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A CONDIÇÃO HUMANA Prof. Me. Anderson Ricardo Cornelian Faculdade São Luis – Jaboticabal/SP – 2018 O ser humano é o ser vivo mais destacável de todo o universo conhecido. Suas habilidades incomuns não estão no campo da competência genética ou instintiva, mas sim, em sua produtividade material e intelectual dada por um grande desenvolvimento de suas potencialidades racionais e emocionais. Vários outros animais utilizam-se da inteligência e do pensamento para interagir com o meio ambiente, e até para resolver seus problemas mais imediatos. Todavia, apenas os indivíduos humanos são capazes de utilizar da consciência, do pensamento, da razão e da reflexão de forma a não apenas interagir com a natureza, como também, a partir desta interação, de criar uma nova estrutura de condições materiais, sociais, sensíveis, psicológicas e emotivas. FIGURA 1 – Quadro comparativo entre os seres humanos e os demais animais no que se refere aos instintos, emoções e racionalidade. Maior parte dos seres vivos: Seres humanos: Os instintos são dominantes; Os instintos são periféricos ou se submetem majoritariamente às emoções e à racionalidade; As emoções são mínimas e praticamente incompreendidas ou inconscientes; As emoções são fortes e obedecem a uma lógica em parte imposta pela sociedade, em parte produzida pelo próprio indivíduo ao longo de sua existência única; A racionalidade é mínima e, na imensa maioria dos casos, realizada individualmente com resultados apropriados de forma igualmente individualizada. A racionalidade é priorizada na organização da vida coletiva e individual, além de os resultados da racionalização serem produzidos e difundidos socialmente. Fonte: elaborado pelo autor. Mas de onde vem esta capacidade aumentada? Tal competência não surgiu, nem surge, naturalmente, mas sim a partir da construção processual realizada pelo próprio ser humano em sociedade ao longo da história. Essa construção ocorre mediante o trabalho social, ou seja, da atividade de 2 trabalho organizada e realizada socialmente, em que há divisão de tarefas, acúmulo de conhecimento, desenvolvimento de técnicas e tecnologias através da transmissão de geração para geração dos resultados do trabalho. Esse trabalho humano é o grande fator diferencial, de modo que alguns teóricos da sociologia irão designá-lo como trabalho ontológico do ser humano, e pode ser visualizado através das etapas abaixo: FIGURA 2 – Quadro do processo de trabalho ontológico humano. CONDIÇÕES REAIS POSSIBILIDADES IDEAÇÃO (TELEOLOGIA) OBJETIVAÇÃO OBJETO/ RESULTADO Condições materiais + Condições sociais e psicológicas (mentais, cognitivas, culturais, emocionais) + NECESSIDADES Limitadas pelas condições reais. Prévia estipulação ideal; uma ideia que vai definir (prever) uma ação, sendo esta abstrata e que só existe na cabeça do indivíduo. Portanto, aqui há a consciência, a escolha e o projeto. Transformação da natureza. Encontro entre o ideal e o real. Novas condições reais; Novo saber; Novas necessidades; Novo homem; Nova sociedade; Prazer; Satisfação. Fonte: Elaborado pelo autor. O Ser Humano é o único que se transforma ao transformar a natureza. No processo de objetivação, necessariamente, conscientemente ou não, há juntamente com a transformação da natureza a transformação do indivíduo e da sociedade, afinal, ao término do processo de objetivação, apresentam-se novos conhecimentos, novas habilidades e novas necessidades, novas possibilidades, nova realidade e todo este novo conjunto de materialidade, conhecimento e necessidades é transmitido de geração para geração via socialização. 1. Indivíduo e sociedade Como foi afirmado, o “bicho homem” desenvolveu um processo de trabalho diferenciado na natureza, o que o levou a aperfeiçoar competências intelectuais, criativas e materiais (pois desenvolveu ferramentas e tecnologias para auxiliar seu processo de trabalho). Entretanto, tais atividades de trabalho por si só não levariam hominídeo algum à condição humana. Para tanto, faz-se imprescindível que os indivíduos humanos convivam e trabalhem em sociedade. 3 A forma como os seres humanos organizam coletivamente o trabalho, caracteriza a Sociedade em que vivem e se reproduzem. Cultura, inteligência, cognição1, criatividade, intuição etc., são frutos do processo de trabalho humano realizado em sociedade ao longo da história. Ao realizarem o trabalho social, isto é, um trabalho processado de maneira dividida e, ao mesmo tempo, integrada pelos membros da sociedade, os seres humanos não apenas passaram a gozar dos benefícios (frutos) de suas atividades trabalhistas individuais, mas também e fundamentalmente, começaram a fazer uso dos beneficiamentos do conjunto de atividades de trabalho realizados dentro do agrupamento social. Além de uma materialidade aumentada, o trabalho social traz outra condição de capacidade cognitiva e imaginativa. O indivíduo humano cria e é criado dentro da sociedade humana. Mais do que isso, acumula conhecimento e experiências, aprende com os outros, incorpora ideias, posturas, gostos, comportamentos, sonhos, emoções, valores, vontades, medos, desejos etc. O ser humano, ao desenvolver sua consciência e suas competências materiais e intelectuais, amplia sua capacidade de usufruir de liberdade (escolha). Assim, a relação indivíduo e sociedade é dialética, ou seja, os indivíduos são fruto da formação que a sociedade impõe/oferece, ao mesmo tempo em que estes indivíduos são formadores da sociedade onde vivem (através de suas ações e suas escolhas). INDIVÍDUO SOCIEDADE “LIBERDADE” Indivíduo e sociedade não são iguais, nem mudam igualmente, apesar de a mudança de um levar à mudança do outro e vice-versa. Por isso, torna-se muito difícil identificar onde começa e onde termina uma ação individual, já que toda ação humana é fruto de um processo histórico, motivada por necessidades histórico-sociais e 1 Cognição é a capacidade de adquirir conhecimento; é o processo de conhecer, de apreender algo do ponto de vista intelectual-racional. Tal processo envolve linguagem, atenção, raciocínio, imaginação, pensamento e criatividade. 4 individuais (escolhas), realizada sobre base cognitiva, intelectual e material histórico-social, e que produz um impacto igualmente social (ainda que, na maioria das vezes, um impacto micro-social). Mas, ainda assim, a individualidade é uma realidade, já que cada indivíduo humano é fruto de um processo único de formação, cognição, cultura, valores, medos, expectativas, habilidades, genótipo etc. Podemos dizer que a individualidade está no conjunto do processo histórico particular de cada indivíduo somado à liberdade de escolha de cada um, muito além, portanto, das particularidades da carga genética de cada ser. É exatamente por isso que mesmo gêmeos idênticos, criados pela mesma família, não se tornam “indivíduos iguais”. FIGURA 3 – Quadro sobre a formação da individualidade humana. Carga genética Processo histórico particular INDIVIDUALIDADE Escolhas (liberdade) Fonte: elaborado pelo autor. Os limites da liberdade individual e das possibilidades sociais podem ser compreendidos se lembrarmos de uma famosa afirmação de Karl Marx: [...] Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem;não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. [...] (MARX, 2005). “História é a esfera da possibilidade na esfera da necessidade” (MARCUSE, 1982, p. 15), sendo que tanto as possibilidades quanto as necessidades de que gozamos são legadas historicamente e, portanto, determinam o ponto de partida, mas nunca, o ponto de chegada. Este, o ponto de chegada, é fruto da ação viva e concreta humana, realizada mediante a capacidade da liberdade (escolha e consequente responsabilidade). 5 2. A comunicação humana Sendo que o que constrói a humanidade é a realização do processo de trabalho em que o homem se transforma transformando a natureza, somada, obrigatoriamente, à articulação do trabalho social, então se faz imprescindível que haja um competente modo de comunicação (linguagem) que ponha em contato e entendimento os indivíduos humanos. Por isso mesmo, não é possível pensar em ser humano sem uma adequada competência lingüística/comunicativa. Um dos desdobramentos dessa necessidade fundamental é a formação exclusiva da fala (e posteriormente, da escrita). Para os demais animais o sistema de sinalização é suficiente, pois estes dificilmente geram o “novo”. Já o ser humano cria constantemente o novo, desenvolvendo a capacidade de apreensão, entendimento e criatividade (criação). Muito mais do que uma funcionalidade de trocas de mensagens, de trocas de informações do tipo “tenho fome”, “não”, “sim”, “cuidado”, “saia”, “estou no cio”, “estou mal” etc., a comunicação humana realiza também a troca de ideias, de emoções, de sonhos, de paixões, de medos, de esperanças, de crenças, de gostos, de vontades, de sentimentos. Por ser um animal demasiadamente complexo, e por apenas poder se tornar humano mediante a sociedade (comunicando-se, portanto!), os homens tiveram que desenvolver sistemas comunicacionais igualmente complexos e muito abrangentes. É sabido que muitos animais possuem algum tipo de linguagem – alguns possuem até uma linguagem sonora/vocalizada – mas no ser humano, esta linguagem é de incomparável qualidade, competência e complexidade, o que permite, não só uma melhor comunicação e, por isso mesmo, uma maior transmissão de pensamentos, ideias, saberes e entendimento, mas também uma maior e melhor reflexão sobre o mundo e sobre si mesmo. Ou seja, graças a essa linguagem tão complexa e desenvolvida que é a fala humana, podemos nomear e, posteriormente, conceituar as coisas passando do estágio de identificação (consciência) para o estágio de reflexão e posterior teorização ou compreensão do mundo e de nós mesmos. Essa capacidade fantástica é fundamental para explicar porque o homem contemporâneo foi à lua, fala ao celular, conta histórias fantasiosas, lê um livro e imagina/visualiza uma cena (abstração) etc., ao invés de continuar pulando de galho em galho e de enfiar gravetos em buracos de cupins floresta a fora, como o fazem nossos 6 primos biológicos mais próximos [Chimpanzés e Bonobos (chimpanzés-pigmeus)] que têm 98,4% de seu código genético idêntico ao do ser humano. A arte, em todas as suas formas, é uma expressão e comprovação desta complexidade racional e emocional do ser humano. 3. Cultura Basicamente, três são as formas de se utilizar o termo cultura: 1. Enquanto cultivo (cultura de peixes, agricultura); 2. Enquanto refinamento intelectual de um indivíduo ou povo; 3. Enquanto instrumento fundamental da ciência humana, em que “cultura” passou a significar o conjunto dos aspectos espirituais e intelectuais de um povo, ou seja, o modo de agir, pensar e sentir de cada conjunto societal. A partir desta última abordagem, não faz o menor sentido imaginar que existem culturas melhores ou piores, tampouco que existem pessoas com mais ou menos cultura do que outras. O que se observam são culturas diferentes. Isto porque a cultura enquanto modo de agir, pensar e sentir de um grupo humano, ou seja, enquanto forma de percepção e convivência no mundo social, é o resultado de um conjunto de ideias e comportamentos que foi criado para responder a demandas sociais específicas. Portanto, cada grupo societal desenvolve suas próprias especificidades culturais. Assim, uma cultura é tão boa quanto sua competência em conseguir guiar o pensamento e o comportamento de um povo de modo a possibilitar e/ou facilitar a reprodução e o bem-estar social do mesmo. Hoje, dado o grau de contato, troca e interação entre os povos, diante a globalização econômica contemporânea protagonizada pelo capitalismo moderno e “pós- moderno”, não faz sentido falar em culturas isoladas ou puras. Ademais, é fundamental reter que cada cultura (ou especificidades culturais) da atualidade está dentro de um quadro geral hegemônico: o modo de produção capitalista. _______________________________ 7 REFERÊNCIAS BORDENAVE, J. E. D. O que é comunicação. São Paulo: Brasiliense, 2005. (Primeiros Passos, 67). CHAUÍ, M. Convite à filosofia. 13. ed. São Paulo: Ática, 2004. COTRIM, G. Fundamentos da Filosofia: ser, saber e fazer. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 1993. DE WAAL, Frans. Homens, macacos, guerra e paz. Folha de S. Paulo, São Paulo, 15 de jul. 2007. Mais!, p. 8-9. LESSA, S. Para compreender a ontologia de Lukács. 3. ed. rev. e ampl. Ijuí-RS: UNIJUÍ, 2007. (Coleção filosofia, 19). MARCUSE, H. A ideologia da sociedade industrial: o homem unidimensional. 6. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1982. MARX, K. O capital. Livro 1. V. 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. SANTOS, J. L. dos. O que é cultura. 16. ed. São Paulo: Brasiliense, 2006. (Primeiros Passos, 110).
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