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CENTRO UNIVERSITÁRIO FAVENI POLÍTICA SOCIAL GUARULHOS - SP SUMÁRIO Sumário ....................................................................................................................... 2 1 Maquiavel e os fundamentos da teoria política ..................................................... 3 1.1 Biografia ....................................................................................................... 13 1.2 O príncipe ..................................................................................................... 14 2 Contratualismo/ Jusnaturalismo .......................................................................... 28 2.1 Contratualismo ............................................................................................. 37 2.2 Rousseau e Hegel: O embate político .......................................................... 42 2.3 Rousseau e o Contrato ................................................................................ 45 2.4 Hegel e o Contrato ....................................................................................... 51 3 Jusnaturalismo .................................................................................................... 60 3.1 Individualismo e Liberalismo: Consequência do Jusnaturalismo ................. 62 4 As teorias políticas de constituição do Estado .................................................... 65 5 O Estado ............................................................................................................. 76 6 Instituição............................................................................................................ 81 6.1 Os três novos institucionalismos .................................................................. 83 7 O que é movimento social e por que seu estudo é importante ........................... 87 7.1 Movimentos sociais no Brasil ....................................................................... 90 8 Classes Socias ................................................................................................... 93 9 a concepção marxista ......................................................................................... 95 9.1 A concepção de Estado e Politica ................................................................ 99 9.2 Karl Marx e o Estado .................................................................................. 102 9.3 Principais Teóricos no Conceito Marxista .................................................. 103 10 O Liberalismo e a Democracia ...................................................................... 107 10.1 O conceito no Brasil ................................................................................... 108 11 A concepção marxista de Estado e seus principais teóricos ......................... 113 11.1 O debate marxista sobre o Estado ............................................................. 114 12 Democracia/Representação/Participação ..................................................... 121 12.1 Democracia ................................................................................................ 121 12.2 Tipos de democracia .................................................................................. 123 12.3 Representação ........................................................................................... 134 12.4 Modos de representação............................................................................ 144 12.5 Participação ............................................................................................... 146 13 Temas Políticos contemporâneos ................................................................. 158 13.1 As conversações e as discussões políticas no sistema deliberativo .......... 160 13.2 Surgimento e crise da razão moderna ....................................................... 165 13.3 Marx, Engels e toda a tradição marxista. ................................................... 166 13.4 O advento do pós-modernismo: dimensões teóricas, políticas e culturais . 169 14 O papel do Estado na Educação Brasileira ................................................... 177 14.1 Educação para TODOS ............................................................................. 183 14.2 Público- privado na educação .................................................................... 183 14.3 Gestão democrática ................................................................................... 185 14.4 Os desafios atuais da educação brasileira e o PNE: para onde caminham as políticas de Estado? ............................................................................................. 186 15 Bibliografia ..................................................................................................... 191 3 1 MAQUIAVEL E OS FUNDAMENTOS DA TEORIA POLÍTICA Fonte: g1.globo.com Maquiavel foi um dos grandes responsáveis pela noção moderna de poder. A ele também se deve a renovação do sentido e da relação entre ética e política. Por isso, a teoria política de Maquiavel tem suscitado, ao longo do tempo, uma série de discussões e questionamentos, principalmente pela interpretação precipitada que inúmeras vezes se fez de seu pensamento. Maquiavel foi sempre - e ainda é - compreendido como alguém imoral e desprovido de quaisquer valores. Por essa razão a perspectiva do termo maquiavélico é sempre pejorativa. Maquiavel, fugindo da tradição, que considera a tendência do homem para a vida em sociedade e o bem viver como naturais, sublinha que, ao contrário, os homens tendem sempre à divisão e à desunião. Deriva daí uma tensão social, marcada pelo conflito de desejos entre dois grupos sociais distintos, o povo, que deseja não ser oprimido pelos grandes, e os grandes que, inversamente, desejam oprimir e dominar o povo. “O principado provém do povo ou dos grandes, segundo a oportunidade que tiver uma ou outra dessas partes. ” (MAQUIAVEL, 2004, p. 43). A política, para Maquiavel, é marcada, então, não pelo ideal cristão de unidade entre os homens, mas por algo que é próprio do homem, a constante luta pelo poder. Assim, http://g1.globo.com/ 4 “... a história é mestra de nossos atos e máximas dos príncipes; e o mundo sempre foi, de certa forma, habitado por homens que sempre têm paixões iguais; e sempre houve quem serve e quem ordena, e quem serve de má vontade e quem serve de boa vontade, e quem se rebela e se rende.” (MAQUIAVEL, 2000, p.165) É por este motivo que os homens mentem, matam e se julgam acima dos princípios morais. A obra “O Príncipe” é, nesse sentido, uma reflexão sobre o poder político que permeia o Estado. Todo Estado é, fundamentalmente, constituído por uma correlação de forças, fundada na dicotomia que se estabelece entre o desejo de domínio e opressão, por parte dos grandes ou poderosos, e do desejo de liberdade, por parte do povo, que, em síntese, compõe as relações sociais. A virtù, diz Maquiavel, consiste na compreensão desta realidade e determina a ação política do príncipe. “... O homem de Estado maquiaveliano depende exclusivamente de sua própria capacidade para determinar a resposta, impostergável, que a situação presente permanentemente lhe formula: ‘o que fazer? ” (AMES, 2002, p.16). O poder exercido pelo príncipe está diretamente relacionado à nova maneira - cética - com que Maquiavel encara o ser humano. Sua concepção de poder inaugura uma nova ética: laica, prática, em que o poder político é dissociado 119 A concepção de Estado e de poder político em Maquiavel Tempo da Ciência (13) 25 : 117-128, 1º semestre 2006 ARTIGO da ética cristã, pois tudo é válido contanto que o objetivo seja de se conquistar e de se manter o poder, apoiado no povo. Assim, por esta nova compreensãoda realidade, Maquiavel separa a moral individual da moral política. Ao chefe de Estado cabe agir de acordo com as circunstâncias e não a partir de preceitos morais individuais. Por esta razão, o que distingue a bondade da maldade na ação política é sempre o bem coletivo e jamais os interesses particulares. O que determina se uma atitude é ética é a sua finalidade política. Neste sentido, os valores morais só podem ser compreendidos a partir da vida social. Assim, sublinha Maquiavel, existem virtudes que podem arruinar o Estado e vícios que, inversamente, podem salvá-lo. O que do ponto de vista da moral tradicional é plenamente condenável, na ética política maquiaveliana é perfeitamente aceitável. No entanto, para se compreender a teoria política de Maquiavel, é preciso antes compreender o próprio indivíduo Maquiavel como sujeito histórico e fruto de um contexto específico. 5 O universo mental de Nicolau Maquiavel é completamente diverso. Deliberadamente distancia-se dos tratados sistemáticos da escolástica medieval e, à semelhança dos renascentistas preocupados em fundar uma nova ciência física, rompe com o pensamento anterior, através da defesa do método da investigação empírica. Maquiavel vive o período do Renascimento e, como tal, é leitor contumaz dos autores clássicos. A leitura destes lhe dá a chave para compreender o contexto em que vive, além do que o instrumentaliza com a fundamentação teórica necessária para escrever, entre outras, a sua mais famosa obra, “O Príncipe”. É por isso que nesta obra se encontra uma intensa reflexão filosófica e, não como querem alguns, apenas um receituário, um manual para políticos de plantão. Nela escreve: .... Porém, sendo meu intento escrever algo útil para quem me ler, parece-me mais conveniente procurar a verdade efetiva das coisas do que o que se imaginou sobre elas. Muitos imaginaram repúblicas e principados que jamais foram vistos e que nem se soube se existiram na verdade (...). (MAQUIAVEL, 2004, p. 73) Ao compor “O Príncipe” Maquiavel expressa nitidamente os seus sentimentos de desejo de ver uma Itália poderosa e unificada. Expressa também a necessidade (não só dele, mas de todo o povo Italiano) de um monarca com pulso firme, determinado, que fosse um legítimo rei e que defendesse seu povo sem escrúpulos e nem medir esforços. Neste sentido, MAQUIAVEL (2004) faz uma referência elogiosa a César Bórgia, que após ter encontrado na recém conquistada Romanha, um lugar assolado por pilhagens, furtos e maldades de todo tipo, confia o poder a Dom Ramiro de Orco. Este, por meio de uma tirania impiedosa e inflexível põe fim à anarquia e se faz detestado por toda parte. Para recuperar sua popularidade, só restava a Bórgia suprimir seu ministro. E certa manhã, em plena praça pública, no meio de Cesena, mandou que o partissem ao meio. O povo por sua vez ficou, ao mesmo tempo, satisfeito e chocado. Para Maquiavel, um príncipe não deve medir esforços nem hesitar, mesmo que diante da crueldade ou da trapaça, se o que estiver em jogo for o bem do seu povo. Por isso, declara: ... todas as ações do duque, eu não saberia em que censurá-lo. Pelo contrário, parecem – como aliás o fiz – dever propô-lo como exemplo a todos aqueles que, com a fortuna e as armas de outrem, ascendem ao poder. Tendo 6 ele ânimo forte e intenção elevada, não poderia ter agido de outra maneira. (MAQUIAVEL, 2004, p. 34) Assim, no entender de LEFORT (1972), é na crítica da experiência, no mundo real, no aqui e agora, que Maquiavel descobre que há em cada situação uma política adequada. A política adequada é aquela que se concilia com o ser da sociedade, que acolhe os contrários, se enraíza no tempo, se dispõe a costear o abismo sobre o qual repousa a sociedade, de enfrentar o limite constituído pela impossibilidade de compor os desejos humanos. É na verdade efetiva das coisas que o príncipe deve pautar a sua ação política. A ação do príncipe deve ser sempre movida pela realidade dos fatos e não pelo “como deveria ser”. É a necessidade que deve reger a ação política do príncipe. Assim, diz Maquiavel, é preciso que, para manter-se no poder, um príncipe aprenda a ser mal, e que da maldade se sirva ou não de acordo com a necessidade. Esta é a verdade efetiva – veritá effetuale -, e sempre imperiosa, que deve determinar as ações do príncipe. Eis aí a novidade do pensamento maquiaveliano e, justamente, a que causou maior escândalo e críticas. É uma reavaliação das relações entre ética e política. Maquiavel estabelece, de um lado, uma moral laica, de base naturalista, separada da moral cristã e, de outro, apresenta a autonomia da política, desvencilhando-a de toda e qualquer questão moral. Esta nova ética analisa as ações do príncipe não mais em função de uma hierarquia de valores dada a priori, mas sim em vista das consequências, dos resultados da ação política. Não se trata de amoralismo, mas de uma nova moral centrada nos critérios da avaliação do que é útil à comunidade. Assim, o critério para definir o que é moral é o bem da comunidade e, nesse sentido, às vezes, é legítimo o recurso ao mal: o emprego da força coercitiva do Estado, a guerra, a prática da espionagem, o emprego da violência. (ARANHA&MARTINS, 1993, p. 205) Astucioso é, portanto, o príncipe que sabe simular e dissimular e lançar mão desses recursos no momento em que a necessidade se impõe. Por esta forma Maquiavel introduz o conceito de virtù. Os homens de virtù são aqueles que sabem agir diante da situação que se lhes oferece e imprimir sua vontade no curso das coisas (fortuna). Agir com virtù, assim, é agir ora com humanidade ou bondade, ora com crueldade ou maldade, de acordo com a necessidade da ocasião. Por detrás da noção 7 de virtù está o princípio moral da ação como justificativa para o bem coletivo. Desse modo, em certas circunstâncias, é LAIRTON MOACIR WINTER 122 ARTIGO Tempo da Ciência (13) 25: 117-128, 1º semestre 2006 legítimo o uso de algumas crueldades, que por si sendo más, são ações virtuosas quando beneficiam a coletividade. Por esta razão, há violências que politicamente se justificam quando o fim último for o bem comum. Evidentemente que Maquiavel não se refere ao uso da força como mero ato de sadismo do Príncipe, que se compraz com o sofrimento alheio. Para ele, nenhuma conquista se faz sem o uso da violência. E o Estado não representa exceção à regra. Entretanto, a violência da qual fala Maquiavel é a violência política, justificada tão somente em função do bem comum. Toda e qualquer outra forma de violência que não tenha a finalidade de preservar o Estado e o bem da coletividade, mas praticada apenas por satisfação pessoal, deve ser sempre evitada, sublinha Maquiavel. A primeira forma legitima a autoridade do príncipe, a segunda, o condena perante seus súditos que não hesitarão em demovê-lo do poder na primeira oportunidade que tiverem. Compreende-se, assim, que a força e a política são paralelas, em que esta não subsiste sem aquela. A força, assevera o autor, está em saber usar a astúcia. É por esta via que deve ser entendida a lógica da força em Maquiavel. O pensamento político de Maquiavel nos leva à seguinte reflexão sobre o homem de ação: se o indivíduo aplicar de forma inflexível o código moral que rege sua vida pessoal à vida política, sem dúvida colherá fracassos sucessivos, tornando- se um político incompetente. Isto significa que a avaliação moral não deve ser feita antes da ação política, segundo normas gerais e abstratas, mas a partir de uma situação específica avaliada em função do resultado dela, já que toda ação política visa a sobrevivência do grupo e não apenas de indivíduos isolados. Maquiavel enfatiza que os critérios da ética política precisam ser revistos conforme as circunstâncias e sempre tendo em vista os fins coletivos. No capítulo VI d“O Príncipe”,que se refere à conquista dos principados novos, Maquiavel destaca a importância da virtù e da fortuna para a manutenção do principado. “Digo, portanto, que nos principados completamente novos, onde há um novo príncipe, existe maior ou menor dificuldade para mantê-lo conforme seja maior ou menor a virtù de quem o conquistou. E, como a passagem de simples cidadão a príncipe supõe virtù ou fortuna, parece que uma ou outra 8 dessas duas coisas ameniza, em parte, muitas das dificuldades. Contudo, aquele que depende menos da fortuna consegue melhores resultados. ” (MAQUIAVEL, 2004, p. 23) Para Maquiavel, uma das facetas da virtù é a força, da qual devem lançar mão os príncipes quando a necessidade se impuser. “É necessário, portanto, (...), examinar se estes inovadores dispõem de meios próprios ou dependem de outros, isto é, se para realizar a sua obra precisam pedir ou podem forçar. ” (MAQUIAVEL, 2004, p. 25). Para o autor, apenas o segundo caso garante o êxito do príncipe. Se, num primeiro momento o príncipe deve utilizar-se da força bruta – armas, violência, coerção - para impor a sua autoridade, deve também saber reconhecer o momento adequado em substituí-la pela força da persuasão. Maquiavel distingue, assim, entre o bom governo, que é forçado pela necessidade a usar da violência visando o bem coletivo, e o tirano, que age por capricho ou interesse próprio. Por esta razão, mesmo sem a força, ainda que está sempre deva permanecer como recurso de última instância, um poder se estabelece como legítimo quando os súditos, por meio da persuasão do príncipe, são levados a reconhecer e a aceitar a sua autoridade como legítima. Essa legitimidade, no entanto, não se funda mais sobre a natureza – já que natural é apenas e sempre a mudança - e nem sobre princípios morais – valores -, mas sobre o reconhecimento dos seus súditos. Neste sentido, uma autoridade é legítima quando seus súditos a reconhecem como tal. A durabilidade do Estado, portanto, depende da maneira como a relação entre o príncipe e os súditos se resolve e quando ambos se percebem pertencentes à mesma sorte, ao mesmo destino. Partindo do princípio de que natural é somente a mudança e não a permanência das coisas e que, portanto, a ação política é sempre movida pela transitoriedade, pela mutabilidade, Maquiavel retém as formas legítimas e ilegítimas de poder da tradição, mas elimina o princípio de poder natural dos poderes hereditários. Não é por acaso que Maquiavel começa “O Príncipe” descrevendo as espécies e os modos pelos quais se conquistam os Principados. Este é o ponto para o qual chama a atenção. Quando fala, no capítulo II, dos principados heredi-LAIRTON MOACIR WINTER 124 ARTIGO Tempo da Ciência (13) 25: 117-128, 1º semestre 2006 tários, ele procura persuadir o leitor para, depois, falar sobre o Estado novo. Para o autor, a semelhança entre os Estados hereditários e os Estados novos é que ambos nascem do uso da força, da violência. 9 A diferença, no entanto, é o tempo em que os fatos ocorreram. O Estado hereditário, por ser mais antigo do que o Estado novo, leva os súditos a esquecerem do uso da força empreendida pelo príncipe para conquistá-lo. Desse modo, o Estado hereditário é legítimo pelo hábito dos súditos de estarem submetidos ao poder de um monarca. Eis porque, segundo Maquiavel, é mais fácil administrar e preservar um Estado hereditário do que um Estado novo. “(...) digo, pois, que, nos Estados hereditários e acostumados à linhagem de seus príncipes, são bem menores as dificuldades para conservá-los do que nos novos...” (MAQUIAVEL, 2004, p. 5). Além disso, Maquiavel sublinha que nenhum Estado sobrevive sem a religião. Não porque se sustente pela fé ou pela crença em Deus. A sua razão está na finalidade que lhe é externa, qual seja, um devotamento dos súditos à pátria e às causas cívicas. Desta maneira, o temor a Deus pode ser um importante meio do qual o monarca pode se utilizar para tornar o povo mais aderido ao Estado, o que, em última análise, facilita a sua administração. As formas de governo, afirma Maquiavel, são sempre o resultado de um conflito interno, de uma força interna que move o poder político de todo e qualquer Estado. Maquiavel define este conflito como o resultado de desejos antagônicos de dois grupos sociais distintos, os grandes e o povo. Neste conflito o príncipe é o mediador, e a solução dada por ele define o tipo de governo que rege o Estado. No capítulo IX d”O Príncipe”, Maquiavel fala do Principado Civil. Nele descreve a necessidade do príncipe em enfrentar o conflito de desejos entre o povo e os grandes, ou poderosos, se quiser manter o poder do Estado. O conflito entre esses dois grupos sociais é a essência da ação política em Maquiavel. A política resulta, então, da ação social a partir das divisões sociais. De todo modo encontra-se aí um paradoxo, o de que o povo deseja não ser oprimido. No entanto, na prática não há possibilidade dele se livrar da opressão, nem 125 A concepção de Estado e de poder político em Maquiavel Tempo da Ciência ( 13 ) 25 : 117-128, 1º semestre 2006 ARTIGO do príncipe e nem dos grandes. Mas, entre ambos, é preferível o mal menor, qual seja, o de se submeter ao poder do príncipe. O desejo do povo, em virtude disso, é encontrar no príncipe um protetor de sua liberdade frente aos impulsos de dominação dos grandes. Por esta razão, o príncipe é o único capaz de manter a liberdade do povo. Mas, no que difere o príncipe dos grandes e faz o povo optar pelo primeiro? Maquiavel diz que enquanto 10 o desejo dos grandes é tomar o poder e oprimir o povo, o príncipe deseja apenas o poder. É por isso que o príncipe deve apoiar-se no povo. Enquanto este deseja apenas não ser oprimido, não representando, portanto, nenhuma ameaça ao poder do príncipe, aqueles rivalizam com este na medida em que, além de oprimir, desejam também tomar o poder. Assim, MAQUIAVEL (2004) afirma que: (...). Quem chega ao principado com a ajuda dos grandes mantém-se com mais dificuldade do que o que se torna príncipe com a ajuda do povo, porque o primeiro se vê cercado de muitos que parecem ser seus iguais, não podendo, por isso, comandá-los nem os manejar a seu modo. Mas quem chega ao principado com o favor popular encontra-se sozinho e não tem em torno de si ninguém, ou quase ninguém, que não esteja pronto a obedecê-lo. (...). Além disso, um príncipe não pode jamais proteger-se contra a inimizade do povo, porque são muitos; no entanto, pode-se garantir contra os grandes porque são poucos (...) (p. 44). Todavia, mesmo o povo sendo mais honesto e em maior número do que os grandes, o príncipe não deve esperar apoio e nem segurança dele no momento da prova de forças, afirma Maquiavel. (...) Contra esta minha opinião, não me venham com aquele velho provérbio ‘quem se apoia no povo, se apoia no lodo’, porque isso só é verdade quando um cidadão particular se alicerça no povo e espera que este o liberte quando for atacado por seus inimigos ou pelos magistrados. (...) (MAQUIAVEL, 2004, p. 45) Mas, se é assim, o que então confere segurança ao príncipe? Maquiavel responde que é a necessidade que o povo tem do príncipe em protegê-lo e livrá-lo da opressão dos grandes. O príncipe deve persuadi-lo constantemente disso. A segurança do príncipe, portanto, depende do povo em se sentir seguro. Assim, não haverá motivo para o povo se voltar contra o príncipe. O desafio do príncipe é manter o equilíbrio do Estado diante dos desejos dos diferentes atores que encenam a realidade social e política. Quando o príncipe reconhece esta verdade (veritá effetuale) e enxerga o óbvio, então é capaz LAIRTON MOACIR WINTER 126 ARTIGO Tempo da Ciência (13): 117-128, 1º semestre 2006 de manter o Estado. A obviedade está na não existência de uma verdade política estabelecida. A estabilidade do Estado é a instabilidadepolítica gerada pelo conflito social. É por isso que, às vezes, o bem - ou o mal - é o bom caminho. Segundo CHAUÍ (2000): 11 (...) O verdadeiro príncipe é aquele que sabe tomar e conservar o poder e que, para isso, jamais deve aliar-se aos grandes, pois estes são seus rivais e querem o poder para si, mas deve aliar-se ao povo, que espera do governante a imposição de limites ao desejo de opressão e mando dos grandes. A política não é a lógica racional da justiça e da ética, mas a lógica da força transformada em lógica do poder e da lei. (p. 203). Mas, como manter a estabilidade política de um Estado numa sociedade contraditória, como o conflito entre os grandes e o povo? Evidentemente, a existência da política pressupõe unidade, concórdia. Entretanto, esta unidade política, necessária para a existência do Estado, nunca pressupõe aniquilação do conflito social. O Estado só se mantém quando consegue dar vazão ao conflito de desejos. Reduzi-lo à unidade, à concórdia, o enfraquece e o torna inseguro, sublinha Maquiavel. Desse modo, a segurança do Estado é assegurada se o príncipe, além de sua reputação, não aniquilar o conflito social e nem o estimular entre facções opositoras, quando chamar os inimigos para uni-los à sua causa e quando perceber que conquistar a confiança do povo o protege mais do que uma fortaleza. Mas, qual então a concepção de Estado defendida por Maquiavel? Numa interpretação apressada poder-se-ia chegar à conclusão de que Maquiavel talvez defendesse a Monarquia absolutista. Entretanto, o absolutismo moderno que se conhece é posterior à época em que viveu Maquiavel e julgá-lo absolutista seria uma inverdade histórica. Contudo, Maquiavel defende, sim, a Monarquia, mas apenas nas situações de crise, de desigualdade social e de decadência das instituições, a fim de restaurar a organização do Estado. Uma vez superadas as crises institucional e social, Maquiavel acena para a instauração da República como forma de Estado adequado. No entanto, não se deve cometer o erro de tentar enquadrar Maquiavel como defensor intransigente deste ou daquele regime de governo ou sistema de poder, mesmo porque, de acordo com CHAUÍ (2000), Maquiavel não aceita a divisão clássica dos três regimes políticos (monarquia, aristocracia, democracia) e suas formas corruptas ou ilegítimas (tirania, oligarquia, demagogia), como também não aceita que o regime legítimo seja o hereditário e, o ilegítimo, o usurpado, tomado por conquista. Qualquer regime político - tenha a forma que tiver e tenha 127 A concepção de Estado e de poder político em Maquiavel Tempo da Ciência (13) 25: 117-128, 1º semestre 2006 ARTIGO a origem que tiver - poderá ser legítimo ou ilegítimo. 12 O critério de avaliação, ou o valor que mede a legitimidade e a ilegitimidade, é a liberdade, arremata Maquiavel. A obra de Maquiavel se constitui, de fato, numa inovação para o pensamento político moderno. Esta novidade se fundamenta na distinção entre a moral individual, herdada da tradição cristã, e a ética política, laica, determinada pelas circunstâncias do real. Elucidar isso constituiu o propósito de Maquiavel ao compor “O Príncipe”. Para Maquiavel, o sucesso ou o fracasso do príncipe não depende da sorte e nem suas ações de receitas prontas, como um manual a seguir. O que determina se o príncipe terá ou não sucesso, são as suas ações nas circunstâncias. A virtù é a capacidade humana de controlar e de antecipar os efeitos da fortuna. Assim, o príncipe virtuoso é aquele que sabe aproveitar a ocasião para agir corretamente e impor sua vontade nos rumos da história. Não existem, contudo, métodos prontos e caminhos seguros para trilhar. A interpretação do real e do concreto, do aqui e do agora, do momento presente, é o único instrumento do qual o príncipe dispõe para agir. “É este o novo que Maquiavel traz com tanta intensidade e que envolve este confronto com a sorte. É o humano que se manifesta e se sobrepõe ao determinismo. É uma redefinição do poder e da força que o fundamenta...” (FERREIRA, 2006, p.185). Para WEFFORT (1989), não basta ao príncipe ser forte para governar. A força pode ajudá-lo a conquistar o poder, mas não é capaz de fazer com que ele o mantenha. Para manter o domínio e o respeito dos governados é preciso possuir virtù. O sucesso do príncipe está atrelado à posse da virtù, o que implica numa medida política: a manutenção da conquista. Resistindo aos inimigos e aos golpes da sorte, o homem de virtù deve atrair, para si, a fama, a honra e a glória e, ao povo, a segurança. Pois ao povo importa a estabilidade política, que só pode ser dada pelo príncipe virtuoso, independentemente dos meios que ele utilize. Por essa razão, mantendo a estabilidade política, que em última instância depende da estabilidade social, ou seja, de como se resolve o conflito de interesses entre os grandes e o povo, o príncipe mantém também a estabilidade do Estado. 13 1.1 Biografia Fonte: pt.slideshare.net Nicolau Maquiavel nasceu em Florença, Itália, no dia 3 de maio de 1469 e morreu também em Florença, aos 58 anos, no dia 21 de junho de 1527. Maquiavel estava inserido no contexto do Renascimento italiano e viveu durante o governo de Lourenço de Médici. Seus pais, Bernardo Maquiavel e Bartolomea Nelli, eram de origem Toscana. Seu pai era jurista e tesoureiro de uma província italiana e sua mãe próxima a uma família nobre de Florença. Maquiavel era o terceiro dos quatro filhos do casal. Embora seus poucos recursos, Maquiavel sempre se interessou pelos estudos. Estudou o latim, ábaco e fundamentos da língua grega antiga. Os conceitos da Antiguidade Clássica influenciaram o seu pensamento, principalmente o conceito de virtù e fortuna. Maquiavel tornou-se um importante historiador, diplomata, músico, filósofo e político italiano. Aos 29 anos de idade, Maquiavel entrou para a política com o cargo de Secretário da Segunda Chancelaria (um dos órgãos auxiliares da Senhoria, encarregado das guerras e política interna). Exercendo esse cargo, durante pouco mais de 14 anos, observou o comportamento de grandes nomes da época e retirou alguns postulados para sua obra. No ano de 1501, casou-se com Marietta di Luigi Corsim. Dessa relação teve seis filhos. Em 1512, com o fim da república, perdeu o seu cargo. No ano seguinte foi https://pt.slideshare.net/ 14 preso e torturado por conspirar contra a eliminação do cardeal Giovanni de Médici. Posteriormente foi exilado, período no qual se dedicou a escrever suas principais obras. Após esse período o papa Leão X concedeu-lhe anistia e Maquiavel retornou a Florença. Em Florença exerceu alguns cargos importantes, mas abaixo de seu cargo na Segunda Chancelaria. Por fim, sua morte em Florença, no ano de 1527, se deu devido a uma apendicite. Maquiavel morreu na pobreza e afastado do poder. 1.2 O príncipe Fonte: bertrand.pt O tirano aterroriza os súditos. Com malevolência, espreita o mundo através de seu palácio solidamente resistente; domina toda a vida à sua volta, tão sensível à presa ou aos predadores que se avizinham quanto a aranha delicadamente equilibrada no centro da teia. Se apodera do crédito das realizações de homens mais grandiosos, que gastam a própria subsistência em projetos cívicos, como grandes igrejas e outras bonitas edificações. Entretém embaixadores de potências estrangeiras à sua mesa e 15 toma decisões que afetam o bem-estar de todos os súditos, consultando apenas seus favoritos. Modifica o Estado numa máquina em proveito próprio e no de seus amigos. E não vacila em arrebatar as posses dos homens endinheirado ou a virtude das donzelas puras. Resiste com ferocidade absoluta a qualquer ameaça à sua autoridade única. Essa apresentação do príncipe — solitário, vicioso, implacavelmente cruel com os que se interpõem em seu caminho — pareceà primeira vista uma página perdida de O príncipe de Maquiavel, livro que ensina táticas eficazes ao governante absoluto e que muitos leitores encaram como uma pregação da impiedade e até uma glorificação da matança. Mas ela procede de fonte bem diferente: o Tratado sobre o governo da cidade de Florença do frade dominicano Girolamo Savonarola, cujos anos de domínio na política florentina, de 1494 a 1498, coincidiram com o início da vida adulta de Maquiavel. Os paralelos entre dois homens tão diferentes chamam a atenção. Tal como Maquiavel, Savonarola teve uma vida cívica ativa, procurando preservar a forma republicana de governo, que julgava ideal para Florença, e escreveu tratados intensos, poderosamente imaginados, sobre política. Tal como Maquiavel, Savonarola cultivou ideais clássicos: acreditava que os romanos haviam criado uma república, se não perfeita, ao menos exemplar — uma república cujas instituições formavam cidadãos virtuosos, fazendo com que eles participassem regularmente da vida cívica. Tal como Maquiavel, Savonarola experimentou as realidades políticas em seu estado mais brutal. Conhecia as táticas e as psicologias dos tiranos da Itália, assim como as tradições locais da república florentina, como mostra seu retrato do tirano. Pior ainda, sabia o que era perder o apoio daqueles que mais significavam para ele. Quando, ao questionar a autoridade dos papas romanos, levou o interdito aos seus companheiros florentinos, ameaçando-lhes a propriedade e os empreendimentos comerciais, muitos se voltaram contra ele. Um cidadão proeminente notou, numa reunião de emergência, que Savonarola merecia apoio, mas não podia recebê-lo, já que “nós, na Itália, somos o que somos”. A propriedade importava mais que a lealdade — proposição que Maquiavel retomou em O príncipe ao notar que os homens esqueciam a perda do pai mais rápido que a da propriedade. Tal como Maquiavel, enfim, Savonarola viu sua carreira política chegar a um fim desastroso. O autor de O príncipe sofreu o ostracismo político; o pregador 16 dominicano foi executado publicamente na Piazza della Signoria e passou a ser, para Maquiavel, o protótipo do profeta desarmado cuja carreira, no mundo real, estava condenada a terminar em desastre. O príncipe de Maquiavel parece, para quem o lê sem conhecer seu contexto, um manual abstrato cujos princípios se aplicam quase tão bem a um conglomerado moderno quanto a um Estado renascentista. Mas, como sugere o caso de Savonarola, Maquiavel era em vários aspectos um produto característico de Florença, a cidade em que chegou à maturidade, a cujo governo serviu de 1498 a 1512 e para o qual escreveu a série de livros admiravelmente originais pelos quais é lembrado — sobretudo O príncipe, Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, História de Florença e A mandrágora. O interesse obsessivo de Maquiavel pelo funcionamento da política, seu amor pelos mexericos em torno a homens importantes e altos negócios, seu desesperado esforço para enunciar regras capazes de prever a reação dos homens aos desafios e crises políticas — todos esses e muitos outros traços de caráter e intelecto, ele os compartilhava com um número grande de concidadãos. Assim como as experiências políticas que o levaram a se afastar das convicções florentinas mais comuns acerca de alguns pontos vitais. Tanto na forma quanto no conteúdo, O príncipe deve muitíssimo à sociedade e cultura peculiares em que seu autor cresceu, trabalhou, pensou e viveu sua própria crise política. A Florença que Maquiavel serviu e conheceu era uma das duas grandes repúblicas que, nos últimos anos do século XV, ainda floresciam entre os grandes Estados, principalmente Milão, os Estados papais e Nápoles, que avançavam no domínio da península Itálica. Sendo uma das maiores cidades da Europa, sofrera muito durante os anos da peste no século XIV, e a indústria têxtil florentina — espinha dorsal da expansão medieval da cidade — encolheu juntamente com a população europeia que comprava seus produtos. Entretanto, durante o século XV, a prosperidade voltou a Florença, tanto no âmbito privado como no público, ainda que ela já não rivalizasse com o poder independente da outra grande república, Veneza. Os banqueiros e mercadores florentinos continuaram a aglomerar grandes fortunas; a nova indústria da seda veio cubrir parte da renda perdida em virtude do declínio do negócio da lã. Florença tornou- se o centro de um estado territorial que englobasse cidades anteriormente independentes, como Pisa e Livorno. 17 Desenvolveu uma vasta gama de instituições novas para enfrentar os problemas práticos que surgiam, desde um novo sistema tributário baseado na propriedade, o catasto, até uma frota de galeras fundeada em Pisa. A cidade passou a ser um dos centros da nova cultura clássica criada pelos humanistas do Renascimento: professores e intelectuais que estimulavam escolas e bibliotecas para o estudo dos clássicos gregos e latinos. Em outras cidades, como Milão, tais estudos dependiam da patronagem dos príncipes. Em Florença, ao contrário, estavam intimamente ligados à elite urbana e ao governo municipal. Florença teve a primeira grande biblioteca pública secular dos tempos modernos, a de San Marco, fundada pelo bibliófilo e nobre especialista Niccolò Niccoli. Desde os últimos anos do século XIV, os chanceleres da cidade — altos funcionários incumbidos de escrever a correspondência e a propaganda oficiais —, de Coluccio Salutati em diante, financiaram o estudo dos clássicos. Eles e os jovens intelectuais com os quais trabalhavam, como Leonardo Bruni, recorreram à evidência da história romana para garantir que Florença era uma descendente direta e digna da Roma republicana, e lançaram mão do pensamento político de Cícero e Aristóteles para declarar a qualidade superior da vida ativa dos cidadãos florentinos. Em outras palavras, bem antes do nascimento de Maquiavel, a cidade já era o centro do novo estilo clássico de educação e erudição. Na metade do século XV, os patrícios, assim como os funcionários, mencionavam regularmente exemplos clássicos nos debates públicos para justificar as opções da política moderna. Até mesmo o cenário da discussão política era mais clássico. A revolução artística do século XV, iniciada em Florença, alterou radicalmente a fisionomia da cidade à medida que as famílias particulares começavam a firmar grandes propriedades urbanas, nas quais construíam austeros e enormes palácios de fachada rústica e pátios com colunata. No lugar das antigas casas de mercadores, com o térreo ocupado por lojas abertas para a rua, se ergueram gigantescas estruturas clássicas, fechadas e monumentais. Mas essas discussões políticas florentinas, rodeadas do máximo rigor clássico no estilo, tratavam de questões sumamente práticas. Durante o século XV, a cidade sobreviveu a uma série de guerras prolongadas e debilitantes: com Giangaleazzo Visconti de Milão, com Ladislau de Nápoles e outros. Por sua vez, as tensões por elas impostas se tornaram, pouco a pouco, grandes demais para que a 18 forma republicana de governo da cidade pudesse suportá-las. Em 1433-34, Cosimo de Médici, exilado pelos adversários, voltou a Florença. Não chegou a abalar a república, mas a transformou mediante manipulações sutis, tomando o controle dos procedimentos empregados na seleção por sorteio dos membros das comissões de governo. Cosimo fazia questão de se dizer um mero cidadão florentino, e mesmo seus panegiristas o chamavam apenas de pater pátria e, a despeito da extensão de seu poder e da ampla escala de programas de construção que realizou, tornando óbvio seu status na cidade. Nas duas gerações seguintes, os Médici se alçaram a incontestáveis governantes de Florença, embora as antigas instituições da república ainda sobrevivessem. O netode Cosimo, Lourenço, o Magnífico, não dava margem a dúvidas quanto à grandiosidade de seu poder. Os embaixadores residentes de outras potências moravam com ele no palácio Médici, e Lourenço negociava pessoalmente para sair das gravíssimas crises públicas que o acometiam, como a guerra de 1478, travada contra Florença pelo papa Sisto IV e o rei Ferrante de Nápoles, depois que os membros de outra grande família, os Pazzi, fracassaram na tentativa de assassinar Lourenço. No século XVI, quando potências estrangeiras abalaram a Itália e se perdeu permanentemente a independência do século XV, os homens passaram a recordar a era de Lourenço como uma idade de ouro, na qual sua capacidade diplomática mantinha o equilíbrio entre as potências em luta da Itália, ao mesmo tempo que sua patronagem e seu apoio aguçavam artistas brilhantes como Botticelli e escritores como Poliziano. O próprio Lourenço escreveu sonetos e músicas de carnaval, inclusive a famosa e inesquecível “Quant’è bella giovinezza”. Em 1494, o rei francês Carlos VIII invadiu a Itália. Lourenço falecera em 1492. Seu filho Pedro, bastante inferior ao pai no trato das ameaças externas ou internas, indispusera-se com muitos cidadãos influentes antes mesmo do advento da crise. Quando os franceses chegaram, Pedro capitulou sem lutar. Ao voltar a Florença, descobriu que boa parte da cidade se agitou contra ele. Foi nesse momento crítico que Savonarola passou ao primeiro plano. Ele vinha acusando os vícios dos italianos e agourando a iminência do desastre havia tempos. 19 Quando Carlos VIII afirmou as previsões de Savonarola, o dominicano adquiriu enorme prestígio, não só por haver antecipado a invasão francesa como por ter convencido Carlos, como acreditavam muitos, a poupar a cidade. Valendo-se das tradições proféticas florentinas, que circulavam havia séculos, Savonarola começou a prenunciar que a cidade teria um papel importante e criativo na futura reforma da Igreja. Também reiterava que os florentinos, devido à sua energia e paixão políticas, só podiam viver numa república, e jogou todo o seu prestígio na criação de uma nova forma de governo centrada num Grande Conselho, do qual participaria um considerável número de cidadãos. Essa instituição foi criada juntamente com uma casa para suas reuniões, a qual Leonardo e Michelangelo se atribuir de decorar. Florença entrou numa derradeira e prolongada experiência com o republicanismo, que, apesar da crise de 1498 e da própria queda de Savonarola, duraria até 1512. Piero Soderini, o gonfaloniere, dominou essa república, tentando desesperadamente reconciliar os grandes patrícios com os comerciantes, que consideravam seus interesses radicalmente opostos. E Maquiavel — que ingressou no serviço dos Dez da Guerra em 1498 — passou toda a carreira política servindo o governo de Soderini. Tornou-se um funcionário público consumado, especialista em procedimentos governamentais e fluente na interpretação e produção de correspondência oficial. Cumpriu missões tanto no interior do estado florentino quanto na qualidade de diplomata no exterior. Trabalhando às vezes em colaboração com Francesco Vettori, um amigo íntimo de berço nobre, conheceu os mais poderosos governantes do seu tempo, na Itália e no Norte: César Bórgia, Luís XII da França, o sacro imperador romano Maximiliano I. Por vezes humilhado pelos representantes das potências maiores, ele se deu conta da insignificância de Florença na nova política e na guerra do início do século XVI. Eternamente curioso, também viu como Florença e outros grandes Estados empreendiam o negócio de se fazerem mais poderosos, e se tornou um crítico arquitetado e pungente da ação política florentina, cujos memorandos, na tradição da chancelaria da cidade, abundavam em exemplos da história romana, cuidadosamente escolhidos para deitar luz no presente. Convencido de que só um exército de cidadãos lutaria lealmente até o fim, Maquiavel, trabalhando para uma nova comissão, os Nove, 20 criou uma milícia para defender Florença, apenas para vê-la varrida num só dia pelos soldados que destruíram o regime de Soderini e restauraram os Médici no poder em 1512. Suspeito de conspirar contra os Médici, Maquiavel, depois de preso e torturado, deixou a cidade e se recolheu em sua pequena propriedade rural, a alguns quilômetros, sempre atormentado pelo desejo de voltar à metrópole e à política. Em outras palavras, a vida política de Maquiavel começou e terminou em invasão e revolução. Não admira que ele considerasse a ordem política tão frágil e asseverasse que sua preservação devia se sobrepor aos escrúpulos das delicadas mentes tradicionalistas. Foi nessas circunstâncias que Maquiavel escreveu cartas e cartas a Vettori, discutindo a interpretação política dos fatos recentes e — já que o amigo insistia na inescrutabilidade dos príncipes — reiterando que ele dominava a arte de ler os atos e intenções principescos. Levado ao desespero pela exclusão do mundo da política e se agarrando à esperança de que sua capacidade o levasse a recuperar a posição de poder perdida, Maquiavel se voltou para a cultura clássica e a experiência política de sua cidade natal, confiando que nelas havia de encontrar os recursos intelectuais de que precisava. Na mais famosa dessas cartas, relatou longamente que se via obrigado a viver reduzido a mexericos de aldeia, pescarias e jogos, lendo uma edição de bolso, então na moda, de poemas de amor, discutindo com vizinhos pobres e tolos. E tentou converter a tragédia em triunfo mostrando que era capaz de transcender aqueles percalços exercitando sua aptidão de analista do passado e do presente: Quando a noite cai, eu volto para casa e me encerro em meu escritório; e, na soleira, tiro a roupa de todo dia, sempre coberta de barro e lodo, e ponho vestes régias e curiais; e, vestido de maneira mais adequada, adentro as antigas cortes de homens antigos e por eles sou amavelmente acolhido, e lá saboreio o alimento que é só meu e para o qual nasci; e lá não me envergonho de lhes falar, de indagar as razões de seus atos; e eles, em sua humanidade, respondem; e, durante quatro horas, não sinto nenhum tédio, descarto toda aflição, já não temo a pobreza nem estremeço ante a ideia da morte: passo a fazer parte deles cabalmente. E, como Dante diz que não existe conhecimento sem a sua retenção na memória, venho anotando o que aprendo com sua conversa, e compus um livrinho, De principatibus, em que mergulho tão fundo quanto posso em pensamentos sobre esse tema, discutindo o que é principado, que tipos existem, como são adquiridos, como são mantidos, por que se perdem. 21 Maquiavel se voltou para o recurso tradicional do erudito — a leitura dos clássicos — não só por distração, mas também por desespero. Assim fazendo, esperava não apenas chegar a compreender sua situação, como provar sua habilidade suprema e, desse modo, obter um cargo no novo governo dos Médici, no qual seu talento não enferrujaria no isolamento rural. Consequentemente, dedicou a obra a Juliano de Médici, na esperança de que suas ideias fossem bem recebidas por “um novo príncipe”. Em outras palavras, Maquiavel acreditava nos recursos da tradição humanística — o conhecimento dos clássicos e a eloquência na expressão — para reconquistar uma posição que permitisse-lhe ter a vida política ativa que anelava mais que qualquer outra coisa. À primeira vista, o livro que Maquiavel escreveu para demonstrar destreza como analista político parece tão tradicional quanto seu método. Antes dele, muitos humanistas, desde Petrarca, abordaram o tema do príncipe ideal. E, tal qual Maquiavel, discutiram como devia ser a educação do príncipe, de que qualidades morais e intelectuais ele mais precisava e de que maneira lidar com os súditos. Assim como a de Maquiavel, suas obras vinham lotados de exemplosclássicos de boa e má conduta, extraídos de antigos biógrafos e historiadores. O título dos capítulos de O príncipe — que Maquiavel publicou em latim, não no italiano em que redigiu o texto, e que propunha para discussão tópicos tradicionais, como se convinha ao príncipe desejar ser amado ou temido pelos súditos — oferecia indicações a qualquer pessoa culta: Maquiavel e seus leitores trilhavam um caminho pelo qual muitos já haviam passado. Mas, desde o início, ele insistia na originalidade de sua abordagem, mesmo das questões mais tradicionais a que referia-se. Os tratados humanistas anteriores acerca do príncipe ideal começavam com princípios éticos gerais: a natureza do homem, o propósito do governo, a vinculação de ambos na busca da vida virtuosa. Maquiavel, pelo contrário, teve a audácia de alegar que trataria a política tal como ela realmente era. Dividiu todos os principados em duas categorias, o novo e o consolidado, e, se abstendo de qualquer juízo de valor, explicou do que o príncipe necessitava, em cada caso, para manter o controle de seu reino. Os tratados anteriores achavam que o príncipe precisava acima de tudo ser bom: buscar a virtude, no sentido tradicional. Escritores como Bartolomeo Platina e Francesco Patrizi basicamente ofereciam longas lista das virtudes que convinha ao príncipe cultivar e dos vícios que deveria 22 evitar, todas apoiadas em numerosos casos extraídos de fontes clássicas. Seu tratamento refletia realidades contemporâneas: os escritores humanistas reconheciam que os reis desejavam a fama neste mundo, assim como a vida eterna no outro, lhe elogiavam o apoio generoso à cultura e à erudição em vez da parcimônia, e às vezes exibiam considerável sagacidade psicológica. Maquiavel também falava em virtude, constantemente. Mas empregava o termo “virtude” em muitos sentidos, inclusive no da necessária e fundamental capacidade, independentemente de quaisquer questões acerca do bem ou do mal, de manter o controle dos súditos e do reino. Em consequência, Maquiavel dizia constantemente ao leitor que as qualidades tradicionalmente consideradas “virtuosas”, no sentido cristão ou feudal, nada tinham de virtuosas no príncipe. A liberalidade, por exemplo, era uma das mais bem estabelecidas virtudes principescas. No entanto, se praticada seriamente, arriscava levar à prodigalidade, à ostentação e à dilapidação da riqueza do príncipe e à opressão de seus súditos, e, no fim, ao desprezo e ao ódio destes por ele. O príncipe que compreendesse verdadeiramente a “virtude” — no sentido das qualidades necessárias à perpetuação de seu Estado e poder — preferiria o “vício” da avareza à “virtude” da liberalidade. Várias s vezes, Maquiavel transformava valores tradicionalmente realçados e louvados nos escritos formais em teoria política. Ele mesmo chamava a atenção do leitor para as diferenças radicais entre sua abordagem e a de seus predecessores. Outros, escreveu no capítulo XV, discutiam repúblicas que não existiam em nenhum lugar da Terra. Ele, pelo contrário, se propunha a discutir “a efetiva realidade das coisas”: estados, governantes e súditos como realmente eram. Não sugeriria regras de bom comportamento no sentido, por exemplo, cristão. Mais de uma vez, relatou que o príncipe verdadeiramente cristão que conservasse a fé, enquanto outros príncipes não o faziam, ou que buscasse o amor dos súditos em vez de fazer com que o temessem, acabava inevitavelmente perdendo sua posição. Cícero afirmou em De of iciis, obra constantemente citada e aplaudida pelos humanistas, que o homem virtuoso devia atingir seus fins mediante a comunicação e a persuasão, não pela força ou pela traição, táticas adequadas aos animais: ao leão e à raposa, respectivamente. Maquiavel, ao contrário, afirmava que o príncipe às vezes devia encarnar o leão poderoso e firme, às vezes a raposa astuta e esquiva. 23 Desse modo, sublinhava sua convicção de que o príncipe não podia se deixar constranger pelas imposições da moralidade normalmente se quisesse fazer adequadamente seu trabalho. Em suma, desde o começo, Maquiavel apresentava ao leitor a percepção de que o esforço direto para dominar e adotar os princípios da moralidade tradicional não produziria um governante eficaz. A política tinha de ter outras normas. Como mostrou Felix Gilbert, Maquiavel colocado essas inovações radicais na teoria política, numa extensão considerável, simplesmente transferindo, da esfera privada das discussões governamentais sobre a ação política para a esfera pública da escrita política, a experiência política florentina acumulada. Fazia muito tempo que o governo florentino convocava reuniões dos cidadãos mais influentes toda vez que o Estado enfrentava uma crise grave, e os participantes dessas reuniões invocavam precedentes clássicos e modernos tão regular e realisticamente quanto o próprio Maquiavel. Procuravam formular normas que os auxiliassem a entender tanto as mudanças na esfera política maior, quando grandes potências disputavam a península Itálica, quanto as agitações no seu próprio mundo florentino, já que revoluções contínuas afligiam sua querida cidade. E as exprimiam em termos tão corrosivos e mordazes quanto as mais rigorosas formulações do próprio Maquiavel. Ameaçados por uma potência estrangeira, os florentinos eram capazes de dizer: “Cão que ladra não morde”. Mais genericamente, os patrícios florentinos sabiam que, para ter sucesso, as ações políticas dependiam não da ação divina, e sim do alcance de sua habilidade e dos recursos com os quais eles computavam as possibilidades. Em 1496, quando Florença corria perigo devido à sua política de lealdade com a França, um ilustre cidadão analisou que a cidade podia “resistir ou com a força, ou com a inteligência. E não me parece possível que possamos opor resistência a toda a Itália pela força. Mais vale optar pela alternativa da inteligência”. Bem antes que O príncipe chegasse às mãos dos príncipes renascentistas, os quais, à cata dos segredos da ação política eficaz, talvez lessem suas páginas com avidez, os patrícios de Florença já debatiam política de modo cabalmente realista, entendendo que, muito mais do que 24 pelas ideias que eles citavam, seus atos eram dirigidos pelos diversos interesses dos Estados e dos indivíduos. Além disso, a partir da década de 1490, a experiência de lidar com governantes vigorosos como César Bórgia e com os grandes exércitos dos franceses levou os florentinos a compreenderem cada vez mais que a força governava os negócios humanos. Os patrícios de outrora preconizavam a política do adiamento e exortavam à negociação. Na época em que escreveu O príncipe, Maquiavel era apenas um entre muitos “profetas da força” florentinos. Em outras palavras, tanto os conceitos como as imagens usados por ele para descrever o governante bem-sucedido provinham, em escala considerável, da linguagem política da elite florentina. Nenhum capítulo de O príncipe ficou mais famoso, por exemplo, do que aquele em que Maquiavel tentou avaliar o alcance da liberdade de ação humana. Assim como em outras partes, ele argumentou que a fortuna tinha um poder enorme sobre o homem. Às vezes, como o rio Arno, arrastava tudo consigo, destruindo — como a invasão francesa — todas as instituições concebidas pelos homens para se proteger e manter a ordem. Nesse sentido, os preparativos humanos contra o poder imenso da fortuna — como a engenharia hidráulica — podiam apenas limitar e canalizar o dano resultante, não proteger contra ele. Às vezes, como uma deusa caprichosa, a fortuna simplesmente alterava a situação no campo de jogo, fazendo do adiamento a tática aconselhável, muito embora o indivíduo na época em questão, amaldiçoado por seu caráter, continuasse a se arrojar contra todos os oponentes, se destruindos ao fazê-lo. Em geral,reiterou Maquiavel, o ousado tinha mais sucesso que o hesitante. A fortuna, escreveu, recorrendo a uma imagem amiúde citada em sua época e ainda notória hoje em dia, era afinal de contas mulher. Consequentemente, favorecia os que tinham a audácia de tratá-la com brutalidade. O conselho de Maquiavel no trato com a fortuna era próprio dele. Mas, em seu apaixonado interesse pelo poder da condição de transformar os fatos, assim como em sua percepção da fragilidade dos líderes humanos e de seus planos, ele lançou mão dos recursos intelectuais da classe dominante florentina. Os patrícios, cuja proeminência se apoiava não no berço antigo e na destreza militar, e sim nas vendas e nos investimentos, sabiam que podiam perder tudo da noite 25 para o dia. Alguns — como o grande patrono da arquitetura Giovanni Rucellai — mostravam uma preocupação quase obsessiva com o tema. Rucellai tomou por emblema uma vela inflada, indicando que a fortuna, que também podia ser um vento forte, impelia o barco de seu cabedal. Em toda parte, brasonava com ela os grandes projetos de edifícios que financiava, inclusive a fachada da igreja de Santa Maria Novella, com sua incongruente paisagem de velas infladas. E ainda pôs uma imagem da própria fortuna — mulher, nua e difícil de controlar — num belo medalhão no pátio de seu palácio florentino. Escritores como Leon Battista Alberti invocavam regularmente o poder da fortuna de destruir, assim como de favorecer, as grandes famílias. Ao tratar o sucesso e o fracasso como algo não recebido pelo mérito da boa conduta, mas arrebatado ao controle de um cosmo indiferente, Maquiavel usou um consolidado conjunto de imagens e metáforas. De forma curiosa, para quem tanto proclamava sua capacidade de dar uma explicação verdadeira e profunda da política, Maquiavel às vezes escrevia como se aceitasse outra corrente, divergente, do pensamento político florentino. Tanto Vettori, com quem ele colaborou ativamente no período que levou para escrever O príncipe, quanto Francesco Guicciardini, outro amigo íntimo e crítico severo de Maquiavel, o acusavam de excessiva presunção. As intenções políticas eram normalmente inescrutáveis. Via de regra, as ações políticas tinham efeito incalculável. E a maioria das situações — como argumentou Guicciardini em seu famoso Ricordi — tinha caráter muito diferente para que se pudessem inferir claramente os fatores comuns que nelas operavam. Em suma, a política não podia ser prevista nem controlada, pelo menos não com a devastadora facilidade prometida pelo autor de O príncipe. Apesar de sua autoconfiança como conselheiro, Maquiavel não discordava totalmente dessas críticas. Os homens, admitia, tinham caráter fixo: valente ou covarde, ousado ou vacilante. As circunstâncias às vezes favoreciam um estilo de ação, às vezes outro. Mas ninguém podia, sempre ou com frequência, adaptar seu caráter aos tempos cambiantes. Nessa medida, todos os políticos estavam fadados a fracassar parte do tempo, mesmo que as políticas ousadas geralmente fossem preferíveis. Maquiavel 26 nunca se mostrou tão florentino como quando perdeu a esperança na possibilidade de encontrar governantes capazes de pôr em prática suas observações políticas. No entanto, seu livro e seu pensamento político também se distanciavam, em aspectos cruciais, das tradições da linguagem política que tanto lhe ensinaram. E esse distanciamento continua desafiando todos os intérpretes de sua vida e de seu pensamento. Em primeiro lugar, como vimos, Florença era tradicionalmente uma república; o próprio Maquiavel prestara fiéis serviços à república e, na carta prefacial a O príncipe, chegou a afirmar que havia discutido os governos republicanos em outra obra — observação geralmente considerada referente a Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, na qual analisou a experiência da Roma antiga a fim de entender quais instituições eram capazes de preservar uma república. Em O príncipe, ele explicou como um governante absoluto podia assumir e manter o controle de um Estado anteriormente republicano. Em Discursos — obra que, na sua forma final, reflete palestras ministradas por Maquiavel a um grupo de nobres e intelectuais no agradável jardim da família Rucellai, alguns anos depois da queda da república —, ele tentou elucidar o sucesso dos romanos na criação e conservação de um Estado com fortes elementos populares que existiu durante séculos. Embora a análise da política republicana fosse tão rigorosa e pragmática quanto o manual para príncipes, sua obra tardia mostra uma forte preferência pelo governo popular, uma fé na lealdade e virtude gerais do povo aparentemente difícil de conciliar com a análise realista da turba volúvel e fácil de enganar que escorava suas instruções sobre o comportamento principesco eficaz. Muitos estudiosos tentaram, com graus variáveis de sucesso, reconciliar as duas obras, explicar as diferenças entre elas pela evolução do pensamento de Maquiavel ou provar que somente uma delas refletia sua verdadeira opinião. Mas todo esse esforço permanece inconclusivo. A natureza dos ideais pessoais de Maquiavel — assim como a maneira como ele teria comparado ou contrastado as duas obras — continua incerta. Quem quiser se debruçar sobre o pleno desenvolvimento do pensamento de Maquiavel precisa, acima de tudo, explicar o que aquele leal servidor da república pretendia com seu elogio à tirania. Mesmo no bojo de O príncipe, Maquiavel desafiava os leitores com problemas de interpretação. Reiterou, como todos os leitores desse 27 livro enxergam prontamente, que ao príncipe convinha aplicar quaisquer táticas, até as viciosas, que lhe garantissem o controle sobre seu Estado. Táticas de terror; o emprego de subordinados truculentos que, por sua vez, podiam ser executados com igual truculência quando tivessem levado a cabo sua tarefa; até mesmo o extermínio dos adversários: todos esses expedientes figuravam nas páginas de O príncipe, em geral descritos com aparente equanimidade. Maquiavel chegou a transformar um dos mais temíveis governantes seculares de seu tempo — César Bórgia — numa espécie de herói, não por sua conduta virtuosa, mas pela brilhante combinação de táticas que quase fez dele o senhor absoluto da Itália central. Por vezes, o autor de O príncipe parece se deleitar com a brutalidade que descreve. Alguns leitores — notando que, na vida real, quando foi designado emissário junto a César Bórgia, Maquiavel o havia criticado duramente — foram tão longe em seu desejo de salvá-lo da acusação de imoralidade política que chegaram a alegar que ele pretendia oferecer não um sério relato, e sim uma sátira amarga da vida política contemporânea, passível de ser decodificada por seus leitores. Da época de Maquiavel para cá, a maioria reagiu de modo radicalmente diferente, tratando-o como um deliberado mestre da imoralidade cuja obra marca o fim de uma forma tradicional de vida e pensamento políticos e o nascimento da modernidade, com todos os seus vícios característicos. Contudo, o próprio Maquiavel, quando com outra disposição de espírito, reconhecia que um governante não tinha o direito de massacrar os concidadãos indiscriminadamente, mesmo que isso se mostrasse eficaz. Agátocles, o tirano de Siracusa, não podia ser considerado “virtuoso”, escreveu, por mais bem-sucedida que tivesse sido sua política. Como mostrou Victoria Kahn, esse foi o modo como Maquiavel ressaltou a complexidade e a fluidez da vida política e do juízo político. Tentou ensinar a seus leitores que não se devem buscar normas rigorosas, e sim aprender a pensar sutilmente seus caminhos e suas exigências em cada situação política diferente. Ao afirmar que nenhuma qualidade isolada pode ser identificada como “virtude” e buscada em toda e qualquer situação, ele passou a ser o mestre político da Europa.Nas cortes e universidades, gerações de leitores aprenderam, com Maquiavel, a esquadrinhar a elaboração das decisões políticas com um novo e duro realismo e uma percepção clara de que nenhum governante que espere sobreviver pode se abster de uma ou outra forma de perfídia. Maquiavel emprestou seu nome ao 28 “Maquiavel”, o velhaco que manipulava os outros nas tragédias jacobianas, mas também forneceu o núcleo das doutrinas da “razão de Estado”, que vieram a ser a educação política fundamental da Europa moderna. Ele detestava os “profetas desarmados” (profeti disarmati) como Savonarola. No entanto, o próprio Maquiavel estava armado apenas de uma pluma quando se tornou o profeta de um novo entendimento da política. Deu uma forma literária permanente e inesquecível à perspicaz, implacável visão da política por tanto tempo cultivada pela elite florentina. Ao mesmo tempo, porém, deixou claros os limites dessa visão herdada, assim como os da visão mais idealista que antes dominara a literatura política. Não admira que seu retrato do príncipe, tal como o de Savonarola, conserve a capacidade de fascinar, assustar e instruir. 2 CONTRATUALISMO/ JUSNATURALISMO Fonte: files.sabedoriapolitica.com.br Historicamente, o jusnaturalismo e o contratualismo deixaram de causar atração já na época de Hegel. Seu impacto, que fascinou uma gama de pensadores em torno de aproximadamente dois séculos, iniciou seu declínio por conta das críticas que várias correntes, em essência tão díspares, investiram contra um dos cernes do jusnaturalismo: a teoria do contrato. 29 Todavia, e não custa lembrar, apesar de partilharem da crítica as semelhanças entre Hegel e os demais grupos de críticos, alguns sendo seus coetâneos, para por aí. Porque malgrado ele refute que uma ordem política, tal como é o Estado, não possa surgir, sob qualquer hipótese, a partir de um pacto entre os homens, no fundo sua filosofia, em particular a do campo prático, é, citando uma proeminente figura italiana da filosofia política, “ao mesmo tempo dissolução e realização” (BOBBIO, 1989, p.24) do direito natural. Para dissipar quaisquer dúvidas uma pequena olhada no subtítulo de sua obra política ratifica o que havíamos dito; ali lemos “Princípios da Filosofia do Direito – ou Direito Natural e Ciência Política”. Seu emprego aqui não é casual. Hegel não está fazendo um uso indevido da noção porque realmente sua tese crucial do Estado fortalece um dos axiomas inerentes aos jusnaturalistas, aceito por Hegel: a do aspecto racional do Estado que com o filósofo alemão alcança sua radicalização máxima. Deveras o debate e a reformulação do direito natural sempre estiveram presentes no discurso hegeliano, até mesmo na fase inicial da construção do sistema. Mormente em suas obras de juventude encontramos um texto curto, mas complexo, de 1802 cujo título “Sobre as Maneiras Científicas de tratar o Direito Natural” concentra-se num confronto encetado por Hegel contra as abordagens metodológicas utilizadas pelos jusnaturalistas apresentando logo em seguida o seu próprio método, batizado de “especulativo”. Sua importância é perfeitamente condensada naquele juízo supra citado de Bobbio que sintetizava exemplarmente o significado deste texto na tradição jusnaturalista. Por esta obra tratar claramente do tema do direito natural examinemos, de momento, algumas teses apresentadas por Hegel. E o faremos por uma razão: ela auxilia na apreensão da crítica feita ao modo empírico de lidar com o direito natural, permitindo ter um painel daqueles elementos repudiados e reavaliados pelo filósofo alemão e que acham-se na sustentação da doutrina da vontade geral em Rousseau. Portanto, a ênfase ser dada na primeira e terceira parte da obra. Preliminarmente comecemos, antes de tudo, definindo a noção de “natural”. Ela possui duas acepções que estão interligadas entre si e, embora não estejam definidas em Hegel, subjazem à suas intelecção. O primeiro foi elaborada por Grócio, pai do Direito moderno, e se enlaça com o anelo de sua época de querer alçar o campo jurídico ao plano da razão, tal como vinha fazendo Descartes no campo da filosofia e da pesquisa científica. 30 Para Grócio, incluindo aí os sucessores de sua doutrina, cabe à razão, e apenas à ela, identificar as normas, universais e necessárias, implícitas nas condutas humanas e os quais, por sua vez, condizem com a natureza humana, ou seja, que compõem indissoluvelmente ela. Então, qualquer direito natural, que se debruce sobre o seu objeto – o comportamento intersubjetivo – é cognoscível pelo esforço racional. Translademos um parágrafo de Grócio: “O direito natural é um ditame da justa razão destinado a mostrar que um ato é moralmente torpe ou imoralmente necessário segundo seja ou não conforme à própria natureza racional do homem (...)” (GRÓCIO, in: BOBBIO, 1989, p.20-21) Hegel se afina com esta proposta, efetivamente, pois o aspecto racional conserva-se em sua obra, porém a sacraliza mediante uma autêntica semântica cuja proposta se esquiva da perspectiva traçada pela tradição filosófica desde Descartes. A segunda acepção lemos no prefácio escrito pelos tradutores da edição brasileira desta obra. Eles comentam: “Um direito se chama natural porque se encontra já, previamente, dado à sua experiência, antes que o indivíduo intervenha em sua elaboração” (HEGEL, 2007, p.26). Esta explicação é comum ao termo e dá uma conotação forte da dimensão apriorística do direito natural. As normas objetivas, congênitas ao homem e essência da nossa natureza, são alcançadas pela razão humana e só através desta via é que aflora nossa substância e as regras mais básicas de co-existência dentro da realidade ética. Também pressupomos esta doutrina nos predecessores de Hegel; mas há um parêntese a ser feito. Para os jusnaturalistas se fala em um ‘antes’ e ‘depois’: postula-se uma vida pré- social realidade em que os direitos naturais vigoram em estado bruto, percebido em menor ou maior grau pela consciência humana e que, no instante da mudança para a ordem civil ela passaria a ter validade axiomática ao adquirir legalidade face ao poder civil. Em contrapartida, falar em “anterior” quando contextualizado na filosofia hegeliana significa que, por ser uma singularidade o indivíduo está imerso já numa comunidade, com sua cultura, sua história própria, seus costumes, sua moral, etc. e é dentro dela, convivendo e atuando nela que ele descobre os direitos objetivos, quer dizer, naturais, cabendo ao cultivo de sua razão, propiciada somente por sua pertença a um povo, o qual dispõe de recursos, tais como a educação, o qual promove e aperfeiçoa o particular em sua individualidade instigando-o a reconhecer seus direitos. Explicitaremos melhor o último ponto em seguida. 31 Em suma, seriam estas as duas perspectivas latentes no termo “natural”. Depois deste desvio retornemos ao caminho dantes interrompido, dando continuidade ao exame de suas premissas. Adotemos em princípio um caminho inverso empreendido ao do traçado por Hegel começando pela sua proposta metodológica e, depois passemos a um exame detalhado da confutação do método e da estrutura do empirismo científico no campo do direito natural. Hegel persegue a idéia absoluta da vida ética. Isto demanda retificar o pontapé inicial inaugurado por métodos como o formal e o empírico se alinhando à uma visão de mundo político articulado a harmonia grega da pólis e à Aristóteles: a singularidade do indivíduo, que é parte de um grupo coletivo, é posterior ao social. A proposição, coerente a filosofia especulativa, ecoa nestas páginas: Ela [i.e., a vida ética] não pode, em primeiro lugar, expressar-se no indivíduo singular se ela não é sua alma, e ela não o é na medida em que ela é um universal e o espírito puro de um povo; o positivo é, por natureza, anterior ao negativo; ou,como o diz Aristóteles, o povo é, por natureza, anterior ao [indivíduo] singular(...). (Ibid., 2007, p.108) A comunidade, logo, vem antes do indivíduo. Então o que será a vida ética? A princípio ela é um todo, uma totalidade (Totalität), que não pode ser mecânica, pois seus compostos trabalham e respiram em interconexão umas com as outras, mas sim é orgânica: ela é uma totalidade orgânica. Isto ainda não responde à pergunta, mas encaminha-nos a uma conclusão provável. O que seria, então, a idéia racional da vida ética? Para Hegel a “totalidade ética absoluta não é, senão, que um povo” (Ibid., 2007, p.83) E o conjunto da comunidade ética nada mais é do que eticidade (Sittlichkeit). Eticidade é o âmbito em que acompanhamos a correlação entre os princípios formais do direito natural e aqueles deveres e direitos objetivos os quais se transformam em concretos a partir da história de um determinado povo. Este, por desdobrar-se gradualmente no tempo, representa uma figura da eticidade. Portanto, a eticidade é o âmbito em que se entrelaça o direito natural com os costumes, instituições, cultura, necessidades (objeto da economia política), propriedade, enfim, todos os tipos de relações jurídicas-políticas e, obviamente, morais os quais realizam- se no âmago das relações intersubjetivas. Aí vemos a posição adjudicada por Hegel ao direito natural: esta não é um princípio do além, detectada por uma razão que a torna atemporal, eterna e prévia à vida no plano de 32 um ordenamento político; o direito natural está na, e acompanha, a sociedade no seu devir histórico. A Sittlichkeit é o positivo porque é, não a separação entre a multiplicidade e identidade, mas unidade de ambos além de outros opostos (conteúdo-forma; finito- infinito; particular-universal; etc.). Ao lado do ius naturale as leis positivas do Estado “são somente a forma das mudanças materiais que se produzem na vida do povo”(BAVARESCO, 2007, p.24) e, em si mesmas, nada mais significam senão o lado formal, universal e abstrato, de definir a legalidade de uma nação independente do contexto histórico. Ora, priorizando a totalidade orgânica do povo impede Hegel de aceitar os postulados que o método científico fornece na consecução de seu objetivo de proporcionar a substância da existência ética. Os acusados aqui englobam todos os jusnaturalistas como Grócio, Hobbes, Pufendorf e, obviamente, Rousseau. Vejamos então, exposto brevemente a resposta hegeliana às deficiências da visão formal e empirista, investigar as ferramentas usada por este último procedimento. Valendo-me dum estudo publicado faz já alguns anos, em nossa língua, e por sinal bem arguto, o autor secciona o todo do argumento de Hegel, no capítulo sobre o método empírico, em duas etapas cruciais: a) a que descreve o instrumentário do cientificismo empírico cujo intuito é apreender o direito natural; b) a que penetra nos meandros da estrutura do pensamento jusnaturalista. Ambas discussões avaliam o grau da recusa hegeliana de atinar a verdade ao percorrer um caminho que fragmenta a visão ao invés de unificá-la. Qual é o instrumentário e o objeto com que opera o empirismo para se mover em relação à compreensão do real? Transpondo a abertura do capítulo pra cá temos desvelado como funciona esta doutrina: No que se refere, então, à maneira de tratar o direito natural, que nós chamamos maneira empírica, não se pode absolutamente, em primeiro lugar, engajar-se, segundo sua matéria, nas determinidades e nos conceitos-de- relação mesmos, mas é precisamente este pôr de lado e fixar as determinidades que se deve negar. (HEGEL, 2007, p.41) Por estar circunscrita aos ditames da experiência esta afirmará a multiplicidade do mundo preenchido por características detalhadas, que expressam um singular, e 33 que são as determinidades; doutro lado os conceitos de relação exprimem a conexão entre estes mesmos caracteres; apenas elas estão em um liame condicionado uns aos outros. Como a explicação demanda uma justificativa, a lei incondicionada que funda o real, o empirista escolhe arbitrariamente um conceito e, corolariamente, o põe na base de todo o constructo teórico. Ou seja, ele opta por noções isentas de qualquer necessidade e universalidade achando poder satisfazer-se cabalmente com um princípio contingente derivado do múltiplo. Pelo lado da cientificidade, como este almeja a unidade a vocação do empirista tende a aprovar uma singularidade atômica qualquer como completando a lacuna do princípio vindo a expressar, plenamente, e a partir de então, a totalidade perseguida. Até aqui tudo se ordena coerentemente. O problema está na atitude conseqüente e contraditória entre a prática empírica e unidade científica. Ao enfatizar uma singularidade contingente esta imediatamente se torna o axioma que rege tal realidade, daí sendo tudo o mais derivado. Mas pela sua falibilidade ela poderá, posteriormente, ser substituída por outro dado explicativo e, assim, ad infinitum. Isto reverbera no discurso forjado pelo defensor desta perspectiva. Hegel dá até exemplos: Para conhecer a relação [constitutiva] do matrimônio, põe-se tanto a procriação dos filhos quanto a comunidade dos bens etc., e é a partir de tal determinida de que, enquanto o essencial, é erigido em lei, que a relação orgânica toda inteira é determinada e manchada; (HEGEL, 2007, p.41) O matrimônio é uma totalidade da qual emanam várias determinações singulares (filhos, bens, etc.). Cada realidade parcial do mundo ético – e aí citamos, além do matrimônio, a pena, a educação, o poder político, etc. – são apreendidos em seu conjunto a partir de um conceito fragmentado extraído da experiência do qual depreendemos o restante, posto ela tornar mais ordenada e inteligível este real – o fato de ter filhos (singular) seria a causa da união entre o homem e a mulher. Funcionar como uma análise e determinação das partes do real é o modo de operação que o empirismo irá transferir para o discurso científico. Ciência é um saber o qual impinge em suas afirmações o status da universalidade (válido para todos) e da necessidade (aquilo que não pode ser diferente do que é). Ora, qualquer objeto do direito natural tem por objeto a eticidade que, como vimos supra, é uma totalidade. Como conciliar, porém, a definição de um princípio unitário se a experiência fala de realidades diferentes e oposições que são fixadas pelo entendimento, ou seja, 34 de partes mutáveis e fragmentada? Sendo o todo o fim da investigação ética há um apelo à noção de completude: “a totalidade científica apresenta-se à ciência empírica como totalidade do múltiplo ou como completude” (Ibid., 2007, p. 43). No fundo não há nenhuma mudança aqui porque completude é a unificação das diferenças (determinidades), realizado por soma destas partes, e cuja configuração final permite dar um painel do mundo o qual pretendemos compreender (Cf. BENJAMIN, 2002, p.354) O empirismo não manifesta um rigor com o princípio de completude, que é formal, consentindo, arbitrariamente, que um conjunto de dados diferentes e antitéticos, condicionados, sirva de incondicional. Ao invés da integralidade do todo aparece somente uma parcialidade mutilando a reflexão filosófica que fica míope e resguardada na singularidade individual. Avaliando agora o seccionamento b, Hegel aprofunda, a partir do exame do modelo de explicação do discurso jusnaturalista, ao menos daqueles que empunham o viés cientificista, a aplicação e o processo de reconstrução do Estado mediante o emprego dos conceitos empíricos e seu tratamento que incide na problemática ético- política. Nesta altura Hegel rechaça o postulado nodal da existência de um estado de natureza, pilastra destas doutrinas, que estipulava – seja hipotética ou historicamente – a condição pré- social da vida humana, composta geralmente pela presença de indivíduos que
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