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A MIDIA E A MANUTENÇÃO DE DISCURSOS RACISTAS

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Revista da ABPN • v. 7, n. 17 • jul. – out. 2015, p.12-22 
 
A MÍDIA E A MANUTENÇÃO DE DISCURSOS RACISTAS: “SIGA 
A FOLHA”? 
 
 
Maria Cristina Giorgi
1 
 
 Fabio Sampaio de Almeida
2 
 
Resumo: Neste artigo temos como objetivo refletir acerca do modo como parte da mídia 
brasileira – especificamente um veículo de grande circulação como a Folha de São Paulo –, 
constrói discursivamente seu posicionamento no que se refere às políticas de ações afirmativas 
para a ampliação da participação de grupos étnico-raciais, sabidamente discriminados ao longo 
da história, nas áreas de educação e emprego, ou seja, as cotas raciais. Nesse sentido, 
apresentamos uma análise discursiva de publicidade/propaganda do jornal Folha de São Paulo, 
amplamente veiculada na mídia televisiva brasileira em 2014. No que tange à linguagem, além 
da visão dialógica de Bakhtin (2000), recorremos a contribuições de Foucault (2003), 
Maingueneau (2005, 2013) e Moita Lopes (2009). Com relação aos conceitos de raça e racismo, 
dialogamos com Munanga (2006), Hall (2006) e Guimarães (2009). 
 
Palavras-chave: racismo na mídia; cotas raciais; análise discursiva. 
 
THE MEDIA AND RACIST SPEECHES MAINTENANCE: "FOLLOW THE FOLHA"? 
 
Abstract: In this article our goal is to reflect about how part of the Brazilian media - 
specifically a widely circulated vehicle such as the Folha de São Paulo - discursively build its 
position in regard to affirmative action policies for increasing the participation of ethnic and 
racial groups, discriminated throughout history, in the areas of education and employment, 
namely, the racial quotas. In this sense, we present a discursive analysis of 
advertising/propaganda of the newspaper Folha de São Paulo, widely broadcast on Brazilian 
television media in 2014. Concerning the language, beyond the dialogical view of Bakhtin 
(2000), we used Foucault's contributions (2003), Maingueneau (2005, 2013) and Moita Lopes 
(2009). With respect to concepts of race and racism, we dialogue with Munanga (2006), Hall 
(2006) and Guimarães (2009). 
 
Keywords: racism in the media; racial quotas; discursive analysis. 
 
LE MÉDIAS ET MANUTENTION DE DISCOURS RACISTES: “SIGA A FOLHA”? 
Résumé: Dans cet article, nous avons comme objective réfléchir sur le mode comment partie de 
la média brésilienne - précisément un véhicule largement diffusé comme Folha de São Paulo – 
construit discursivement son positionnement en ce qui concerne les politiques d'action positive 
par l’ampliation de la participation des groupes ethno-raciales, qui on savait être préjugé au long 
 
1
 Doutora em Estudos da Linguagem pela Universidade Federal Fluminense, professora titular do Centro 
Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca dos ensinos Médio e Técnico e dos cursos de 
Pós-graduação stricto sensu Mestrado em Relações Étnico-raciais e Mestrado Profissional em Filosofia e 
Ensino. 
2
 Doutor em Linguística Aplicada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, professor titular do 
Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, atuando em cursos de graduação e 
nos cursos de Pós-graduação stricto sensu Mestrado em Relações Étnico-raciais e Mestrado Profissional 
em Filosofia e Ensino. 
 
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d’Histoire, dans les domaines de l'éducation et de l'emploi, qui est, quotas raciaux. En ce sens, 
nous présentons une analyse discursive de la publicité/propagande de journal Folha de São 
Paulo, largement diffusée sur les médias de la télévision brésilienne en 2014. En ce qui 
concerne la langue, au-delà de la vue dialogique de Bakhtine (2000), nous avons utilisé les 
contributions de Foucault (2003 ), Maingueneau (2005, 2013) et Moita Lopes (2009). En ce qui 
concerne les concepts de race et de racisme, nous dialogue avec Munanga (2006), Hall (2006) et 
Guimarães (2009). 
Mots-clés: le racisme dans les médias; quotas raciaux; analyse du discours. 
MEDIOS Y LA MANUTENCIÓN DE DISCURSOS RACISTAS: “SIGA LOS PASOS 
DEL PERIÓDICO FOLHA”? 
 
Resumen: En este artículo tenemos como objetivo reflejar acerca del modo como parte de los 
medios brasileños – específicamente un vehículo de grande circulación como la Folha de São 
Paulo –, construye discursivamente su posicionamiento a las políticas de acciones afirmativas 
para la ampliación de la participación de grupos étnicos-raciales, sabidamente discriminados al 
largo de su historia, en las áreas de educación y empleo, o sea, las cuotas raciales. En este 
sentido, presentamos un análisis del discurso de la publicidad/propaganda del periódico Folha 
de São Paulo, ampliamente vehiculada en los medios televisivos brasileño en 2014. Con el 
blanco en el lenguaje, además de la visión dialógica de Bakhtin (2000), contribuciones de 
Foucault (2003), Maingueneau (2005, 2013) y Moita Lopes (2009). Con relación a los 
conceptos de raza y racismo, dialogamos con Munanga (2006), Hall (2006) y Guimarães (2009). 
 
Palabras-clave: racismo en los médios; cuotas raciales; análisis discursivo. 
 
 
Neste artigo pretendemos refletir acerca do modo como parte da mídia brasileira, 
mais especificamente um veículo de grande circulação como a Folha de São Paulo, 
constrói discursivamente seu posicionamento a respeito da problemática das políticas de 
ações afirmativas para a ampliação da participação de grupos étnico-raciais, 
historicamente discriminados, nas áreas de educação e emprego a partir do sistema de 
cotas. Para tal, propomos a análise discursiva de uma publicidade/propaganda do jornal 
Folha de São Paulo, amplamente veiculada na mídia televisiva brasileira em 2014
3
, 
intitulada Sistema de Cotas. Cabe ressaltar que a relevância de discussões acerca de 
textos veiculados pela mídia em geral reside no fato de essa ser capaz de produzir 
identidades sociais diversas em geral em favor da manutenção de formas de poder 
exercidas “pelos agentes econômicos da informação e do entretenimento” (Almada, 2012, 
p. 24). 
É importante considerar que o referido texto dialoga com um conjunto de 
reflexões e práticas de pesquisa que atuam na ampliação do perfil do linguista aplicado 
como cientista social (Rajagopalan, 2003), cujas propostas de análises transcendem o 
 
3
 O vídeo está disponível em http://www1.folha.uol.com.br/especial/2014/oqueafolhapensa/ 
 
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conhecimento da linguagem e seu contexto sócio-histórico como também a intervenção 
no mesmo, buscando atender a novas demandas sociais e produzir ganhos éticos, 
epistêmicos e políticos para a vida em sociedade (Moita Lopes, 2009). Tal perspectiva 
também permite ao linguista se aproximar de discussões teórico-metodológicas, oriundas 
das ciências sociais, raramente privilegiadas pelos estudos linguísticos. Nesse sentido, as 
relações entre linguagem e questões étnico-raciais passam a ser foco de práticas de 
análise diversas, sendo a nossa opção por um viés discursivo que entende a linguagem ou 
o discurso como coconstrutor de sentidos e forma de intervir no mundo social (Moita 
Lopes, 2002). 
Na medida em que nosso interesse se centra na produção de efeitos de sentido, 
materializados por sujeitos sociais historicamente situados desde a materialidade 
linguística, a opção pelos estudos do discurso proporciona ferramentas conceituais e 
analíticas que nos possibilitam estabelecer um diálogo com a mídia, relacionando o papel 
dos discursos à produção das identidades sociais. Diálogo esse que se faz mais relevante 
quando “responsável pela produção de identidades sociais ‘virtuais’ (de classe,geracional, étnico-racial, entre outras), os meios de comunicação podem ser entendidos 
como o ‘intelectual coletivo’ a serviço de um poderio representado pelos agentes 
econômicos da informação e do entretenimento (Almada, 2012, p. 24).” 
Nosso artigo está organizado em quatro seções nas quais apresentamos nosso 
referencial teórico sobre os conceitos de raça e racismo (Munanga, 2006, 2010; Hall, 
2006, 2013; Guimarães, 2009), discutimos o papel da linguagem na construção de 
identidades sociais por meio das noções de dialogismo e gêneros do discurso (Bakhtin, 
2000) e de semântica global (Maingueneau, 2005) e propomos análises linguístico-
discursivas dos enunciados produzidos na publicidade/propaganda da Folha de São Paulo. 
Finalmente, na última seção, expomos nossas considerações finais. 
 
RACISMO NO DISCURSO DA FOLHA? 
 
Como aporte teórico para os conceitos de raça e racismo, dialogamos com 
algumas propostas de Munanga (2006, 2010), Hall (2006, 2013) e Guimarães (2009). No 
que concerne às designações de raça (negra, branca ou amarela), entendemos como 
Munanga (2010, p. 185) que constituem categorias linguísticas, convencionais e 
 
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arbitrárias, como quaisquer outras, ou como afirma Hall (2013, p. 1), “raça é uma 
construção discursiva”, como bem explica o autor: 
 
Para falar em termos bem genéricos, raça é um dos principais conceitos que 
organiza os grandes sistemas classificatórios da diferença que operam em 
sociedades humanas. E dizer que raça é uma categoria discursiva é reconhecer 
que todas as tentativas de fundamentar esse conceito na ciência, localizando as 
diferenças entre raças no terreno da ciência biológica ou genética, se mostraram 
insustentáveis (Hall, 2013, p. 1). 
 
Nesse sentido, considerando a inoperabilidade dos critérios de classificação 
priorizados – características fenotípicas, especialmente a cor da pele –, já não é novidade 
a afirmação de biólogos e geneticistas de que a noção de raça não possui base científica, 
isto é, “a raça não existe biologicamente” (Munanga, 2010, p. 186). 
No entanto, como argumenta Hall (2013), a cor da pele, ainda que pouco 
significativa em si, é importante, uma vez que constitui um significante, uma 
materialidade sobre a qual se inscrevem socio-historicamente determinados discursos. É 
nesse sentido que, negando uma concepção essencialista, o autor afirma que a noção de 
raça possui uma realidade, “pois dá para ver seus efeitos (...) dá para ver a discriminação 
racial funcionando nas instituições, e assim por diante” (Hall, 2013), estabelecendo e 
naturalizando hierarquias na organização social. 
Dialogando com John Rex, Guimarães (2009) elenca três condições gerais que 
segundo ele fundamentariam qualquer hierarquia social, incluindo aquelas em que parece 
justificado o emprego do conceito sociológico de ‘raça’, e que, especificamente, nos 
possibilitam problematizar o modo como a Folha de São Paulo tematiza a questão das 
cotas raciais. A primeira condição diz respeito à desigualdade estrutural entre grupos 
humanos que convivem em um mesmo Estado. A segunda refere-se a uma teoria ou 
ideologia, ou seja, a um discurso que justifica ou respalda essa desigualdade. A essas 
duas condições propostas por Rex (apud Guimarães, 2009, p. 28), acrescenta uma 
terceira, a naturalização dessa ordem social que se constitui na e pela essencialização 
desses sujeitos por tais discursos. Desse modo, podemos afirmar que, como construto 
discursivo sociológico (Guimarães, 2009), o conceito de raça se torna fundamental para 
combater o racismo, prática violenta que determina lugares de subordinação às pessoas 
negras em nosso país. 
 Compreendendo o racismo como uma construção social, psicológica, afetiva, 
cognitiva, é evidente que o mesmo pode ser desaprendido. Por esse motivo, é 
 
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fundamental o papel das investigações no âmbito das ciências chamadas humanas e 
sociais capazes de promover reflexões que nos permitam identificar focos de poder e seus 
respectivos alvos, possibilitando novos lugares de resistência, como nos ensina Foucault 
(2004). 
Para as questões concernentes à linguagem, lançamos mão, fundamentalmente, do 
princípio dialógico e da noção de gêneros do discurso, propostos por Bakhtin (2000; 
2004), e da semântica global de Maingueneau (2005). Segundo Bakhtin, os discursos 
envolvem a relação sujeito-linguagem numa determinada situação de comunicação, 
remetem ao diálogo entre interlocutores e entre discursos e compreendem a interação 
como ação inerente ao ser humano. As se ideias constroem por meio das relações 
dialógicas, e é somente quando estas últimas se estabelecem que cada ideia começa a ter 
vida e pode gerar novas ideias. Só é autêntico o pensamento que se materializa na voz do 
outro e entra em contato com outros pensamentos. Os seres humanos são, assim, sujeitos 
históricos e sociais, que devem ser compreendidos desde sua inserção social, fato que 
pressupõe condições socioculturais e econômicas concretas e determinadas. Dentro de tal 
contexto, a língua deve ser considerada a partir de seu uso, e não como estrutura e 
fenômeno abstrato (Bakhtin, 2000; 2004). 
A citada semântica global, de acordo com Maingueneau (2005), é a noção que nos 
permite entender que, em um texto, forma e conteúdo não estão dissociados e se 
relacionam em todos os planos discursivos – vocabulário, modos de enunciar, dêixis, 
temas – construindo significados que se materializam no texto, cabendo ao analista 
buscar pistas que o remetam a determinada prática discursiva. No caso deste artigo, nosso 
foco é a análise de pistas nos enunciados produzidos pela Folha de São Paulo em um 
vídeo de um gênero publicitário que, para além de difundir a opinião do veiculo 
midiático, constitui uma prática discursiva racista. 
As contribuições de Foucault (2003), resumidamente apontam para o discurso, 
como prática social, produzido desde relações de poder que não mais deve ser tratado 
como conjunto de signos, e sim como prática, que, em lugar de representar, de somente 
designar, constrói os objetos sobre os quais fala. 
No que tange ao nosso córpus, o mesmo é constituído por enunciados veiculados 
na publicidade/propaganda do jornal Folha de São Paulo, intitulada Sistema de Cotas, e 
 
17 
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acessada no site de vídeos Youtube
4
. A peça é parte de uma série veiculada na mídia 
televisiva brasileira em 2014, parte de uma campanha do jornal intitulada O que a Folha 
pensa que se propõe a expor o posicionamento do jornal sobre temas polêmicos, como 
aborto, casamento igualitário e descriminalização das drogas. Com relação ao gênero 
discursivo do texto em análise, optamos por usar ambos os termos, publicidade e 
propaganda, por entendermos que o gênero em questão apresenta características de 
ambos, o que, por si só, merece particular atenção. Ao mesmo tempo em que propaga 
uma ideia, uma opinião, o texto divulga o jornal para que esse seja consumido. 
Considerando os objetivos propostos para este artigo e as implicações teóricas 
sustentadas na perspectiva da semântica global, o foco de nossas análises recai 
especificamente sobre a dimensão verbal do texto. No entanto, compreendemos que se 
faz necessário descrever minimamente alguns elementos gerais do plano não-verbal 
para que se compreenda de que modo, discursivamente, a Folha constrói seu 
posicionamento sobre as cotas raciais. Para ilustrar, apresentamos aqui o cartaz da 
campanha referente ao vídeo sobre cotas. 
 
Figura 1. Cartaz a Folha é contra as cotas 
 
Fonte:http://www.revistaforum.com.br/blog/2014/08/folha-publica-video-contra-cotas-raciais-e-
feministas-negras-criticam-campanha
5
/ 
 
4
 https://www.youtube.com/watch?v=xdpTSka35Sg 
5
 Foi necessário recorrer a um site que não ao da Folha de São Paulo uma vez que o mesmo não permite 
cópia de imagens ou textos. 
 
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O vídeo, de vinte e seis segundos, em preto e branco, inicia enquadrando em um 
movimento da direita para esquerda partes em detalhe do cabelo e do rosto de uma 
jovem mulher negra. O áudio consiste em uma voz feminina em off que acompanha as 
imagens da mulher negra exibidas pela câmera intercalando enquadramentos diversos, 
que vão do detalhe nos olhos e depois na boca, para todo o rosto e o corpo da cintura 
para cima. Seus olhos piscam e seu corpo se move suavemente sem sair do lugar, sendo 
a câmera a responsável pelo deslocamento no vídeo. Fala e imagem se sobrepõem sem 
que a mulher assuma, pelo movimento dos lábios, a voz que pronuncia o enunciado que 
transcrevemos a seguir
6
: 
 
Não deve haver reserva de vagas a partir de critérios raciais, seja na educação 
ou no serviço público, mas são bem vindas experiências baseadas em critérios 
sociais objetivos como renda ou escola de origem. 
 
Logo na sequência, em um enquadramento em primeiro plano, a jovem abre a 
boca, tornando-se efetivamente sujeito falante que atua como fiadora
7
 do seguinte 
enunciado: 
 
A Folha é contra as cotas raciais. 
 
Cabe acrescentar que o fato de ser sujeito falante não a faz automaticamente 
sujeito do discurso, uma vez que como discutiremos ao longo de nossas análises, o 
discurso assumido parece coincidir com o da Folha. 
Em seguida, após uma pequena pausa acompanhada de uma nova mudança de 
enquadre, que vai do primeiro plano para o detalhe da boca já sem movimento e volta 
ao primeiro plano, essa “coincidência” é reforçada pelo o enunciado da jovem: 
 
6
 Ainda que não nos detenhamos nessa questão, entendemos ser necessário esclarecer que há um 
descompasso entre o texto publicado na Folha em 01/08/2014 e o enunciado no vídeo analisado, sendo o 
primeiro o que reproduzimos a seguir: 
“Não deve haver reserva de vagas a partir de critérios raciais, seja na educação, seja no serviço público. 
São bem vindas, porém, experiências baseadas em critérios sociais objetivos como renda ou escola de 
origem. 
A Folha é contra as cotas raciais. Concordando ou não, siga a folha, porque ela tem suas posições mas 
sempre publica opiniões divergentes.” 
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/multimidia/videocasts/2014/08/1493905-sistema-de-cotas-o-que-a-
folha-pensa.shtml 
7
 Maingueneau (2013, p. 108), ao discutir a categoria do ethos apresenta a noção de fiador explicando que 
se trata de uma figura que “o leitor deve construir a partir de indícios textuais de diversas ordens [a qual] 
são atribuídos um caráter e uma corporalidade, cujo grau de precisão varia segundo os textos” (grifos 
do autor). 
 
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Eu também. 
 
A imagem então passa a um enquadramento em que aparece a cabeça da mulher 
do pescoço para cima no centro do vídeo e sobrepõe-se a ela a imagem do slogan que 
diz “#sigaafolha” em tipografias que diferenciam as três palavras e logo em seguida a 
logo da empresa. No plano verbal do áudio entra uma voz masculina em off que 
pronuncia o enunciado: 
 
Concordando ou não, siga a folha, porque ela tem suas posições mas sempre 
publica opiniões divergentes. 
 
No plano da interlocução, naquilo a que Maingueneau (2013) se refere como 
estatuto do enunciador e do destinatário, o coenunciador do texto publicitário se depara 
diretamente com a jovem mulher negra que enuncia. No entanto, é preciso considerar 
que há outro enunciador que materialmente se diferencia pela voz masculina e que se 
pode assimilar ao enunciador institucional da própria Folha. É evidente que tal jogo de 
enunciadores não ocorre por acaso, pois, certamente, os efeitos de sentido que se 
constroem no que se refere às cotas são muito diversos se, em lugar de uma instituição, 
quem fala contra é uma pessoa que poderia ser beneficiada por ela. 
Dizemos poderia, porque a jovem em questão está longe do perfil que se entende 
ser o do negro cotista, excluído, marginalizado. Ao contrário, parece fazer parte de uma 
classe média que nos discursos que circulam é aquela que se sente mais prejudicada 
pelas políticas de inclusão nas quais as cotas se inserem. 
Desse modo, o discurso institucional da Folha dialoga com os discursos que veem nas 
diferenças de classe a única hierarquização social que justificaria cotas, dialogando 
também com o discurso da negação do racismo e do ideal da democracia racial 
(Munanga, 2006). Ao supostamente “dar voz” a uma mulher negra, o efeito que se 
produz é o da busca por se afastar de uma ação que poderia ser claramente classificada 
como racista, caso a mulher fosse identificada como branca. 
Voltando nosso olhar para marcas linguísticas, no enunciado “Não deve haver 
reserva de vagas a partir de critérios raciais, seja na educação ou no serviço público, 
mas são bem vindas experiências baseadas em critérios sociais objetivos como renda ou 
escola de origem.”, instaura-se a polifonia, traço fundamental da linguagem (Bakhtin, 
 
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2000), como estratégia do discurso argumentativo da Folha por meio do uso do “não” 
polêmico (Ducrot, 1987) e do conectivo “mas”. Em ambos os casos a polifonia 
confronta dois enunciados, marcados por duas distintas posições enunciativas, sendo um 
enunciado assumido pelo enunciador institucional da Folha e outro rejeitado e 
desqualificado. Ao dizer que “não dever haver reserva de vagas por critérios raciais”, o 
enunciador da folha desqualifica um outro enunciador que afirma a reserva, enunciador 
este que pode ser identificado como voz proveniente, principalmente, dos movimentos 
sociais que lutam por políticas afirmativas de reparação às desigualdades raciais em 
nossa sociedade. O enunciado que nega constrói-se de modo assertivo e imperativo, não 
dando espaço para questionamentos ou confronto de ideias. Já no enunciado introduzido 
por “mas”, que também desqualifica o discurso em defesa das cotas raciais, a 
enunciação é modalizada, fazendo-se muito menos assertiva. Ao dizer que “são bem 
vindas experiências”, o que se fazer é produzir um convite à experimentação, ou seja, o 
enunciador institucional sequer defende efetivamente as cotas sociais, apenas as usa 
como modo de deslegitimar as cotas raciais. 
Outra estratégia usada para desqualificar as cotas raciais é o estabelecimento de 
uma oposição conceitual entre objetividade e subjetividade, sendo a primeira valorada 
positivamente e a segunda negativamente. Ao afirmar que “renda” e “escola de origem” 
são critérios sociais objetivos, o enunciador constrói o pressuposto de que a raça seria 
um critério subjetivo e, por tanto, não definível dentro de um espectro de compreensão 
da verdade, fundado numa epistemologia positivista. Este enunciador objetifica a 
realidade, negando os efeitos do racismo e apagando os sujeitos humanos que são 
impactados física, emocional, moral e economicamente pelas desigualdades raciais em 
nosso país. 
No próximo item apresentamos nossas considerações finais. 
 
CONSIDERAÇÕES FINAIS 
 
Como anunciado na introdução deste artigo, propusemos como objetivo uma 
reflexão sobre a construção discursiva do posicionamento da Folha de São Paulo sobre a 
políticadas cotas raciais, desde a análise de publicidade/propaganda veiculada em 2014. 
Por meio das análises aqui expostas algumas considerações fazem-se necessárias. 
Em primeiro lugar, identificamos a construção de um discurso que não abre espaço para 
 
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questionamentos e a prevalência do enunciador institucional em detrimento da 
enunciadora que atua corporalmente no vídeo. Ou seja, ainda que, aparentemente haja 
uma mulher negra que supostamente poderia emitir uma opinião, o que ela faz, quando 
finalmente “abre a boca” é ratificar uma opinião de um enunciador masculino, voz da 
Folha de São Paulo, por meio de um “eu também”. 
Evidencia-se também o apagamento das questões raciais e a negação do sujeito 
não branco como ser social afetado pelo racismo quando o discurso das cotas é 
assumido por uma jovem sim negra, mas que parece fazer parte de uma classe média e 
estar alinhada a discursos que entendem ser essa a classe mais prejudicada pelas 
políticas de cotas raciais. 
É relevante ressaltar a inexistência de uma discussão construída por meio de 
argumentos e o reforço de uma única verdade que polariza as posições, desqualificando 
um conjunto de saberes e discursos produzidos por militantes e pesquisadores 
engajados. 
 
REFERÊNCIAS 
 
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Recebido em julho de 2015 
Aprovado em setembro de 2015

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