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A Filosofia Prática de Kant - Prof. Dr. Roberto Vasconcelos Novaes A filosofia prática de Kant Neste tópico, trataremos da ética de Kant, ponto do seu pensamento que é o real foco de nosso trabalho. Em virtude disso, aquele referido sentido ético e metafísico foi a principal razão para a exposição, ainda que muito breve, dos temas e das conclusões da primeira crítica. Os dualismos estabelecidos nesta obra, tais como entre coisa em si e fenômeno ou entre conhecimento a priori e a posteriori, tornam- se, a partir dela, essenciais à obra de Kant1. Podemos dizer que toda a vasta produção posterior do autor se encontra baseada nas teorizações apresentadas na Crítica da razão pura, ainda que, diversas vezes, os analistas sejam capazes de apontar certas incongruências e incompletudes da obra posterior. Isto se deve muito mais ao fato de que a produção intelectual de Kant continuou prolífica por, pelo menos, mais quinze anos2, e não à contradições sistemáticas propriamente ditas. Na obra ética, embora o que seja o mais relevante no trabalho de um filósofo dependa do ponto de vista do intérprete, a cisão essencial é aquela que se dá entre causalidade e liberdade, entre o mundo da natureza (o ser) e o mundo da vontade (dever ser). 5.2.1) A ética e a razão pura Na primeira crítica, Kant demonstrou as condições a priori pelas quais é possível o conhecer, denominadas transcendentais. As condições transcendentais do sujeito são aquelas segundo as quais se dá toda experiência, ou seja, segundo as quais existe o mundo para a razão. De maneira análoga, a ética kantiana possui como objetivo central o de desvendar as condições puras (a priori) segundo as quais existe a esfera da liberdade, ou seja, segundo as quais toda a moralidade é possível. A ética de Kant procura explicitar os princípios e fundamentos da moralidade, tal qual a moralidade se apresenta a partir da convivência de seres racionais, que são, eles mesmos, causas do próprio agir. Busca, entretanto, não as condições empíricas de uma moralidade dada aqui ou acolá, como historicamente verificada. Pelo contrário, da mesma forma que na teoria do conhecimento Kant revelou os pressupostos a priori de todo conhecer concreto, na ética quer revelar as condições transcendentais do sujeito que age como causa sui em relação a outros sujeitos. Nos dizeres de Salgado: 1 Grondin (1989), após relatar as influências da cisão entre o a prori e o a posteriori nas várias obras posteriores à KrV comenta: “L’a priori paraît bel et bien être la porte d’entrée de tout lê système de Kant” (op. cit., p. 12) (O a priori parece bem ser a porta de entrada de todo o sistema de Kant – tradução nossa). 2 A primeira edição da Crítica da razão pura é de 1781. Suas obras mais volumosas e significativas do ponto de vista teórico e historiográfico foram editadas nas seguintes datas: 1783 � Prolegômenos a toda metafísica futura para que possa se apresentar como ciência; 1784 � Idéia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita e Resposta à pergunta: O que é o iluminismo?; 1785 � Fundamentação da metafísica dos costumes; 1787 � Crítica da razão pura (segunda edição); 1788 � Crítica da razão prática; 1790 � Crítica da faculdade de julgar; 1793� A religião nos limites da simples razão; 1795 � Sobre a paz perpétua; 1797 � Metafísica dos costumes. Sobre uma cronologia bastante completa dos trabalhos de Kant, consultar GUYER, 1992, p. x-xii. A Filosofia Prática de Kant - Prof. Dr. Roberto Vasconcelos Novaes “Ora, a esfera do dever ser [ou seja, a esfera moral] só tem sentido se fundada na vontade, pois esta é a condição de existência do dever ser. Entretanto, a vontade que o sustém ou é psicológica e empírica, ou transcendental. Se psicológica e empírica, funde-se o dever ser no ser e nenhum sentido teria o dualismo. A sua origem só pode ser justificada do ponto de vista transcendental, filosófico portanto. Nesse sentido, o direito, a moral e todas as ordens normativas teriam um suporte último na lei fundamental da razão, critério (a priori) de toda a obrigatoriedade – objeto de indagação filosófica.” (SALGADO, 1995, p. 175) Em oposição ao pensamento kantiano, encontram-se todas as doutrinas morais que buscam o fundamento da moralidade não nas condições formais puras do agir, mas na vontade psicológica e empírica do indivíduo (SALGADO, loc. cit.). Nosso trabalho, como mais adiante veremos, é uma tentativa de conciliação entre as condições racionais puras do sujeito moral e a objetividade da moral socialmente estabelecida. Mas antes de expormos nossas considerações, realizemos o necessário trabalho de análise do pensamento moral de Kant. Abordemos, portanto, a passagem da filosofia teórica para a demonstração do uso prático da razão. Kant havia terminado a Dialética Transcendental, pelo menos no que tange à razão teórica, com uma conclusão negativa. A razão sozinha, aplicada à si mesma, é incapaz de produzir conhecimento verdadeiro. Ao prescindir da experiência, a razão gera apenas ilusões. São estas ilusões, entretanto, necessárias, uma vez que é impossível não tê-las. Estas idéias da razão, no campo teórico, possuem apenas sentido regulativo, ou seja, são regras para o operar da razão na medida em que estabelecem que o conhecimento deve aspirar ao incondicionado, ainda que, no âmbito do conhecer, este incondicionado permaneça como limiar teórico. No plano prático, entretanto, a razão recupera seu sentido postivo. Como bem nos lembra Grondin (1989, p. 7), na época da publicação da Crítica da razão pura a obra não era simplesmente a primeira crítica, mas era, isso sim, a crítica. Portanto, as raízes de um “poder prático” da razão pura devem ser neste livro primeiramente procuradas. A conclusão negativa da Dialética Transcendental, considerada aliás “humilhante” (KANT, KrV, A 795, B 823), impulsionou Kant a buscar a aplicação da razão pura no âmbito prático, como afirmado no Cânone da Razão Pura, nos últimos trechos da obra. Kant reconhece que o homem não age apenas segundo a pulsão de seus estímulos sensíveis, como agem os animais (arbitrium brutum). A ação dos animais é sempre patológica, i.e., segundo a afetação. Daí o termo patológico, derivado de , aquilo que se recebe, se prova, se sente, por oposição àquilo que nós agimos e fazemos, ou seja, “tudo que afeta o corpo ou a alma, para o bem ou para o mal” (BAILLY, 1950, p. 1437). O animal é, portanto, reativo. Já o homem, como possui razão, não age apenas patologicamente, mas também ativamente, posto que é capaz de superar a coerção da sensibilidade e agir contrária ou independentemente dos impulsos (arbitrium liberum) (KANT, KrV, A 802, B 830). Agir independentemente da afetação dos impulsos significa que a razão é capaz de dar ao sujeito a causa do agir independentemente da experiência. Se no domínio A Filosofia Prática de Kant - Prof. Dr. Roberto Vasconcelos Novaes teórico a razão deveria partir da experiência sob pena de não produzir qualquer conhecimento, no prático o caminho se inverte, devendo a razão partir dela mesma para produzir o agir do sujeito. O caminho da filosofia prática, a partir desta inversão de ordem, está, assim traçado. O agir deve partir do uso puro da razão pois, se não o fizer, isto equivaleria a dizer que não há verdadeira práxis do homem; haveria simplesmente uma complexa forma de reação aos estímulos exteriores, o que redundaria, por fim, na negação da causalidade por liberdade. No uso puro teórico, a razão produzia as idéias, que tinham função regulativa do conhecer. Dizer que as idéias possuem função regulativa no plano teórico equivale a dizer que as idéias são regras para o operar do conhecimento no sujeito (SALGADO, 1995, p.133 et seq.). As idéias impeliam o sujeito, em sua atividaderegulativa no âmbito teórico, a buscar a unidade de todo o conhecimento, ainda que permanecesse este ideal insatisfeito, como já vimos. Ora, no plano prático o mesmo ideal de unidade permanecerá: a questão deixada pela primeira crítica e que será resolvida pelas obras éticas será a de encontrar o princípio unificador de toda a moral3. É no plano da ação que as idéias encontram seu principal sentido positivo: “De qualquer forma, a idéia na razão prática adquire uma especificidade: é princípio de ação, ao passo que na ordem teorética é o resultado de processo de conhecimento no uso dialético da faculdade de pensar, em busca do incondicionado. No âmbito da razão prática, a idéia, embora conserve a característica fundamental da regra que se dirige ao sujeito, assume a natureza de lei, com as mesmas exigências de validade da lei de causalidade constituída pela síntese operada pelo entendimento no diverso da intuição sensível; sua característica é a universalidade absoluta da razão.” (SALGADO,1995, p.143) Se no domínio da razão teórica a idéia era regra de funcionamento do processo cognoscitivo, ou seja, regra dirigida ao sujeito, no domínio prático a idéia manterá este mesmo papel, só que, desta vez, revestindo-se da natureza de uma lei universal dirigida à ação do sujeito, afinal, “a razão legisla tanto para a natureza quanto para a liberdade” (SALGADO, 1995, p.143). Como nos ensina o mesmo autor, os processos percorrem caminhos opostos: na razão teórica, este é o da imediatidade da sensação até a abstração da idéia; na razão prática, da idéia para a ação concreta: 3 “Em suma, poderá o caminho da Razão pura prática conduzir-nos à realidade do Ideal do Bem supremo (höchstes Gut), unificador de todas as leis morais na forma de um mundo moral (ou regnum gratiae na expressão de Leibniz) tal como pode ser de acordo com a liberdade de todos os seres racionais, e tal como deve ser segundo leis necessárias da moralidade?” (VAZ, 1999, p. 333) A Filosofia Prática de Kant - Prof. Dr. Roberto Vasconcelos Novaes FIGURA X – Itinerário da razão teórica e da razão prática Fonte: SALGADO, 1995, p. 144 A idéia para a razão prática torna-se fundamento do agir. A ética kantiana se fundamenta em princípios a priori o que pode ser entendido como a grande novidade ética do autor4. Ora, uma ética que busca se fundamentar exclusivamente na razão pura prática para estabelecer os princípios da ação, configura-se como uma ética da liberdade, entendida, num primeiro momento, a liberdade como a faculdade de agir independentemente de quaisquer afecções externas, ou seja, de ser a causa de si mesma5. A tarefa da ética kantiana é a de provar que é possível uma ética fundamentada em princípios a priori, ou seja, de provar que a razão pura prática é capaz de ser origem da ação, independentemente de interferência sensível (HÖFFE, 2005, p. 133 e REALE e ANTISERI, 2005, v. 5, p. 370). Liberdade, num segundo sentido, não significa apenas a possibilidade de agir independentemente de impulsos sensíveis, mas a possibilidade de agir segundo leis estabelecidas a priori; neste sentido, liberdade é sinônimo de autonomia do sujeito moral, que faz a sua ação depender apenas de si mesmo, não de afecções sensíveis ou de códigos de conduta externamente fixados. Portanto, vontade é, em última análise, a capacidade de agir segundo leis que o sujeito mesmo se representa. Vontade pura, razão pura prática e liberdade enquanto autodeterminação são termos coincidentes no pensamento de Kant6. 4 “Nenhuma teoria da moral, nenhuma ética até Kant procurou assentar-se em princípios a priori, por isso universais, garantidores da sua validade. E mais, todas as éticas até então existentes buscaram o fundamento da sua validade fora delas mesmas, em conceitos externos. Só a ética kantiana procura princípios próprios para a sua fundamentação. Daí a preocupação mais importante de Kant, no preparo do seu edifício ético: o combate à ética empírica e à ética eudemônica através de dois elementos decisivos de sua experiência histórica: a razão, que Kant soube colher como a mais positiva influência da ilustração, e o dever, a reverência à lei como será definido, herdado de sua formação pietista pelo exemplo de sua mão e pela educação escolar.” (SALGADO, 1995, p. 144-5) 5 Uma das definições de liberdade de Kant é considerá-la “como a faculdade de começar por si mesma um evento” (KANT, Prolegomena, § 53, nota). 6 “Razão pura prática, liberdade, vontade pura são termos que se equivalem e se substituem sem deixar resto.” (SALGADO, 1995, p. 201) A Filosofia Prática de Kant - Prof. Dr. Roberto Vasconcelos Novaes Na exposição da ética de Kant restringir-nos-emos, principalmente, à Fundamentação da metafísica dos costumes. Não se trata aqui de realizar análise completa da ética kantiana, uma vez que nossos objetivos são restritos. Nosso trabalho se limita à exposição do conceito e das formulações do imperativo categórico e suas conexões com a doutrina do direito, uma vez que nossa crítica se situa no valor heurístico do imperativo categórico, bem como nosso interesse é o de rejeitar a validade universal (para todo ser racional) postulada na Fundamentação. Muitos temas não serão abordados, principalmente a complexa temática do bem supremo exposta na Crítica da razão prática e os outros diversos temas da Doutrina da virtude, conforme abordados na Metafísica dos costumes. Nosso esforço é, portanto, muito mais de buscar pensar a partir de Kant para dele nos desgarrarmos do que o de elucidar os diversos textos, suas passagens mais relevantes e a articulação sistemática dos conceitos. Nosso compromisso é com a livre reflexão e não com a exegese sistemática, que tem, na vastíssima literatura, representantes muito mais abalizados. Feitas estas considerações, vamos agora ao trabalho. 5.2.2) A moralidade do homem comum Em primeiro lugar analisaremos a Grundlegung. O complexo opúsculo é dividido em três seções, precedidas por um prefácio. Neste, Kant apresenta a divisão da filosofia em três partes, segundo a tradição que atribui à grecidade: a Lógica, ciência das regras formais do pensar, a Ética, ciência que cuida das leis relativas ao agir humano, i.e., leis da liberdade e a Física, a ciência da natureza (KANT, Grund., BA III-IV). Estas duas últimas são constituídas, cada uma delas, por uma parte a priori, ou seja, pela exposição sistemática dos princípios puros da razão que se ocupam dos respectivos objetos, e por outra empírica. A parte pura, Kant denomina, respectivamente, Metafísica dos Costumes (ou Moral) e Metafísica da Natureza; a parte empírica, Antropologia e Física em sentido estrito (KANT, op. cit., BA V-VI). O prefácio é aqui mencionado pois é relevante deixar claro qual é o objetivo geral da Ética de Kant: “Não é verdade que é da mais extrema necessidade elaborar um dia uma pura Filosofia Moral que seja completamente depurada de tudo que possa ser somente empírico e pertença à Antropologia?” (KANT, op. cit., BA VII-VIII). A Grundlegung possui, portanto, o objetivo primordial de estabelecer o princípio unificador de toda a moral, ou seja, de uma forma a priori segundo a qual toda a moralidade humana existe. Deixemos de lado por enquanto a exigência várias vezes repetida ao longo do opúsculo de que a moralidade pura de Kant deve ser aplicável a todo ser racional7. Que a moralidade existe para o homem e que esta 7 Podemos fazer listagem que, antes de ser exaustiva, ilustra a insistência na idéia de que a moralidade pugnada por Kant se aplica a todo ser racional. No prefácio, lemos: “[...] o mandamento “não deves mentir”, não é válido somente para oshomens e que outros seres racionais se não teriam que se importar com ele [...]” (KANT, Grund., BA VIII); mais adiante: “E como é que as leis da determinação da nossa vontade hão-de ser consideradas como leis da determinação da vontade de um ser racional em geral, e só como tais consideradas também para a nossa vontade, se elas forem apenas empíricas e não tirarem a sua origem plenamente a priori da razão pura mas ao A Filosofia Prática de Kant - Prof. Dr. Roberto Vasconcelos Novaes moralidade forma uma espécie de reino distinto do reino natural, reino este que o homem também habita, isto é um fato para Kant. Falamos aqui para Kant pois é possível pensar, ad argumentandum tantum, que a moralidade é ilusória, e a liberdade do homem não é nada mais do que uma incompreensão de uma causalidade absurdamente complexa que, justamente por incompreendida, faz parecer o homem, a ele mesmo, livre. O que pretende Kant é revelar, independentemente da análise de quaisquer códigos de conduta empiricamente observáveis (e portanto, geográfica e historicamente contingentes) quais são as condições a priori que tornam possível a moralidade e quais são seus traços fundamentais puros. Acompanhemos nas três seções que formam o corpo principal da obra o roteiro de Kant na abordagem da complexa tarefa. A primeira delas, denominada “transição do conhecimento moral da razão vulgar para o conhecimento filosófico”, começa por especificar o que comumente se entende por moralidade. O ponto de partida de Kant é a moralidade comum, que está imiscuída a fatores empíricos. Seu itinerário é o progressivo despir da moralidade comum de seu conteúdo empírico, de modo a revelar o que resta de puro, de a priori. Parte Kant da noção de “boa vontade”, a única coisa que, segundo a célebre afirmação, é ilimitadamente boa (KANT, Grund., BA 1). Esta primeira seção é uma investigação da moralidade comum, é a exposição do que, segundo Kant, o homem comum entende por moral. Esta “boa vontade” deve ser considerada, portanto, como a noção que o homem comum tem quando considera uma ação moralmente boa, o nas situações nas quais tem outro homem ou a si mesmo por moralmente bom. A moralidade comum, aliás, possui também o conceito oposto, o de “má vontade”, que não deve aqui ser confundido com o sentido que usualmente damos à expressão “fazer as coisas com má vontade” o que, em nosso falar brasileiro significa uma espécie de preguiça ao atender as demandas alheias. Boa vontade e má vontade são noções, sem qualquer dúvida, presentes nos mais banais juízos morais. Na análise de Höffe (loc. cit.), qualquer defesa ou crítica da ética kantiana deve começar pela constatação de que apenas uma boa vontade é boa em si, e tudo o mais que possa ser considerado bom, como, por exemplo, o discernimento (Verstand, aqui em sentido popular, distinto da KrV), a argúcia de espírito (Witz) ou a capacidade de julgar (Urteilskraft) e diversos outros “talentos do espírito”, ou ainda qualidades do temperamento, nos exemplos de Kant (Grund., BA 2), depende de uma boa vontade. O mesmo valeria para os “dons da fortuna”, como poder, riqueza, honra, saúde e bem-estar (loc. cit.). Vejamos no texto de Kant um trecho desta argumentação: “Algumas qualidades são mesmo favoráveis a esta boa vontade e podem facilitar muito a sua obra, mas não têm todavia nenhum valor íntimo absoluto, pelo contrário, pressupõem ainda e sempre uma boa vontade, a qual restringe a alta estima que, aliás com razão, por elas se nutre, e não mesmo tempo prática.” (op.cit., BA 29); mais um exemplo: “Mas aqui não se deve, como a filosofia especulativa o permite e por vezes mesmo o acha necessário, tornar os princípios dependentes da natureza particular da razão humana; mas porque as leis morais devem valer para todo o ser racional em geral, é do conceito universal de um ser racional em geral que se devem deduzir.” (op.cit., BA 35) A Filosofia Prática de Kant - Prof. Dr. Roberto Vasconcelos Novaes permite que as consideremos absolutamente boas.” (KANT, Grundlegung, BA 2) O que significa esta afirmação? O que significa dizer que somente uma boa vontade possui um valor absoluto, ou seja, é boa em si mesma, incondicionadamente? Todos os outros talentos do espírito podem ser tanto positivos quanto negativos, uma vez que, e.g., o poder ou a riqueza, obviamente, podem ser usados tanto para fazer o bem quanto o mal8. O moralmente bom não reside, portanto, num objeto exterior ou supremo, mas na própria boa vontade em si (KANT, Grund., BA 3). A boa vontade não deve ser julgada pelos fins a que almejaria, ou pela utilidade de uma conduta motivada por uma boa vontade. A boa vontade é a única coisa boa sem limites. Dizer que é boa ilimitadamente equivale a dizer que é boa incondicionalmente ou absolutamente: “Tudo o que Kant quer dizer é que apenas a boa vontade pode ser boa em qualquer contexto. Ela não é boa num contexto e má noutro. Ela não é boa como meio para um fim e má como meio para outro. Ela não é boa se alguém, por acaso, desejá-la e má se não o fizer. Sua bondade não é condicionada por sua relação a um contexto ou a um fim ou a um desejo. Neste sentido ela é um bem incondicionado e absoluto: ela é boa em si e não apenas em relação a outra coisa. Sua bondade não está limitada à bondade nesta ou naquela relação: ela é, em síntese, boa sem limitação, qualificação ou restrição.” (PATON, 1971, p. 34 – tradução nossa)9 A boa vontade, portanto, possui seu valor nela mesma, não derivando sua bondade de qualquer fator externo, do contexto ou dos fins almejados: “A boa vontade não é boa por aquilo que promove ou realiza, pela aptidão para alcançar qualquer finalidade proposta, mas tão-somente pelo querer, isto é em si mesma, e, considerada em si mesma, deve ser avaliada em grau muito mais alto do que tudo o que por seu intermédio possa ser alcançado em proveito de qualquer inclinação, ou mesmo, se se quiser, da soma de todas as inclinações.” (KANT, Grund., BA 3) 8 Este argumento nos lembra em muito tese similar exposta na República: na linguagem ética de seu tempo, Platão apresenta a justiça como um bem em si, enquanto as demais qualidades são bens dependentes ou condicionados. No debate entre Sócrates e Polemarco, o médico é o mais capacitado em se defender da doença, mas também em transmiti-la; o pugilista é o mais hábil em bater e em defender-se; o melhor guardião de uma coisa é também o melhor ladrão. (PLATÃO, República, I, 333e) 9 Texto original: “All Kant means is that a good will alone must be good in whatever context it may be found. It is not good in one context and bad in another. It is not good as means to an end and bad as means to another. It is not good if somebody happens to want it and bad if he doesn’t. Its goodness is not conditioned by its relation to a context or to an end or to a desire. In this sense it is an unconditioned and absolute good: it is good in itself and not merely in its relation to something else. Its goodness is not limited to goodness in this or in that relation: it is, in short, good without limitation, qualification or restriction.” A Filosofia Prática de Kant - Prof. Dr. Roberto Vasconcelos Novaes Aliás, mesmo que tenha nascimento numa pessoa perversa e jamais possa se externalizar, sendo incontinenti vencida pelas afecções e impulsos, “ela ficaria brilhando por si mesma como uma jóia, como alguma coisa que em si mesma tem o seu pleno valor.” (KANT, Grund., BA 3). A boa vontade é boa, enfim, independentemente de sucesso ou resultado. A boa vontade, entretanto, não é o único bem, nem a totalidade do bem, mas o bem incondicionado (PATON, 1971, p. 43). Como supramencionado, a felicidade é um bem, assim comoas disposições favoráveis do espírito e os dons da fortuna; mas todos esses são bens condicionados externamente. São condicionados, em último caso, pela boa ou má vontade de quem os possui. Mas em que consiste esta “boa vontade” a que tanto nos referimos no julgamento moral comum? Em que consiste este algo que provoca a reverência de Kant?10 Kant recorre inicialmente ao conceito de dever para explicar o conceito de boa vontade. As ações são agrupadas em três categorias, conforme sua adequação ao dever, de modo a explicitar o próprio conceito de dever: existem as ações contrárias ao dever (que não nos auxiliam na elucidação do conceito), ações conforme ao dever e ações por dever. As ações conforme ao dever são aquelas ações que estão de acordo com a lei moral, mas não possuem como motivo determinante o cumprimento da lei moral, mas outra inclinação11. Portanto, não contribuem na explanação. Só possuem valor moral as ações por dever, ou seja, aquelas que o possuem como motivo determinante (KANT, Grund., BA 14). A ação por dever é praticada de acordo com a moral independentemente de seus resultados ou objetos (KANT, Grund., BA 14). A mera correspondência da ação à lei moral é simples legalidade, não moralidade (HÖFFE, 2005, p. 194). O intérprete mais apressado, como amiúde se vê, poderia definir a boa vontade como aquela que possui como causa determinante o dever. Entretanto, como nos adverte Paton (1971, p. 46), o conceito de dever somente faz sentido se 10 O sentimento que o homem manifesta diante de outro de boa vontade é o sentimento de respeito ou reverência (Achtung). Diante do homem bom, independentemente de sua classe ou origem social, Kant se diz forçado a sentir este respeito pela sua boa vontade: “Diante de um homem de classe inferior, um burguês ordinário, no qual percepciono uma retidão de caráter de um grau tal que eu, no que me toca, não tenho consciência de possuir, o meu espírito inclina-se, quer eu queira quer não e por muito que eu levante a cabeça para que não lhe passe despercebida a superioridade da minha condição.” (KANT, KpV, A 136) 11 Kant nos fornece o seguinte exemplo: “É na verdade conforme ao dever que o merceeiro não suba os preços ao comprador inexperiente, e, quando o movimento do negócio é grande, o comerciante esperto também não faz semelhante coisa, mas mantém um preço fixo geral para toda a gente, de forma que uma criança pode comprar em sua casa tão bem como qualquer outra pessoa. É-se, pois, servido honradamente; mas isso ainda não é bastante para acreditar que o comerciante tenha assim procedido por dever e princípios de honradez; o seu interesse assim o exigia; mas não é de aceitar que ele além disso tenha tido uma inclinação imediata para os seus fregueses, de maneira a não fazer, por amor deles, preço mais vantajoso a um do que a outro. A acção não foi, portanto, praticada nem por dever nem por inclinação imediata, mas somente com intenção egoísta.” (Grundlegung, BA 9) A Filosofia Prática de Kant - Prof. Dr. Roberto Vasconcelos Novaes estivermos pensando num ser de inclinações, tal qual é o homem e que, portanto, pode possuir também uma vontade má. Uma vontade perfeitamente boa, a vontade divina ou santa, quereria necessariamente o bem, independentemente de dever. Para a vontade santa, o conceito de dever é supérfluo. Como defende Agostinho, se há algo impossível para Deus é querer o mal pois se, por absurdo quisesse o mal, este seria o bem (SALGADO). O conceito de dever está necessariamente relacionado ao homem, posto que o homem é ser de inclinações; o conceito de dever é necessário para explicar o de boa vontade para o homem, pois o homem percebe a moralidade como obrigação. O método de que Kant se utiliza para relacionar os conceitos de dever e de boa vontade produziu diversas interpretações errôneas. É famosa a passagem de Schiller: “Com felicidade, eu sirvo aos meus amigos, mas, pobre de mim o faço com prazer. Sou, portanto, atormentado pela dúvida de não ser virtuoso. [em resposta, Kant] Certamente, seu único recurso é tentar desprezá-los completamente, E, assim, com aversão, fazer o que o dever te ordena.” (SCHILLER, Über die Grundlage der Moral, § 6, apud PATON, 1971, p. 48 – tradução nossa)12 Na visão de Schiller, não pode haver valor moral na ação se na execução desta ação está presente alguma forma de prazer ou felicidade. Pelo contrário, somente o que faço com dor ou dificuldade possui valor moral. Na visão de Schiller (e talvez esta seja uma das confusões mais comuns em relação à leitura de Kant) a moralidade reside numa espécie de sacrifício. Uma ação somente possuiria valor moral se proviesse do sofrimento. Entretanto, quando Kant afirma que os conceitos de boa vontade e de dever estão relacionados não diz, ao mesmo tempo, que a inclinação, o prazer ou a felicidade devem, necessariamente estar excluídos de qualquer ação candidata a possuir valor moral (PATON, 1971, p. 48-9). Aliás é até mesmo de se esperar que uma pessoa que possua consciência moral elaborada sinta contentamento em cumprir seu dever. Seria absurdo supor que a ação que provoca o sentimento de dever cumprido, ou o próprio sentimento em si, fossem julgados imorais. Kant não propôs em sua teoria moral, aliás como ele mesmo deixa claro, uma teoria da felicidade. Por não ser uma teoria da felicidade, nada nos autoriza, de outro lado, que entendamos a moral kantiana como uma teoria do dever segundo a infelicidade. Pelo contrário, os homens não podem renunciar à busca da própria felicidade, e felicidade e moralidade se conjugam na medida em que a segundo nos torna dignos da primeira (KANT, GTP, p. 61). As confusões surgem devido ao método explicativo adotado por Kant, que busca separar aquelas ações nas quais o motivo determinante é apenas o dever. O que pondera Kant é a dificuldade em identificar numa ação para a qual já se tenha inclinação se ela teve como causa determinante o dever. Arrisquemos aqui 12 Texto original: “Gladly I serve my friends, but alas I do it with pleasure. / Hence I am plagued with doubt that I am not a virtuous person. / Sure, your only resource is to try to despise them entirely, /And then with aversion to do what your duty enjoins you.” A Filosofia Prática de Kant - Prof. Dr. Roberto Vasconcelos Novaes um exemplo distinto dos fornecidos pelo filósofo: o pai possui o dever (tanto moral quanto jurídico, diga-se) de alimentar o filho incapaz sob seus cuidados mas, impossível é negar, também possui inclinação para tanto. Nesta situação é praticamente impossível identificar se a ação de um pai que alimenta o filho teve como causa determinante o dever ou a inclinação. O que propõe Kant diante deste tipo de dificuldades é uma comparação de extremos, uma vez que pelo contraste fica mais conspícuo o dever como causa determinante ou não e, portanto, o valor moral da ação. Perdoem-me pelas repetições a seguir, mas é preciso ser claro: entre uma ação totalmente oposta ao dever mas totalmente de acordo com uma inclinação e outra totalmente oposta à inclinação mas totalmente de acordo com o dever fica mais fácil decidir pelo valor moral da segunda em detrimento da primeira. Não é correto deduzir da comparação que o valor moral da ação advenha da contrariedade à inclinação ou ao prazer. A ação moral é articulada ao conceito de dever apenas na medida em que este, num ser sensível, deve ser a causa determinante da conduta, mas isso não significa que tenha que ser a única. É claro que o dever pode ser contrário à inclinação ou até mesmo à felicidade e, entre os últimos e o primeiro, a escolha de Kant é o dever. Podemos apontar o rigorismo de Kant no possível sacrifício da felicidade quando esta contrariar odever, mas não no necessário sacrifício da felicidade. O conceito de dever é determinado, portanto, a partir da concatenação das seguintes proposições: por um lado, uma ação somente possui valor moral se realizada exclusivamente por dever; por outro, o valor moral de uma ação praticada por dever não reside no seu objeto ou resultado, mas no princípio que a determina, ou seja, no querer. Da conjugação das duas poderíamos dizer: a ação moral é aquela praticada pelo agente que quer o dever. Portanto, Kant define o dever como “a necessidade de uma ação por respeito à lei” (KANT, Grund., BA 14). Os passos anteriores redundam, em última análise, na expressão que define a ética de Kant como uma ética do “dever pelo dever”. Nos ensina, neste sentido, Salgado: “A razão dar-lhe-á os princípios fundamentais, a priori, da ética, que faz válida universalmente e a liberta das contingentes éticas empíricas. O dever é um elemento bastante, que deve ser cultuado ou uma vantagem que se almeja; dever pelo dever, que por si só dá validade à ação moral e que desproverá a ética kantiana de todo interesse que não seja o próprio dever.” (SALGADO, 1995, p. 145) Agir por dever significa que a máxima, ou seja, o princípio subjetivo do querer, adequa-se à lei moral exclusivamente por respeito a esta mesma lei moral (KANT, Grund., BA 15). O respeito (Achtung) é o sentimento que a consciência da lei moral gera no sujeito. É um sentimento racional, que deriva da auto-representação da lei moral para o agente. Deriva, portanto, da razão que sabe do valor moral da lei. Não é, portanto, um sentimento no sentido vulgar do termo, pois é “especificamente distinto de todos os sentimentos do primeiro gênero que se podem reportar à inclinação ou ao medo” (KANT, Grund., BA 16, nota). A escola do sentimento moral, representada por Shaftesbury e Hutcheson, defendia a idéia de que o homem tem a capacidade de reconhecer imediatamente o valor moral de uma conduta, de uma pessoa ou ação, a partir de um “sentimento reflexo ou inato ou, podemos dizer, instintivo” (REALE e ANTISERI, 2005, v. 4, p. 307). Para estes pensadores, o A Filosofia Prática de Kant - Prof. Dr. Roberto Vasconcelos Novaes sentimento precede à moralidade. O sentimento de respeito provocado pela autoconsciência da lei moral difere, segundo uma inversão de ordem, deste elencado pelos autores bretões: para Kant, o saber da moralidade provoca o sentimento (PATON, 1971, p. 65). Se não foi introduzida com esta finalidade, a noção de sentimento moral acaba, pelo menos, por ter o efeito de situar a ética kantiana como oposta a esta forma de moralismo inglês. Abordados os conceitos principais, façamos uma síntese da primeira seção. O itinerário até agora percorrido na investigação da moralidade comum se iniciou no conceito de boa vontade; embora dele nos utilizemos frequentemente, é preciso elucidar o que seja esta boa vontade. Ora, o raciocínio moral comum liga a noção de boa vontade à noção de dever. Mas o conceito de dever não é suficiente para elucidar o que seja essa boa vontade, uma vez que se aplica somente aos seres de inclinação. De certa forma, o conceito de dever serve para ilustrar o que não é uma boa vontade. Uma boa vontade não é aquela que possui como motivo determinante de sua formulação a inclinação; não é, também, uma vontade instrumental, que tem seu valor moral no objeto, no fim almejado ou no sucesso de sua atuação; não tem, outrossim, seu valor na porção de felicidade que proporciona ao agente. O conceito de dever nos é apresentado para nos mostrar que a boa vontade não pode procurar o seu valor fora dela, ou seja, fora do homem que a possui. A boa vontade dever ser procurada, portanto, no homem mesmo. Mas o homem é ser de razão e ser de inclinação; como da pesquisa pelo conceito de boa vontade já ficou excluída a perseguição e satisfação das inclinações, ele somente poderá ser encontrado na razão mesma. Kant realiza, na verdade, um movimento de interiorização e procurará identificar, no âmago mais íntimo do homem, ou seja, na sua razão, o princípio supremo da moralidade, ou seja, aquele conceito fundamental que atribui valor moral às ações humanas. Este princípio somente poderá ser, assim, encontrado na pura razão independentemente de quaisquer resultados exteriores, na pura razão como causa eficiente das ações humanas. A boa vontade é, em suma, a vontade puramente racional. Mas entre a vontade puramente racional e a vontade empiricamente verificada vai um longo caminho, uma vez que não somos pura razão. Daí o conceito de dever, que é uma baliza aplicável à vontade empírica do homem, que determina, tout court, que entre as inclinações e a racionalidade, seja uma obrigação, um comando fundamental obedecer à racionalidade. Kant se insere, portanto, na mesma tradição filosófica inaugurada por Sócrates e, posteriormente, desenvolvida por Platão e Aristóteles: a moralidade é o controle da razão sobre a animalidade do homem. Coloca-se, ademais, como adversário das correntes éticas sensualistas, hedonistas ou simplesmente irracionais. O agir moral para Kant (assim como para a tradição socrática) encontra seu fundamento na razão, diferentemente, por exemplo, do epicurismo, que irá buscar o fundamento da ação na busca do prazer e na fuga da dor. Mas qual é o critério segundo o qual a razão comanda o homem a agir? Lembremo-nos que ainda estamos nos domínios da moralidade comum. Qual é o argumento para o estabelecimento (ou para a descoberta) do comando da razão ao qual deve se submeter a vontade empírica para que seja moral? Qual é o princípio A Filosofia Prática de Kant - Prof. Dr. Roberto Vasconcelos Novaes unificador da lei moral e, portanto, determinante desta boa vontade? Na primeira seção, este princípio é extraído da razão popular (“die gemeine Menschenvernunft”): “devo proceder sempre de maneira que eu possa querer também que a minha máxima se torne lei universal.” (KANT, Grund., BA 17) A boa vontade é, portanto, a vontade que está de acordo com a lei emanada da razão. Como o homem não é pura razão, a lei moral aparece para o homem indissociavelmente ligada ao conceito de dever, que nada mais é que a necessidade das ações por puro respeito à lei moral. A fórmula para a descoberta do comando racional, que mais adiante na segunda seção será denominada imperativo categórico, é o princípio de que os homens comuns já se utilizam para pautar as suas ações, é a regra que: “a razão vulgar em verdade não concebe abstratamente numa forma geral, mas que mantém sempre realmente diante dos olhos e de que se serve como padrão dos seus juízos.” (KANT, Grund., BA 20) Para Kant, o princípio supremo de toda a moralidade está presente no processo de tomada de decisão de cada um de nós, homens versados nas letras filosóficas ou não13. Na verdade, Kant está a dizer que o fundamento da moral reside num juízo que todos nós comumente fazemos. Aliás, a expressão “universal” utilizada nas traduções e consagrada é, no nosso modo de ver, por demais sofisticada para refletir o comumente dito pelo povo e acaba por afastar a compreensão14. Entendemos que o homem comum, o que está mais próximo de nossa experiência cotidiana, pensa no que ocorreria se “todos”, se “todo mundo” fizesse isto ou aquilo. Eis o juízo do homem mais simples do Brasil, expresso à maneira nossa, mas com o mesmo conteúdo, esperamos, do pensamento prussiano vulgar do século XVIII. 13 “Podia-se mesmo já presumir antecipadamente que o conhecimento daquilo que cada homem deve fazer, e por conseguinte saber, é também pertença de cada homem, mesmo do mais vulgar.” (KANT, Grund., BA 22) 14 O texto original expressa assim o entendimento moral do homem comum: “ich soll niemals anders verfahren als so, dass ich auchwollen könne, meine Maxime solle ein allgemeines Gesetz werden.” (KANT, Grund., BA 17, p. 33). Não se trata de querermos nos arrogar a germanistas, nem de avocarmos competência lingüística que não temos. Longe disso. Trata-se apenas de dizer que o uso da palavra “universal” está longe de ser popular (pelo menos em português) e dá à expressão uma empáfia que afasta o vulgo. Allgemein pode ser traduzido por universal (ou por geral, genérico); mas devemos lembrar que a palavra advém de gemein, que significa comum, ordinário (communis, publicus, vilis (Das Deutsche Wörterbuch von Jacob um Wilhelm Grimm auf CD-ROM und im Internet – Cf. Ref. Bib.)). Vejamos algumas expressões: das gemeine Volk – o vulgo, o povo; der gemeine Mann – o homem da rua; gemeiner Soldat – soldado raso (LANGENSCHEIDTS, p. 826). A expressão “allgemeines Gesetz”, numa tradução mais livre e menos erudita, poderia ser “lei comum”, “lei para todos”, “lei de todos”. A Filosofia Prática de Kant - Prof. Dr. Roberto Vasconcelos Novaes Façamos o seguinte exercício. Um homem recebeu numa loja ou num restaurante a fatura com valor menor do que efetivamente comprou. Ele pode se perguntar: “devo ou não advertir o comerciante para corrigir o valor da conta?”. A honestidade ou desonestidade da ação, seu valor moral, será respondido pelo seguinte raciocínio: “E se todos que recebessem a conta com valor menor se mantivessem em silêncio e pagassem menos do que devem? O que ocorreria com o estabelecimento? Talvez não haja mais loja onde comprar. Portanto, a ação correta é a de advertir o vendedor do erro.” Este raciocínio lhe revelou que era seu dever pagar o preço certo. É bem verdade, outrossim, que o indivíduo que corrige a conta errônea pode fazê-lo por outros motivos que não o simples dever. Por exemplo, pode fazê-lo por vergonha de ser descoberto posteriormente, por ser cliente habitual e ter afeição pelo proprietário ou mesmo pelo sentimento de pena do funcionário que poderá ter a diferença deduzida de seu salário. Na linguagem de Kant, é muito difícil saber se uma ação ocorreu por dever ou se foi, pois imiscuída a outras inclinações, apenas conforme ao dever. Fica mais difícil ainda de discernir isso se o cliente, por exemplo, é um homem rico. Facilmente nós diríamos: “não há mérito (i.e., valor moral) algum no fato de ele ter corrigido o valor a pagar, pois, para ele, são apenas uns trocados”. Nós, por outro lado, nos apressamos em reconhecer que se a pessoa fosse pobre e se a correção do valor implicasse no gasto de suas últimas moedas, esta conduta teria o devido valor como honesta. Kant também faz referência a uma “dialética natural”, uma arte do auto-engano voluntário: quando reconhecemos certa conduta como devida e desejamos violar este dever, produzimos toda uma série de sofismas que nos convencem que nossa violação é apenas uma exceção, que é por demais pequena para ser relevante (KANT, Grund., BA 23). Não podemos culpar Kant, como fez Schiller, de identificar com mais facilidade a ação por dever a partir da ausência o mais completa possível de inclinação, ou mesmo só na contrariedade à inclinação Afinal, nós também o fazemos quando pensamos, corriqueiramente, que é “fácil” fazer o certo (cumprir o dever) quando dispomos de meios, quando nos é conveniente, quando usufruiremos de algum benefício e que, por outro lado, é difícil cumprir o dever quando isso contraria nossos interesses. Não podemos culpar Kant por uma visão que é, na verdade, comum em todos nós. O que é impróprio fazer é dizer que somente as ações difíceis de serem executadas ou que contrariem nossos interesses possuem valor moral, pois também sabemos identificar, principalmente nas pessoas que bem conhecemos, se elas praticaram o ato por dever ou conforme o dever por mera conveniência. 5.2.3) A moralidade baseada na razão pura Embora a razão comum descubra o princípio fundamental da moralidade (o imperativo categórico), ela não é capaz de dizer no que ele se fundamenta. Portanto, faz-se necessária a passagem da moralidade comum para a metafísica dos costumes, a exposição da moral baseada na razão pura (KANT, Grund., BA32). A segunda seção da obra é a demonstração do fundamento do imperativo categórico no conceito de autonomia do sujeito moral. A segunda seção cumpre também o esforço de A Filosofia Prática de Kant - Prof. Dr. Roberto Vasconcelos Novaes demonstrar como que a moralidade, ao possuir origem exclusivamente a priori, possui sua eficácia empírica a partir do reconhecimento desta origem racional da lei moral. 5.2.3.1) Em defesa de uma moral a priori O conhecimento exposto na Grundlegung I é discurso retirado do senso comum, segundo a simples indagação sobre aquilo que os homens ordinariamente entendem por moralidade. Ora, o que todos nós, ou pelo menos os homens comuns da época de Kant, comumente entendemos como moral é a ação desinteressada, feita exclusivamente por um senso “do que é certo”, e este “fazer o certo” é chamado por Kant de dever. Se perguntado ao homem comum o que é que existe de comum ou de geral em todas as regras morais ele responderia, com um pouco de reflexão evidentemente, que moral é fazer aquilo que todos poderiam fazer, e imoral é a ação que penso ser privilégio meu, mas que recuso aceitar ser praticada pelos outros. Daí o vulgo entender, no máximo esforço requerido ou alcançado pela razão vulgar, que agir moralmente é agir de modo universal. Para o homem comum este tanto de reflexão já basta. Como é típico do conhecimento vulgar, não se adentra ele nas profundezas das causas dos acontecimentos. Basta ao conhecimento comum saber que as coisas são assim, são como o são, sem muito se ocupar dos porquês. Encontra o caminho da justeza e do valor se seguir sempre este raciocínio; se sempre se perguntar por todo mundo, se sempre, ao se questionar da bondade de seus atos, fizer o que acha que “toda a gente por aí” poderia fazer. Contente com isso se ocupa da vida e, na direta linguagem, deixa as filosofices para quem tem a vida ganha. Mas não podemos nós, ainda que não tenhamos a vida ganha, ficar somente nisso. A razão não pára e não se contenta com a mera aparência das coisas. Se quedasse por aí, apenas no o quê sem o porquê, não seria filosofia, e a Grundlegung poderia ser encerrada no primeiro livro, como um compêndio de uma “sabedoria popular pura”. Por isso o segundo capítulo, ou seja, a fundamentação do saber popular descortinado no primeiro. A segunda seção se inicia colocando em dúvida a possibilidade de termos certeza que uma conduta ocorreu por puro dever. Na verdade, para a validade do quadro conceitual até agora traçado, não importa que já tenha acontecido alguma conduta puramente por dever, ou seja, que possamos identificar, de fato e com toda a certeza, uma vontade empírica que esteja em total acordo com aquilo que a razão sozinha determina. O que importa é conhecermos a pura forma racional da lei moral e identificarmos que esta lei é uma obrigação que se sobrepõe à nossa vontade. Kant, argumentando ao extremo, chega a afirmar, inclusive, que: “Na realidade, é absolutamente impossível encontrar na experiência com perfeita certeza um único caso em que a máxima de uma ação, de resto conforme ao dever, se tenha baseado puramente em motivos morais e na representação do dever.” (KANT, Grund.,BA, 26) A Filosofia Prática de Kant - Prof. Dr. Roberto Vasconcelos Novaes O objetivo inicial desta seção é o de realizar uma separação entre o caminho que vinha até então sendo percorrido e o que se iniciará. Enquanto que na primeira seção Kant argumentou a todo o tempo baseando-se na moralidade comum, na segunda a narrativa deve se basear apenas na razão pura, depurada de qualquer dado empírico. O raciocínio, agora, deve evitar perquirir por exemplos, por situações cotidianas, por condutasde um homem ou outro, por códigos contingentes de moral. Portanto, a segunda seção da Grundlegung se inicia com a reiteração de que o método empregado na exposição não irá recorrer a dados empíricos. Mais adiante, argumenta para diferenciar o conhecimento vulgar da primeira parte do conhecimento filosófico que será apresentado: “Para, porém, neste trabalho avançarmos por uma gradação natural, não somente do juízo moral vulgar (que aqui é muito digno de respeito) para o juízo filosófico, como de resto já se fez, mas duma filosofia popular, que não passa além do ponto onde pode chegar às apalpadelas por meio de exemplos, até a metafísica (que não se deixa deter por nada de empírico e que, devendo medir todo o conteúdo do conhecimento racional deste gênero, se eleva em todo caso até às idéias, onde mesmo os exemplos nos abandonam), temos nós de seguir e descrever claramente a faculdade prática da razão, partindo das suas regras fundamentais de determinação, até o ponto em que dela brota o conceito de dever.” (KANT, Grund., BA 36, p. 47) O texto trata, então, dos conceitos a priori relativos à determinação da vontade, de modo a desvendar o fundamento da moralidade. Entretanto, seríamos inocentes de acharmos que esta exposição filosófica, ainda que possa ser pura, está desprendida de quaisquer pressupostos. Na verdade, a exposição filosófica do fundamento da moralidade se assenta em pelo menos dois deles e, tal será, agora, o objeto de nossa apreciação. Sem a abordagem dos mesmos, Kant passa a impressão de filosofar meio que no vazio, e de extrair seus conceitos uns dos outros, tautologicamente, o que não é o caso. O primeiro foi sorrateiramente inserido na primeira seção, inserção esta que poderia ser considerada uma violação da exigência de que a explanação se ativesse apenas à filosofia vulgar. Trata-se da já comentada visão de Kant acerca da natureza, segundo o princípio psicoteleológico: tudo na natureza deve ser pensado como se tivesse uma finalidade, principalmente no que tange à compreensão dos seres vivos. Em relação à razão presente no homem, devemos recusar-lhe a finalidade de manutenção da vida, tarefa que seria muito melhor desempenhada pelo instinto. Façamos uma reconstituição do argumento. Em primeiro, Kant apresenta o próprio pressuposto de que os seres vivos devem ser pensados como se tivessem uma finalidade, embora aqui tal afirmação seja mais categórica do que aquela da primeira crítica. Na KrV Kant enunciava um princípio da razão; aqui parece formular um juízo concreto sobre a realidade: “Quando consideramos as disposições naturais dum ser organizado, isto é, dum ser constituído em ordem a um fim que é a vida, aceitamos como princípio que nele se não encontra nenhum órgão que não seja o mais A Filosofia Prática de Kant - Prof. Dr. Roberto Vasconcelos Novaes conveniente e adequado à finalidade a que se destina. Ora, se num ser dotado de razão e vontade a verdadeira finalidade da natureza fosse a sua conservação, o seu bem-estar, numa palavra a sua felicidade, muito mal teria ela tomado as suas disposições ao escolher a razão da criatura para executora destas suas intenções.” (KANT, Grund., BA 4) Para a consecução da manutenção da vida, defende Kant, bastaria o instinto. Este seria o instrumento mais adequado e, portanto, o instrumento escolhido pela natureza: “numa palavra, a natureza teria evitado que a razão caísse no uso prático e se atrevesse a engendrar com as suas fracas luzes o plano da felicidade e dos meios de a alcançar; a natureza teria não somente chamado a si a escolha dos fins, mas também a dos meios, e teria com sábia prudência confiado ambas as coisas simplesmente ao instinto.” (KANT, Grund., BA 5) Uma das provas levantadas por Kant é o surgimento de certa misologia (i.e., ódio à razão) nas pessoas que cultivam as faculdades intelectuais; estas pessoas invejariam, por vezes, os homens simples, que se entregam aos prazeres físicos, à determinação do instinto. Como nos adverte o poeta mineiro: “Vai, Carlos! ser gauche na vida.” A razão apareceria como um peso frente à tranqüilidade da vida simples. A razão não só não é o melhor mecanismo para a satisfação dos nossos desejos e necessidades como também piora as coisas, multiplicando as necessidades do homem (KANT, op. cit., BA 6-7). Continua Kant: “Portanto, se a razão não é apta bastante para guiar com segurança a vontade no que respeita aos seus objetos e à satisfação de todas as nossas necessidades (que ela mesma – a razão – em parte multiplica), visto que um instinto natural inato levaria com muito maior certeza a este fim, e se, no entanto, a razão nos foi dada como faculdade prática, isto é, como faculdade que deve exercer influência sobre a vontade, então o seu verdadeiro destino deverá ser produzir uma vontade, não só boa quiçá como meio para outra intenção, mas uma vontade boa em si mesma, para o que a razão era absolutamente necessária, uma vez que a natureza de resto agiu em tudo com acerto na repartição das suas faculdades e talentos.” (KANT, Grund., BA 6-7) Para Kant, portanto, a razão foi “colocada” no homem com a precípua finalidade de permitir que o homem pudesse agir apartado dos impulsos sensíveis. A razão é uma espécie de nemesis do instinto; enquanto este é responsável pela sobrevivência, a razão é o que liberta o homem do instinto, o que permite que ele não esteja constantemente submetido ao desejar do animal homem, o que noutras obra seria o chamado arbitrium brutum (KANT, KrV, A 802, B 830 e MS, 6:213). O segundo pressuposto já foi suficientemente comentado anteriormente. Trata-se do que denominamos de visão normativa do mundo, ou seja, a visão de que todas as coisas no mundo se regem por leis; o mundo dos fenômenos por leis causais e o mundo dos seres racionais por leis finais. Talvez seja prudente apenas que aqui lembremos que lei para Kant possui o rígido sentido de lei universal e necessária, A Filosofia Prática de Kant - Prof. Dr. Roberto Vasconcelos Novaes assim como eram formuladas as leis das ciências naturais da época. A universalidade e a necessidade são, na primeira crítica, as características distintivas dos juízos a priori, uma vez que as ‘universalidades’ derivadas da experiência são meras generalidades obtidas por indução, “em que se transfere para a totalidade dos casos a validade da maioria” (KANT, KrV, B4). Ora, mas são justamente juízos universais e necessários os encontrados nas ciências, na matemática e na física. O mesmo sentido rigoroso de lei universal e necessária é transportado para as leis da liberdade, e o ser que age segundo a representação de leis age segundo leis dotadas dos dois comentados apanágios15. Estes dois pressupostos, de que a natureza e os seres vivos possuem fins e seu corolário, de que a razão possui o fim de produzir uma boa vontade, e de que o mundo é regido por leis universais e necessárias, seja o mundo da natureza, seja o mundo da liberdade são, de fato, os pressupostos necessários à compreensão da moral de Kant, pelo menos como até agora exposta. Na verdade, eles nos mostram que um pensador é incapaz de se desgarrar de suas idéias, que pensam por ele mesmo quando ele não está pensando nelas16. O discurso moral de Kant está inserido, mesmo quando explicitamente pretende não estar (como depreendemos do viés “popular” da Grundlegung I), no pensamento crítico. A articulação dos dois pressupostos somente pode possuir o seguinte resultado: a ação dos entes em geral, não racionais, se dá de acordo com um sistema de leis causais universais e necessárias; já a ação dos seres racionais puramente racionais se dá de acordo com um sistema de leis finais universais e necessárias. As 15 “Universality is the essential characteristic of lawas such. A law, in the strict sense of ‘law’, must hold for all cases and admit of no exceptions. A law of nature, for example, must hold of all events in time without exception. If the principle that every event must have a cause is a law of nature, then there can be no exceptions to it; and if we were convinced that any exceptions were possible we should at once deny this principle to be a law of nature. So it is also with what Kant calls ‘the law of freedom’ – that is, the law in accordance with which a rational agent would act if reason had full control over his inclinations. This law of freedom or moral law, cannot have exceptions without ceasing to be law. There cannot be one moral law for me and another for you. The law must be the same for all.” (PATON, 1971, p. 69) 16 O procedimento para a escrita de uma obra é assim relatado por Kant, num curso de Antropologia de 1779-1780, o que reflete a idéia de que antes o pensamento se apodera da pessoa do que o contrário: “devemos ter à mão uma folha de papel dobrada ao meio, na qual vamos registrando promiscue todas as imagens que digam respeito à matéria. Além disso, também precisamos fazer intervalos enquanto pensamos, os quais contribuem de maneira extraordinária para o descanso e fortalecimento da imaginação. Também devemos evitar reler com freqüência aquilo que nós mesmos tivermos escrito. Não devemos ler escritos sobre a matéria a respeito da qual estamos refletindo, do contrário atamos o gênio. E devemos pensar no assunto mesmo e reunir imagens. Quando ali se encontrarem todos os materiais de nosso assunto, surgirá em nós durante a leitura um esquema que formularemos em frases curtas, emendando-o sem coerção. Caso o esquema esteja correto, recorremos ao nosso estoque de imagens. Anotamos então a matéria sem ponderação, e se logo nos ocorre alguma outra coisa, deixemos um espaço e, com uma palavra, assinalamos na margem que deverá vir no meio. Depois, nós o revemos, completamos aquilo que sentimos faltar, copiamos uma vez mais, polimos aqui e ali, e ele está pronto. Pensa algo disparatado e certamente falha em seu objetivo, quem quer fazer algo muito bem de uma só vez, intercalando aí os seus pensamentos.” (KANT, Antropologie Brauer apud TERRA, 1995, p. 11-12) A Filosofia Prática de Kant - Prof. Dr. Roberto Vasconcelos Novaes ações humanas, que são atos de seres sensíveis e racionais, devem se dar de acordo com um sistema de leis finais universais e necessárias. No presente momento da argumentação, se inicia a demonstração de que as leis nas quais se baseia o dever são leis absolutamente a priori, portanto válidas para todo o ser racional, independentemente das afecções exteriores (KANT, Grund., BA 28-29). Nem mesmo o santo evangelho é capaz de fornecer os princípios da moralidade, tendo ele que se submeter aos critérios da razão pura (KANT, Grund., BA 30). Afirmação espantosa para um autor que, como todos sabemos, teve na religião grande parte de sua própria formação moral. A investigação a partir da razão pura parte de um ponto completamente distinto daquele do qual partiu Kant na primeira seção. Lembremos que a primeira afirmação (oriunda da moralidade comum) feita por Kant foi acerca do conceito de boa vontade; deste passou para o dever e, em seqüência, para o raciocínio universalizador da máxima de que se utiliza o homem comum. Relacionou o conceito de boa vontade ao de legislação universal, que aparece para o homem, ser repleto de inclinações, como dever. A investigação puramente racional da moral se inicia, em contraste, com a afirmação que se segue: “Tudo na natureza age segundo leis. Só um ser racional tem a capacidade de agir segundo a representação das leis, isto é, segundo princípios, ou: só ele tem uma vontade. Como para derivar as ações das leis é necessária a razão, a vontade não é outra coisa senão razão prática. (KANT, Grund., BA 37) Esta afirmação reflete uma visão sobre o real essencialmente normativa. Segundo esta maneira de compreender a realidade, o mundo se rege segundo leis, que podem ser descobertas pela razão. Natureza (ou o mundo), possui, em Kant, um sentido restrito, como aquilo que é sentido e pensado por nós, o que é traduzido pelos cânones da razão, o real tal qual é para nós. Lembremos a observação de Höffe que, ao explicar o papel das condições transcendentais, restringe o uso da palavra mundo: “O pensamento não se dirige posteriormente a um mundo estruturalmente dado. Sem o pensar só existe algo desconexo e indeterminado, uma confusão de sensações, mas não a unidade e a determinação de uma realidade; sem o pensamento ainda não há um mundo.” (HÖFFE, 2005, p. 83) A natureza, desta maneira, deixaria de existir uma vez que cessasse o pensamento, ou seja, uma vez que deixasse de existir observador racional. Continua a existir, independentemente de observador, e isso é possível pensar, como coisa em si. A natureza, portanto, pode ser entendida, na passagem acima, como o conjunto de todos os fenômenos sistematicamente articulados pelo entendimento, ou seja, o A Filosofia Prática de Kant - Prof. Dr. Roberto Vasconcelos Novaes conjunto de todos os objetos. É desta maneira que Kant se refere à natureza na Lógica que, aliás, repete a mesma visão de mundo exposta na Grundlegung: “Tudo na natureza, tanto no mundo inanimado quanto no vivo, ocorre segundo regras, embora nem sempre conheçamos estas regras de imediato. A água cai segundo as leis dos graves [da gravidade], e o movimento da marcha entre os animais produz-se conforme regras. O peixe na água e o pássaro no ar movem-se segundo regras. A natureza toda, em geral, nada mais é propriamente do que um nexo de fenômenos segundo regras e em parte alguma ocorre ausência de regra. Quando pensamos tê-la encontrado [i.e., quando a descoberta de uma regra se mostra errônea], só podemos dizer que as regras nesse caso nos são desconhecidas.” (KANT, Log., AK 11, p. 25) Os corpos, as forças, as energias encontradas se comportam de acordo com uma conexão mecânica, que pode ser descrita pelo homem pelas proposições das ciências particulares. Lei da natureza é a forma universal e necessária segundo a qual os fenômenos se comportam. Uma lei natural, portanto, não admite exceções. Se, por hipótese, na aplicação da lei natural nos depararmos com incongruências ou efeitos inesperados, isto significa não uma violação da regência do mundo segundo a forma universal da lei, mas nos revela a imprecisão da lei até então utilizada para descrever o acontecimento. A divergência entre a visão teórica das coisas e realidade empírica verificada não implica a impossibilidade da teoria ou exceção à visão normativa do mundo. Implica imprecisão e necessidade de reformulação da lei, que é possibilidade sempre existente. A divergência entre teoria e prática demonstra não a impossibilidade da aplicação teórica, mas a necessidade de revisão da teoria (KANT, Über den Gemeinspruch. In: REISS, 1991, p. 61). Estas leis naturais são juízos condicionais que descrevem o que acontece. Os seres racionais estão também submetidos a estas leis naturais se forem, como é o caso do homem, também seres físicos. Entretanto, os seres racionais não são entes meramente presentes no mundo físico; devido à própria racionalidade, o seres racionais habitam também no mundo da liberdade. Este outro mundo, por sua vez, se submete à regras, mas regras distintas das regras causais da natureza. Os seres racionais estão sujeitos, portanto, a uma dupla legislação: à da natureza e à da liberdade. Na presente altura da argumentação ainda não é possível uma explanação exauriente da estrutura das leis da natureza e das leis da liberdade. Esta caracterização será feita progressivamente ao longo da exposição. Por enquanto basta dizer quee os seres racionais possuem a faculdade de se representaremcertas regras e de agirem de acordo com elas, não ficando submetidos somente à determinação automática de suas ações. Façamos a seguinte ilustração. Uma bola de sinuca atingida por um taco irá se movimentar de acordo com as leis da mecânica, inevitavelmente adquirindo velocidade e direção de acordo com a força que lhe foi aplicada. A lei que regula este movimento é inexoravelmente “obedecida” pela bola. O homem, como possui A Filosofia Prática de Kant - Prof. Dr. Roberto Vasconcelos Novaes existência física, está também sujeito à todas as leis naturais, tais como as da mecânica, da termodinâmica, às leis que regem os fenômenos químicos e biológicos. Entretanto, não está submetido apenas à simples causalidade da natureza, sendo capaz de se libertar, na medida em que isso não contrarie as leis da física, da corrente de causa e efeito do mundo mecânico. Se ele faz isso, é porque lhe é próprio um motor apenas seu, que funciona dando causa ao seu movimento particular. O método de que se utiliza este motor é a representação de leis que ele mesmo deve seguir. Um homem, se fisicamente empurrado por uma força, obedecerá em seu movimento as mesmíssimas leis mecânicas que determinam a aceleração da bola de sinuca. Entretanto, ele pode determinar, por si mesmo, que irá resistir ao movimento; pode, outrossim, iniciar o movimento sem qualquer empurrão; coisa que é, evidentemente, impossível para um objeto inanimado. Na verdade, o trecho acima transcrito retoma a argumentação exposta na Crítica da razão pura, mencionada em parte anterior deste trabalho (KANT, KrV, A 802, B 830), na qual se verificava a possibilidade de o homem romper o determinismo causal ao qual estão sujeitos os animais, por exemplo, e agir de maneira independente das afetações da sensibilidade. Dizer que o homem (ou o ser racional) é capaz de agir segundo a representação de leis significa dizer que a vontade é a faculdade de romper o determinismo causal da natureza e obedecer à regras distintas das que regem o mundo dos fenômenos pela auto-representação de leis17. Como isto somente é possível num ser racional, razão prática, i.e., a razão empregada na função do agir e vontade são a mesma coisa. A primeira forma da representação de uma lei é, portanto, subjetiva. O sujeito se representa aquela norma e se submete a ela18. Num raciocínio bastante simples podemos comparar o agir animal e o agir humano. O cão sente a pulsão instintiva da fome; segundo um mecanismo fisiológico, seus nervos, células e tecidos irão se movimentar. O sistema nervoso irá ativar o olfato; o olfato irá guiar o animal até o alimento; o animal alimentar-se-á. Não há momento de escolha, de deliberação de consciência. O homem igualmente sente fome e possui os mesmos mecanismos fisiológicos que o cão possui. Entretanto, sua ação envolve, em primeiro lugar, uma 17 Segundo Pierre Laberge, a afirmação de que um ser racional age segundo a representação de leis já foi interpretada como significando que o ser racional age de acordo com leis morais objetivas, de acordo com máximas, de acordo com ambas e também de acordo com a representação de leis naturais. (LABERGE, Pierre. La volonté, la representation de lois et la fin. In : HÖFFE, Otfried (Ed.). Grundlegung zur Metaphysik der Sitten: ein kooperativer Kommentar. [s.l]: [s.n], 1989 apud ALLISON (1990, p. 261)). O caso é que independentemente destas sutilezas hermenêuticas, os entes inanimados e os seres irracionais não representam para si mesmo quaisquer regras. A rigor, não agem; simplesmente reagem. Já o ser racional não é meramente reativo. Ainda que ele se represente leis de todos os tipos acima, a afirmação possui o intuito de denotar o diferente tipo de relação entre as leis e a ação conforme se trata de um ser dotado de razão e de outro ser que não a possua. 18 Allison (1990, p. 90) comenta que, embora muitas vezes o sujeito não tenha consciência da regra subjetiva de seu agir, ele deve, pelo menos, possuir capacidade de ter tal consciência. Uma regra que não pudesse ser trazida ao nível consciente “poderia funcionar com um impulso inconsciente ou habitus governando meu comportamento, mas não seria um princípio segundo o qual eu agiria como um agente racional.” (tradução nossa). A Filosofia Prática de Kant - Prof. Dr. Roberto Vasconcelos Novaes tomada de consciência da sensação da fome. O homem primeiro sabe que tem fome. Depois, o homem procura conhecer os alimentos que possivelmente estão ao seu redor. A partir da cognição dos seus impulsos e das circunstâncias ele se representa subjetivamente, por exemplo, a seguinte regra: “se tenho fome, devo comer o alimento que estiver disponível”. Estas regras possuem, a princípio, validade meramente subjetiva. Ou seja, na imediatidade de uma ação determinada, um sujeito pode se colocar uma regra e sob ela pautar seu agir sem que, com isso, tenha a pretensão de que esta regra seja utilizável noutras circunstâncias ou em diferentes momentos. Entretanto, certas regras subjetivas do agir podem adquirir validade para outras situações além de uma necessidade instantânea. Podem se tornar regras genéricas para a vida de um indivíduo determinado ou ainda, poderão elas adquirir validade para outros homens (ou, como prefere Kant, para outros seres racionais). Neste último caso diremos que adquirem validade objetiva. Seria um exemplo de uma ação baseada simplesmente numa regra se um indivíduo formulasse a seguinte regra: (1) “se tenho sede agora, beberei aquela garrafa d’água sobre a mesa.” Esta regra, entretanto, poderia adquirir uma espécie de generalidade para o agente, e poderia ser enunciada: (2) “em todas as vezes que sentir sede, beberei água.” Pode, outrossim, ser pensada como válida objetivamente: (3) “todos os homens que tiverem sede devem beber água.” Em qualquer caso, devemos reparar como que a ação do ser racional que pensa simplesmente a regra (1) já é radicalmente distinta daquela do animal que sente sede e simplesmente impulsionado pelo instinto, bebe água. Nenhuma das regras práticas acima enunciada é considerada uma regra moral. O trecho antes citado que afirma que o ser racional age segundo a representação de leis se refere às ações em geral do ser racional, sejam elas ações morais ou de qualquer outro tipo, como as relativas à simples satisfação de uma necessidade nos exemplos acima. O texto de Kant trata, entretanto, das condições de uma moralidade pura. Portanto, não pode ela ser composta nem por regras do tipo (1), nem por regras do tipo (2), uma vez que estas possuem validade somente para uma pessoa ou para um único ser racional e dificilmente teríamos interesse no conjunto de princípios práticos de apenas uma pessoa. Será a moralidade composta, portanto, por regras objetivas, i.e., que possuam validade para mais de uma pessoa. Ocorre que códigos de moral historicamente condicionados possuem validade para um certo grupo de indivíduos mas não para outro grupo. O tipo de objetividade que Kant procura nas regras morais é a objetividade para todas as pessoas, ou como devemos dizer, uma objetividade para todos os seres racionais. Esta objetividade somente será possível se as regras que dela se revestirem não derivarem de nada que seja empírico; se procederem de origem contingente, estas A Filosofia Prática de Kant - Prof. Dr. Roberto Vasconcelos Novaes regras não poderão ser dotadas de uma objetividade tal que as tornasse válida para todo ser racional. A partir deste princípio, Kant elabora classificação dos tipos de regras práticas segundo o critério: existem ações que são boas para determinados fins e ações que são boas em si mesmas. As primeiras não podem ser regras da moralidade, uma vez que sua validade depende do fim a ser escolhido ou posto; ou seja,é contingente. Já as segundas são identificadas como regras da moralidade, dada a amplitude de sua objetividade. O homem, entretanto, justamente porque não é ser puramente racional, é capaz de se representar uma lei como objetivamente boa e, mesmo assim, não obedecer-lhe. A lei aparece para o homem, então, como um imperativo, que é a expressão da relação de obrigação de uma regra objetivamente boa para nossa vontade19. É a seguinte a tipologia dos imperativos: “Ora, todos os imperativos ordenam ou hipotética – ou categoricamente. Os hipotéticos representam a necessidade prática de uma ação possível como meio de alcançar qualquer outra coisa que se quer (ou que é possível que se queira). O imperativo categórico seria aquele que nos representasse uma ação como objetivamente necessária por si mesma, sem relação com qualquer outra finalidade.” (KANT, Grund., BA 39) Vejamos no quadro: FIGURA X – Classificação dos tipos de imperativo Fonte: KANT, Grund., BA 43-44 Os imperativos técnicos são obrigações que adequam meios a fins; são necessários conforme o fim, mas um fim que é contingente. Os imperativos 19 “O imperativo diz-me, pois, que ação das que me são possíveis seria boa, e representa a regra prática em relação com uma vontade, que não pratica imediatamente uma ação só porque ela é boa, em parte porque o sujeito nem sempre sabe que ela é boa, em parte porque, mesmo que soubesse, as suas máximas poderiam contudo ser contrárias aos princípios duma razão prática.” (KANT, Grund., BA 40) A Filosofia Prática de Kant - Prof. Dr. Roberto Vasconcelos Novaes pragmáticos são também obrigações que adequam meios a fins, mas fins que são necessários, como a felicidade. Por fim, os imperativos categóricos ordenam direta e imediatamente uma conduta, independentemente de um fim a ser almejado. Nos imperativos técnicos, os fins não são necessários, mas uma vez escolhidos, os meios tornam-se necessários. São as regras que o homem se representa para a consecução de determinados objetivos que, por sua vez, são contingentes. Por exemplo, se desejo construir uma casa, devo observar toda uma série de regras relativas à preparação do terreno, à estrutura, à mistura dos materiais e assim por diante. Não é necessário que eu construa uma casa; mas uma vez que decidi realizar este projeto estou preso às regras de engenharia que me mandam proceder de tal ou qual maneira. É claro que pode haver, nas palavras de Paton (1971, p. 91), certa ‘latitude’ na aplicação destas regras. Pode haver, por exemplo, mais de um meio (diríamos, mais de uma técnica) para a execução de um mesmo fim. Na construção da casa, posso assentar o piso de formas diferentes, posso escolher distintos tipos de cimento ou, ainda, posso seguir etapas da obra em diversas ordens possíveis e ter, como resultado, a mesma casa construída. Os imperativos da técnica, entretanto, obedecem a um princípio geral, com o qual não é difícil concordar: devo escolher o melhor meio possível para a realização do fim a que me proponho. Por isso, diz Kant que “se a finalidade é razoável e boa não importa aqui saber, mas tão-somente o que se tem de fazer para alcançá-la.” (KANT, Grund., BA 41). Os imperativos pragmáticos obedecem à mesma relação entre meios e fins acima descrita, entretanto, perseguem um fim que é sempre necessário. O único fim sempre necessário para o homem é a felicidade, e a ‘destreza’ para alcançar a felicidade é a prudência (Klugheit) (KANT, Grund., BA 42). Na Crítica da razão pura, Kant apresenta a seguinte definição de felicidade: “A felicidade é a satisfação de todas as nossas inclinações (tanto extensive, quando à sua multiplicidade, como intensive, quanto ao grau e também protensive, quanto à duração)” (KANT, KrV, A 806 – B 834) A definição acima é suficiente para que seja feita a distinção das regras dos imperativos pragmáticos das regras de destreza. O fim ‘felicidade’ é necessário, mas não é, entretanto, único, uma vez que cada indivíduo possui seu próprio conceito de felicidade. Isso decorre do fato de que a felicidade pode ser entendida como a satisfação de todas as inclinações; mas estas são, por princípio, individuais, distintas de indivíduo para indivíduo. Portanto, o que entende ‘A’ por felicidade, depende do rol de inclinações que possui ‘A’. Pode este sujeito empregar os meios que julga melhores para alcançar a satisfação de suas inclinações ou, pelo menos, os meios que estão disponíveis. Não podemos, entretanto, entender que a felicidade de ‘B’ compreende a satisfação das mesmas inclinações de ‘A’, uma vez que, por definição, as inclinações de ‘B’ são outras. Portanto, não há uma ‘regra geral da felicidade’, uma fórmula universal que pode ser aplicada a todos. Nesta diversidade de inclinações e de meios reside uma espécie de princípio pedagógico: Kant diz que é em virtude dela que os pais ensinam aos filhos a maior variedade possível de saberes acerca dos meios para atingir os vários fins da vida, uma vez que os pais não podem saber de antemão A Filosofia Prática de Kant - Prof. Dr. Roberto Vasconcelos Novaes quais são as inclinações que os filhos tomarão como “suas” respectivas felicidades. (KANT, Grund., BA 41-2) O imperativo categórico difere dos imperativos hipotéticos, na medida em que não representa o ordenar de uma ação tendo em vista um fim, mas ordena a ação imediatamente; é, portanto, o imperativo da moralidade (KANT, Grund., BA 43). Uma vez apresentada a classificação dos imperativos, resta saber como são possíveis, ou seja, como são possíveis enquanto juízos. (KANT, Grund., BA 44). Aqui Kant retoma a distinção feita na primeira crítica entre juízos analíticos e sintéticos. Deixaremos, entretanto, a distinção entre estes dois tipos de juízos para mais adiante, quando abordaremos a questão da possibilidade dos imperativos categóricos. Abordemos, por enquanto, a questão mais simples da possibilidade dos imperativos técnicos. Estes não representam dificuldade, pois quem quer os fins quer também os meios. Assim, os imperativos técnicos são juízos analíticos, uma vez que dentro do conceito de fim está necessariamente o conceito de meio. Como são juízos meramente explicativos, não carecem de maior fundamentação. Portanto, se eu desejo realizar certa obra, como construir a mencionada casa, devo submeter minha conduta às condições físicas dos materiais que emprego. Por exemplo, não posso querer que o cimento seque mais rápido do que suas propriedades químicas o permitem secar. Posso até desejar que isso aconteça, mas sei que se pretendo construir uma parede sólida, devo aguardar o tempo necessário à cura do concreto. Os imperativos técnicos são determinações da minha vontade e, uma vez que os fins são exteriores a ela mesma e ela é a causa da consecução daquele objetivo, deve ela se submeter aos meios que lhe permitirão atingi-lo. A razão que quer realizar um fim poderia até querer outros meios mais fáceis como no exemplo: poderia eu querer que a construção da casa empregasse materiais mais baratos; neste caso, entretanto, não estamos mais a falar de uma razão prática, mas de uma faculdade mais próxima à imaginação. Se eu digo que para ir até meu trabalho gostaria de ir voando, disso não decorre uma atuação real da razão prática, mas da simples fantasia. Segundo Kant, portanto, somente posso dizer que realmente quero algo quando tomo todas as medidas factíveis que estão à minha disposição. Desejar um fim e não buscar os respectivos meios é o mesmo que não querer o fim20. Não quer com isso Kant dizer que os imperativos técnicos independem de conhecimentos sintéticos. Nos exemplos supracitados, obviamente as informações necessárias relativas à cura do cimento são extraídas da experiência concreta; analítica é a conexão entre
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