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12 Revista da ABPN • v. 7, n. 17 • jul. – out. 2015, p.12-22 A MÍDIA E A MANUTENÇÃO DE DISCURSOS RACISTAS: “SIGA A FOLHA”? Maria Cristina Giorgi 1 Fabio Sampaio de Almeida 2 Resumo: Neste artigo temos como objetivo refletir acerca do modo como parte da mídia brasileira – especificamente um veículo de grande circulação como a Folha de São Paulo –, constrói discursivamente seu posicionamento no que se refere às políticas de ações afirmativas para a ampliação da participação de grupos étnico-raciais, sabidamente discriminados ao longo da história, nas áreas de educação e emprego, ou seja, as cotas raciais. Nesse sentido, apresentamos uma análise discursiva de publicidade/propaganda do jornal Folha de São Paulo, amplamente veiculada na mídia televisiva brasileira em 2014. No que tange à linguagem, além da visão dialógica de Bakhtin (2000), recorremos a contribuições de Foucault (2003), Maingueneau (2005, 2013) e Moita Lopes (2009). Com relação aos conceitos de raça e racismo, dialogamos com Munanga (2006), Hall (2006) e Guimarães (2009). Palavras-chave: racismo na mídia; cotas raciais; análise discursiva. THE MEDIA AND RACIST SPEECHES MAINTENANCE: "FOLLOW THE FOLHA"? Abstract: In this article our goal is to reflect about how part of the Brazilian media - specifically a widely circulated vehicle such as the Folha de São Paulo - discursively build its position in regard to affirmative action policies for increasing the participation of ethnic and racial groups, discriminated throughout history, in the areas of education and employment, namely, the racial quotas. In this sense, we present a discursive analysis of advertising/propaganda of the newspaper Folha de São Paulo, widely broadcast on Brazilian television media in 2014. Concerning the language, beyond the dialogical view of Bakhtin (2000), we used Foucault's contributions (2003), Maingueneau (2005, 2013) and Moita Lopes (2009). With respect to concepts of race and racism, we dialogue with Munanga (2006), Hall (2006) and Guimarães (2009). Keywords: racism in the media; racial quotas; discursive analysis. LE MÉDIAS ET MANUTENTION DE DISCOURS RACISTES: “SIGA A FOLHA”? Résumé: Dans cet article, nous avons comme objective réfléchir sur le mode comment partie de la média brésilienne - précisément un véhicule largement diffusé comme Folha de São Paulo – construit discursivement son positionnement en ce qui concerne les politiques d'action positive par l’ampliation de la participation des groupes ethno-raciales, qui on savait être préjugé au long 1 Doutora em Estudos da Linguagem pela Universidade Federal Fluminense, professora titular do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca dos ensinos Médio e Técnico e dos cursos de Pós-graduação stricto sensu Mestrado em Relações Étnico-raciais e Mestrado Profissional em Filosofia e Ensino. 2 Doutor em Linguística Aplicada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, professor titular do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, atuando em cursos de graduação e nos cursos de Pós-graduação stricto sensu Mestrado em Relações Étnico-raciais e Mestrado Profissional em Filosofia e Ensino. 13 Revista da ABPN • v. 7, n. 17 • jul. – out. 2015, p.12-22 d’Histoire, dans les domaines de l'éducation et de l'emploi, qui est, quotas raciaux. En ce sens, nous présentons une analyse discursive de la publicité/propagande de journal Folha de São Paulo, largement diffusée sur les médias de la télévision brésilienne en 2014. En ce qui concerne la langue, au-delà de la vue dialogique de Bakhtine (2000), nous avons utilisé les contributions de Foucault (2003 ), Maingueneau (2005, 2013) et Moita Lopes (2009). En ce qui concerne les concepts de race et de racisme, nous dialogue avec Munanga (2006), Hall (2006) et Guimarães (2009). Mots-clés: le racisme dans les médias; quotas raciaux; analyse du discours. MEDIOS Y LA MANUTENCIÓN DE DISCURSOS RACISTAS: “SIGA LOS PASOS DEL PERIÓDICO FOLHA”? Resumen: En este artículo tenemos como objetivo reflejar acerca del modo como parte de los medios brasileños – específicamente un vehículo de grande circulación como la Folha de São Paulo –, construye discursivamente su posicionamiento a las políticas de acciones afirmativas para la ampliación de la participación de grupos étnicos-raciales, sabidamente discriminados al largo de su historia, en las áreas de educación y empleo, o sea, las cuotas raciales. En este sentido, presentamos un análisis del discurso de la publicidad/propaganda del periódico Folha de São Paulo, ampliamente vehiculada en los medios televisivos brasileño en 2014. Con el blanco en el lenguaje, además de la visión dialógica de Bakhtin (2000), contribuciones de Foucault (2003), Maingueneau (2005, 2013) y Moita Lopes (2009). Con relación a los conceptos de raza y racismo, dialogamos con Munanga (2006), Hall (2006) y Guimarães (2009). Palabras-clave: racismo en los médios; cuotas raciales; análisis discursivo. Neste artigo pretendemos refletir acerca do modo como parte da mídia brasileira, mais especificamente um veículo de grande circulação como a Folha de São Paulo, constrói discursivamente seu posicionamento a respeito da problemática das políticas de ações afirmativas para a ampliação da participação de grupos étnico-raciais, historicamente discriminados, nas áreas de educação e emprego a partir do sistema de cotas. Para tal, propomos a análise discursiva de uma publicidade/propaganda do jornal Folha de São Paulo, amplamente veiculada na mídia televisiva brasileira em 2014 3 , intitulada Sistema de Cotas. Cabe ressaltar que a relevância de discussões acerca de textos veiculados pela mídia em geral reside no fato de essa ser capaz de produzir identidades sociais diversas em geral em favor da manutenção de formas de poder exercidas “pelos agentes econômicos da informação e do entretenimento” (Almada, 2012, p. 24). É importante considerar que o referido texto dialoga com um conjunto de reflexões e práticas de pesquisa que atuam na ampliação do perfil do linguista aplicado como cientista social (Rajagopalan, 2003), cujas propostas de análises transcendem o 3 O vídeo está disponível em http://www1.folha.uol.com.br/especial/2014/oqueafolhapensa/ 14 Revista da ABPN • v. 7, n. 17 • jul. – out. 2015, p.12-22 conhecimento da linguagem e seu contexto sócio-histórico como também a intervenção no mesmo, buscando atender a novas demandas sociais e produzir ganhos éticos, epistêmicos e políticos para a vida em sociedade (Moita Lopes, 2009). Tal perspectiva também permite ao linguista se aproximar de discussões teórico-metodológicas, oriundas das ciências sociais, raramente privilegiadas pelos estudos linguísticos. Nesse sentido, as relações entre linguagem e questões étnico-raciais passam a ser foco de práticas de análise diversas, sendo a nossa opção por um viés discursivo que entende a linguagem ou o discurso como coconstrutor de sentidos e forma de intervir no mundo social (Moita Lopes, 2002). Na medida em que nosso interesse se centra na produção de efeitos de sentido, materializados por sujeitos sociais historicamente situados desde a materialidade linguística, a opção pelos estudos do discurso proporciona ferramentas conceituais e analíticas que nos possibilitam estabelecer um diálogo com a mídia, relacionando o papel dos discursos à produção das identidades sociais. Diálogo esse que se faz mais relevante quando “responsável pela produção de identidades sociais ‘virtuais’ (de classe,geracional, étnico-racial, entre outras), os meios de comunicação podem ser entendidos como o ‘intelectual coletivo’ a serviço de um poderio representado pelos agentes econômicos da informação e do entretenimento (Almada, 2012, p. 24).” Nosso artigo está organizado em quatro seções nas quais apresentamos nosso referencial teórico sobre os conceitos de raça e racismo (Munanga, 2006, 2010; Hall, 2006, 2013; Guimarães, 2009), discutimos o papel da linguagem na construção de identidades sociais por meio das noções de dialogismo e gêneros do discurso (Bakhtin, 2000) e de semântica global (Maingueneau, 2005) e propomos análises linguístico- discursivas dos enunciados produzidos na publicidade/propaganda da Folha de São Paulo. Finalmente, na última seção, expomos nossas considerações finais. RACISMO NO DISCURSO DA FOLHA? Como aporte teórico para os conceitos de raça e racismo, dialogamos com algumas propostas de Munanga (2006, 2010), Hall (2006, 2013) e Guimarães (2009). No que concerne às designações de raça (negra, branca ou amarela), entendemos como Munanga (2010, p. 185) que constituem categorias linguísticas, convencionais e 15 Revista da ABPN • v. 7, n. 17 • jul. – out. 2015, p.12-22 arbitrárias, como quaisquer outras, ou como afirma Hall (2013, p. 1), “raça é uma construção discursiva”, como bem explica o autor: Para falar em termos bem genéricos, raça é um dos principais conceitos que organiza os grandes sistemas classificatórios da diferença que operam em sociedades humanas. E dizer que raça é uma categoria discursiva é reconhecer que todas as tentativas de fundamentar esse conceito na ciência, localizando as diferenças entre raças no terreno da ciência biológica ou genética, se mostraram insustentáveis (Hall, 2013, p. 1). Nesse sentido, considerando a inoperabilidade dos critérios de classificação priorizados – características fenotípicas, especialmente a cor da pele –, já não é novidade a afirmação de biólogos e geneticistas de que a noção de raça não possui base científica, isto é, “a raça não existe biologicamente” (Munanga, 2010, p. 186). No entanto, como argumenta Hall (2013), a cor da pele, ainda que pouco significativa em si, é importante, uma vez que constitui um significante, uma materialidade sobre a qual se inscrevem socio-historicamente determinados discursos. É nesse sentido que, negando uma concepção essencialista, o autor afirma que a noção de raça possui uma realidade, “pois dá para ver seus efeitos (...) dá para ver a discriminação racial funcionando nas instituições, e assim por diante” (Hall, 2013), estabelecendo e naturalizando hierarquias na organização social. Dialogando com John Rex, Guimarães (2009) elenca três condições gerais que segundo ele fundamentariam qualquer hierarquia social, incluindo aquelas em que parece justificado o emprego do conceito sociológico de ‘raça’, e que, especificamente, nos possibilitam problematizar o modo como a Folha de São Paulo tematiza a questão das cotas raciais. A primeira condição diz respeito à desigualdade estrutural entre grupos humanos que convivem em um mesmo Estado. A segunda refere-se a uma teoria ou ideologia, ou seja, a um discurso que justifica ou respalda essa desigualdade. A essas duas condições propostas por Rex (apud Guimarães, 2009, p. 28), acrescenta uma terceira, a naturalização dessa ordem social que se constitui na e pela essencialização desses sujeitos por tais discursos. Desse modo, podemos afirmar que, como construto discursivo sociológico (Guimarães, 2009), o conceito de raça se torna fundamental para combater o racismo, prática violenta que determina lugares de subordinação às pessoas negras em nosso país. Compreendendo o racismo como uma construção social, psicológica, afetiva, cognitiva, é evidente que o mesmo pode ser desaprendido. Por esse motivo, é 16 Revista da ABPN • v. 7, n. 17 • jul. – out. 2015, p.12-22 fundamental o papel das investigações no âmbito das ciências chamadas humanas e sociais capazes de promover reflexões que nos permitam identificar focos de poder e seus respectivos alvos, possibilitando novos lugares de resistência, como nos ensina Foucault (2004). Para as questões concernentes à linguagem, lançamos mão, fundamentalmente, do princípio dialógico e da noção de gêneros do discurso, propostos por Bakhtin (2000; 2004), e da semântica global de Maingueneau (2005). Segundo Bakhtin, os discursos envolvem a relação sujeito-linguagem numa determinada situação de comunicação, remetem ao diálogo entre interlocutores e entre discursos e compreendem a interação como ação inerente ao ser humano. As se ideias constroem por meio das relações dialógicas, e é somente quando estas últimas se estabelecem que cada ideia começa a ter vida e pode gerar novas ideias. Só é autêntico o pensamento que se materializa na voz do outro e entra em contato com outros pensamentos. Os seres humanos são, assim, sujeitos históricos e sociais, que devem ser compreendidos desde sua inserção social, fato que pressupõe condições socioculturais e econômicas concretas e determinadas. Dentro de tal contexto, a língua deve ser considerada a partir de seu uso, e não como estrutura e fenômeno abstrato (Bakhtin, 2000; 2004). A citada semântica global, de acordo com Maingueneau (2005), é a noção que nos permite entender que, em um texto, forma e conteúdo não estão dissociados e se relacionam em todos os planos discursivos – vocabulário, modos de enunciar, dêixis, temas – construindo significados que se materializam no texto, cabendo ao analista buscar pistas que o remetam a determinada prática discursiva. No caso deste artigo, nosso foco é a análise de pistas nos enunciados produzidos pela Folha de São Paulo em um vídeo de um gênero publicitário que, para além de difundir a opinião do veiculo midiático, constitui uma prática discursiva racista. As contribuições de Foucault (2003), resumidamente apontam para o discurso, como prática social, produzido desde relações de poder que não mais deve ser tratado como conjunto de signos, e sim como prática, que, em lugar de representar, de somente designar, constrói os objetos sobre os quais fala. No que tange ao nosso córpus, o mesmo é constituído por enunciados veiculados na publicidade/propaganda do jornal Folha de São Paulo, intitulada Sistema de Cotas, e 17 Revista da ABPN • v. 7, n. 17 • jul. – out. 2015, p.12-22 acessada no site de vídeos Youtube 4 . A peça é parte de uma série veiculada na mídia televisiva brasileira em 2014, parte de uma campanha do jornal intitulada O que a Folha pensa que se propõe a expor o posicionamento do jornal sobre temas polêmicos, como aborto, casamento igualitário e descriminalização das drogas. Com relação ao gênero discursivo do texto em análise, optamos por usar ambos os termos, publicidade e propaganda, por entendermos que o gênero em questão apresenta características de ambos, o que, por si só, merece particular atenção. Ao mesmo tempo em que propaga uma ideia, uma opinião, o texto divulga o jornal para que esse seja consumido. Considerando os objetivos propostos para este artigo e as implicações teóricas sustentadas na perspectiva da semântica global, o foco de nossas análises recai especificamente sobre a dimensão verbal do texto. No entanto, compreendemos que se faz necessário descrever minimamente alguns elementos gerais do plano não-verbal para que se compreenda de que modo, discursivamente, a Folha constrói seu posicionamento sobre as cotas raciais. Para ilustrar, apresentamos aqui o cartaz da campanha referente ao vídeo sobre cotas. Figura 1. Cartaz a Folha é contra as cotas Fonte:http://www.revistaforum.com.br/blog/2014/08/folha-publica-video-contra-cotas-raciais-e- feministas-negras-criticam-campanha 5 / 4 https://www.youtube.com/watch?v=xdpTSka35Sg 5 Foi necessário recorrer a um site que não ao da Folha de São Paulo uma vez que o mesmo não permite cópia de imagens ou textos. 18 Revista da ABPN • v. 7, n. 17 • jul. – out. 2015, p.12-22 O vídeo, de vinte e seis segundos, em preto e branco, inicia enquadrando em um movimento da direita para esquerda partes em detalhe do cabelo e do rosto de uma jovem mulher negra. O áudio consiste em uma voz feminina em off que acompanha as imagens da mulher negra exibidas pela câmera intercalando enquadramentos diversos, que vão do detalhe nos olhos e depois na boca, para todo o rosto e o corpo da cintura para cima. Seus olhos piscam e seu corpo se move suavemente sem sair do lugar, sendo a câmera a responsável pelo deslocamento no vídeo. Fala e imagem se sobrepõem sem que a mulher assuma, pelo movimento dos lábios, a voz que pronuncia o enunciado que transcrevemos a seguir 6 : Não deve haver reserva de vagas a partir de critérios raciais, seja na educação ou no serviço público, mas são bem vindas experiências baseadas em critérios sociais objetivos como renda ou escola de origem. Logo na sequência, em um enquadramento em primeiro plano, a jovem abre a boca, tornando-se efetivamente sujeito falante que atua como fiadora 7 do seguinte enunciado: A Folha é contra as cotas raciais. Cabe acrescentar que o fato de ser sujeito falante não a faz automaticamente sujeito do discurso, uma vez que como discutiremos ao longo de nossas análises, o discurso assumido parece coincidir com o da Folha. Em seguida, após uma pequena pausa acompanhada de uma nova mudança de enquadre, que vai do primeiro plano para o detalhe da boca já sem movimento e volta ao primeiro plano, essa “coincidência” é reforçada pelo o enunciado da jovem: 6 Ainda que não nos detenhamos nessa questão, entendemos ser necessário esclarecer que há um descompasso entre o texto publicado na Folha em 01/08/2014 e o enunciado no vídeo analisado, sendo o primeiro o que reproduzimos a seguir: “Não deve haver reserva de vagas a partir de critérios raciais, seja na educação, seja no serviço público. São bem vindas, porém, experiências baseadas em critérios sociais objetivos como renda ou escola de origem. A Folha é contra as cotas raciais. Concordando ou não, siga a folha, porque ela tem suas posições mas sempre publica opiniões divergentes.” Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/multimidia/videocasts/2014/08/1493905-sistema-de-cotas-o-que-a- folha-pensa.shtml 7 Maingueneau (2013, p. 108), ao discutir a categoria do ethos apresenta a noção de fiador explicando que se trata de uma figura que “o leitor deve construir a partir de indícios textuais de diversas ordens [a qual] são atribuídos um caráter e uma corporalidade, cujo grau de precisão varia segundo os textos” (grifos do autor). 19 Revista da ABPN • v. 7, n. 17 • jul. – out. 2015, p.12-22 Eu também. A imagem então passa a um enquadramento em que aparece a cabeça da mulher do pescoço para cima no centro do vídeo e sobrepõe-se a ela a imagem do slogan que diz “#sigaafolha” em tipografias que diferenciam as três palavras e logo em seguida a logo da empresa. No plano verbal do áudio entra uma voz masculina em off que pronuncia o enunciado: Concordando ou não, siga a folha, porque ela tem suas posições mas sempre publica opiniões divergentes. No plano da interlocução, naquilo a que Maingueneau (2013) se refere como estatuto do enunciador e do destinatário, o coenunciador do texto publicitário se depara diretamente com a jovem mulher negra que enuncia. No entanto, é preciso considerar que há outro enunciador que materialmente se diferencia pela voz masculina e que se pode assimilar ao enunciador institucional da própria Folha. É evidente que tal jogo de enunciadores não ocorre por acaso, pois, certamente, os efeitos de sentido que se constroem no que se refere às cotas são muito diversos se, em lugar de uma instituição, quem fala contra é uma pessoa que poderia ser beneficiada por ela. Dizemos poderia, porque a jovem em questão está longe do perfil que se entende ser o do negro cotista, excluído, marginalizado. Ao contrário, parece fazer parte de uma classe média que nos discursos que circulam é aquela que se sente mais prejudicada pelas políticas de inclusão nas quais as cotas se inserem. Desse modo, o discurso institucional da Folha dialoga com os discursos que veem nas diferenças de classe a única hierarquização social que justificaria cotas, dialogando também com o discurso da negação do racismo e do ideal da democracia racial (Munanga, 2006). Ao supostamente “dar voz” a uma mulher negra, o efeito que se produz é o da busca por se afastar de uma ação que poderia ser claramente classificada como racista, caso a mulher fosse identificada como branca. Voltando nosso olhar para marcas linguísticas, no enunciado “Não deve haver reserva de vagas a partir de critérios raciais, seja na educação ou no serviço público, mas são bem vindas experiências baseadas em critérios sociais objetivos como renda ou escola de origem.”, instaura-se a polifonia, traço fundamental da linguagem (Bakhtin, 20 Revista da ABPN • v. 7, n. 17 • jul. – out. 2015, p.12-22 2000), como estratégia do discurso argumentativo da Folha por meio do uso do “não” polêmico (Ducrot, 1987) e do conectivo “mas”. Em ambos os casos a polifonia confronta dois enunciados, marcados por duas distintas posições enunciativas, sendo um enunciado assumido pelo enunciador institucional da Folha e outro rejeitado e desqualificado. Ao dizer que “não dever haver reserva de vagas por critérios raciais”, o enunciador da folha desqualifica um outro enunciador que afirma a reserva, enunciador este que pode ser identificado como voz proveniente, principalmente, dos movimentos sociais que lutam por políticas afirmativas de reparação às desigualdades raciais em nossa sociedade. O enunciado que nega constrói-se de modo assertivo e imperativo, não dando espaço para questionamentos ou confronto de ideias. Já no enunciado introduzido por “mas”, que também desqualifica o discurso em defesa das cotas raciais, a enunciação é modalizada, fazendo-se muito menos assertiva. Ao dizer que “são bem vindas experiências”, o que se fazer é produzir um convite à experimentação, ou seja, o enunciador institucional sequer defende efetivamente as cotas sociais, apenas as usa como modo de deslegitimar as cotas raciais. Outra estratégia usada para desqualificar as cotas raciais é o estabelecimento de uma oposição conceitual entre objetividade e subjetividade, sendo a primeira valorada positivamente e a segunda negativamente. Ao afirmar que “renda” e “escola de origem” são critérios sociais objetivos, o enunciador constrói o pressuposto de que a raça seria um critério subjetivo e, por tanto, não definível dentro de um espectro de compreensão da verdade, fundado numa epistemologia positivista. Este enunciador objetifica a realidade, negando os efeitos do racismo e apagando os sujeitos humanos que são impactados física, emocional, moral e economicamente pelas desigualdades raciais em nosso país. No próximo item apresentamos nossas considerações finais. CONSIDERAÇÕES FINAIS Como anunciado na introdução deste artigo, propusemos como objetivo uma reflexão sobre a construção discursiva do posicionamento da Folha de São Paulo sobre a políticadas cotas raciais, desde a análise de publicidade/propaganda veiculada em 2014. Por meio das análises aqui expostas algumas considerações fazem-se necessárias. Em primeiro lugar, identificamos a construção de um discurso que não abre espaço para 21 Revista da ABPN • v. 7, n. 17 • jul. – out. 2015, p.12-22 questionamentos e a prevalência do enunciador institucional em detrimento da enunciadora que atua corporalmente no vídeo. Ou seja, ainda que, aparentemente haja uma mulher negra que supostamente poderia emitir uma opinião, o que ela faz, quando finalmente “abre a boca” é ratificar uma opinião de um enunciador masculino, voz da Folha de São Paulo, por meio de um “eu também”. Evidencia-se também o apagamento das questões raciais e a negação do sujeito não branco como ser social afetado pelo racismo quando o discurso das cotas é assumido por uma jovem sim negra, mas que parece fazer parte de uma classe média e estar alinhada a discursos que entendem ser essa a classe mais prejudicada pelas políticas de cotas raciais. É relevante ressaltar a inexistência de uma discussão construída por meio de argumentos e o reforço de uma única verdade que polariza as posições, desqualificando um conjunto de saberes e discursos produzidos por militantes e pesquisadores engajados. REFERÊNCIAS ALMADA, Sandra. Prefácio. In: BORGES, R.C; BORGES, R. (Orgs.). Mídia e racismo. Petrópolis: DP; Brasília: ABPN, 2012. BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2000. _____ Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 2004. BORGES, Roberto Carlos; BORGES, Rosane (Orgs.) Mídia e racismo. Petrópolis: DP; Brasília: ABPN, 2012. _____; GIORGI, Maria Cristina Discurso, propaganda estereótipos raciais: uma questão de segurança. In: MÜLLER, Tânia; COELHO, Wilma (orgs.) Relações étnico-raciais e diversidade. Niterói: Editora UFF, 2014. DUCROT, Oswald. O dizer e o dito. Campinas, SP: Pontes, 1987. FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau, 2003. FULANETI, Oriana; BUENO, Alexandre. (Orgs.). Linguagem e política: princípios teórico- discursivos. São Paulo: Contexto, 2013. GUIMARÃES, Antônio. Racismo e antirracismo no Brasil. São Paulo: FAPESP; ED. 34, 2009. HALL, Stuart. Da Diáspora. Identidades e Mediações Culturais. BH: Editora UFMG, 2006. MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação. São Paulo: Contexto, 2002. 22 Revista da ABPN • v. 7, n. 17 • jul. – out. 2015, p.12-22 MOITA LOPES, Luis Paulo. Identidades fragmentadas: a construção discursiva de raça, gênero e sexualidade em sala de aula. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2002. _____ Linguística Aplicada como lugar de construir verdades contingentes: sexualidades, ética e política. Gragoatá. n. 27, 2 sem. 2009. Disponível em: <http://www.uff.br/revistagragoata/revistas/gragoata27web.pdf> Acesso em: 10 de fevereiro de 2014. MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. BH: Autêntica, 2006. RAJAGOPALAN, Kanavillil. Por uma linguística crítica: linguagem, identidade e a questão ética. São Paulo: Parábola, 2003. Recebido em julho de 2015 Aprovado em setembro de 2015
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