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AROLDO PLÍNIO GONÇALVES TÉCNICA PROCESSUAL E TEORIA DO PROCESSO NULIDADES NO PROCESSO 1a edição - 2a tiragem - 2000 O tratamento teórico que tem sido conferido à nulidade tem feito dela um tema difícil, por vezes confuso, e até mesmo, de certo modo, desajustado perante outros conceitos e institutos do Processo. Os múltiplos sentidos que se emprestam à palavra (...) acabam provocando dificuldades não apenas de ordem terminológica, mas sobretudo de ordem conceituai, no campo doutrinário. O termo nulidade tem sido empregado indiferencialmente tanto para designar uma categoria jurídica, que se faz objeto de uma teoria, como para significar uma conseqüência jurídica — a sanção que torna ineficaz o ato processual —, como para denotar uma qualidade negativa que adere a um ato processual, como se fosse o defeito do ato, sendo equiparada ao próprio vício que o atinge. AIDE EDITORA AROLDO PLÍNIO GONÇALVES TÉCNICA PROCESSUAL E TEORIA DO PROCESSO 1a edição 2a tiragem - 2001 G635t Gonçalves, Aroldo Plínio, 1943 Técnica processual e teoria do processo / Aroldo Plínio Gonçalves. — Rio de Janeiro: AIDE Editora, 2001. 224p. 1. Direito processual civil. I. Título. CDD-341.45 ISBN 85-321-0071-6 PUBLICAÇÃO N° 146 Direitos desta edição reservados à AIDE EDITORA E COMÉRCIO DE LIVROS LTDA. Rua Bela, 740 - São Cristóvão 20930-380 - Rio de Janeiro - RJ Telefone, e Fax: (21) 2589-9926 (PABX) E.mail - aideeditora@radnet.com.br Home-Page - http://www.radnet.com.br/aideeditora Ao PAULINHO, o meu jurista in erba. A CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO, ELIO FAZZALARI, ELZA MARIA MIRANDA AFONSO e WASHINGTON PELUSO ALBINO DE SOUZA, a razão de ser e a única razão, pela comunione spirituale. INTRODUÇÃO O movimento de renovação do Direito Processual, que eclo- de em vários Congressos e se manifesta em importantes obras do Direito brasileiro, atua como fonte geradora de novas idéias e novas reflexões sobre antigas questões da construção doutriná- ria. Dentre suas contribuições, anuncia a superação do tecnicis- mo do século XIX, onde o rito se fazia pelo rito e a forma se cumpria pela forma. Essa é realmente uma boa-nova que o século XX, já caminhando para seu final, pode deixar como conquista para as gerações futuras. As novas idéias tendem, entretanto, a diluir, na própria superação do tecnicismo do século passado, a visão do processo como estrutura técnica que se põe como instrumento para o exercício da jurisdição. Quando se reflete sobre as superações de velhos modelos produzidas pelos movimentos inovadores, em alguns momentos da história humana, tem-se a impressão de que todos cumprem um destino comum. Não se passam como as ações e reações explicadas pela Física, que envolvem forças iguais e contrárias. Neles, as forças que se sucedem às antigas são mais potentes, e nem sempre vão apenas na direção contrária, mas abrem-se em um verdadeiro prisma de possibilidades de múltiplos caminhos. Pode ser lembrado, nos anos sessenta, deste século , o movimen- to da contracultura, que, reagindo contra uma cultura considera- da arcaica, propõe-se a fechar as Universidades, a retirar os professores das salas de aula, e a renovar o mundo a partir de outras bases. Seus efeitos se desdobram em marchas sobre Paris, no movimento hippie, nos woodstockes, e em tantas outras ma- nifestações inesquecíveis, que fizeram dos anos sessenta os anos das revoluções. O movimento de renovação do Direito Processual parece cumprir também esse destino. Tenta superar as insuficiências de uma concepção deficiente de processo, do rito pelo rito e da forma pela forma, abolindo o formalismo. Tenta superar um direito insuficiente, porque não deu respostas adequadas aos problemas sociais da época, eliminando o fator jurídico, que se torna o elemento menos importante, confrontado com uma or- dem social ou política. Tenta substituir uma técnica jurídica deficiente, porque construída sobre antigos conceitos que não passaram pelo necessário ajustamento, eliminando a técnica. Nega-se, ou se exclui como algo necessário, o papel fundamental do conhecimento em relação às necessidades sociais e humanas, e às necessidades da Ciência do Direito Processual. O importan- te, no Direito Processual, já não são os conceitos, mas é uma nova mentalidade de reforma, que se quer efetiva, e se faz urgen- te, porque é preciso transformar as condições sociais. E o meca- nismo dessa transformação é direcionado para o processo, a que se atribui a missão de reformador social, pelo cumprimento de finalidades políticas e sociais.1 MARX é sempre relembrado, na 1 V. CÂNDIDO R. DINAMARCO - "O que conceitualmente sabemos dos insti- tutos fundamentais desse ramo jurídico já constitui suporte suficiente para o que queremos, ou seja, para a construção de um sistema processual apto a conduzir aos resultados práticos desejados. Assoma, nesse contexto, o chamado aspecto ético do processo, a sua conotação deontológica." In: "A Instrumentalidade do Processo" 2a ed. rev. e atual. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1990, p. 21. Ainda: "O processualista de hoje pensa na missão social, política e jurídica do processo." Cf. CÂNDIDO R. DINA- passagem mais célebre das Teses Contra Feuerbach, a 11 a tese: "Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo diferentemente, cabe transformá-lo". Mas não será lembrado que MARX não cha- mava os teóricos como agentes da transformação e sim os operá- rios do mundo, que eram conclamados a se unirem. Uma teoria será sempre uma teoria, e por si só não tem o poder de ser outra coisa, e MARX certamente percebia isso. Se for usada como arma de reforma, a força que possuir estará no braço revolucionário, ou no braço reacionário, e não nos conceitos por ela formula- dos. GALILEU não foi processado pela força de qualquer teoria de ARISTÓTELES, mas pela força de BELARMINO e de URBANO VIII, ou pela força da Inquisição, que, conforme diz RUSSELL, "foi muito bem sucedida em seu empenho de acabar com a ciência na Itália"2. NIETZSCHE certamente não suspeitava da futura existência de GOBINEAU. É inútil perguntar se teriam eles, se pudessem, dado autorização para o uso prático que foi feito de suas construções. A responsabilidade que o teórico tem com as idéias que coloca em circulação3 limita-se à sua honesti- dade, pois não se pode amordaçar o pensamento, nem se colocar em uma camisa-de-força a liberdade que constitui instrumento de sua veiculação. Por isso, teoria são teorias. Os movimentos de renovação deste século, no campo da cultura ocidental, como ocorreu em outros momentos da Histó- ria, nasceram da crise da razão, de uma razão que CASTORIADIS vê como uma criação humana enlouquecida4 e que tem sido motivo de muitas angústias. MARCO: "Técnica e Efetividade do Direito Processual" in Synthesís - Direito do Trabalho Material e Processual - Rev. Semestral, nº 4/87, pp. 46/47. 2 Cf. BERTRAND RUSSELL - "História da Filosofia Ocidental", Livro Terceiro, Trad. de Brenno Silveira, 3ª ed., São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969, p. 55. 3 A questão é levantada por M1CHEL V1RRALY - La Pensée Juridique, Paris: Librairie Généraíe de Droit et de Jurisprudence, 1960. 4 "Digamos, antes, que o homem é um animal louco que, por meio da sua loucura, inventou a razão. Sendo um animal louco, naturalmente fez da Assim como, no limiar da Idade Média, SANTO AGOSTI- NHO chorava amargamente por haver cedido à tentação de ter se entretido com a literatura grega,5 o Ocidente carrega essa sina. Ama a razão apaixonadamente, cultua-a como nenhum outro povo jamais o fez, HEGEL o mostrou, mas depois se lamenta por haver cedido à sua sedução e faz o seu mea culpa, repudiando-a. Tenta encontrar sua absolvição no culto dos procedimentosir- racionais (no sentido Weberiano). A razão não deu respostas adequadas aos problemas do mundo? Exclui-se, elimina-se a razão. A crise da razão, com a negação da racionalidade, alastrou- se pelo Ocidente, que mal percebeu que, se não deu respostas adequadas a seus problemas, o feto não poderia ser tributado à razão, mas às finalidades que foram dadas a seu uso, eleitas pelos próprios homens. Se a técnica se aperfeiçoou tanto a ponto de permitir a eficiência em grau de excelência para o culto da vida ou para o culto da morte, a responsabilidade que decorre desse aperfeiçoamento não é certamente da técnica, ou da capacidade que o homem possui de produzi-la, mas da vontade que a dire- ciona para os fins. Porque a pedra foi, segundo os antigos textos sagrados, a primeira arma de um crime, para se acabar com os crimes não basta destruir as pedras. O jogo de amor da cultura ocidental com a razão é um estranho jogo, mas não mais estranho do que qualquer jogo de amor. E um jogo dirigido e presidido pelas emoções, e forma sua invenção, a razão, o instrumento e a expressão mais metódica da sua loucura. Isto podemos hoje saber, porque isto aconteceu". Cf. CORNELIUS CASTORIADIS - Reflexões sobre o Desenvolvimento e a Racionalidade, trad. de Maurício Santiago Almeida F., in Revolução e Autonomia - Um Perfil de Cornelius Castoriadis, Belo Horizonte: COPEC-Cooperativa Edito- ra de Cultura e de Ciências Sociais Ltda., 1981, pp. 117/145, o trecho citado está na p.144. 5 Cf. SANTO AGOSTINHO - Confissões, trad. de J. Oliveira Santos, S.J., e A. Ambrósio de Pina, S.J., São Paulo: Abril Cultural, 1973, v. Livro I, 14 e 15, pp. 36/37. não um curso regular, mas um dis-curso, que, como viu ROLAND BARTHES,6 é a única via possível em toda experiência amorosa, porque a sua trajetória jamais se dá em uma linha reta e contí- nua. A razão é tão amada e tão cultuada que o homem ocidental quase se dissolve nela. Mas pede demais a ela, projeta demais nela, espera demais dela, e logo se ressente e a repudia, incrimi- na-a por não dar respostas satisfatórias a todos os seus anseios. Entretanto, a separação não dura muito, porque o ser humano ocidental se fez uno com a razão e necessita dela para se reco- nhecer a si mesmo, e sem ela se vê fragmentado e, para se recompor, acaba retornando a ela. E porque a razão o cativa, ele a detém cativa.7 A penosa caminhada de uma sociedade, que ainda não resolveu problemas de ordem vital para a maioria de seus mem- bros, desperta, nos estudiosos mais conscientes da dignidade reconhecida a cada ser humano pelo Direito, a indignação por sabê-lo existente e por vê-lo, não obstante, negado. A indignação que nasce da pureza das intenções tem pressa. A dignidade humana é valor que não se negocia, como realmente sempre o foi, por isso nasce a ânsia de promovê-la já. Compreende-se, então, o apelo para que o Direito seja o elemento transformador da sociedade. Mas não se pode esquecer que a sociedade con- temporânea não tem a pureza das primitivas, e já não aceita profetas com suas tábuas de leis. Quer fazer o seu destino e quer ser agente da sua história. Seus conflitos são trazidos à luz do dia e resolvem-se no jogo das pressões e das contradições. O direito material, enquanto cânone de conduta e de orga- nização social, será fator de transformação, se assim for construí- do pelos seus destinatários, que são também os seus criadores. O 6 ROLAND BARTHES - Fragmentos de um Discurso Amoroso - Trad. de Hortênsia dos Santos, Rio de Janeiro: Francisco Alves, 3ª ed., 1981. 7 Cf. Reporta-se, aqui, ao duplo significado da expressão "a razão cativa" da obra de SÉRGIO PAULO ROUANET - A Razão Cativa - As Ilusões da Cons- ciência: de Platão a Freud. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985. processo, como instrumento disciplinado pela lei para permitir a manifestação do Poder Jurisdicional, chamado a resolver os con- flitos, onde as autocomposições falharem, é instrumento pelo qual o Estado fala, mas é, também, instrumento pelo qual o Estado se submete ao próprio Direito que a nação instituiu. E esse Direito é o único poder capaz de limitar a atuação do Poder. Foi a crise de confiança no Direito instituído pela sociedade politicamente organizada que inspirou a Escola do Direito Livre na Alemanha, o Freirecht de KANTOROWICZ, de EHRLICH, de PHILIPP HECK, mas foi também ela que, a partir de 1933, inspirou a "renovação completa dos ideais do direito e da missão do juiz", que repudiou as construções lógicas dos romanistas e confiou no senso inato do juiz à condition qu'il soit de pure race et qu'il s'inspire, non pas d'un individualisme désuet, mais de la communauté nationale, que admitiu que a lei é um aspecto do direito, mas não o mais importante, porque existe un droit non écrit qui se dégage de l'âme du peuple allemand et qui est conforme aux necessités de la vie nationale, droit claire- ment reconnu, ou mieux, senti et énergiquement réalisé par le juge allemand8. Como recorda DU PASQUIER, o congresso jurí- dico germano-italiano, realizado em Viena em maio de 1939, tratando do problema do Direito e dos juizes, adotou teses no sentido de que o juiz vincula-se à lei, ressalvando-se que ele s'inspire de l'esprit de la nouvelle philosophie et non plus des príncipes individualistes surannés du siècle passé? Essa nova filosofia que se impunha aos juizes era o nacional-socialismo. O século XX rompeu com o mito do século passado de que a ciência é um conjunto de verdades e certezas, permanentes, 8 Número inaugural de l'Akademie für deutsches Recht, juin 1934, p.6, article du professeur W. Kisch, vice-président de la dite académie, intitule Der deutsche Richter Cf. CLAUDE DU PASQUIER - Introduction à la Théo- rie Générale et à la Philosophie du Droit, 4ª ed., Neuchâtei. Delachaux et Niestlé, 1967, p.l96 9 Cf. CLAUDE DU PASQUIER, op. cit., p.196. imutáveis, definitivamente estabelecidas. Ao contrário de depor contra o conhecimento científico, essa postura anseia pelo seu progresso, por sua contínua complementação, e conduz àquela palavra de fé, de que fala BACHELARD, do cientista que termina o seu dia de trabalho dizendo: "Amanhã saberei".10. E nessa profissão de fé a ciência recupera a sua dimensão humana. Todo conhecimento, em qualquer área, é fruto de muitos esforços conjugados, em que conceitos e teorias se substituem e se reno- vam, e, não raras vezes, a renovação se faz com esteio nas antigas concepções repudiadas ou como resposta a elas. Toda afirmação sobre a inutilidade, a impropriedade ou impossibilidade do reexame de conceitos só pode ser tomada como uma atitude de renúncia ou como uma atitude autoritária, ou, ainda, como manifestação de extraordinária pureza, da qual uma das formas se revela naquela fé inabalável no dogma que leva as pessoas a morrerem por suas verdades. Essa fé é a dos santos, mas não dos cientistas, pois, lembrando novamente BA- CHELARD, "verdades inatas não poderiam intervir na ciência"11. A liberdade da investigação científica não pode ser tolhida, e mesmo a lei, quando fixa definições e estabelece conceitos, não poderia impedir a ação da doutrina jurídica. Poderia, por certo, tentar impedir a sua divulgação, como ocorreu com a censura, quando legalmente admitida, mas a própria história demonstra que a liberdade de pensamento, mesmo quando não encontra sua correlata garantia de comunicação, encontra outros cami- nhos para se expandir. A autonomia do Direito Processual, com o seu bem demar- cado campo de investigação, com conceitos e categorias pró- prias, não poderia constituir razão para se dispensar uma revisão de seus principais institutos. A revisita a eles não é movida por 10 Cf. GASTON BACHELARD - O Novo Espírito Científico, trad. de Remberto Francisco Kuhnen. in Bergson-Bachelard, São Paulo: Abril Cultural,1974, p. 334. 11 Cf. BACHELARD, op. cit., p. 334. diletantismo ou por qualquer afinidade com uma jurisprudência dos conceitos, há muito desmistificada pela crítica de VON JHE- RING sobre o lúgubre céu dos conceitos descarnados, que per- dem a vitalidade quando se distanciam do real. Longe, também, de sugerir postura conservadora, a tarefa que se constitui não apenas no "repensar o que já uma vez foi pensado", mas princi- palmente "em um pensar até ao fim o já pensado uma vez",— expressão utilizada por RADBRUCH12 para definir o próprio labor interpretativo — é, ainda, a alternativa de se projetar alguma luz sobre a própria realidade do Direito que tem vínculos diretos com o fator humano. Assim, embora não seja certo, porque intrincados fatores não autorizam tal previsão, sempre será possível que o resultado dessa tarefa contribua para que as transformações sociais possam se fazer não de modo caótico, mas com o mínimo de sofrimento possível, com a racionalidade que a época alcança. No momento em que uma ciência renuncia a continuar investigando seu objeto e as complexas relações a que pode ser submetido pela análise, terá renunciado, antes, a si própria, como competência explicativa da realidade, quando clarificar a realidade que elege como seu domínio de trabalho é, inegavel- mente, a missão social comum de qualquer ciência. A retomada do exame de alguns dos conceitos já considera- dos seguramente estabelecidos no Direito Processual pode com- portar certas surpresas. A importância crescente que os institutos do Direito Processual adquiriram na época contemporânea não chegou, ainda, ao ápice de seu movimento ascendente. Não obstante, a doutrina do Direito Processual não resolveu alguns problemas que têm retardado sua marcha e ela não pode negli- genciar seu próprio progresso justamente quando as formas de solução de conflitos do mundo atual dela muito esperam. Este trabalho não pretende e não poderia pretender inven- 12 Cf. GUSTAV RADBRUCH - Filosofia do Direito, Trad. do Prof. L. Cabral de Moncada, Coimbra: Arménio Amado, Editor, Sucessor, 1961, v. II, p.186. tariar todas as inovações que se prenunciam no Direito Proces- sual Civil. Mas pretende deixar uma contribuição sobre a nova concepção de processo como procedimento realizado em con- traditório entre as partes, que exige que se pensem novamente alguns conceitos da moderna doutrina que já não se ajustam ao novo quadro do Direito positivo contemporâneo: assim, a pró- pria concepção de procedimento, de relação jurídica processual, da ação, da relação entre o direito material e o processo. Preten- de, também, a partir de uma nova concepção de processo, refle- tir novamente sobre os escopos que lhe são atribuídos. A nova concepção de processo será trabalhada com base na obra do ilustre Professor italiano ELIO FAZZALARI, que contém a síntese de suas investigações sobre o tema. Não há a preocupa- ção de se citar passagens no original, a não ser quando a oportu- nidade do tratamento do tema o autorizar, porque, na obra de FAZZALARI, toda reflexão é profunda, o que tira o sentido de se relevarem os aspectos mais importantes que justificariam a trans- crição acadêmica. As constantes referências em notas de pé de página suprirão as exigências de se indicar o pensamento do autor citado e do controle de sua autenticidade. O método escolhido se explica pela opção que se faz: entre a tentativa de se demonstrar erudição e a tentativa de se conquistar a clareza, a preferência é por essa última, em coerência com o que se enten- de ser a função social da ciência. A reflexão sobre os escopos do processo tem inspiração na obra do ilustre jurista brasileiro, Professor CÂNDIDO R. DINA- MARCO, citado, inclusive, por FAZZALARI, em notas de pé de página. Dele se vai divergir em vários tópicos, mas este é apenas o sinal do reconhecimento da grande influência que seu pensa- mento tem exercido na formação dos processualistas brasileiros da nova geração. Não se negará, em nenhum momento, o direito fundamen- tal da doutrina de fazer suas opções filosóficas. O que se coloca em questão são os problemas da construção jurídica e de sua fundamentação. As possíveis elucidações sobre as ainda presentes insuficiên- cias ou contradições do quadro conceituai utilizado pela doutri- na do Direito Processual Civil para estabelecer as relações entre procedimento e processo, que incidem inevitavelmente em dife- rentes modos de se conceber o processo, e que se refletem no conceito de ação, e que se projetam na finalidade do processo, poderão se constituir em contribuição tanto para a Ciência do Direito Processual, como para o tratamento de questões de or- dem prática, tão necessária nesse momento em que a nova or- dem constitucional brasileira abriu extenso campo de pos- sibilidades de alterações no Direito Processual, aqui referido como sistema normativo. CAPÍTULO I CIÊNCIA E TÉCNICA 1.1. A CIÊNCIA A divisão do campo do conhecimento, no curso da História, gerou uma multiplicidade de ciências e, mais ainda, de termino- logias para designá-las de acordo com variados critérios referi- dos, principalmente, à relação entre teoria e prática e ao objeto da investigação científica. Não se pretende, aqui, recuperar o elenco das diversas propostas de divisão e de designação das ciências, mas explicitar algumas noções cuja obscuridade tem prejudicado a compreen- são do tema que se põe como objeto deste estudo. É, ainda, comum encontrar-se a divisão das ciências entre teóricas e práticas, ou especulativas e práticas. A qualificação, imprópria e ainda amplamente utilizada na doutrina jurídica,13 que contrapõe às ciências teóricas as práti- cas, tem a única utilidade de ressaltar que as primeiras se voltam 13 Sobre as manifestações da doutrina envolvendo a distinção entre ciências especulativas e práticas, cf. MIGUEL REALE - Filosofia do Direito, 8a ed. rev. e atualizada - São Paulo: Saraiva, 1978, l ºv . , pp. 264 e s. para a produção do conhecimento e as segundas para a aplicação dos resultados adquiridos por aquelas. Tal terminologia certamente é reminiscência da divisão aris- totélica entre a ciência e arte (ars, tradução latina do grego teXvn, de que derivou a palavra "técnica"). Sem necessidade de se aprofundar, aqui, as transforma- ções por que as duas concepções passaram na experiência histórica, registre-se apenas que ARISTÓTELES restringe o campo da ciência ao conhecimento teórico, cujo objeto é con- cebido como necessário, e projeta fora dessa esfera do neces- sário o que, não sendo necessário, é, entretanto, possível. Subdividindo o possível, quanto à ação e à produção, reserva a expressão arte à ação possível que tem como objeto a produ- ção. A arte é definida como o hábito dirigido pela razão de se produzir alguma coisa.14 Hoje, a antiga denominação, de que se tem ainda resquí- cios, se substitui, mais adequadamente, por ciências teóricas e ciências aplicadas, admitindo-se que a ciência aplicada é apenas a ciência, em sua constituição intrinsecamente teórica, voltada para resultados determinados. Não se duvida mais de que qualquer ciência é sempre teóri- ca, embora a atividade humana encontre procedimentos para a aplicação prática das aquisições do conhecimento. Toda ciência, seja natural, social, cultural, divisões que se fazem pelo critério do objeto da investigação, pode ser entendi- da como um conjunto de conhecimentos fundamentados, ou como uma atividade criadora de conhecimento. De uma ou de outra forma, independentemente de qual seja seu objeto, toda ciência se quer como uma competência explicativa de uma deter- minada realidade, seja ela natural ou cultural. Não é demais insistir na dupla possibilidade de emprego do 14 Cf. ARISTÓTELES - Metafísica, L.l, in Obras, trad. de Franciscode P. Samaranch, Madrid: Aguilar, 1977. termo ciência, pois a falta dessa discriminação tem gerado muitas disputas inúteis, no campo do Direito.15 Em uma das cinco acepções registradas por LALANDE — quatro delas referidas a "saber", a "direção de conduta", a "habili- dade técnica", e a "termo usado para oposição a letras" — o termo ciência corresponde a "um conjunto de conhecimentos e de pesquisas que têm um grau suficiente de unidade, de genera- lidade, e susceptíveis de levar os homens que a ele se consagram a conclusões concordantes que não resultam de convenções arbitrárias ou de gostos e interesses individuais que lhes sejam comuns, mas de relações objetivas que se descobrem gradual- mente e que possam ser confirmadas por métodos de verificação definidos".16 A definição de LALANDE compreende a ciência tanto como conjunto de conhecimento, tanto como pesquisa. Encerra, tam- bém, a idéia de que ciência é descoberta gradual e de que seus resultados são sujeitos à verificabilidade. HU1SMAN e VERGEZ, com base em LALANDE , afirmam que "a ciência pode ser entendida como descoberta progressiva das relações objetivas que existem no real" (...) "um esforço para conhecer, para explicar o que é".17 Percebe-se, no exame das duas propostas, que o termo ciência refere-se ou ao conhecimento obtido, ou à atividade desenvolvida para se obtê-lo, sendo empregado ou como produ- 15 Até hoje se discute, por exemplo, se o Direito é uma ciência, ou uma arte. Mesmo considerando-se a multiplicidade de sentidos que o termo Direito comporta, essa questão se esvazia, porque obviamente o Direito enquanto objeto de um conhecimento fundamentado é só objeto desse co- nhecimento. Nem por outra razão se fala em Ciência do Direito. 16 Cf. ANDRÉ LALANDE - Vocabulaire Tecbnique et Critique de la Philosophie, Paris: Presses Universitaires deFrance, 1972 - verbete: Science. 17 Cf. DENIS HUISMAN e ANDRÉ VERGEZ - Curso Moderno de Filosofia - Introdução à Filosofia da Ciência, trad. de Lélia de Almeida Gonzalez, 8a ed., Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1983, p. 42. I to de uma atividade ou como a própria atividade capaz de produ- zi-lo. Quando se diz que a ciência e uma procura, uma investiga- ção, uma tentativa de compreensão, está implícito, nessa afirma- ção, que o intelecto se debruça sobre a realidade procurando entendê-la, pois o conhecimento não é um objeto natural que possa ser simplesmente encontrado em algum lugar, mas é, antes, construído sobre uma determinada realidade. A atividade científica, enquanto atividade que gera conhecimento, se faz por muitas formas, mas uma atividade científica racionalizada, capaz de compreender o seu próprio operar, exige alguma meta (em- bora o resultado obtido sempre possa dela escapar e causar surpresas), alguns métodos que já foram testados, ou mesmo o teste de novos métodos, e o manejo do que usualmente se denomi- na instrumental teórico, ou seja, alguns conceitos, definições, no- ções, teorias que auxiliem a investigação. Nenhuma realidade pene- tra na mente humana senão pela representação que se tenha dela, por isso a atividade científica necessita encontrar um meio de relação do intelecto com o real que se faz objeto da investigação, e o encontra nesse instrumental, que também sofre retificações, na medida em que novos conhecimentos são produzidos. A ciência, considerada já não como atividade, mas como con- junto de conhecimentos, é, naturalmente, a unificação das desco- bertas fragmentadas, dos resultados parciais da investigação. Assim, as duas acepções do termo, como atividade que produz conhecimento e como conjunto de conhecimentos fun- damentados, se complementam. Convém, ainda, explicitar o que se entende por criação de conhecimento, e, para tanto, vale a pena relembrar duas defini- ções propostas, em síntese magistral, por BRONOWSKI: "Toda ciência é a procura da unidade em seme- lhanças ocultas".18 18 JACOB BRONOWSKI - Ciência e Valores Humanos, Trad. de Alceu Letal, "A Ciência é um processo de criação de novos conceitos que unificam a nossa compreensão do mundo".19 A atividade essencial da ciência é essa procura das seme- lhanças não aparentes, da unificação, no entendimento, do que se encontra fragmentado e disperso em algum plano da realida- de. É no momento dessa unificação do real no conceito, que é classicamente definido como uma unidade mental pela qual se representa alguma parcela da realidade no intelecto, que a Ciên- cia exerce a sua atividade criadora. É oportuno ressaltar, também, a qualificação da atividade científica, e do próprio conhecimento que dela resulta, como um processo. A antiga concepção de ciência como saber definitiva- mente adquirido em caráter irretocável e imutável não se confir- ma historicamente e não é mais sustentável, e a pretensão à universalidade necessária, requerida pela imobilidade da perfei- ção, tão explicável no pensamento grego, que acompanhou as antigas concepções de ciência, foi substituída pela objetividade que admite, e requer, processos de correções sobre todo co- nhecimento que não perdeu sua vitalidade pela mumificação seguida da decomposição. Os processos e métodos utilizados na atividade científica são múltiplos, e são, também, em seu aperfeiçoamento, submeti- dos à racionalização da ciência. Recuperar suas manifestações e suas avaliações, no curso da História, seria penetrar em toda a história do conhecimento, e, em conseqüência, pode-se dizer, na história da humanidade.20 Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1979, p. 19. 19 Cf. JACOB BRONOWSKI - O Senso Comum da Ciência, Trad. de Neil Ribeiro da Silva, Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universida- de de São Paulo, 1977, p.114. 20 A tentativa da ciência de se tornar um processo racional, não um saber infundado, mas inteligível e transparente para si mesmo, tem origens 1.2. A TÉCNICA A palavra técnica é objeto de dois verbetes em LALANDE, que fez a crítica de seu significado tomando-a como adjetivo e como substantivo. A técnica, como substantivo, que nomeia um objeto, é por ele definida com dois sentidos: "Conjunto de procedimentos bem definidos e transmissíveis destinados a produzir certos re- sultados julgados úteis" imemoriais, mas, no Ocidente, até onde a investigação alcançou, inicia-se na Grécia, com os chamados Pré-Socráticos. JOHANNES HESSEN atribui a forma mais antiga do racionalismo a Platão, que distinguiu o verdadeiro saber "pelas notas da necessidade lógica e da validade universal". O verda- deiro saber não poderia ser fornecido por um mundo em constantes mutações, submetido à lei do movimento, à geração e corrupção, e por isso não poderia provir dos sentidos. Estes podem fornecer uma simples opinião, uma "doxa". Além do mundo sensível há um mundo supra-sensí- vel, o mundo das idéias que são modelos dos conceitos e da realidade empírica. A ele, Platão julga possível ascender, como mostra pela teoria da anamnésis, pela qual o conhecimento é uma reminiscência, uma rememo- ração da alma que contemplou as idéias em uma experiência extraterrena. Cf. JOHANNES HESSEN - Teoria do Conhecimento. Trad. do Dr. Antônio Correia, 8a ed., Coimbra.- Arménio Amado-Editora, 1987, pp.63/64. Entre- tanto, antes de Platão houve Parmênides, Heráclito, e tantos outros, cuja "doxografia" foi parcialmente recuperada para nossos tempos. JEAN BEAU- FRET, em ensaio sobre o Poema de Parmênides, na parte da Palavras da Verdade, contra a "Opinião, defensora do partido dos múltiplos", escreve: "...a doxa, que não é nem conhecimento nem ignorância, voga em alguma parte entre... o ser puro e o não-ser absoluto, só se ligando à inconstância daquilo que está incessantemente em devir. A ciência (epistéme), ao con- trário, é acesso direto ao que existe de propriamentesendo naquilo que é..., ou seja, àquilo que sempre se comporta invariavelmente em relação a si mesmo e a que Platão denomina eidos". Cf. in Os Pré-Socráticos - Fragmentos, Doxografia e Comentários, Seleção de textos e supervisão do Prof. José Cavalcante de Souza, 2ª ed., São Paulo: Abril Cultural, 1978, pp. 163/169- Em relação à alétbeia, a doxa era opinião sem fundamento, pura ilusão dos sentidos, recolhida da aparência ao contrário da epistéme, a ciência, o conhecimento de que se podia apresentar as causas. A investi- gação do método adequado para a busca de Alétbeia, iniciada, no Ociden- te, com o nôus de Parmênides, prossegue até os nossos dias. "Em sentido especial (...) a palavra técnica se diz particularmente dos métodos organizados que se fundam sobre um conhecimento científico cor- respondente"21. A noção geral da técnica é de conjunto de meios adequados para a consecução dos resultados desejados, de procedimentos idôneos para a realização de finalidades. É bastante difundida a concepção de que a adequação dos meios aos fins, a idoneidade do procedimento, que estão na própria concepção de técnica, supõem o conhecimento da eficá- cia dos meios adotados para a realização do fim, como se lê em EDUARDO GARCÍA MÁYNEZ, que sustenta que toda técnica ge- nuína deve encontrar-se iluminada pelas luzes da Ciência, e, por isso, toda técnica é de índole científica, pois uma técnica não científica não é técnica, porque se torna incapaz de cumprir o seu destino.22 Essa noção deve ser tomada com extrema cautela, porque, depois dos recentes estudos da Filosofia da ciência e dos não tão recentes estudos de MAX WEBER sobre os processos de raciona- lidade no Ocidente, já há base suficiente para se afirmar que há técnicas produzidas antes da ciência, e que os procedimentos mágicos primitivos eram dotados de admirável eficácia para a consecução de finalidades desejadas. Dizer que toda técnica é "iluminada pelas luzes da ciência" significa ou negar-se a existência dessas técnicas primitivas, ou ampliar-se tanto o conceito de ciência para que dentro dele se inclua, também, o saber desorganizado e ainda irracional, no sentido de que não pode ainda pensar seus próprios fundamen- 21 Cf. ANDRÉ LALANDE - Vocabulaire cit., verbete: Technique (subst.). 22 Cf. EDUARDO GARCÍA MÁYNEZ - Introduccion al Estudio del Derecho - Vigesimaquinta Edícion Revisada, México: Editorial Porrua S.A., 1975, p 317. tos. E nenhuma das duas hipóteses, pelo que já disse, poderia ser aceita. É por isso que os estudos críticos do termo técnica hoje incluem técnicas racionais e técnicas irracionais, como já está em ABBAGNANO.23 Se é verdade que a técnica nunca é concebida como um fazer desordenado, que eventual e acidentalmente alcança resul- tados, não é menos verdade que a ciência se quer um conjunto de conhecimentos, organizado e ordenado. 1.3. RELAÇÕES ENTRE CIÊNCIA E TÉCNICA A concepção de que a ciência revela as relações entre os fenômenos e a técnica utiliza esse conhecimento para a obtenção de um resultado desejado — tão divulgada nos estudos da Ciên- cia do Direito, formulada na linha adotada por GARCÍA MÁYNEZ — supõe a concepção de que a técnica corresponde a um saber aplicado, como se necessariamente ela viesse a atingir o nível de eficácia equivalente ao nível de racionalidade do saber que lhe é teoricamente correlato. Não obstante, há trabalhos bem sistematizados demons- trando que as relações entre a ciência e a técnica nem sempre podem ser captadas, na história de seu desenvolvimento. DENIS HUISMAN e ANDRÉ VERGEZ24 fornecem exemplos 23 Cf. NICOLA ABBAGNANO - Dicionário de Filosofia, trad. coordenada e rev. por Alfredo Bosi, com a colaboração de Maurício Cunio ...et al., 2a ed., São Paulo: Mestre Jou, 1982, v. verbete Técnica. 24 Das velhas formas antropomórficas de explicação do mundo, em que os procedimentos mágicos deram origem à formação de técnicas eficazes para a atuação do homem na busca de resultados úteis, cujas bases científicas seriam descobertas posteriormente, lembram as antigas embarcações, o arco e a flecha, os utensílios, a alavanca, que permitiu o deslocamento de enormes blocos de pedras de que resultaram arquiteturas admiráveis. Cf. DENIS HUISMAN e ANDRÉ VERGEZ, op. cit., p.42 e s. Observe-se que, prosseguindo na história, até os nossos dias, os exemplos poderiam se bastante significativos para demonstrar um postulado que é qua- se intuitivo, quando se reflete sobre os processos culturais e os resultados deles derivados: o de que "historicamente a prática precede a teoria, a técnica precede à ciência". O processo de racionalização da técnica iria levá-la a pos- sibilitar que a ciência se tornasse, realmente, um "saber aplica- do". Ao alcançar essa etapa, a ciência engendra novas técnicas e a técnica, racionalizada, permite tanto o crescimento do co- nhecimento científico como a melhor aplicação da ciência, con- forme finalidades previamente concebidas. A partir desse ponto de confluência, é possível se fazer uma ciência da técnica e é também possível se obter tanto o aprimora- mento de antigas como a produção de novas técnicas pela aplica- ção do conhecimento fornecido pela ciência. Entretanto, deve ser ressaltado que essa possibilidade é apenas o que se disse: uma possibilidade. MAX WEBER,25 a quem se deve uma sistematizada investiga- ção dos processos da crescente racionalização da civilização oci- dental, demonstrou como essa tendência não é suficiente para afastar as formas irracionais em vários de seus domínios, dentre eles o do Direito.26 multiplicar em dimensão insuspeitada. 25 MAX WEBER - Essais sur la Tbéorie de la Science, Paris: Plon, 1965. A Sociologia do Direito (Rechtssoziologie) que constituiu um capítulo da Wirtscbaft und Gesellschaft, publicada postumamente, foi publicada sepa- radamente há alguns anos na França, com alguns acréscimos que Weber havia confiado a um de seus alunos, como relata JULIEN FREUND, a quem se deve um excelente estudo feito sobre a racionalização do Direito em Weber, recolhida do conjunto de sua obra, referida no número seguinte deste rodapé. 26 A racionalização, segundo WEBER, liga-se ao desenvolvimento cumulativo das civilizações, que cresce na medida em que elas manejam e dominam a técnica ou certos procedimentos técnicos. No Direito, o processo de racio- nalização é muito antigo, e WEBER o remete mesmo ao código de Hamura- bi. Entretanto, as formas irracionais, que são aquelas formas primitivas e arcaicas de Direito, em que o pensamento jurídico não se distingue do rito religioso, das prescrições morais e políticas, convivem freqüentemente De qualquer forma, para racionalizar a técnica, investigando os meios mais hábeis, mais idôneos e mais adequados para a consecução de resultados sobre bases objetivas, que podem ser explicadas e entendidas, ou seja, sobre bases inteligíveis, a ciên- cia, em qualquer campo do conhecimento, necessitou, primeira- mente, se construir a si mesma, como competência explicativa da realidade que se fez objeto de sua investigação. com as formas racionais. As variadas formas de irracionalismo passam pelo direito carismático, que apela a um profeta deixado à própria inspiração, porque interpreta oráculos ou recebe revelações, do qual WEBER formula o arquétipo da justiça do Kadi (Kadi-justiz), profética e carismática, que não se vincula a normas preexistentes. Os exemplos fornecidos por WEBER, sob esse arquétipo, são bem amplos, e podem ser lembrados a justiça de Salomão, as Ordálias, os linchamentos e as atuações dos tribu- nais revolucionários. Tais formas irracionais subsistem nos sistemas os mais racionais, e, para demonstrar a convivência da racionalidade com a ir- racionalidade, WEBER toma a distinção entre direito formal e material, oferecendo quatrohipóteses e afirmando que um pode ser tão irracional quanto o outro: 1. O direito material irracional que se funda sobre o sentimento pessoal do juiz ou sobre o arbítrio do déspota. A justiça do Kadi é o exemplo típico. 2. O direito material racional, quando o direito ou a sentença se baseiam em normas exteriores e anteriores (não importando sua fonte: moral, política, religiosa ou ideológica). 3. O direito formal irracional — quando o juiz formaliza a sentença, mas fundando-se sobre uma revelação, isso é, o rito da produção da sentença deve-se ã revelação do juiz. 4. O direito formal racional, quando o julgamento é baseado em lei preexistente, ou seja, em regras sistematizadas e conceitos abstratos elabo- rados juridicamente. Cf. JULIEN FREUND - La rationalisation du droit selon Max Weber, in Formes de Racionalité en Droit, Arcbives de Pbiloso- phie, Tome 23, Paris: Sirey, 1978, pp.67/92. CAPÍTULO II CIÊNCIA JURÍDICA E TÉCNICA JURÍDICA 2.1. RELAÇÃO ENTRE CIÊNCIA JURÍDICA E TÉCNICA JURÍDICA O Direito é criado, formulado, para ser aplicado, e entre a sua ciência e os procedimentos adequados para sua aplicação deveria haver um indissociável liame, realimentado mutuamen- te, em razão de sua natureza, que o faz em permanente processo de construção. No entanto, as relações entre a ciência do direito positivo e os procedimentos de sua aplicação verificaram-se no mesmo passo que marcou a cadência do relacionamento entre a ciência de qualquer campo do saber e a técnica que, de alguma forma, lhe correspondia. Para investigar os procedimentos adequados, hábeis e idô- neos para a aplicação do Direito e lhes conferir racionalidade, a Ciência Jurídica necessitou, primeiramente, construir-se a si mesma. Os passos dessa construção foram muito férteis, pois entre coerências e contradições, puseram em pauta as questões das relações entre um direito ideal e um direito positivo, entre o direito natural e o direito estatal, e o que estava em jogo, na verdade, eram os limites da intervenção social na liberdade indi- vidual, e, logo, a sua recíproca, que entra em cena, passada a fase do individualismo: os limites da liberdade humana dentro de uma sociedade politicamente organizada. Como resultado desse processo, uma multiplicidade de temas e de perspectivas se abriu para a investigação do fenômeno jurídico, ou seja, do direito manifestado na experiência, do direito positivo, com existência no tempo e no espaço. Do estudo da gênese das normas até o estudo de sua aplicação há uma infinidade inesgotável de refle- xões, pois o que está envolvido, entre esses dois momentos, é a própria existência da sociedade humana, as formas de sua orga- nização e de solução de seus conflitos. 2.2. OS CAMPOS DA INVESTIGAÇÃO DO DIREITO O conhecimento jurídico se dividiu em vários campos, que a doutrina ainda separa por critérios diferentes,27 mas nos qua- dros por ela apresentados percebe-se que o domínio de cada saber é, geralmente, demarcado tanto pelo objeto como pelos objetivos da investigação desenvolvida sobre o Direito. De forma geral, pode-se dizer que a Filosofia do Direito, com suas divisões 27 Cf. MIGUEL REALE - op. cit, 2º v. p. 609 e s.; NORBERTO BOBBIO - Teoria delia Scienza Giurídica, Turim, 1950, p.18 e s., GUSTAV RADBRUCH - Filosofia do Direito, Trad. do Prof. L. Cabral de Moncada, Coimbra: Armé- nio Amado, Editor, Sucessor, 1961, v. II, p.185 e s.; ENRIQUE R. AFTALIÓN, FERNANDO GARCÍA OLANO, JOSÉ VILANOVA - Introduccion al Derecho, 8a ed., Buenos Aires: La Ley, 1967, p.73 e s; LUÍS RECASÉNS SICHES - Tratado General de Filosofia Del Derecho, Quinta Edicion, México: Edito- rial Porrua, S.A., 1975, p.160 e s. Sem pretender esgotar os quadros do saber jurídico, apresentados na doutrina, registre-se que incluem, ainda, outros domínios, como a Psicologia Jurídica, a Antropologia Jurídica, a Lógica Jurídica, com destaque para os trabalhos de PERELMAN, a recente tendência do "Politicismo Jurídico", Cf. ANTÔNIO HERNANDEZ GIL - Meto- dologia de la Ciencia del Derecho, Madrid, 1971, v.I, pp. 337/352. internas, se ocupou do Direito em sua natureza e em seus funda- mentos; a Sociologia Jurídica se preocupou com as relações entre os fatos sociais e a normatividade-, a Ciência do Direito restringiu seu campo ao Direito que se positiviza, que se torna manifesto na experiência, como fenômeno, o fenômeno jurídico que se delimita pelo critério espácio-temporal. Os três domínios não esgotam as possibilidades do estudo do Direito e, se essas possibilidades se voltam também para o passado, pela História do Direito, projetam-se, igualmente, para o futuro, com a preo- cupação em torno de uma Política Jurídica, já admitida por RADBRUCH,28 e até mesmo de uma recente Informática Jurídica, que já pretende se sistematizar como campo autônomo do co- nhecimento jurídico.29 O ponto de interesse desse tópico, no entanto, não é o de fazer cortes epistemológicos no amplo espaço em que se realiza a investigação jurídica, mas apenas o de correlacionar a Ciência Jurídica e a Técnica Jurídica, superando algumas dificuldades que se põem para o trato da técnica processual. 23- DOGMÁTICA JURÍDICA E TEORIA GERAL DO DIREITO A Ciência Jurídica, cujo objeto ficou bem definido como "o fenômeno jurídico tal como ele se encontra historicamente reali- zado", "tal como se concretiza no espaço e no tempo",30 em síntese, o direito positivo, a "ciência do sentido objetivo do 28 Cf. GUSTAV RADBRUCH - Filosofia do Direito, Trad. do Prof. L. Cabral de Moncada, Coimbra: Armênio Amado, Editor, Sucessor, 1961, v.II, p.185. 29 Cf. PIERRE CATALA - L 'informatique et la ractonalité du Droit, in Archives de Philosophie du Droit, Tome 23 - Formes de Racionalité en Droit, Paris: Sirey, 1978, pp. 295/321. 30 Cf. MIGUEL REALE - Lições Preliminares de Direito. São Paulo: Saraiva, 1976, pp. 16/17. direito positivo",31 também se subdividiu na Dogmática Jurídica e na Teoria Geral do Direito, dirigida para o Direito positivo em geral, sem fronteiras de sistemas, fundada por JOHN AUSTIN e amplamente aceita como "um substitutivo" da Filosofia do Direi- to, no século passado, como mostra RADBRUCH32. Enquanto a Dogmática Jurídica se volta para o estudo do Direito positivo de um sistema jurídico determinado, tendo por objeto de investigação "a conduta em função de modelos jurídi- cos consagrados no ordenamento jurídico em vigor"33, a Teoria Geral do Direito — que, segundo as propostas originárias de AUSTIN34, deveria extrair de uma ordem jurídica determinada noções, conceitos e distinções fundamentais, para compará-los com noções, conceitos e distinções fundamentais de outra ou outras ordens jurídicas, estabelecendo, em um terceiro momen- to, os elementos comuns, as correlações lógicas entre elas, as semelhanças existentes em sua estrutura, porque os conceitos gerais comparecem com certa uniformidade em todos os siste- mas jurídicos que alcançaram análogo nível de maturidade — desenvolveu-se como a ciência das noções elementares da ordem 31 Cf. GUSTAV RADBRUCH - Filosofia do Direito, Trad. do Prof. L. Cabral de Moncada, Coimbra: Arménio Amado, Editor, Sucessor, 1961, v. II, p.185. 32 GUSTAV RADBRUCH - op. cit., p. 189- 33 Cf. MIGUEL REALE - O Direito como Experiência, São Paulo: Saraiva, 1968, pp.88/91, p.130. 34 Cf. JOHN AUSTIN - Lectures on Jurisprudence, London: R Campbell, 1885. Sobre a influência do positivismo analítico na construção da Teoria do Direito v. EDGAR DE GODOI DA MATA-MACHADO - Elementos de Teoria Geral do Direito. Belo Horizonte: Editora Vega S.A., 1976, p.121 e s; W. FRIEDMAN - Théorie Générale du Droit, Paris: Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence-LGDL, 1965, p.211 e s.; EDGAR BODENHEIMER - Ciên- cia do Direito, Filosofia e Metodologia Jurídicas - Trad. de Enéas Marzano,Rio de Janeiro: Forense, 1966; p.109 e s.; ALBERT BRIMO - Les Grands Courants de La Philosophie du Droit et de L 'État, Paris: Ed. A. Pedone, 3a ed., 1978, p. 276 e s. jurídica e dos princípios fundamentais que regem seu conjun- to.35 Entretanto, com a diferença de grau apontada, ambas, a Dogmática Jurídica e a Teoria Geral do Direito, têm como objeto de investigação o Direito positivo36 e, por isso, estão no quadro da Ciência do Direito. Nem por outro motivo, quando justificou o título de sua obra Teoria Pura do Direito, KELSEN definiu-a como uma Teoria do Direito positivo em geral, e não, de uma ordem jurídica especial, uma Ciência do Direito positivo.37 2.4. A TÉCNICA JURÍDICA JULIEN BONNECASE, fazendo o levantamento das doutri- nas jurídicas surgidas em França, de 1880 até o fim da segunda década do século XX, considera que o estudo da ciência do Direito Civil não apareceu senão pela via da técnica jurídica e que a distinção entre ciência e técnica no Direito foi o signo da grande revolução do pensamento jurídico.38 A revolução, de que fala BONNECASE, produziu resultados realmente profícuos. Sob o título de Técnica Jurídica, a Ciência do Direito anunciava que havia uma técnica de criação, uma técnica de interpretação e uma técnica de aplicação do Direito, e 35 Cf. PIERRE PESCATORE - Introduction à la Science du Droit, Luxembourg: Office des Imprimes de L'Etat, 1960, p. 73 36 Cf. HANS NAWIASKY - Teoria General del Derecho - Trad. por el Dr. José Zafra Valverde, Madrid: Ediciones Rialp, S.A.., 1962, pp. 19/27; PIERRE PESCATORE - Introduction à la Science du Droit., Luxembourg: Office des Imprimes de L'Etat, 1960, pp. 74/75. 37 Cf. HANS KELSEN - Teoria Pura do Direito, trad. de João Baptista Ma- chado, Coimbra: Armênio Amado-Editor, Sucessor, 5a ed., p.17. 38 Cf. JULIEN BONNECASE - Science du Droit et Romantisme - Les Ccmflits des conceptions juridiaues en Trance de 1880 à Theure actuelle, Paris: Librairie de Recueil Sirey, 1928, pp. 268/269. passava à investigação detalhada e exaustiva dos procedimentos intelectuais da construção jurídica.39 A técnica jurídica, conforme a define CLAUDE DU PAS- QUIER, é "o conjunto de procedimentos pelos quais o Direito transforma em regras claras e práticas as diretivas da política jurídica"'40. Mas, no estudo desses procedimentos, embora a Técnica Jurídica, desenvolvida no âmago da Ciência do Direito, já percebesse que há uma "técnica legislativa" e uma "técnica da jurisprudência", seus estudos se concentram na formulação dos conceitos, de categorias jurídicas, de institutos jurídicos, e de ramos do Direito positivo. É sobretudo da elaboração jurídico-científica que trata essa técnica, que, como diz RADBRUCH, executa-se em três tempos: Interpretação, Construção e Sistematização, a que correspon- dem os conceitos juridicamente relevantes e os genuínos concei- tos jurídicos41. Enquanto a Ciência do Direito construía seu instrumental 39 Essa é fundamentalmente a matéria da obra magistral de FRANÇOIS GÉNY, que estuda os fundamentos do Direito, separa "o dado", o real, a matéria que decorre da "natureza das coisas", do "construído", os procedimentos da construção intelectual, matéria de trabalho dos juristas, que, pelo método da libre recherbe scierttifique, poderão encontrar soluções para os problemas da elaboração, buscando os critérios da integração, que serão utilizados na aplicação do Direito. Cf. FRANÇOIS GÉNY-Science et Tecbni- que en Droit Prive Positif, 4 vol. Paris: Sirey, 1914-1924. É também à técnica de elaboração teórica e lógica, compreendendo o estudo das fon- tes, a formulação de conceitos, as construções jurídicas, que se dedica JEAN DABIN, na clássica obra La Technique de 1'élaboration du droit positif - Bruxelles: Bruylant et Paris-. Sirey, 1935. 40 CLAUDE DU PASQUIER, op. cit., p.l63- 41 Cf. RADBRUCH - Op. cit., p.185 e s. No mesmo sentido CLAUDE DU PASQUIER que distinguindo três momentos da construção jurídica: a siste- mática, a criadora e a construção na aplicação do direito, caracteriza esta, citando BUCKHARDT, Methode und System como: "Consiruíre, c'est alors ramener les élements caractéristiques du cas concret aux notions abstrai- tes incluses dans la règle ou dans l'institution juridique", op. cit., p.170. teórico para trabalhar seu objeto, os procedimentos de criação da lei e da aplicação do Direito ao caso concreto não constituí- ram preocupação fundamental do pensamento jurídico. Este parava no limiar daquela investigação, quando, do estudo da interpretação da lei, fazia o salto para pesquisar os problemas de ordem ética ou axiológica da atividade do juiz e o grau de sua independência em relação à lei. Entre esses momentos, ficava sem explicação, ou, antes, explicado como une affaire des prati- ciens, todo o procedimento que leva o Direito a incidir sobre casos concretos ou a dar solução para os conflitos sociais, sub- metidos à decisão do Poder. Na expressão de PIERRE PESCATORE, tais procedimentos constituíam o savoir faire daqueles que elaboram e praticam o Direito, podendo assumir duas funções distintas: a de fazer leis — a técnica legislativa e a de aplicar a lei, en d'autres mots, la pratique judiciaire et administrative42. Sua descrição dessa atividade é significativa para demons- trar a concepção generalizada quanto à aplicação do Direito ao caso concreto, na época em que a técnica de construção jurídica resplandescia: "Considérée comme pratique du droit, la techni- que juridique consiste à appliquer le droit, à l'exé- cuter, à le mettre en oeuvre. Cest l' habilite pratique du magistrat, de l'avocat, du notaire, du fonction- naire... Cespraticiens n'ont pas la même liberté que ceux qui font qffice de législateur et leur art se dis- tingue sensiblement de l'art de la législation. Pour les praticiens, il s 'agit avant tout de saisir la réalité des faits et des situations concrètes, de manier les règles de droit avec intelligence et de faire emploi judicieux du pouvoir discrétionnaire qui leur est 42 Cf. PIERRE PESCATORE, op. cit., p. 47. laissé. Leur art est la prudence juridique, la iuris prudentia au sens etymologique du terme"43. É muito compreensível que, em decorrência dos resultados do movimento da codificação, a Ciência do Direito tenha as- sumido sua tarefa de trabalhar sobre essa realidade jurídica, sobre o fenômeno jurídico, o Direito posto, criado pelos órgãos competentes, recriando-o no plano epistemológico, conferindo- lhe unidade, sistematizando-o, elaborando conceitos, dedican- do-se à construção jurídica, e no trabalho de agrupar as normas, elaborando categorias jurídicas, institutos jurídicos e organizan- do ramos do Direito positivo. E também compreensível que sob o império do tecnicismo, ou seja, do domínio do rito e da forma, o procedimento de aplicação não fosse mais do que une affaire des praticiens44. A revolução de que falou BONNECASE alcançaria também o Direito nesse aspecto, mas viria da Alemanha, onde já se prepara- va na renovação dos conceitos produzida pelo movimento pan- dectista, e encontraria terreno fértil para seu desenvolvimento na Itália. Passou, também, por sua fase de construção para transfor- mar esse campo de investigação em uma ciência autônoma com seu referencial teórico próprio, que, hoje, já se quer uma Teoria Geral do Processo45. 43 Cf. PIERRE PESCATORE, op. cit,., p. 48. 44 Tal concepção não foi superada, como demonstra, ilustrativamente, K. STOYANOVITCH, fazendo a resenha do livro de ROBERT CHARVIN - "La Justice en France, Mutations de l'appareil Judiciaire et Lutte de Classes", avec la collaboration de GÉRARD QUIOT, Editions Sociales, Paris, 1976, e justificando por que, de início, não tinha intenção de apresentá-lo: "Ceci parce qu'il traite du fonctionnement de l'appareil judiciaire,qui est tine question terre à terre et non pas de questions qui interessent la philosophie du droit (justice, droit objectif, intérêt general, sujet de droit, responsabi- lité...)" Cf. Comptes Rendues, in Arcbives dePhilosophie du Droit, Tome 23 - Formes de Racionalité en Droit. Paris: Sirey, 1978, pp.431/433. 45 Cf. ANTÔNIO CARLOS DE ARAÚJO CINTRA, ADA PELLEGRINI GRINOVER e CÂNDIDO R. DINAMARCO - Teoria Geral do Processo, 8ª ed. rev. e atual. Em seu desenvolvimento e aperfeiçoamento, a técnica jurí- dica tem oferecido excelentes resultados, como conjunto de meios idôneos para o trato do Direito. O Direito, como sistema normativo, não é elaborado pelos juristas, mas pelos órgãos que são legitimados pelo próprio sistema para produzi-lo. O poder para elaborar a norma genérica e abstrata destinada à observância geral, ou é difuso na coletivi- dade, quando o sistema jurídico acolhe o costume como forma de produção normativa, ou é centralizado pelo Estado, que re- presenta a comunidade jurídica, a sociedade politicamente orga- nizada pelo Direito. A Ciência do Direito tem desenvolvido e aprimorado suas técnicas para apreender o fenômeno jurídico e realizar seu traba- lho de construção jurídica. As normas criadas pelo legislador são recolhidas, sistematizadas, classificadas, conceitos são formula- dos, através da busca das semelhanças ocultas na diversidade, unificando realidades jurídicas em um modelo genérico aplicá- vel a uma multiplicidade de casos, normas são agrupadas por um critério lógico de conexão e coerência entre a matéria social regida, sobre princípios comuns, que conferem unidade ao con- junto, em grau crescente de categorias jurídicas, institutos jurídi- cos e ramos do Direito; constroem-se teorias explicativas e críti- cas, que oferecem subsídios novamente ao trabalho do legisla- dor. A construção jurídica se desdobra em construção técnica e em construção criadora46. Toda essa atividade não poderia deixar de ser extremamen- te valiosa para o crescimento do conhecimento jurídico, para a - São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1991- 46 Cf. CLAUDE DL) PASQUIER, op. cit., pp. 167/172. Especificamente sobre a técnica de construção teórica de agrupamentos normativos, v. CARLOS MOUCHET - RICARDO ZORRAQUIN BECU, Introduccion al Derecho, Oc- tava Edicion, Buenos Aires: Editorial Pennt, 1975, pp.149/167, sobre a elaboração do conceito, v. RAFAEL BIELSA, Metodologia Jurídica, Santa Fé: Librería y Editorial Castellví S.A., 1961, pp. 133/206, e RADBRUCH, op. cit., p. 188 e s. aplicação de seus resultados, pelos próprios juristas, e para a oferta desses resultados, no plano da atividade da criação e da aplicação do Direito47. 2.5. O AUXÍLIO DA LÓGICA 2.5.1. MITIFICAÇÃO E DESMITIFICAÇÃO Algumas palavras sobre o auxílio da lógica, na Ciência, e, conseqüentemente, na ciência do Direito Processual, serão úteis para os temas discutidos neste trabalho. Essa utilidade é avalia- da, tanto em relação ao prisma pelo qual muitos dos temas são visualizados, como para o aclaramento de algumas conclusões, referentes não só a esta "técnica e teoria do processo" que agora se escreve, mas, também, a algumas teses doutrinárias que des- pertaram polêmicas. Foi corrente, no século passado (e neste século, ainda se encontra esse argumento), a discussão em torno da afirmação de que a aplicação do Direito pelo juiz resumia-se a um raciocínio silogístico, em que a lei comparecia como premissa maior, o caso concreto como premissa menor e a sentença como conclusão48. 47 Sobre o indiscutível valor dessas construções cf. JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA: "Na verdade, o processo é e sempre será, de certo ponto de vista, um mecanismo técnico, que só em termos técnicos pode ser explica- do.(...) Uma técnica esmerada constitui, em regra, penhor de segurança na condução de qualquer pesquisa científica, e não há supor que o direito processual faça aqui exceção." "Os Temas Fundamentais do Direito Brasi- leiro nos Anos 80: Direito Processual Civil". In Temas de Direito Proces- sual: quarta série - São Paulo: Saraiva, 1989, p-12. Sobre a dignidade da dimensão prática do Direito Processual, discorre JOSÉ OLYMPIO DE CAS- TRO FILHO, lembrando Carnelutti, que se orgulhava de se incluir entre os práticos, e Redenti, que punha como questão de primeira ordem a neces- sidade de que o Direito se fizesse concreto: Ma prima di tutto bisogna che il códice si apprenda e si applichi. Questo è che urge. Cf. JOSÉ OLYMPIO DE CASTRO FILHO - Prática Forense, vol. I, 4ª ed., 2ª tiragem, Rio de Janeiro: Forense, 1989, pp.7/18. 48 A discussão é gerada pela Escola da Exegese, não porque se houvesse É compreensível que, na falta de uma construção científica mais aprimorada, em uma época em que o Direito "da aplicação" estava se "reconstruindo", pela elaboração de seus conceitos, o pensamento jurídico, necessitando de um ponto de apoio para explicar o procedimento da aplicação, houvesse recorrido ao silogismo. As reações ao silogismo da aplicação vieram, e vieram muito fortes, mas não atacaram o ponto que merecia o pronunciamento mais incisivo. Contornaram o problema com argumentos sobre a complexidade dos casos concretos, a liberdade da interpretação do juiz, a opção implícita na aplicação pela escolha da norma aplicável, a questão axiológica que permeia todo o direito49. O "silogismo da aplicação" poderia ter tido seu golpe de misericórdia com o auxílio da própria lógica. Não porque fosse verdadeiro ou falso, correto ou incorreto, provável ou imprová- vel, conveniente ou inconveniente, mas simplesmente porque era logicamente inviável. Não havia, na verdade, sequer silogis- mo, no modelo proposto, porque não havia como se estabelecer as premissas para a inferência da conclusão, já que não seria dedicado à construção do silogismo da aplicação, mas pelos princípios que defendia, sobretudo em sua primeira fase, sobre a interpretação. Tais princípios foram bem expostos por CH. PERELMAN em Tbéories re/atives au raisonnement judiciaire, surtout en droit continental, depuis le Code Napoléon jusqu'à nos jours, primeira parte de sua obra Méthode du Droit-Logique Juridique-Nouvelle Rhétorique, Paris: Dalloz, 1979, pp. 19/96. O modelo do silogismo da aplicação é exposto por C1AUDE DU PASQU1ER, que, no capítulo destinado à L'application du Droit, estuda os mecanismos da aplicação: Le syllogisme juridique; Syllogisme à faits juri- diqties multiptes; Syllogismes successifs. A operação de subsunção do fato à norma é descrita segundo aqueles esquemas, porque "Appliquer une règle, c'est transposer sur un casparticulier et concret la décision incluse dans la règle abstraite" ..."Cette application comporte donc un passage de l'abstrait au concret, du general au particulier, bref une déduction. Son instrument est le syllogisme" in op. cit., p.126. 49 Grandes contribuições para a axiologia jurídica surgiram em torno desses argumentos, como as de COíNG, em Grundzüge der Rechtsphilosopbie, sobre as "situações-tipos". possível se estabelecer previamente a distribuição dos termos dos juízos. Nos três juízos, "a lei é a premissa maior", "o caso concreto é a premissa menor" e "a sentença é a conclusão", não há meio de se identificar onde está o termo maior e o termo menor. E essa identificação seria de absoluta necessidade para o modelo de raciocínio que se postulava, pois o termo maior é o termo predicado da conclusão, e a premissa maior deve contê-lo; o termo menor é o termo sujeito da conclusão, e a premissa menor deve contê-lo. Não há como se identificar, igualmente, o termo médio, que não aparece na conclusão, mas comparece nas premissas. Apenas depois de proferida a sentença, seria possível encontrar as proposições que lhe teriam servido de base, mas não antes. Pelo modelo do silogismo, poder-se-ia pensar emestranhos arranjos e estranhas seriam as conclusões deles inferi- das. E claro que não se nega que o "argumento", no sentido estrito da lógica, como cadeias de proposições, estruturadas em premissas e conclusões, possa auxiliar os fundamentos da deci- são judicial, mas não se pode (por pura impossibilidade lógica) conceber a existência de um silogismo naquele modelo proposto para se inferir a sentença. De qualquer forma, dentre as conseqüências provocadas pelo "silogismo da aplicação" houve uma especialmente evidente em diversos campos do Direito: um certo, ou acentuado, ranço dirigido contra a lógica. Era natural, e não só a doutrina do Direito olhou a lógica de viés. Se se meditar, por exemplo, na lógica de Port-Royal, que "ensina" condutas e que compôs a formação cultural de tantos nomes ilustres por longo tempo, ou na função que lhe foi atribuída de "arte de pensar", ela deveria aparecer como algo aterrador. A lógica passou, no Direito, por um crivo ideológico, para ser julgada e condenada a ser excluída, ou quando nada, ser relegada a permanecer à margem de uma ciência que se propôs a trabalhar com as coisas humanas, sob uma perspectiva huma- na e não sob aquela fria argumentação gerada nos "gabinetes" da razão. Mas algo muda em nosso tempo. Começa-se a descobrir que a lógica pode ser outra coisa que não comandos para o pensa- mento e para a conduta ou prisão para uma razão vital, de que fala ORTEGA Y GASSET50, ou camisa-de-força para o Direito. Fazer o inventário do que mudou exigiria um incomensurá- vel esforço. Mas podem ser apontados alguns fatos e conquistas, que ajudaram a desmitificar o mito sobre as leis do pensamento, da verdade e da conduta, e tornar a lógica uma aliada na verifica- ção e na correção dos temas de qualquer argumento da ciência. 2.5.2. UM INSTRUMENTO PARA UM RACIOCÍNIO A lógica passou pelas vicissitudes históricas que toda ciência experimenta em seu processo da construção. "De Aristóteles a Bertrand Russell"51, sobre ela se formaram grandes sistemas que foram tateando caminhos, em um processo muito humano, que é a busca do conhecimento. ROBERT BLANCHÉ, em "História da Lógica de Aristóteles a Bertrand Russell", faz o levantamento desses sistemas utilizando o critério temporal como metodologia da exposição, para pene- trar nas especificidades de cada um, começando pelos precurso- res da lógica, dos chamados pré-socráticos à dialética de Platão, e prosseguindo pela lógica aristotélica, pela lógica dos estóicos, pela lógica medieval, pela chamada "lógica de Port-Royal"52, pela lógica clássica, iniciada por LEIBNIZ, pela lógica moderna, cuja construção começa na segunda metade do século XIX, pela logís- 50 JOSÉ ORTEGA Y GASSET - Origem e Epílogo da Filosofia, trad. de Luís Washington Vita, Rio de Janeiro: Livro Ibero-Americano, 1963. 51 Esse é parte do título da obra de ROBERT BLANCHÉ que será referida a seguir. 52 Denominação devida ao tratado publicado anonimamente-em 1662 La Logique ou l'art de Pensei; mas da autoria de dois religiosos, ANTOINE ARNAUD e PIERRE NICOLE, da Abadia de Port-Royal. tica, da primeira metade do século XX, que pretendia compreen- der, com essa denominação, a lógica algorítmica, a lógica simbó- lica e a lógica matemática, e pela lógica contemporânea, que, "agora que a nova lógica se substituiu suficientemente à antiga para que a confusão já não seja possível"53, volta à antiga deno- minação de lógica formal, ou simplesmente lógica, englobando as lógicas paralelas que renovam e alargam antigos sistemas, até a paralógica, que se propõe como uma linguagem da lógica. A lógica, referida nos próximos tópicos, é a lógica formal contemporânea, mas mais do que o nome, é conveniente esclare- cer alguns dos pontos por ela estabelecidos. 1. Ela não é, nem uma "arte de pensar", nem uma ciência normativa54. Não tem qualquer pretensão de estabelecer ou de recolher as "leis do pensamento"55. O pensamento, como proces- so mental, a psicologia já o revelou, e utilizou tal achado para construir o método da livre associação, pode passar por movi- mentos bastante complexos, nem sempre sujeitos à descrição, que não se submetem a leis. Ela não é, também, uma "ciência do raciocínio", porque este pode se formar por intrincadas vias, não alcançadas por critérios objetivos de descrição. 2. A lógica preocupa-se apenas com o raciocínio, que é uma espécie de pensamento em que se inferem ou se derivam conclu- sões a partir de premissas, entretanto, não para estabelecer leis para seu desenvolvimento, mas tão-somente para verificar a cor- reção do resultado já completado56. Propõe-se, assim, "a estabe- lecer e enunciar explicitamente as leis da dedução, apresentan- 53 Cf. ROBERT BLANCHÉ - História da Lógica de Aristóteles a Bertrand Rus- sell, Trad. de Antônio J. Pinto Ribeiro-Lisboa: Edições 70, s/d, p. 309- 54 Cf. ROBERT BLANCHÉ, op. cit., p. 348. 55 Sobre esse sistema de lógica que se dá como objeto presidir "as leis formais do pensamento" cf. RONALDO CALDEIRA XAVIER - Português no Direito - Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1991, 8a ed., p. 297 e s. 56 Cf. IRVING M. COPI - Introdução à Lógica, Trad. de Álvaro Cabral. 2a ed. - São Paulo: Mestre Jou, 1978, p. 21. do-as elas próprias sob a forma de uma teoria dedutiva axiomati- zada57." 3. A lógica não pretende estabelecer critérios de verdade ou falsidade sobre o conteúdo das proposições, enquanto simples enunciados ou juízos. Essas podem ser verdadeiras ou falsas, mas são afirmações ou negações que podem ser formuladas sobre qualquer tema, sobre qualquer campo do conhecimento, e apenas à ciência do respectivo domínio compete o controle de sua verdade ou falsidade. A lógica não pretende ser onisciente, também o problema do enunciado vazio, pelo critério da existên- cia, é deixado à ciência. Já não se repudia a tautologia, porque o que é evidente em um campo do conhecimento pode não o ser em outro, e isso vale também para um só campo, quanto a temas diferentes. 4. Os critérios de verdade e falsidade interessam à lógica apenas na estrutura formal das proposições, por isso pode-se falar não em "enunciados falsos", mas em "falsos enunciados", em sua estrutura, e quando estes são tratados como proposições da dedução. As verdades da lógica são formais, porque referidas não ao conteúdo das proposições mas a elas na estrutura do argu- mento, como um sistema proposicional de premissas e conclu- sões. Por isso, no argumento dedutivo, o valor de verdade e falsidade é substituído pelos predicados de "validade e invalida- de", e pela forma de relações entre proposições que são premis- sas e proposições que são conclusões. 5. O processo de inferência já não incide sobre a relação dos termos de um juízo, nos moldes da antiga lógica formal58, mas se 57 Cf. ROBERT BLANCHÉ, op. cit., p. 348. 58 As relações entre o sujeito e o predicado que lhe era atribuído, no enuncia- do, foram construídas sobre vários critérios, dentre eles o da quantidade, em que se quantificava o sujeito para se formular a relação de inclusão. As dificuldades causadas pela célebre trilogia resultante da quantidade, em KANT, em que aos juízos universais, particulares e singulares cor- respondiam as categorias da unidade, pluralidade e totalidade, (Cf. Crítica da Razão Pura, Trad. de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique desenvolve em uma relação que se dá entre classes de objetos, no argumento59. 6. O argumento dedutivo tem como ponto de partida uma premissa (uma proposição que será usada como base para se inferir uma conclusão). Essa premissa é um juízo ou uma propo- sição, em uma posição de relação, e deve conter os elementos do juízo: S (sujeito) - cópula - P - (predicado). 7. Uma premissa é uma proposição não isolada, mas rela- Morujão, Lisboa: Ed. da Fundação CalousteGulbenkian, 1985, pp. 104/111), são percebidas em seus intérpretes que oscilam em relacionar às suas correspondentes categorias os juízos universais e os individuais, ou singulares. Assim, GEORGES PASCAL: "singular, para Kant, é o juízo que refere o predicado à totalidade do sujeito, e tão-somente a ele" e explica: "Pensar é estabelecer, na multiplicidade dada pela intuição, certas relações que façam dessa multiplicidade uma unidade" "a unidade que a análise descobre nos juízos supõe uma unidade sintética introduzida pelo entendi- mento nas intuições" - Cf. O Pensamento de Kant, trad. de Raimundo Vier, 3ª ed. Petrópolis: Vozes, 1990, pp.64/65, e GARCIA MORENTE, relacionan- do-o à categoria da totalidade: "teremos que os juízos individuais que afirmam de uma coisa singular, seja o que for, contém no seu seio a unidade; os juízos particulares que afirmam de várias coisas algo, contém em seu seio a pluralidade; os juízos universais contêm em seu seio a totalidade" Cf. Fundamentos de Filosofia I - Lições Preliminares, Trad. de Guilhermo da Cruz Coronado, São Paulo, Editora Mestre Jou, 1970, p.240; no mesmo sentido JOHANNES HESSEN - Teoria do Conhecimento, Trad. do Dr. Antônio Correia, Coimbra - Portugal-Arménio Amado-Editora, 1987, pp.169/170. Não é difícil de se entender a oscilação, porque tudo que é individual e único é absoluto em si, e o que se pode afirmar ou negar do summum genus? Esses juízos e categorias, que se encontram em ARISTÓ- TELES, com algumas diferenças de KANT, em razão da forma de se conce- ber o conhecimento, em uma perspectiva ontológica ou gnoseológica, geraram dentre as múltiplas discussões aquelas sobre os universais, na Idade Média, e as posturas diferentes entre o realismo de Paris e o nomina- lismo de Oxford iriam se refletir sobre o Direito. 59 "A estrutura interna da proposição é analisada não já em termos de sujeito e atributo unidos por uma cópula, mas em termos de função e argumento. É aí que se encontra a lógica das classes, e a teoria das funções proposicio- nais de um argumento e a lógica das relações, correspondendo à teoria das funções proposicionais de dois ou vários argumentos". Cf. ROBERT MAN- CHE, op. cit. pp.310/311. cionada. Nenhuma proposição tomada isoladamente é uma premissa. Também a conclusão é uma proposição, mas não isola- da porque nenhum juízo tomado isoladamente é uma conclu- são60. 8. O argumento é um grupo de proposições dentro de uma estrutura, em que as proposições são premissas ou conclusões. O argumento dedutivo pretende a certeza de uma conclusão, e o argumento indutivo pre tende oferecer apenas uma pro- babilidade da afirmação da conclusão61. 9. A dedução se faz entre classes, que é apenas uma coleção de objetos que possuem algumas características específicas co- muns. O que é necessário na identificação dos objetos para integrá-los a uma classe é que compartilhem de características, qualidades, determinações específicas. Assim como o problema da proposição vazia é deixado à ciência de cada campo do co- nhecimento, a lei da implicação, que rege a relação de inclusão entre classes, não se detém mais sobre o problema das classes vazias62, mas incide apenas sobre o modelo formal da inclusão. 60 Cf. IRVINGM. COPI, op. cit.,p. 23. 61 Cf. IRVING M. COPI, op. cit., pp.23/39- 62 ROBERT BLANCHÉ mostra como a aflição de FREGE, que é considerado o criador da lógica moderna, e de BERTRAND RUSSELL,.seu grande divulga- dor, girava, sem solução, em torno do problema das classes vazias: "De falsas premissas não se pode, de uma maneira geral, concluir nada. Um puro pensamento, não reconhecido como verdadeiro, não pode ser uma premissa. É só quando eu reconheci como verdadeiro um pensamento que ele pode ser para mim uma premissa; puras hipóteses não podem ser empregadas como premissas". (FREGE, Carta a Jourdain, 1910, em BO- CHENSKI, F.L. p. 336, citado por BLANCHÉ) Cf. op. cit., pp.307/308. "A lógica e a matemática forçam-nos a admitir que há um mundo dos univer- sais e das verdades que não incidem diretamente sobre tal ou tal existência particular". (RUSSELL, L'importante philosophique de la logique, Rev. de métapb., 1911, pp.289/290, citado por BLANCHÉ) in op. cit., p.309- E sublinha o quanto este era um dogmatismo lógico, que supõe um mundo inteligível, lugar das idéias e das verdades eternas, verdades estranhas ao mesmo tempo ao mundo sensível fora de nós e, em nós, à consciência que dele podemos tomar, mas que se impõem a nós quando as apreendemos. Existência supõe localização espácio-temporal, e como tanto o "dogmatis- 10. Uma classe pode ser incluída numa classe mais vasta, segundo determinadas características de que compartilham, mas pode também pertencer a uma outra classe, de elementos dife- rentes, quando uma característica é tomada como totalidade dessa outra classe, e a classe incluída possui tal característica na sua individualidade própria. Mas deve haver uma hierarquia das classes para a validade da inclusão. A classe a que pertence o indivíduo deve ser de tipo imediatamente superior ao seu63. A preocupação com o levantamento desses dez tópicos, escolhidos dentre as conquistas que a lógica alcançou, em seu desenvolvimento, teve em mira os temas que serão discutidos adiante e obedeceu apenas a um propósito: o de "explicitar o implícito", em razão da multiplicidade dos sistemas de lógica que convivem no tempo presente. Como diz BLANCHÉ, "a lógica tem a obrigação de esclarecer o implícito"64. Houve uma época em que se dizia que "a clareza é a cortesia do gênio", brocardo que legitimava as obscuridades dos gênios. Os gênios podem ser como quiserem, obscuros ou claros, assim como o próprio pen- samento que, em sua liberdade de expressão, escolhe livremente a forma de se exprimir. Mas a clareza nunca prejudica a ciência, e o esforço para se obtê-la sempre pode resultar em algum benefício para seu desenvolvimento. mo lógico" de Frege, quanto o "realismo platonizante" de Russell consti- tuíam posições que seriam superadas no ulterior desenvolvimento da lógica. Cf. op. cit., pp.309/310. 63 Cf. ROBERT BlANCHÉ, op. cit., p.329 - A inclusão de uma classe em várias classes, pelas características compartilhadas entre objetos individualmente diferentes, é exemplificada por BLANCHÉ com a classe das dúzias, que permite incluir a classe dos meses do ano, a classe dos apóstolos, e uma variedade de outras classes. 64 Cf. ROBERT BLANCHÉ op. cit., p.287, p.304, e, no mesmo sentido, "a Lógica tem a obrigação de enunciar explicitamente tudo que fica implícito no pensamento", p.256. CAPÍTULO III CIÊNCIA DO DIREITO PROCESSUAL E TÉCNICA PROCESSUAL 3.1. A CIÊNCIA DO DIREITO PROCESSUAL E SEU OBJETO Nos sistemas jurídicos que alcançaram certo grau de racio- nalidade, a aplicação do Direito é referida a critérios objetiva- mente definidos e delimitados pelas normas integrantes do pró- prio sistema. O mais alto grau de racionalidade atingido pelos ordena- mentos jurídicos contemporâneos, que se seguiu à conquista das garantias constitucionais, importa na superação do critério de aplicação da justiça do tipo salomônico, inspirada apenas na sabedoria, no equilíbrio e nas qualidades individuais do julga- dor, ou na sensibilidade extremada do juiz, simbolizada pelo "Fenômeno Magnaud"65. Esse critério é substituído por uma 65 Le phénomène Magnaud é expressão de GÉNY, quando, na segunda edi- ção doMéthode d'Interprétation et Sources en Droit PrivePositif, analisou os possíveis efeitos dos métodos empregados pelo Juiz Magnaud, que presidiu, de 1889 a 1904, o Tribunal de primeira instância de Château- Thierry, cujas decisões se celebrizaram (e o celebrizaram como le bonjuge técnica de aplicação do direito que se vincula a elementos não- subjetivos, a uma estrutura normativa que possibilita aos mem- bros da sociedade,
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