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O QUE É DIREITO? Lucas Borges de Carvalho Eis uma pergunta que nos persegue. Nas primeiras aulas da faculdade, lá está o professor questionando seus alunos. Em resposta, sem muito pensar, os aspirantes a juristas referem-se à justiça, à lei ou, ainda, à liberdade. O mestre, por sua vez, pede calma, dizendo que há muitos anos – séculos, em verdade – os grandes juristas e filósofos enfrentam o tema.“É um problema complexo”, sintetiza. Os anos passam e aquela inquietação do primeiro dia de aula esmorece. Esquecemos a pergunta, sem nunca ter assimilado uma resposta. E, se em algum momento nos deparamos com ela de novo, repetimos alguma daquelas fórmulas decoradas, de preferência algo em latim. Incomodados, então, mudamos logo de assunto, recorrendo à tática do mestre: “é um problema complexo”. Não. Não pense o leitor que nas páginas seguintes, finalmente, descobrirá os segredos da máquina do mundo. Ao final desse texto, com toda certeza, não encontrará uma resposta definitiva à questão. Talvez, a antiga dúvida (adormecida) volte a incomodar, tal como nos primeiros dias de aula... Alguns pressupostos Certos pensadores dizem que um indivíduo é quem é apenas na medida em que os outros o reconhecem – ou não o reconhecem – como tal. O que isso quer dizer? Quer dizer que formamos nossa identidade em interação com outras pessoas e que dependemos das relações com estas para ser o que somos ou, pelo menos, o que acreditamos ser. Nossas preferências musicais, artísticas, profissionais, estéticas, nossos preconceitos, por exemplo, se formam ao longo da nossa existência a partir das relações sociais que nela travamos. Mais do que isso, as idéias que temos em relação a nós mesmos e em relação aos outros também dependem e são formadas intersubjetivamente. Basta pensar nas consequências sociais do poderoso imaginário social de inferioridade que, ainda hoje, algumas mulheres e negros têm de si mesmos, bem como outras pessoas têm deles. Portanto, pode-se dizer que o que caracteriza a vida humana é o seu caráter essencialmente dialógico, de modo que a interação, de que falávamos acima, é realizada por meio da comunicação. É a linguagem – da fala, dos gestos, dos textos, das músicas, dos poemas, das expressões faciais – que possibilita, ao ser humano, o acesso ao mundo, aos outros e, em última instância, a si mesmo. Apenas posso me expressar e interagir com alguém na medida em que, de alguma forma, me comunico. O direito Partindo dessas premissas, pode-se conceber o direito como um mecanismo de comunicação. Uma linguagem por meio da qual uma pessoa diz algo a outra pessoa. O art. 121, do Código Penal, por exemplo, é uma mensagem que expressa a proibição do homicídio. E o art. 5º, XXIII, da Constituição Federal, nos diz que toda a propriedade privada deve respeitar um fim social. Por meio do direito, então, uma sociedade busca cristalizar e publicizar mensagens que, em determinado momento histórico, são consideradas relevantes. Trata-se, enfim, de um mecanismo linguístico capaz de tornar possível – ou, talvez, menos tormentosa – a interação e a comunicação sociais. Esse conceito inicial do direito como linguagem, pode ser mais bem desenvolvido a partir de sete importantes ideias: 01. O direito não é estrutura, é movimento. Não é algo estático, dado a priori, mas algo historicamente construído, fruto dos conflitos e das relações sociais. É um constante vir-a-ser, um processo permanente de luta política pela afirmação e reconhecimento de sentidos e identidades. 02. O direito é aquilo que dizemos que ele é. Não é algo em si mesmo, que tem um sentido pronto e acabado, a ser descoberto por juízes ou advogados. Enquanto linguagem, e enquanto movimento, o direito depende essencialmente do sujeito que comunica. E, veja bem, o “envio” da “mensagem jurídica” não se realiza apenas – nem se encerra – com a publicação das leis. Pelo contrário, é nesse momento que começa a interação, quer dizer, a comunicação – e o embate – por intermédio do direito. Por exemplo, é recorrendo à linguagem jurídica que se diz que um grupo de trabalhadores rurais invadiu ou ocupou uma fazenda improdutiva. Ou ainda, pode-se dizer que, em determinado latifúndio, havia apenas trabalho informal ou trabalho escravo. 03. O direito é fruto de embates políticos. Ora, se o direito é aquilo que dizemos (ou o que dizem) que ele é, é fundamental pensar como se dá esse processo de “dizer o direito”. Afirmar algo como jurídico somente é possível por meio de um embate político. Os grandes latifundiários dizem invasão e trabalho informal, enquanto os trabalhadores rurais e os setores progressistas da sociedade dizem ocupação e trabalho escravo. E essa não é uma discussão meramente teórica, uma vez que os dois grupos estão diariamente utilizando todos os recursos disponíveis – atuando junto aos órgãos estatais, realizando manifestações públicas, valendo-se da mídia etc. – para firmar seus posicionamentos. 04. O direito, em si mesmo, não transforma, nem conserva a realidade. Aceitando as três características anteriores, temos que admitir que o direito, em si mesmo, não transforma, nem conserva a realidade. Afinal, o direito, em si mesmo, não é nada, não existe. O que existe são as pessoas, as relações e os sujeitos sociais. São estes que, às vezes se valendo do direito, transformam ou conservam o status quo. A Constituição e as leis são apenas pedaço de papel. Ou seja, projetos de direito. Direito em potência, que apenas se afirma enquanto tal após os embates políticos em torno da definição exata de seu sentido e da sua efetivação. 05. O direito é uma forma de representação da realidade. É desta característica que emerge a grande importância do direito e, principalmente, da luta pela definição do que seja direito na nossa sociedade. Ora, o direito é uma das principais formas de reconhecimento simbólico de fatos, pessoas e grupos sociais. É por meio da linguagem jurídica – formulada em termos da disjunção binária legal/ilegal – que se atribui relevância ou irrelevância aos fatos sociais, de maneira que o reconhecimento jurídico implica também em reconhecimento político- social. Pense nos casos dos trabalhadores rurais, das mulheres e dos negros, citados acima. Ou, ainda, nos imigrantes ilegais (não à toa chamados de ilegais) nos países desenvolvidos e nos habitantes das periferias brasileiras (também tachados de ilegais) que moram em locais sem regularização fundiária. Estar ou não dentro da lei, ser legal ou ilegal, quais as consequências disto? Como são e como foram definidos o certo e o errado em termos de direito? Eis algumas questões... 06. O direito é parâmetro de avaliação da realidade. O direito aponta para o futuro. Prescreve ações que os indivíduos e os agentes estatais devem observar. Daí que, como visto, recorrendo aos padrões jurídicos, podemos dizer se determinado fato é legal ou ilegal, correto ou incorreto e, até mesmo, justo ou injusto. Se, por um lado, o direito pode ser utilizado para estigmatizar e excluir determinados indivíduos, por outro lado, é um importante parâmetro para avaliarmos a realidade. É o que ocorre, por exemplo, quando dizemos que o governo está desrespeitando a Constituição ou os direitos fundamentais. 07. O direito é um mecanismo capaz de reduzir a contingência inerente à comunicação. Quando conto a alguém algo que me aconteceu, por mais que seja fiel aos fatos, não sou capaz de reproduzir com fidelidade o que ocorreu. De um lado, estou adstrito à minha visão do acontecido – uma outra pessoa, por exemplo, contaria a história de forma diferente. De outro lado, a pessoa que ouve a minha explicação, fará, ela mesma, a sua interpretação do que digo. Por isso, a comunicação é sempre um processo complexo, que envolve dificuldades de entendimento e compreensão mútuas.Tento dizer algo, mas sempre estou limitado às possibilidades (restritas) que me oferece a linguagem. O direito, sob essa perspectiva, cria elementos linguísticos comuns – cristaliza mensagens, como dito acima – capazes de tornar menos tormentosa a comunicação e o entendimento entre as pessoas. Diante de um problema podemos recorrer a um esquema de conceitos jurídicos prévios e comuns, que nos ajudam a enfrentá-lo. É correto pessoas adentrarem na propriedade de outrem? Uma mulher grávida pode abortar? Alguém deve ser responsabilizado pela enchente que inundou a cidade? E um vazamento de óleo no mar? Sem o direito, a resposta a essas perguntas seria muito mais difícil, posto que, em cada caso, seria necessário formar, do zero, e sem qualquer parâmetro, juízos a respeito. Síntese Enquanto linguagem comum, que possibilita um entendimento entre as pessoas e que fornece elementos para a avaliação da realidade e para o reconhecimento simbólico de fatos sociais, o direito precisa ser tratado de forma crítica. Não se pode aceitar algo pelo simples fato de estar na lei. Até porque o estar na lei é sempre a interpretação de alguém em torno do que está na lei. Portanto, se o direito é historicamente construído, fruto de embates políticos entre visões de mundo diferenciadas e, se, em última instância, é aquilo que dizemos – interpretamos – que ele é, é forçoso concluir que a lei pela lei, não vale nada. Daí a necessidade de inseri-la no contexto histórico e social em que foi elaborada e no qual será aplicada, buscando argumentos a fim de legitimar o sentido que entendemos como o mais justo. Os lírios Do conceito de direito como linguagem e como comunicação, podem ser tiradas diversas idéias e questões importantes para os debates que se fazem hoje necessários. Aqui foram expostas algumas delas, da forma mais simples possível, assumindo os riscos das simplificações excessivas. Lembre-se, por fim, que é nas relações e nos conflitos sociais que devemos, enquanto operadores jurídicos, concentrar as nossas atenções. O direito é um meio de comunicação. É algo imiscuído nas interações humanas. Sem compreender estas, não podemos compreendê-lo. E aí, tal como ocorre muitas vezes, acabamos por buscar nele a origem de males que não causou e, pior ainda, depositar esperanças naquilo que não pode nos oferecer. Sabiamente, disse o poeta que “as leis não bastam, os lírios não nascem das leis”.
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