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Maquiavel e o Realismo Político

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Maquiavel
Com o avanço do capitalismo mercantil, a oligarquia que controlava as diversas cidades estado italianas formou o que pode ser definido como um tipo de “capitalismo político”.
A unificação italiana gerou as condições para que as distintas cidades-estados controladas pelas aristocracias feudais locais buscassem controlar o Estado – criando condições para seu enriquecimento, inclusive pela via do financiamento da dívida pública.
Conforme argumentou Hilton (1977, pp. 26-27):
Algumas das fortunas mais espetaculares foram acumuladas pelos mercadores das cidades italianas, cujas atividades ilustram o caráter geralmente indiferenciado da classe dos mercadores europeus como um todo (...). Os mercadores italianos, dos quais bem sucedidos foram os florentinos e os venezianos, baseavam seus lucros no comércio de produtos de alto preço, como especiarias, jóias ou seda, provenientes do Extremo Oriente ou do Médio, tecidos de lã de alta qualidade de Flandres ou da Itália Central, ouro da África ocidental. Também lidavam com dinheiro, como banqueiros do Papado ou de outros chefes (especialmente no financiamento de guerras).
Eles dominavam técnicas complexas de comercialização, foram capazes de concentrar recursos para financiar a taxas de juros usurários governos e aristocratas donos da terra e praticaram o mecenato cultural. Contudo, “seu capital permaneceu sempre na esfera de circulação, e nunca se aplicou à produção agrícola ou industrial de maneira inovadora. A chamada revolução comercial em nada alterou o modo feudal de produção” (HILTON, op. cit., p. 27).
Pari passu, a formação do Estado italiano foi progressivamente realizada por uma autonomia das ordens econômica e política em relação à ordem moral e religiosa – o que foi a base da unificação italiana, ocorrida a partir do século XVI.
Do ponto de vista econômico, como sugere Merrington (1977, p. 231), a Itália medieval era formada por um contingente de “vastas senhorias feudais, em cujos interstícios as comunas lutavam para manter uma independência fugidia”, sendo que a “cidades dependiam – tanto do ponto de vista militar quanto do suprimento – de certos feudos locais”.
Distintamente dos pensadores (filósofos, teólogos) que o antecederam na formulação do conceito de política, Maquiavel partiu da experiência real (de seu tempo).
O pensamento de Maquiavel pode ser caracterizado, então, como sendo um tipo de “realismo político”, ao ter procurado analisar os fatos empíricos.
Empiria = refere-se ao que é, ou ao que existe; portanto, ao que se experimenta - e não ao que dever ser.
De acordo com Sadek (2000, p. 17), a preocupação de Maquiavel, declaradamente expressa por ele mesmo, é o Estado. Mas:
Não o melhor Estado, aquele tantas vezes imaginado, mas que nunca existiu. Mas o Estado real, capaz de impor a ordem. Maquiavel rejeita a tradição idealista de Platão, Aristóteles e Santo Tomás de Aquino e segue a trilha inaugurada pelos historiadores antigos, como Tácito, Políbio, Tucídides e Tito Lívio. Seu ponto de partida e de chegada é a realidade concreta. Daí a ênfase na veritá effettuale – a verdade efetiva das coisas. Esta é a regra metodológica: ver e examinar a realidade tal como ela é e não como se gostaria que ela fosse.
Segundo Maquiavel, a experiência não engana, e a percepção errônea da realidade é produto do pensamento especulativo.
Por isso ele se propõe estudar a sociedade pela análise da verdade efetiva dos fatos humanos. Para tanto, busca na interpretação dos fatos históricos as linhas mestras da ação humana.
Conhecer tais fatos é ter em mãos o material essencial para o estudo do presente. Contudo, não se pode atribuir ao pensamento maquiaveliano qualquer determinismo em em relação a leis sociais que orientariam o rumo da história.
Os homens trilham quase sempre estradas já percorridas. Um homem prudente deve assim escolher os caminhos já percorridos pelos grandes homens e imitá-los; assim, mesmo que não seja possível seguir fielmente esse caminho, nem pela imitação alcançar totalmente as virtudes dos grandes, sempre se aproveita muita coisa (O príncipe, capítulo VI).
Não existe utopia social em Maquiavel, portanto. O Estado não é identificado a qualquer tipo de instância “universal” e a sociedade é necessariamente dividida.
Para o autor, a ordem política está sempre baseada em algum tipo de coerção.
Para Maquiavel, por sua própria natureza pérfida, os indivíduos buscam o máximo ganho se possível com o menor esforço. Assim, os homens só agem de forma altruísta quando as condições forçam-nos a fazê-lo. Para o autor: os homens “são ingratos, volúveis, simuladores, covardes ante os perigos, ávidos de lucro” (O príncipe, capítulo XVII).
Por essa razão, para ele a ética deve ser subordinada à política - distintamente do que preconizava Aristóteles. 
Assim, segundo ele:
(...) cada qual reconhecerá que seria muito de louvar que um príncipe possuísse, entre todas as qualidades referidas, as que são tidas como boas; mas a condição humana é tal, que não consente a posse completa de todas elas, nem ao menos a sua prática consistente; é necessário que o príncipe seja tão prudente que saiba evitar os defeitos que lhe arrebatariam o governo e praticar as qualidades próprias para lhe assegurar a posse deste, se lhe é possível; mas, não podendo (...) pode-se deixar que as coisas sigam seu curso natural. E ainda não lhe importe incorrer na fama de ter certos defeitos (...) sem os quais dificilmente poderia salvar o governo, pois que (...) encontrar-se-ão coisas que parecem virtudes e que, se fossem praticadas, lhe acarretariam a ruína, e outras que poderão parecer vícios e que, sendo seguidas, trazem a segurança e o bem-estar do governante (O príncipe, capítulo XV).
Por isso, “(...) é necessário a um príncipe, para se manter, que aprenda a poder ser mau e que se valha ou deixe de valer-se disso segundo a necessidade” (O príncipe, capítulo XV, grifo MTG).
Maquiavel, nesse sentido, não foi “maquiavélico”, ou seja, não foi autor de um pensamento baseado ou que difunde comportamentos pragmáticos porém ardilosos, não se importando com quais meios utilizará desde que possa alcançar seu objetivo.
Ele introduziu uma nova distinção entre as formas de governo: “Todos os Estados, todos os domínios que tem havido e que há sobre os homens foram e são repúblicas ou principados” (O príncipe, capítulo I).
A república (aristocrática ou democrática) é a forma de governo de um corpo coletivo. A República é caracterizada pela temporalidade do poder e seu exercício é atribuído ao povo.
O principado (ou monarquia) é o governo de uma só pessoa, onde a vontade do governante é lei.
À questão sobre qual das duas é a melhor forma de governo, Maquiavel respondeu que “Em função do modo como os bens são compartilhados, onde persista ou possa persistir uma relativa igualdade entre os cidadãos, o fundador de Estados deve estabelecer uma república. Ocorrendo o contrário, manda a prudência que seja construído um principado” (Comentários..., capítulo XVIII).
Tratando do principados novos, ou seja, aqueles em que o poder é conquistado por quem ainda não era um “príncipe”, Maquiavel identifica quatro formas básicas da sua formação (aquisição):
Pela virtude.
Pela fortuna.
Pela violência (maldade ou crime).
Mediante o consentimento dos concidadãos (povo) = principado civil.
Já no caso do Principado civil:
(...) (e para chegar a isso não é necessário grandes méritos nem muita sorte, mas antes uma astúcia feliz) (...) O principado é estabelecido pelo povo ou pelos grandes, segundo a oportunidade que tiver uma destas partes (...) O que ascende ao principado com a ajuda dos poderosos se mantém com mais dificuldade do que aquele que é eleito pelo próprio povo (...) Quem se torna príncipe mediante o favor do povo deve manter-se seu amigo, o que é muito fácil, uma vez que este deseja apenas não ser oprimido. Mas, quem se torna príncipe contra a opinião popular, por favor dos grandes, deve, antes de mais nada, procurar conquistar o povo (O príncipe, capítulo IX).Quando um príncipe e seu povo estão submetidos às leis, o povo mostra possuir qualidades superiores às do príncipe, por ser mais constante.
Ademais, estando ambos livres de coerção legal, os erros do povo são de mais fácil reparo do que os do príncipe.
O príncipe deve, antes de mais nada, procurar conquistar o povo. Segundo Maquiavel “(...) a melhor fortaleza que possa existir é o não ser odiado pelo povo, pois (...) não faltam nunca aos povos rebelados príncipes estrangeiros que desejem ajudá-los” (O príncipe, capítulo XX).
Isso decorre do fato que em liberdade, os homens identificam-se com os negócios de seu Estado e o defendem como coisa sua. Portanto, o nível de solidariedade é maior quando o povo participa do governo.
Então, a liberdade reforça a coesão interna e esvazia as pretensões de conquista dos Estados rivais.
As noções fundamentais do pensamento de Maquiavel são a virtù (habilidade, eficiência na ação) e a fortuna (sorte, acaso).
Ambas governam a política.
Virtude é a capacidade de dominar os eventos, de alcançar um fim objetivado, por qualquer meio.
A virtù é a qualidade do bom príncipe, entendida por Maquiavel como:
(...) um conjunto de qualidades – habilidade de cálculo, sentido de realidade, compreensão das circunstâncias, capacidade de adotar medidas extraordinárias, coragem de desprender-se da moralidade vigente se for necessário, aptidão para se adaptar às diferentes situações – que permitem ao homem impor-se ao que é indeterminado e realizar seus objetivos (BARROS, 2008, p. 239).
A virtù, porém, não é igual à conduta justa. As metas adequadas a um príncipe são glória e fama. Para alcançá-las, é impossível que o governante tenha um comportamento sempre de acordo com preceitos abstratos de justiça.
Fortuna significa o curso dos acontecimentos que não dependem da vontade humana, apenas da sorte. Ela corresponde a uma estrutura à qual os homens devem se adaptar para agirem. Para Maquiavel:
Comparo-a a um desses rios impetuosos que, quando encolerizam, alagam as planícies, destroem as árvores, os edifícios, arrastam montes de terra de um lugar para outro: tudo foge diante dele, tudo cede ao seu ímpeto, sem poder obstar-lhe e, se bem que as coisas se passem assim, não é menos verdade que os homens, quando volta a calma, podem fazer reparos e barragens, de modo que, em outra cheia, aqueles rios correrão por um canal e seu ímpeto não será nem tão livre nem tão danoso. Do mesmo modo acontece com a fortuna; o seu poder é manifesto onde não existe resistência organizada, dirigindo ela a sua violência só para onde não se fizeram diques e reparos para conte-la (O príncipe, capítulo XXV).

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