externalidades ambientais negativas. Conforme veremos a seguir, preços ótimos para o financiamento da gestão de recursos hídricos podem não representar necessariamente os preços adequados para atendimento de objetivos ambientais e vice-versa. Mais ainda, a criação de mercados de direitos comercializáveis, em certos casos especiais, pode ser mais eficiente que a cobrança, Os critérios abaixo analisados estão formalizados no Apêndice Técnico onde uma bibliografia tradicional é referida. 1.1 - Cobrança da Água para Financiamento Note que o aumento do consumo de um bem, como, por exemplo, a água (em quantidade ou qualidade), realizado por um usuário B (indivíduo ou firma), pode ou não reduzir o consumo de outro usuário A. Por exemplo, dentro dos limites da disponibilidade ou qualidade hídrica, o consumo de B não rivaliza com o de A. Nestes casos, para a sociedade, o aumento de consumo de B não gera um custo social. Como a água é um bem renovável, não ocorre também nenhum aumento do seu custo de oferta. Em jargão econômico, equivale dizer que o custo marginal (custo da unidade adicional) do consumo de B é zero, embora gere um benefício marginal positivo para B. A cobrança pelo uso da água, nestes casos de não- rivalidade, pode reduzir a eficiência econômica, pois frente a essa cobrança um consumo, que não aumenta o custo social e gera benefícios positivos, poderia ser excluído e, portanto, impediria níveis ótimos de alocação de água por usuário. Conforme será discutido a seguir, nem sempre o usuário está disposto a revelar o valor dos seus benefícios e, assim, principalmente no caso da água, o consumo de um usuário acaba afetando a disponibilidade do recurso para outro usuário. Mais 1 Neste contexto da cobrança, este princípio se refere a pagamentos ex-ante ao fato gerador, enquanto nas situações de litígios judiciais é aplicado para pagamentos ex-post na forma, por exemplo, de indenizações. UTILIZAÇÃO DE CRITÉRIOS ECONÔMICOS PARA A VALORIZAÇÃO DA ÁGUA NO BRASIL 3 ainda, a cobrança pelo uso pode ser necessária para o financiamento da gestão e provisão do recurso. Os custos de gestão e provisão podem ser associados à disponibilidade hídrica ou ao controle da poluição. Entretanto, o rationale apresentado abaixo está mais associado na literatura ao uso por quantidade cuja oferta pode ser viabilizada por financiamento de investimentos e sem geração de externalidades. 1.1.1 - Preços ótimos para financiamento Note que o custo de um aumento de consumo pode ser zero (custo marginal igual a zero), mas existem custos fixos para manter o serviço de provisão do recurso. No caso da água, seriam, por exemplo, os custos de gestão e obras de manutenção. Logo, uma cobrança terá de existir senão a provisão do bem é reduzida com a exclusão de vários usuários com benefícios marginais positivos. O princípio econômico para tal cobrança é a sua equivalência ao benefício marginal do consumo de água de cada usuário. Observando o Gráfico 1, o nível ótimo de provisão do recurso, nesse caso, seria dado àquele em que o custo marginal da provisão (Cpmg) é igual ao somatório dos benefícios marginais dos usuários (Bmg = B1mg + ...+ Bnmg). Assim, o custo social se iguala ao benefício social, tal como indica o ponto Q* no Gráfico 1 que determina o nível ótimo de consumo. Esse benefício seria dado pela taxa marginal de substituição do consumo de água por outros bens. Tal taxa apenas revela quanto vale a água em relação a outros bens da economia que são consumidos pelo usuário e, portanto, revela sua disposição de pagar pela água. O consumo da água tanto pode ser um insumo da função de produção de um produtor quanto um bem de consumo direto da função de utilidade de um indivíduo (ver Apêndice Técnico). Para os usuários produtores (firmas) de um bem z com uma função de produção F e preço pz, essa cobrança (C1qi) seria revelada pelo valor da produtividade marginal da água como insumo (A) para o usuário i da seguinte forma: C1qi = pZ ∂F / ∂A (1) Para os usuários consumidores direto (famílias), C1qi pode ser expressa formalmente como uma perda de utilidade (U) por decréscimo do consumo direto do bem para o usuário i que reflete sua disposição marginal a pagar (DAP), tal que: C1qi = ∂U / ∂A = DAP (2) O valor da DAP seria, então, uma medida do ganho de bem-estar pelo uso da água. UTILIZAÇÃO DE CRITÉRIOS ECONÔMICOS PARA A VALORIZAÇÃO DA ÁGUA NO BRASIL 4 1.1.2 - Preços públicos A situação anterior é uma caracterização da provisão de um bem público, cujo consumo é não-rival e o estado é o monopolista provedor deste bem. Com tal regra de preços a sociedade maximiza os benefícios do uso da água ao alocar o recurso de acordo com seu retorno econômico para cada usuário. Todavia, é muito difícil identificar para cada usuário o seu benefício marginal do consumo. Mas, como este consumo tem que ser também não-excludente daqueles usuários com benefício marginal positivo, existe um incentivo para o caronista (free rider), ou seja, alguns indivíduos irão esconder suas verdadeiras disposições a pagar pelo bem para pagarem menos ou nada pelo seu consumo. Dessa forma, a provisão do recurso é subótima na medida em que as receitas arrecadadas não permitirão cobrir os custos da provisão. UTILIZAÇÃO DE CRITÉRIOS ECONÔMICOS PARA A VALORIZAÇÃO DA ÁGUA NO BRASIL 5 Entretanto, devemos observar que o consumo de água é não-rival somente até certo ponto, isto é, acima de um certo nível de consumo ocorrerá um “congestionamento” que resultará em racionamento. Agora o consumo de B afeta o consumo de A e, portanto, a alocação da escassez tem de seguir um critério de eficiência. Nesse caso, os custos marginais de expansão (Cxmg) têm de ser adicionados aos custos de provisão (Cpmg) e o novo consumo ótimo seria o ponto Q** no Gráfico1. Note que Q** representa o somatório das quantidades ótimas de cada usuário. Mesmo que haja a possibilidade de eliminar os caronistas, há que se admitir que o consumo é possível de ser medido para, assim, ser cobrado. Daí a recomendação de que certos benspúblicos têm de ser financiados pelo Tesouro, isto é, pelo contribuinte em geral mediante impostos sem qualquer relação com o nível de consumo individual.2 Uma outra forma de resolver tal tendência de subotimização é determinar preços que maximizem o bem-estar gerado pelo consumo de água dada a restrição de que a receita marginal deve se igualar às necessidades de financiamento da provisão e expansão. Esses preços (C2q) são iguais ao custo marginal de provisão e expansão mais uma parcela diferenciada por usuário que é proporcional (β) ao inverso da elasticidade de demanda (Ei) de cada usuário i da seguinte forma: C2qi - Cmg/C2qi = β/ Ei (3) Assim, usuários com demanda menos elásticas pagam mais que aqueles com demanda mais elástica (ver Apêndice Técnico). Esta tem sido a regra básica de precificação de bens públicos, ou regra de Ramsey,3 quando estes não são financiados diretamente pelo Tesouro. Note que tal regra poderia ser também aplicada ao consumo por qualidade no qual a demanda do usuário por serviços de despoluição seria dada pela sua curva de custo de controle de poluição, ou seja, a disposição a pagar seria dada pelos custos de controle. Todavia, conforme será visto adiante, no caso de externalidades, além das necessidades de receita, existe um objetivo ambiental a ser atendido. 1.1.3 - As limitações no caso da água Note que no caso da provisão de água existem problemas adicionais para a precificação. Conflito setorial: geralmente a indústria e a agricultura apresentam elasticidades- preço maiores do que os usuários urbanos devido às opções tecnológicas de suas 2 Estes são os casos clássicos da segurança nacional ou dos faróis de mar. 3 Derivada inicialmente por Frank Ramsey em 1927. Dessa forma, as demandas inelásticas financiam as demandas elásticas, uma vez estas últimas que geram maiores ganhos de excedente econômico. Esta proporcionalidade pode também ser estimada incluindo critérios distributivos [ver Andrade (1998)]. UTILIZAÇÃO DE CRITÉRIOS ECONÔMICOS PARA A VALORIZAÇÃO DA ÁGUA NO BRASIL 6 funções de produção. Nesses casos, com o uso da regra de preços públicos, os preços da cobrança de consumo urbano será maior do que de outros usuários, criando-se assim uma fonte de conflito setorial. Interligação entre bacias (sub-bacias ou trechos):4 quase sempre o consumo de um usuário numa sub-bacia afeta o de outros em outra bacia, sub-bacia ou trecho. Assim, os preços em vigor em uma bacia que definem o seu nível local ótimo podem afetar outro nível ótimo local. Logo a cobrança do usuário i, nesses casos, teria que ser relativa a todas as bacias (sub-bacias ou trechos) j da seguinte forma: C3qi = qij C2qj (4) onde q representa a matriz de coeficientes de consumo de água da bacia j pelo usuário i. Note que q pode ser associado tanto ao uso quantitativo de um usuário no uso de outros, quanto ao impacto da sua poluição na qualidade ambiental no consumo dos outros. Mapear essa matriz requer amplo conhecimento sobre o balanço hidrológico das bacias que nem sempre é preciso. Dessa forma, ou se considera a gestão dentro de uma dimensão de uma única bacia com várias bacias e sub-bacias interligadas ou esse consumo interligado continua uma externalidade negativa5 (ver subseção seguinte). A utilização desse sistema de bacias interligadas implica um sofisticado sistema de gestão em que comitês de bacias são articulados por sua interligação. Tal sistema talvez seja de difícil implementação, pelo menos no estágio inicial do NGRH. Isto porque o número de usuários envolvidos cresceria e, conseqüentemente, seriam observados custos elevados de negociação que impediriam ações cooperativas para definição de metas e preços. Dado que essas negociações tentam definir os benefícios e os custos de cada usuário que dependem da ação de outro usuário, esse contexto de informação imperfeita, portanto, pode gerar situações não cooperativas com usos subótimos do recurso.6 Medição do consumo: o custo marginal de medição de consumo (ou das emissões de efluentes) pode ser extremamente alto que não compense a receita adicional gerada. Nesses casos seria melhor utilizar aproximações de consumo, mesmo que subestimadas. Existe quase que uma impossibilidade técnica de medição para a agricultura ou tomadas diretas de água bruta de grandes firmas. Todavia, estimativas parametrizadas são possíveis mediante dados de produção/receita, embora seja uma forma imprecisa de medição. De qualquer forma, tal procedimento requer um sistema de gestão capacitado para isso. 4 Na literatura econômica ambiental este problema é denominado multi-zone problem [ver Tietenberger (1996)]. Para uma análise de simulação nas bacias do Estado de São Paulo, ver Seroa da Motta e Mendes (1996). 5 Este é um caso típico de transferência de externalidade. 6 Este níveis são denominados literatura econômica de equilíbrio de Nash. UTILIZAÇÃO DE CRITÉRIOS ECONÔMICOS PARA A VALORIZAÇÃO DA ÁGUA NO BRASIL 7 Racionamento: a disponibilidade hídrica é estocástica, isto é, está associada a uma função probabilística, ou seja, em certos períodos, mesmo com uma receita adequada e sem caronistas, a disponibilidade de água pode requerer um racionamento por motivos puramente hidrológicos. Nesses casos, novamente o uso da água por um usuário exclui o uso por outro e, portanto, gera uma externalidade negativa. A precificação pela regra de preços públicos não é possível, nesses casos, dado que a solução de oferta de água independe do nível de receitas, porquanto que no curto prazo não haveria como disponibilizar mais água. Note que uma gestão de oferta que mantém o consumo suficientemente abaixo da disponibilidade máxima para não enfrentar esse racionamento periódico, estaria realizando uma alocação não-ótima, pois por vários períodos de não-racionamento usuários com benefícios positivos seriam excluídos.7 Dessa forma, a alocação ótima da água por precificação da água é de difícil implementação sob a ótica da eficiência econômica, principalmente nos casos de interligação e racionamento. Analisemos mais objetivamente estas restrições quando da discussão sobre direitos de uso transacionáveis. 1.2 - Cobrança da Água por Externalidade A cobrança da água para controle das externalidades ambientais negativas difere da cobrança para financiamento em duas situações especiais. Primeiro, conforme já analisamos, quando o consumo da água afeta terceiros sem que o usuário pague por isso, ou seja, gera externalidades negativas. Segundo, quando se cobra por poluição, o tratamento da água residual é realizado descentralizadamente (isto é, sem um poder monopolista do estado ou de uma associação) pelos usuários. Caso a água residual de todos os usuários fosse toda canalizada para uma estação de tratamento coletiva, não haveria externalidade e o problema de precificação seria semelhante ao de preço público, conforme acima discutido, ou seja, igualar a receita da cobrança com as necessidades de financiamento e gestão do sistema de tratamento.8 Entretanto, tal não é o caso geral da descarga de efluentes e, assim, há que se determinar um nível de cobrança que afete a geração de externalidades e incentive as ações de controle de poluentes. Tal como na literatura, nas subseções seguintes iremos nos referir à poluição como a forma de externalidade a ser reduzida. Quando for o caso, faremos referência às externalidades de uso por quantidade. 7 Equivale a dizer matematicamente que o ponto de congestionamento tem que ser atingido para haver otimização.8 Nos casos de associações de municípios e de firmas para tratamento em estações coletivas, a questão da cobrança também pode ser resolvida por preços públicos. Entretanto, note que nessas situações, os preços são regidos por contratos privados e sua determinação não precisa, necessariamente, seguir a lógica da maximização do bem-estar social, como no caso dos bens públicos. Ver Seção 3 sobre experiências desse tipo em algumas partes da Alemanha. UTILIZAÇÃO DE CRITÉRIOS ECONÔMICOS PARA A VALORIZAÇÃO DA ÁGUA NO BRASIL 8 1.2.1 - Preços ótimos A geração de externalidades negativas (por poluição hídrica ou aérea) resulta em danos que não são internalizados nas funções de produção e consumo dos usuários. Desta feita, a economia perde eficiência, pois, devido a essa falha de mercado, o custo privado não coincidirá com o custo social. Na presença de externalidades o nível de utilização do recurso é subótimo. No caso das externalidades negativas, a não-internalização dos seus custos induz um nível de utilização acima daquele que ocorreria caso as externalidades fossem consideradas. Na ausência de externalidades, o custo privado marginal se iguala ao custo marginal social na produção. A produção, por exemplo, de um bem X em uma certa bacia teria uma função de custo privado Cmg(q) e os benefícios marginais sociais desta produção (lucro da produção e satisfação no consumo do bem produzido) seriam definidos na função Bmg(q). Observando o Gráfico 2, note que o equilíbrio de mercado será dado na quantidade Q* onde o custo marginal privado se iguala ao benefício marginal social. Na presença de externalidades, o custo social incorpora os danos ambientais representados por uma função Dmg(q) na qual o valor marginal dos danos cresce quando varia a quantidade produzida.9 Agregando Cmg(q) com Dmg(q) temos uma função a custo marginal social CSmg(q) e a quantidade de equilíbrio é identificada agora, no Gráfico 2, em Q** < Q*. Assim, ao internalizar os danos ambientais das externalidades, o próprio mercado ajusta as posições de equilíbrio. Note que o dano total agora, dada pela área abaixo de CSmg(q), é menor em Q** do que em Q*. Dessa forma, o preço ótimo da poluição (taxa pigouviana10), a ser cobrado pela emissão gerada por q, deveria ser dado pela seguinte expressão: C1p = ∂Dmg(q) / ∂q (5) Logo a cobrança em termos de eficiência econômica da expressão (5), determinaria uma quantidade de produção do bem X em Q** que, por sua vez, dada uma função de geração de poluição Rmg(q), que associa quantidade produzida de X à poluição gerada, identificaria um nível ótimo de poluição equivalente a Rmg(Q**), ou seja, um nível de poluição, alcançado pelo próprio mercado, para o qual os benefícios marginais da produção igualam-se aos custos ambientais da poluição. 9 Esta função de dano representa a relação dose-resposta entre o nível de atividade e o nível do dano. 10 Graças ao economista Pigou que foi o primeiro a formalizá-la nos anos 20. UTILIZAÇÃO DE CRITÉRIOS ECONÔMICOS PARA A VALORIZAÇÃO DA ÁGUA NO BRASIL 9 Entretanto, a carência de conhecimento sobre as relações de impactos entre atividade econômica e perda de qualidade ambiental e os valores monetários que as pessoas atribuem a essa perda, não permitem uma determinação precisa11 de Dmg(q) para cada tipo de poluição, e, conseqüentemente, de C1p. Observe que Dmg(q) tem de ser estimada para cada sub-bacia onde a capacidade de assimilação e concentração de carga de efluentes fosse diferente. Tal procedimento encerra um grande esforço institucional que, mesmo sendo factível no contexto brasileiro, pode resultar em custos administrativos superiores aos benefícios gerados e ainda gerar inúmeros casos de litígios por conta de contestações das inevitáveis imprecisões das medidas realizadas. Todavia, se existem informações precisas sobre Dmg(q), podemos substituir a função Bmg(q) por uma função de custos marginais de controle (CCmg(a)), onde a é o nível de controle. A função Dmg(q) torna-se uma função dos benefícios marginais do controle Dmg(a), que são os danos evitados no nível a de controle. 11 Observe que o termo preciso aqui se refere a uma relação funcional na qual se conhece estatisticamente a magnitude, e a variância desta, do impacto ambiental. Adjetivações, tais como, de alto, médio ou baixo impacto seriam ineficientes para um critério de diferenciação de preço, tanto quanto gerariam efeitos distributivos consideráveis ao penalizar imprecisamente os usuários. UTILIZAÇÃO DE CRITÉRIOS ECONÔMICOS PARA A VALORIZAÇÃO DA ÁGUA NO BRASIL 10 Nesse caso, a função Dmg(a) representa a função Dmg(q) com a inclinação trocada, pois essa agora varia com o nível de controle e não com a quantidade produzida. A solução desse problema é uma cobrança (C2p) no ponto a*, resultante da interseção das curvas CCmg e Dmg no Gráfico 3, que representa o nível ótimo de controle da poluição, tal como: C2p = Dmg(a*) = CCmg(a*) (6) Note que a* agora representa um quantidade socialmente ótima de controle, equivalente ao ótimo da poluição em Q* do Gráfico 2, na qual os benefícios marginais se igualam aos custos marginais do controle. No uso quantitativo de água analisado anteriormente, quando o consumo de uma bacia (ou de um usuário) afeta o de outra (o), identifica-se também um caso de externalidade negativa. Nesses casos, a função Dmg(q) é uma que reflete a perda de produção (ou de utilidade) da bacia (sub-bacia ou trecho) ou usuário afetado e não do gerador de externalidade. Essa perda de produção pode ser expressa pela expressão (1) (ou expressão (2) no caso de perda de utilidade), só que agora relativas aos usuários afetados. Fica evidente, dessa forma, a enorme dificuldade UTILIZAÇÃO DE CRITÉRIOS ECONÔMICOS PARA A VALORIZAÇÃO DA ÁGUA NO BRASIL 11 de determinação dessas funções, principalmente para situações que envolvem múltiplos usuários ou bacias. Entretanto, vale notar que se Bmg(q), Dmg(a), Dmg(q) e CCmg(a) não são convexas, ou seja, benefícios e custos não são, respectivamente, continuamente decrescentes ou crescentes, podem existir mais de um C1p. Nesses casos, a determinação do nível ótimo da cobrança pode também não ser possível. 1.2.2 - Custo-eficiência de controle Uma outra forma de resolver o nível da cobrança por externalidades é abdicando do objetivo de um ótimo da poluição valendo-se do custo ambiental, conforme anteriormente discutido, e atingir, opostamente, um nível desejado de poluição (padrão ambiental para o meio e não o de emissão por usuário) mediante minimização do custo social ou custo-eficiência, ou seja, ao invés de maximizar uma função de benefício social, minimiza-se uma função de custo social para derivar preços ótimos da poluição (ver Apêndice Técnico). Dessa forma, o objetivo é minimizar os custos totais de controle da sociedade sujeito a uma restrição de que o total de poluição, gerado por todos os usuários, não deve exceder um padrão ambiental previamente estabelecido. O Gráfico 4 identifica essa cobrança (C3p) para um certo padrão ambiental d* que não é considerado ótimo, mas será atingido pelo menor custo total de controle (agregando os custos individuais dos usuários), ou seja, menor custo social. Observe que, neste caso, estamos admitindo que a sociedade ao definir d* já confirmou que os custos ambientais acima deste nível de controle são extremamente significativos e excedem qualquer custo possível de controle. Tal pode ser justificado pelo risco e incerteza sobre os danos ambientais segundo o princípio da precaução.12 Embora tal solução não garanta a maior eficiência econômicacomo as taxas pigouvianas, C2p, pelo menos, assegura que o custo total de controle seja minimizado. 12 Precautionary principle [ver, por exemplo, Perrings et alii (1995)]. UTILIZAÇÃO DE CRITÉRIOS ECONÔMICOS PARA A VALORIZAÇÃO DA ÁGUA NO BRASIL 12 Essa limitação será resultante da reação dos usuários frente a C3p. Somente os usuários com custos de controle inferiores a C3p decidirão ampliar o nível de controle e essa ampliação ocorrerá primeiro naqueles com custos mais baixos. Sendo C3p determinada corretamente, a sociedade atingirá d* ao menor custo social (ver Apêndice Técnico). 1.2.3 - As limitações no caso da água Os problemas apresentados aqui para custo-eficiência não são particulares para o caso de poluição hídrica e são também aplicáveis à poluição atmosférica. Todavia, esses problemas serão aqui analisados no contexto de bacias hidrográficas. Note que o valor da cobrança requer uma simulação prévia com base em funções de custo e níveis de emissão dos usuários. Caso essas simulações não sejam precisas, há de se processar uma monitoria fina testando valores distintos e analisando os resultados ambientais. Na subseção seguinte serão discutidas as condições para que tal imprecisão gere o menor custo econômico. Antes, todavia, examinemos as causas dessas imprecisões. UTILIZAÇÃO DE CRITÉRIOS ECONÔMICOS PARA A VALORIZAÇÃO DA ÁGUA NO BRASIL 13 O formato da curva de controle: a determinação de C3p não requer o conhecimento da função de dano e somente exige a estimação de CCmg(a) para que, com base nas simulações, o valor de C3p seja determinado, ou seja, depende da inclinação da curva de controle dada pela elasticidade-preço da poluição. Quanto maior essa elasticidade menor poderá ser o preço da poluição. Tal seria uma regra similar à regra de preços públicos. Mas, a identificação de uma função de custo de controle não é livre de problemas empíricos. Cada usuário exibe uma tecnologia e uma escala de controle distintas que podem refletir uma solução particular de controle e, portanto, a estimação de CCmg(a) pode não ser tão trivial. Adicionalmente, CCmg(a) também pode ser não-convexa, ou seja, custos não são continuamente crescentes e, assim, existirem mais de um C3p. O processo de difusão da poluição: outro problema mais sério ainda é o processo de difusão da poluição. Tal como analisado, a carga poluidora de um usuário afeta distintamente o padrão ambiental e, mais ainda, essa dispersão pode ocorrer em várias bacias (sub-bacias ou trechos) e, assim, transferindo poluição para outros usuários.13 O valor da cobrança, neste caso de transferência de poluição (C4p), seria então modificado para: C4pi = dij C3pj (7) onde d representa a matriz de coeficientes de transferência de poluição do usuário i para a bacia, sub-bacia ou trecho j (ver Apêndice Técnico). Tal como para a expressão (4) da cobrança ótima para financiamento considerando interligações entre bacias, mapear essa matriz de impactos requer amplo conhecimento do processo de difusão que nem sempre é conhecido ou preciso.14 Se dij é não-linear, isto é, as contribuições das emissões de cada usuário de uma bacia para o padrão de cada bacia são afetadas pelas emissões de outros usuários em outras bacias, a determinação de C4pi será mais complexa e variável com problemas significativos de alocação devido à informação imperfeita e incerteza. Aliás, a parte os problemas com CCmg(a), temos também de admitir que esses problemas de informação imperfeita e incerteza afetam a tomada de decisão do usuário mesmo quando C4pi é uniforme no tempo e que tais questões são de difícil modelagem para um exercício de simulação. Objetivo de receita versus qualidade ambiental: o objetivo de custo-eficiência tem sido o principal argumento para a introdução de instrumentos econômicos (IEs) na gestão ambiental onde prevalecem os instrumentos de comando e controle (ICC). 13 Note que tais problemas se aplicam tanto à poluição hídrica quanto a atmosférica. 14 Kelman (1996) propõe uma cobrança para água no Brasil com base em fórmula muito semelhante. Entretanto, não foi possível identificar no referido texto a base teórica e as justificativas econômicas e também de citações de referências desta formulação desenvolvida há muitos anos em livros-textos de economia ambiental. Ver Apêndice Técnico onde esta fórmula é formalizado com base nesta literatura. UTILIZAÇÃO DE CRITÉRIOS ECONÔMICOS PARA A VALORIZAÇÃO DA ÁGUA NO BRASIL 14 Repare que a adoção de um típico ICC seria um padrão de emissão por usuário conjugado com um padrão ambiental. Considere um padrão de emissão comum uniforme para todos os usuários que gerasse, assumindo total cumprimento, o mesmo d* que a aplicação de C3p. Nesse caso, no ICC os usuários com custos baixos de controle não estariam incentivados para controlar abaixo deste padrão de emissão e, portanto, o custo total de controle tenderia a ser maior do que com C3p. Além desta capacidade de reduzir o custo social de controle, IEs de cunho fiscal têm sido também justificados por gerarem receitas. Na verdade tal objetivo fiscal, conforme será analisado nas próximas seções, tem sido a principal razão da implementação de sistemas de cobrança de água. Dessa forma, mesmo cobranças que não estão objetivando um padrão ambiental específico, mas sim um nível desejado de receita, terão que utilizar o critério de preço público na qual a cobrança terá que ser inversamente proporcional à elasticidade-preço da curva de controle. 1.3 - Criação de Mercado de Direitos da Água Nas seções anteriores procurou-se demonstrar que a precificação da água não é trivial quando se deseja introduzir critérios econômicos de eficiência para a sua racionalização, conforme explicitam os diplomas legais do NGRH. Tal realidade resultou que nas experiências internacionais, discutidas na Seção 3, observamos que a determinação do valor da cobrança é geralmente resolvida a níveis subótimos. A prática da cobrança, conforme será analisado, muitas vezes não gera a receita necessária nem cria incentivos para o uso de água de maior retorno para a sociedade. Tendo em vista tal realidade, será importante, antes de analisarmos as experiências internacionais, que se discuta uma forma, a princípio mais simples e objetiva, de revelar o valor econômico da água: direitos de uso comercializáveis, isto é, a criação de um mercado de água por troca de direitos de uso. Note que é a ausência de (ou dificuldade de assinalar) direitos completos de propriedade dos recursos ambientais que torna seu uso subótimo (ou menos eficiente). Caso a especificação dos direitos completos de uso da água seja possível, uma negociação entre os usuários poderia ocorrer de forma que os usos de maior retorno (mais eficiente) seriam priorizados, ou seja, as trocas de direitos no mercado induziriam que os usuários de maior benefício de uso (ou menor custo) fossem aqueles que pagariam mais por estes direitos. Os termos da negociação seriam com base nos custos e benefícios percebidos pelas partes. A discussão que se segue terá o objetivo de analisar a utilização de mercados de direitos de uso de água (MDU) no qual a titularidade continua pública, mas permite-se que o direito de uso por quantidade, dado pela outorga, seja transacionado entre usuários. Outra opção seria o mercado de certificados de poluição (MCP) que estabelece um limite de descarga de poluentes por usuários e autoriza que os usuários transacionem entre si partes dessa permissão de carga poluente. Desta feita, pretende-se resolver mediante criação de mercado alguns UTILIZAÇÃO DE CRITÉRIOS ECONÔMICOS PARA A VALORIZAÇÃO DA ÁGUA NO BRASIL 15 dos problemas com precificação apontados anteriormente e qualificar essas opções como instrumentos disponíveis para aNGRH. Para que um mercado, entretanto, realize uma alocação ótima será necessário atentar para inúmeros condicionantes de propriedade e competitividade, ou seja, requer direitos de propriedade bem definidos, um grande número de participantes comprando e vendendo com diferentes custos e benefícios e fraca interdependência de mercado. Por outro lado, um mercado, assim, institucionalizado, diversificado e atomizado requer um apoio institucional e legal mais sofisticado. Portanto, conforme discutiremos adiante, esses instrumentos apresentam alguns problemas que devem ser identificados para avaliar as situações propícias para sua aplicação. 1.3.1 - O mercado de direitos de uso A necessidade de utilizar instrumentos de preços para o uso quantitativo da água (consumo de água bruta), conforme analisado anteriormente, é apenas uma alternativa às dificuldades de administrar um mercado de direitos de uso da água. Essas dificuldades são predominantemente de natureza cultural e se reflete na ordem jurídica. Sendo um bem vital para a vida humana, a maioria dos países tem considerado a água como um bem de propriedade pública. O direito privado da água é negado para evitar uma apropriação indevida do recurso por alguns usuários. Assim, o Estado passa a ser o agente alocativo da água. No caso brasileiro, a titularidade da água sempre foi pública, isto é, do poder público, e o NGRH mantém essa forma de propriedade. Assim, o poder público outorga direitos de uso aos usuários. Os critérios dessa alocação são claros no sentido de privilegiar o uso humano. Todavia, nos casos de escassez não existem critérios mais objetivos para essa alocação que possam assegurar que a titularidade pública seja mais eficiente ou equânime que um mercado privado de água. Não se pretende, contudo, avançar aqui nessas questões político-jurídicas da titularidade da água. No caso do uso quantitativo da água, as transações no MDU ocorreriam de forma semelhante a qualquer outro mercado de bem. Suponha que o poder público realize leilões anuais de outorgas entre os diversos usuários da bacia. Nesses casos, o usuário somente estaria disposto a pagar por tal outorga o valor adicional que ela gera na sua produção ou utilidade pessoal. Assim, o valor de transação da água para cada usuário seria equivalente a C1q, das expressões (1) e (2), que representariam a produtividade ou utilidade marginal de X do usuário. Note que com o MDU elimina-se o caronista e resolve-se o problema da determinação do preço ótimo por indivíduo. Entretanto, o consumo ótimo referente ao ponto Q do Gráfico 1 somente será identificado caso o leilão seja realizado de tal forma que o poder concedente, ao observar todas as ofertas por quantidades de cada usuário, pudesse determinar o ponto Q, tendo em vista sua função de custo marginal de gestão e expansão (Cmg(q)). Assim, conhecendo UTILIZAÇÃO DE CRITÉRIOS ECONÔMICOS PARA A VALORIZAÇÃO DA ÁGUA NO BRASIL 16 Cmg(q) o poder concedente realizaria as concessões de outorga até o ponto ótimo Q. Suponha agora uma situação de escassez na qual estas outorgas sejam parcial ou integralmente transacionadas entre os usuários. Por exemplo, o usuário A detém o direito de uso de uma quantidade X de água que lhe gera uma produção marginal equivalente a ∆P. Portanto, o usuário A estaria assim disposto a vender essa quantidade a qualquer usuário por um valor no mínimo igual a ∆P. O usuário comprador seria aquele em quem ∆P é um valor abaixo do valor adicional de produção gerado por X, ou seja, novamente os valores de transação seriam orientados pelas expressões (1) e (2) e o preço de equilíbrio seria aquele referente ao ponto Q* do Gráfico 1. Caso as transações entre usuários fossem também permitidas entre bacias, sub- bacias ou trechos, os preços e quantidades ótimos seriam revelados considerando as externalidades que foram anteriormente mencionadas quando uma bacia (sub- bacia ou trecho) dispõe de água de outra. Para tal, cada usuário teria que ser outorgado nas diversas bacias que seu consumo afeta de acordo com o efeito do seu consumo na disponibilidade de cada bacia. Note, entretanto, que nesse cenário de comercialização, não está resolvido o problema de interligação da expressão (4) de precificação. Sem o conhecimento prévio de qij não é possível definir os direitos por bacia e, portanto, criar um mercado. Caso qij seja explicitado, um MDU entre bacias poderia ser utilizado em lugar da precificação da expressão (4). Para tal, mercados spot e futuros poderiam ser adotados para realizar as transações. A vantagem do MDU seria que o próprio mercado definiria os valores de transação da água e, assim, não haveria necessidade de calcular um nível de cobrança e, portanto, a imprecisão do processo alocativo seria limitada ao dimensionamento de qij. Na situação de leilões administrados e com transações entre usuários, atinge-se o consumo ótimo e gera-se uma receita anual suficiente para a gestão e expansão do sistema. Adicionalmente, alocam-se eficientemente os recursos em situações de racionamento e de expansão de consumo. Novos usuários poderiam adquirir direitos de outorga e as bacias com expansão de consumo também poderiam efetuar transações com outras bacias. Conforme se mencionou no início desta subseção, tal sistema de MDU implica uma completa alteração da distribuição das outorgas atualmente concedidas e, portanto, geraria problemas políticos e jurídicos provavelmente intransponíveis. Um mercado, todavia, somente sucederá se esses direitos de uso forem realmente assegurados de forma que quem vende possa vir a comprar mais tarde caso seja necessário. Caso contrário a falta de credibilidade restringirá as potenciais transações. Para tanto, não se faz possível imaginar, no caso brasileiro, que estes direitos tornem-se comercializáveis de forma repentina. Além do mais, existem pelo menos dois problemas técnicos a serem considerados, tais como: UTILIZAÇÃO DE CRITÉRIOS ECONÔMICOS PARA A VALORIZAÇÃO DA ÁGUA NO BRASIL 17 a) informação imperfeita: o poder público não estaria perfeitamente informado sobre disponibilidade hídrica, os efeitos do consumo de cada bacia em outra bacia e os custos marginais de gestão e expansão nas diversas bacias. Adicionalmente, nem todos os usuários estariam com informação precisa sobre a sua produtividade marginal ou disposição a pagar. Assim, os custos de transação seriam altamente elevados e o consumo de equilíbrio seria subótimo. Embora tal imperfeição possa ser amenizada valendo-se de mercados futuros, a administração de tal sistema é por demais complexa para ser implementada de forma abrangente para um país como o Brasil com um número significativo e diverso de bacias e usuários; e b) poder de mercado: os usuários ou bacias com poder concentrado de mercado tenderiam a manipular a compra de direitos de outorgas para a criação de barreiras à entrada para concorrentes (ou competição regional) ou ainda para realizar arbitragens de preço visando a lucros anormais.15 Embora tal possibilidade possa ser controlada por limites de outorga por usuário ou restrição de transferências, mais uma vez a administração do sistema seria mais complexa, pois requereria que o poder público conhecesse as demandas reais dos usuários, caso contrário os ganhos de eficiência esperados seriam reduzidos.16 Todavia, parte deste sistema MDU pode ser aplicado, sem a incidência grave destes problemas político-jurídicos e técnicos, quando da situação de racionamento que é um dos principais problemas alocativos não resolvidos pela precificação. Neste cenário as outorgas são definidas nos critérios correntes17 e adota-se a precificação para financiamento da bacia, mas essas outorgas são liberadas para comercialização em situações de racionamento. No racionamento, o poder concedente tem que reduzir o volume de outorga no percentual adequado à magnitude do racionamento. Uma redução uniforme entreusuários resultaria numa alocação subótima dado que o racionamento não privilegiaria os usuários de maior produtividade ou utilidade marginal da água. Para evitar tal distorção, transações de MDU poderiam ocorrer em mercados spot em duas formas: a) com transação entre usuários ou b) leilões administrados pelo poder concedente. Nas transações entre usuários, o poder concedente reduz a outorga de todos os usuários no mesmo percentual e estes são livres para “alugar” parte da sua outorga restante ao maior valor de oferta. Note que o preço de equilíbrio deste aluguel seria equivalente a produtividade ou utilidade marginal do usuário segundo as expressões (1) e (2). Entretanto, se o racionamento cresce de forma contínua e as 15 No caso de usuário com poder monopsônico, a compra de direitos seria abaixo do necessário para forçar a queda do seu preço. Já no caso do monopolista haveria uma compra acima das necessidades para gerar uma elevação do preço. Essas possibilidades especulativas são determinadas pelas curvas de custo de controle que influenciarão, por sua vez, a demanda por tais direitos. 16 Este é um caso de assimetria de informação tipo principal agente. 17 Observe que, independente do critério de alocação de outorgas, sempre haverá um problema distributivo. UTILIZAÇÃO DE CRITÉRIOS ECONÔMICOS PARA A VALORIZAÇÃO DA ÁGUA NO BRASIL 18 alocações entre usuários têm de ser realizadas de imediato, a identificação de negócios entre os usuários pode apresentar altos custos de transação que reduziriam sua capacidade de alocação ótima. Nas transações administradas por leilões, o poder concedente anuncia que o racionamento será alocado por usuário de acordo com o valor que este está disposto a pagar para não ser racionado. Aqueles com menor disposição a pagar serão os primeiros atingidos. Ao contrário de a informação de preços revelar-se no mercado, todos os usuários revelam seus preços ao poder concedente por meio de um leilão18 que ordena o racionamento. Nesse caso, a verdadeira disposição a pagar sugeriria também para indicar uma alocação ótima da escassez de água sem, contudo, exigir altos custos de transação. 1.3.2 - O mercado de certificados de poluição Agora vamos considerar o caso da poluição onde o problema amplia-se com a presença de externalidades. Os direitos assim são assegurados não só para o uso da água para diluição, mas também pelo direito completo de compensação às externalidades, ou seja, a parte afetada negativamente tem legalmente assegurada uma compensação que equivale às suas perdas por conta das externalidades negativas. Por exemplo, a poluição do usuário A gera para o usuário firma B um custo equivalente a uma perda de produção ∆Q. Assim, se a firma B tem direitos legais de compensação, estaria disposta a aceitar o montante ∆Q para permitir que A continuasse a poluir. Por outro lado, se o direito de compensação não existe ou o direito de poluir é assegurado ao usuário A, restaria a B pagar até ∆Q ao usuário A para cessar essas externalidades. Quando tais negociações são possíveis, os preços da externalidade emergem e norteiam uma alocação eficiente dos recursos quando identificam o ótimo da poluição equivalente a Q** no Gráfico 2, independentemente de quem tem os direitos de propriedade assegurados. Esse processo é denominado solução de mercado coasiana, graças ao trabalho seminal desenvolvido por R. Coase,19 e tem sido objeto da escola dos economistas institucionalistas ou economia das leis. Essa corrente estuda o papel das instituições na definição dos direitos de propriedade e suas repercussões na alocação eficiente dos recursos. Nesses casos, taxas pigouvianas não seriam necessárias, pois o próprio mercado atingiria soluções ótimas sem uso de instrumentos fiscais, ou seja, a curva de compensações reflete uma curva de danos ambientais e, portanto, as negociações 18 Este leilão poderia ocorrer pela internet de forma simultânea. Kelman (1997) sugere que na concessão da outorga o usuário já informe sua disposição a pagar pela água racionada. Todavia, dado o grau de incerteza sobre a ocorrência de racionamento na época da outorga, tal procedimento parece não oferecer nenhum ganho alocativo. 19 Prêmio Nobel de Economia em 1992. Ver texto seminal em Coase (1960). UTILIZAÇÃO DE CRITÉRIOS ECONÔMICOS PARA A VALORIZAÇÃO DA ÁGUA NO BRASIL 19 entre as partes revelariam os valores dos danos marginais da poluição da expressão (5) da taxa pigouviana. Todavia, soluções coasianas não estão livres de problemas de eficiência. Da mesma forma que o discutido para o MDU, estruturas imperfeitas de mercado podem gerar compensações não-ótimas quando existe um poder de mercado sob controle de alguns poucos usuários. Segundo, embora o ponto de equilíbrio coasiano independa também de “a quem” os direitos são assegurados, os efeitos distributivos (pagamento ou compensações) trocam de sinal em cada caso. Terceiro, quando pagamentos ou compensações são realizados alteram-se as restrições orçamentárias originais dos usuários e, conseqüentemente, determinam novos pontos de equilíbrio distintos. Por último, a magnitude dos custos de transação para impor esses direitos reduzem também o pagamento ou compensação líquida e, portanto, resultam em pontos de equilíbrio não-ótimos. Essa última restrição é de suma importância para a questão dos recursos ambientais. Devido ao caráter difuso do problema ambiental, observa-se um número elevado de partes afetadas e geradoras de externalidades. É difícil avaliar não só a causalidade entre cada fonte de degradação com o efeito ambiental geral, mas também o valor econômico dos recursos ambientais que não se resume somente a valores de uso, mas inclui igualmente valores de não-uso que afetam a sociedade como um todo. Assim, soluções coasianas acabam gerando altos custos de transação que podem resultar em pontos de equilíbrio muito próximos à total degradação ou exaustão. A solução do tipo coasiana seria, contudo, a base das compensações judiciais em relação a danos ambientais. As dificuldades institucionais de julgar o mérito, definir o valor e impor as sanções têm encerrado custos de transação elevados que não permitiram que tal prática fosse satisfatória em termos de eficiência econômica. Se o ótimo da poluição não é viável pelas compensações, é possível que a criação de um mercado de certificados de poluição (MCP) seja a forma mais eficiente de atingir um nível de poluição previamente estipulado, conforme se pretende com a cobrança C2p da expressão (6). Tal como no Gráfico 4, ao invés de um preço c* da poluição assinalado por um poder concedente, os usuários negociariam os d* certificados de poluição. É possível demonstrar (ver Anexo 6) que o preço de equilíbrio destes certificados equivaleria ao preço da poluição c* de acordo com a expressão (6). Todavia, no caso de um processo de difusão de poluição não-linear, conforme discutido anteriormente para a cobrança, o montante de certificados teria que ser revisto a cada rodada de negociações ou associá-lo a uma cobrança pelas externalidades remanescentes. Novamente, a eficiência alocativa do MCP dependerá das condições competitivas desse mercado, tal como observou-se para o MDU e o mercado coasiano. UTILIZAÇÃO DE CRITÉRIOS ECONÔMICOS PARA A VALORIZAÇÃO DA ÁGUA NO BRASIL 20 1.4 - Conclusões Analisando as opções de sistema de cobrança anteriormente analisadas, o Quadro 1 resume algumas características que as diferenciam. Quadro 1 Comparação de Sistemas de Cobrança Objetivo Dificuldades Nível Ótimo de Cobrança para Financiamento Capturar verdadeira disposição a pagar dos usuários. Nível Ótimo de Cobrança para Equilíbrio Orçamentário Estimar custo marginal de expansão. Nível Ótimo de Poluição Determinarvalores para cada usuário com base nos danos da sua externalidade. Custo-Eficiência de Controle Determinar valores para cada usuário com base na sua contribuição a perda da qualidade ambiental. O que finalmente nos interessa apreender dessa análise é que na ausência de preços adequados para os recursos naturais a alocação eficiente destes recursos não pode ser tentada. Conforme ilustra o Gráfico 5, onde CCmg é a curva de custo de controle marginal privado da poluição, quando o nível de cobrança (ou de custo de um certificado de poluição) é t, o nível de controle da firma 1, a1, é maior do que o da firma 2, a2, que por sua vez é maior do que o da firma 3, a3. Quanto maior for t, maior será o controle agregado das firmas, pois o preço maior de cobrança induzirá o controle em firmas onde o custo de controle é também maior. Assumindo custos de transação nulos e perfeita racionalidade dos agentes econômicos, as firmas somente pagarão sobre uma unidade de poluição se o seu custo de controle marginal exceder o valor cobrado sobre ela. Observe no Gráfico 5 que, se a2 é imposto a todas as firmas como um típico instrumento de controle, a firma 1 será obrigada a controlar mais a um custo marginal maior e a firma 3 a controlar menos a um custo marginal menor. Logo o custo total agregado de controle em t será menor do que aquele resultante de uma imposição geral de a2. Note também que t poderá ser tanto uma taxa pigouviana, igualando custo social da poluição com custos sociais de seu controle, quanto uma taxa que induz de tal forma o nível de controle das firmas que a poluição total agregada não excede um certo nível desejado socialmente. Qualquer que seja t, esta resultará em um certo nível de receita desde que o preço da cobrança seja inferior ao maior custo marginal de controle. Embora a UTILIZAÇÃO DE CRITÉRIOS ECONÔMICOS PARA A VALORIZAÇÃO DA ÁGUA NO BRASIL 21 magnitude da receita dependa do nível de cobrança, os custos administrativos de implementação dessa cobrança — custos econômicos de transação e custos políticos — devem ser cuidadosamente avaliados para que estes compensem a geração de receita resultante. Gráfico 5 Controle Ambiental e Preço da Poluição O Quadro 2 ilustra o amplo espectro de instrumentos que poderia estar disponível, e todos de forma explícita ou implícita, têm algum efeito de incentivo. Mesmo os tradicionais regulamentos do tipo comando e controle, como, por exemplo, multas, criam um efeito presumido de incentivo, porque o poluidor seria compelido a sujeitar-se aos regulamentos a fim de evitar as sanções. A distribuição de direitos comercializáveis de forma gratuita20 significa, entretanto, uma transferência de renda para os usuários beneficiados. Note no Gráfico 4 que com o leilão de d* certificados, o custo total da firma (custo da compra de certificados mais custo de controle) é a área sombreada abaixo da linha de preço mais a área abaixo da curva de custo de controle (Ccmg) a partir de d*. Já quando a distribuição de d* certificados é gratuita, o custo total das firmas seria somente parte dessa área a partir de d* que representa o custo de controle. Logo existe uma transferência direta de renda aos usuários equivalente à área sombreada (área abaixo da linha de preço de 0 a d*) do Gráfico 4. Note que a receita da cobrança seria exatamente essa área equivalente aos gastos com compra de certificados. 20 Por exemplo, proporcional ao atual nível de consumo ou descarga (critério grandfather). UTILIZAÇÃO DE CRITÉRIOS ECONÔMICOS PARA A VALORIZAÇÃO DA ÁGUA NO BRASIL 22 Quadro 2 Mecanismos de Gestão Ambiental que Incorporam Incentivos Econômicos <-ORIENTADOS PARA O CONTROLE-> <-ORIENTADOS PARA O MERCADO-> <-ORIENTADOS PARA O LITÍGIO-> Regulamentos e Sanções Taxas, Impostos e Cobranças Criação de Mercado Intervenção de Demanda Final Legislação da Responsabilização Exemplos Específicos de Aplicações Urbanas •Padrões de emissões •Licenciamento para atividades econômicas e relatório de impacto ambiental •Restrições ao uso do solo •Normas sobre o impacto da construção de estradas, oleodutos, portos ou redes de comunicações •Diretrizes ambientais para o traçado das vias urbanas •Multas sobre vazamentos em instalações de armazenagem situadas no porto ou em terra •Proibições aplicadas a substâncias consideradas inaceitáveis para os serviços de coleta de resíduos sólidos •Quotas de uso de água • Cobrança pelo uso ou degradação de um recurso natural •Tributos convencionais fixados sob ótica ambiental •Royalties e compensação financeira para a exploração de recursos naturais •Bônus de desempenho para padrões de construção •Impostos afetando as opções de transporte intermodal •Impostos para estimular a reutilização ou reciclagem de materiais • Cobrança por disposição de resíduos sólidos em aterro sanitário •Licenças comercializáveis para os direitos de captação de água e para emissões poluidoras no ar e na água •Desapropriação para construção incluindo “valores ambientais” •Direitos de propriedade ligados aos recursos potencialmente impactados pelo desenvolvimento urbano (florestas, solo, pesca artesanal) •Sistemas de depósito- reembolso para resíduos sólidos de risco • Rotulação de produtos de consumo referente a substâncias problemáticas (por exemplo, fosfatos em detergentes) •Educação para a reciclagem e a reutilização •Legislação sobre divulgação, exigindo que os fabricantes publiquem a geração de resíduos sólidos, líquidos e tóxicos •Lista negra dos poluidores • Compensação de danos •Responsabilização legal por negligência dos gerentes de empresa e das autoridades ambientais •Bônus de desempenho de longo prazo para riscos possíveis ou incertos na construção de infra- estrutura •Exigências de “Impacto Líquido Zero” para o traçado de rodovias, oleodutos ou direitos de passagem de serviços públicos, e passagens sobre água Fonte: Seroa da Motta, Ruitenbeek e Huber (1996). Vale, então, aqui ressaltar cinco pontos importantes, geralmente erroneamente interpretados nesse tema: UTILIZAÇÃO DE CRITÉRIOS ECONÔMICOS PARA A VALORIZAÇÃO DA ÁGUA NO BRASIL 23 a) A receita de cobrança será sempre positiva desde que seu valor não seja superior ao menor custo de controle percebido pelo usuário.21 Neste custo de controle deve-se considerar também, além dos custos de investimentos e operação, os custos de transação dos usuários (custo de administração e informação). Sistemas muito complexos com altos custos de transação podem reduzir os ganhos de eficiência desejados com o sistema de cobrança. Nesses casos de sistemas complexos, a receita líquida gerada pode até ser negativa se consideramos os custos de gestão incorridos para administrar o sistema. b) A criação de mercados pode gerar receitas cujo montante é igual ao do sistema de cobrança, desde que os direitos sejam vendidos e não cedidos gratuitamente. c) A receita da venda de direitos ou da cobrança não representa um pagamento dobrado dos usuários, já que com tais mecanismos de mercado reduz-se o custo social de controle de igual monta. d) No caso de certificados, seria possível, então, orientar uma política de água preferencial a um setor pela simples alocação favorável a ele, em vez de criar subsídios cruzados no sistema de cobranças. Note que com o subsídio cruzado por cobrança, a alocação seria subótima enquanto na distribuição de direitos preferenciais o nível ótimo seria restabelecido valendo-se de transações no mercado. e) Para curvas de benefício (Gráfico 1) ou de danos (Gráfico 2) pouco inclinadas (altamente preço-elástica), o sistema de criação de mercado seria mais aconselhável porque uma imprecisão no valor da cobrança geraria perdas consideráveis, ou seja, num cenáriode informação imperfeita, ajustar os valores da cobrança via monitoria fina, onde os valores seriam calibrados vis-à-vis as respostas de mercado, poderia gerar custos econômicos bastante significativos. Embora as opções aumentem a eficiência alocativa do recurso água, existem, pelo menos, dois problemas comuns que podem impedir tais benefícios alocativos. Um seria um problema técnico relativo ao conhecimento das interligações entre bacias e do processo de difusão da poluição, amplamente analisado anteriormente. É necessário conhecer os impactos de consumo de água e o processo de difusão de poluentes de um usuário para evitar a transferência de externalidades. Esse conhecimento talvez seja a maior contribuição de um Plano Nacional (Estadual) de Recursos Hídricos. Neste aspecto uma gestão totalmente descentralizada não seria benéfica e o Conselho Nacional (Estadual) de Recursos Hídricos terá que atuar para mitigar tais externalidades. O outro problema seria de ordem legal relativo à existência de um padrão de emissão por usuário. Tal padrão é uma limitação aos ganhos de eficiência no uso da água por qualidade porque impede a redução dos custos totais de controle. 21 Ou seja, a água é um bem normal. UTILIZAÇÃO DE CRITÉRIOS ECONÔMICOS PARA A VALORIZAÇÃO DA ÁGUA NO BRASIL 24 Caso a cobrança seja permitida apenas sobre as emissões legalmente definidas, o ganho alocativo da redução dos níveis correntes para os níveis legais seria perdido. Se a cobrança incidir sobre emissões acima dos níveis legais, embora seja mais eficiente, tal procedimento “legalizaria” essas emissões excedentes. Dessa forma, a abolição desses padrões poderia ser permitida em bacias em que um sistema de cobrança ou de criação de mercado fosse estabelecido. Entretanto, tal alteração teria que ser objeto de apreciação do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) dado que se trata de um requerimento legal de âmbito nacional. A grande vantagem do sistema de criação de mercado sobre o de cobrança é a possibilidade de os usuários nas suas transações revelarem suas verdadeiras disposições a pagar e seus verdadeiros custos de controle. Com isso, o poder concedente elimina uma fonte de informação e reduz seu grau de imprecisão na aplicação dos instrumentos econômicos. Ademais, para que se realize uma alocação ótima por criação de mercado, é preciso que exista um grande número de participantes comprando e vendendo com diferentes custos e benefícios e fraca interdependência. Nessas condições de diversificação e atomização requer um apoio institucional e legal mais sofisticado que evite altos custos de transação entre usuários e altos custos administrativos para o poder concedente. Um mercado, todavia, somente sucederá se esses direitos de uso forem realmente assegurados de forma que quem vende possa vir a comprar mais tarde caso seja necessário e quem compra possa garantir os benefícios da sua compra. Caso contrário a falta de credibilidade restringirá as potenciais transações. Para tanto, não se faz possível imaginar no caso brasileiro que tais direitos tornem-se comercializáveis de forma repentina e, portanto, apenas algumas flexibilizações para períodos curtos podem ser contempladas, como seria o caso de leilões em épocas de racionamento de água. À exceção disso, uma regulamentação clara e inequívoca na regulamentação da Lei 9.433 de recursos hídricos seria um primeiro passo para a adoção desta vantajosa opção de instrumento de gestão. Tendo em vista a complexidade de uma aplicação plena dos critérios econômicos, sugerimos três princípios básicos da cobrança: a) preços ótimos para geração de receita devem obedecer à regra de preço público em que preços são inversamente proporcionais às elasticidades-preço do usuário; b) preços ótimos para consecução de um objetivo ambiental têm de estar correlacionados com o nível de externalidades gerados pelos usuários em relação ao nível total de externalidade desejado; e c) a criação de mercados de direitos de uso tem que observar as condições existentes de competividade. UTILIZAÇÃO DE CRITÉRIOS ECONÔMICOS PARA A VALORIZAÇÃO DA ÁGUA NO BRASIL 25 2 - A EXPERIÊNCIA INTERNACIONAL Embora a geração de receita seja uma restrição na provisão de um bem público, observe que os critérios econômicos analisados objetivam introduzir sinais de preço aos usuários da água de forma que estes ajustem seus níveis individuais de uso a patamares de maior eficiência econômica, ou seja, visem alterar o padrão de uso da água. Os sistemas de cobrança de água, até então implementados, não têm aplicado plenamente esses critérios econômicos de otimização. De forma geral, essas iniciativas têm sido orientadas para a geração de receitas, para custear parcialmente as obras de provisão ou expansão dos serviços da água, sem qualquer critério explícito de maximização de benefícios ou minimização de custos. As experiências de criação de mercado de água, embora escassas, também acabam sendo implementadas com certo distanciamento de preceitos econômicos. Algumas dessas iniciativas de cobrança e criação de mercado serão aqui analisadas. As experiências selecionadas são aquelas cuja natureza e resultados nos pareceram relevantes para o caso brasileiro.22 Os países selecionados para o sistema de cobrança são França, Holanda, Alemanha, México e Colômbia e para a criação de mercado, os Estados Unidos e Chile. Tais experiências serão analisadas relativamente aos seguintes aspectos: • objetivos econômicos e ambientais; • arranjo institucional; • critérios adotados; e • resultados.23 A análise dos critérios adotados será associada à discussão dos critérios econômicos da cobrança discutidos na Seção 1. Dessa forma, sugerimos ao leitor recorrer a ela nos casos de não-entendimento dos termos e conceitos referidos. 22 Descrições sumárias de outras experiências de instrumentos econômicos na área ambiental podem ser encontradas em Seroa da Motta, Ruitenbeek e Huber (1996) e Mendes e Seroa da Motta (1997a). 23 As taxas de câmbio utilizadas nesta subseção em relação ao dólar americano foram: franco: 5,71; guilder: 1,97; e marco: 1,80. Outras cotações em dólar já constavam no texto de referência. UTILIZAÇÃO DE CRITÉRIOS ECONÔMICOS PARA A VALORIZAÇÃO DA ÁGUA NO BRASIL 26 2.1 - A Experiência Francesa24 A experiência francesa com a gestão de bacias hidrográficas foi a referência principal para o NGRH. Percebendo que os recursos hídricos se deterioravam com a crescente industrialização e urbanização do pós-guerra, o governo francês decide promover uma reestruturação do seu sistema de gestão de recursos hídricos. Essa mudança se inicia em 1964 com a Lei da Água que, entre outras coisas, cria os comitês/agências de bacia e a cobrança pelo uso da água (redevances). A operação do novo sistema começa em 1968 após a regulamentação da lei. O país foi dividido em seis grandes bacias com seus respectivos comitês e agências. Os comitês são compostos de 2/5 de representantes eleitos pelas comunidades, 2/5 de usuários e 1/5 de representantes de governo. O número total de representantes varia entre 80 e 110 membros [ver Kaczmarec (1996)]. Os presidentes das agências são nomeados pelo Ministério do Meio Ambiente, mas seus diretores são apontados pelo Comitê por um conselho de representantes que procura refletir a mesma estrutura de representação dos comitês. Com tal estrutura de poder, a gestão de bacia na França é totalmente descentralizada e participativa. Como a regionalização e a representação desses comitês e agências são definidas em lei, a unidade de bacia na França torna-se, além de uma unidade ambiental, também uma unidade política equivalente a uma unidade federativa, ou seja, a política de água é definidade forma integrada e hierárquica para uma grande bacia a que cada sub-bacia está interligada. O sistema de cobrança teve implementação gradual e enfrentou diversos problemas políticos. A cobrança por quantidade, por exemplo, até hoje não foi implantada em algumas sub-bacias e a maioria dos irrigantes não participa do sistema. A cobrança por poluição iniciou-se com matéria orgânica e sólidos em suspensão, enquanto salinidade e toxicidade foram introduzidas, respectivamente, em 1973 e 1974; nitrogênio e fósforo em 1982; hidrocarbonetos e outros inorgânicos em 1992. As receitas geradas com a cobrança são aplicadas nas bacias na forma de gastos com gestão; estudos e pesquisa; investimentos de interesse comum e empréstimos aos usuários. No ano de 1996 geraram um total de US$ 1,8 bilhão [ver Cadiou e Tien Duc (1996)]. Com essa receita os comitês conseguem aportar 40% dos investimentos das bacias. Os outros 60% são majoritariamente cobertos por dotações orçamentárias do governo central. Os investimentos são definidos qüinqüenalmente. No período 24 Quando não-referenciada especificamente, esta subseção está baseada em informações obtidas em Cadiou e Tien Duc (1995), Kaczmarec (1996) e Chapuy (1996). Note que as novas diretrizes ambientais da Comunidade Européia já começam a afetar as decisões nacionais, mas não foi possível avaliar tais efeitos neste estudo. UTILIZAÇÃO DE CRITÉRIOS ECONÔMICOS PARA A VALORIZAÇÃO DA ÁGUA NO BRASIL 27 1992/96, foram de US$ 15 bilhões, montante igual ao total gasto de 1982/91, ou seja, gastou-se e arrecadou-se nos últimos cinco anos, o mesmo que nos 10 anos anteriores [ver Kaczmarec (1996)]. Os comitês/agências são responsáveis pela determinação do valor da cobrança de acordo com uma estrutura da cobrança fixada por lei. De maneira simplificada, esta seria a estrutura: VAQ = QU x CB x KU x KS onde: VAQ = valor anual a ser pago pelo usuário; QU = quantidade de água consumida ou poluição gerada; CB = valor da cobrança unitária; KU = coeficiente setorial; e KS = coeficiente ambiental. Estas variáveis assumem diversas formas em cada caso. VAQ é calculado separadamente para quantidade e qualidade, mas cobrados juntos. VAQ para a poluição pode ser deduzido de uma proporção dos gastos que os usuários estiverem realizando para reduzir sua carga poluidora. QU pode ser derivada de uma tabela geral que estima parâmetros por tipo de usuário.25 O consumo por quantidade pode também ser medido diretamente quando existir hidrômetro. Para os efluentes, o usuário pode requerer uma medição direta da carga de poluição desde que arque com o respectivo ônus. CB, KU e KS são primeiro propostos pela Agência de Bacia e submetidos à discussão e aprovação dos comitês. CB para quantidade é diferenciado por água superficial e subterrânea e por zona dentro de cada bacia. Essa diferenciação por zona considera a escassez e a necessidade de investimentos em regularização e outras obras necessárias. A cobrança de água subterrânea varia de US$ 0,014/m3 a US$ 0,044/m3. A cobrança de água superficial ocorre apenas em zonas de alta escassez nas épocas de racionamento e pode chegar, em alguns casos, a mais de US$ 0,050/m3. CB para qualidade é uniforme para toda a bacia e diferenciado por poluente de acordo, a princípio, com os custos de tratamento. A cobrança média por poluentes é apresentada na Tabela 1 para as seis bacias no ano de 1993. 25 Para o consumo doméstico existem fatores nacionais fixos para converter número de habitantes em carga poluidora. UTILIZAÇÃO DE CRITÉRIOS ECONÔMICOS PARA A VALORIZAÇÃO DA ÁGUA NO BRASIL 28 KU é coeficiente de consumo que diferencia o usuário. No consumo por quantidade, por exemplo, o coeficiente de consumo urbano é geralmente superior ao industrial. Para a cobrança de poluição urbana, existe um coeficiente (de aglomeração) que varia de 0,5 para pequenas comunidades a 1,4 para grandes áreas urbanas. KS é coeficiente que diferencia o meio receptor para assimilar poluentes. No caso da poluição, KS varia na média de 1,4 para meios com alto padrão ambiental a 1,0 para meios de baixo padrão ambiental. Para o consumo por quantidade, o próprio CB por zona já considera este fator zonal. Tabela 1 Cobrança de Poluição na França por Bacias Hidrográficas (US$/kg) — 1993 Bacias SM OM IS NR P SS AOX METOX Adour - Garonne 18,7 56,2 1053,24 28,11 70,05 70,05 163,75 163,75 Artois - Picardie 24,17 47,99 894,57 27,15 128,90 360,07 - - Loire - Bretagne 16,58 25,51 1062,17 36,44 118,94 - - - Rhin - Meuse 19,51 39,01 805,25 26,76 44,53 28,06 - 112,52 Rhône - Méditer. - Corse 18,7 56,2 1053,24 28,11 70,05 70,05 163,75 163,75 Seine – Normandie 22,15 49,45 794,57 44,63 - 462,70 - - Fonte: Cadiou e Tien Duc (1996). Notas: SM = Materiais Suspensos; OM = Materiais Oxidantes; IS = Substâncias Inibidoras; NR = Nitrogênio Reduzido; P = Fósforo; SS = Sais Solúveis; AOX = Compostos Orgânicos Alógenos; METOX = Tóxicos e outros metais. Observe que o critério norteador do nível de cobrança no sistema francês é o do custo de provisão para o consumo de quantidade e o de custo de tratamento no caso da poluição. Tais critérios guardariam coerência com os critérios de preços públicos e custo-eficiência. Os valores de KU de quantidade, mais baixos para a indústria e mais altos para o consumidor urbano, podem estar associados às diferenças nas magnitudes das elasticidades desses setores, segundo a regra de preço público. Os coeficientes KU de qualidade, por outro lado, parecem indicar um critério de capacidade de pagamento do qual se privilegiam (ou punem) alguns setores de usuários, ou seja, um subsídio cruzado distributivo entre comunidades urbanas. Os valores de KS de qualidade, entretanto, parecem, a princípio, também seguir um critério de custo-eficiência ao forçarem pagamentos mais altos para zonas de maior padrão ambiental: se o padrão de um meio é mais alto que de outro, o nível da cobrança deve ser maior para forçar maior nível de controle. Todavia, para tal regra ser generalizada hão de se assumir funções de custo, capacidade de assimilação e perfil de poluição iguais entre as zonas. Além do mais, o valor UTILIZAÇÃO DE CRITÉRIOS ECONÔMICOS PARA A VALORIZAÇÃO DA ÁGUA NO BRASIL 29 unitário da cobrança não é determinado para que os usuários no seu conjunto atinjam um certo nível de carga total lançada ao meio. Enquanto a receita com a cobrança por poluição tem representado mais ou menos o triplo da arrecadada com a cobrança de quantidade, as obras de tratamento recebem o sêxtuplo dos recursos no período 1991/96, conforme mostra a Tabela 2. Afinal, a melhora de qualidade tem sido considerada uma fonte de aumento de quantidade. Tabela 2 Usos das Receitas da Cobrança de Água na França (US$ bilhões) — 1991/96 Aplicação das Receitas com Cobrança Custos de Investimentos Subsídios e Pequenos Empréstimos Concedidos Tratamento de Efluentes Líquidos na Indústria 1,93 1,16 Tratamento de Efluentes Líquidos em Comunidades Urbanas 7,99 3,59 Gestão de Recursos Hídricos 1,17 0,33 Abastecimento de Água Potável 2,65 0,88 Outros (ecologia, áreas úmidas, agricultura etc.) 0,77 0,30 TOTAL 1991/96 14,51 6,26 Fonte: Kaczmarec (1996). Resumindo, o sistema francês adota o princípio do poluidor-usuário pagador utilizando indiretamente critérios de preços públicos para financiamento de gastos. Os resultados do sistema francês são
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