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FILOSOFIA GERAL E JURÍDICA Cássio Vinícius Direito e justiça Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: � Apresentar as diversas acepções da palavra justiça. � Estabelecer uma relação entre lei e justiça. � Explicar a justiça equitativa para John Rawls. Introdução O modo como compreendemos a justiça é constitutivo da nossa própria visão sobre como a sociedade deveria funcionar. Nesse contexto, o grau de reflexão que empreendemos acerca do conceito de justiça é diretamente proporcional à nossa capacidade de entender a nossa realidade social, bem como o Direito e a política. Além disso, se pretendemos utilizar o Direito para promover a justiça e tornar o mundo um lugar melhor, é necessário compreender de antemão o que ela significa. Neste capítulo, você vai aprender sobre algumas das diversas acep- ções da palavra justiça, os modos de estabelecer a relação entre justiça e Direito, bem como sobre a famosa ideia de justiça como equidade, tal qual defendida pelo filósofo político John Rawls. Justiça e as suas acepções Não é difícil perceber que o significado das palavras do nosso vocabulário desempenha um papel constitutivo para o conteúdo dos pensamentos que veiculamos com elas. Se algumas palavras, como, por exemplo, copo e cadeira, são de simples conceituação e não suscitam maiores explicações, tampouco são determinantes para que possamos fundamentar a concepção que temos da realidade — com outras palavras acontece justamente o contrário. Nesse contexto, se tomarmos como critério a relevância prática do significado de uma palavra para a construção de nossa visão de mundo, poucas palavras do nosso vocabulário são capazes de rivalizar a justiça. Mesmo uma reflexão superficial sobre a justiça é suficiente para perceber que ela está intimamente ligada à filosofia, à ética, à política, ao Direito, à sociologia e à cultura. Em função disso, não é exagero algum afirmar que o modo como compreendemos a justiça constitui a nossa própria visão sobre como a sociedade deve funcionar. No entanto, a despeito de compartilharmos tal crença, quando passamos a tratar sobre a questão da definição, bem como do conteúdo da justiça, logo percebemos que existe muito menos consenso do que o desejado. Para piorar ainda mais a situação, o senso comum geralmente não se dá ao trabalho de examinar mais detidamente a justiça. Agora, se o conceito de justiça é um elemento essencial da nossa concepção sobre como a sociedade deveria ser e não há uma compreensão apurada sobre a justiça, conclui-se que a nossa própria visão sobre como a sociedade deveria ser acaba sendo superficial e irrefletida. Com o objetivo de lançar luz sobre a questão da definição da justiça, a primeira coisa que precisa ficar assentada é que ela é um conceito polissêmico, isto é, possui uma série de significados. A segunda coisa é saber algumas das acepções mais importantes da palavra em questão. Para tal, propõe-se a análise das seguintes acepções: � justiça substantiva; � justiça legal; � justiça distributiva; � justiça social; � justiça corretiva; � justiça punitiva. Justiça substantiva A acepção substantiva da justiça está intimamente ligada à ideia de Direito Natural. Em tal acepção, ela é entendida fundamentalmente como algo que possui valor absoluto. Nesse contexto, entre as suas marcas distintivas, é possível citar a ideia de que ela é universal e independente de qualquer determinação legal expressa, servindo inclusive como critério de avaliação das normas jurídicas. Além disso, é importante deixar claro que a justiça substantiva independe de avaliações subjetivas e particulares, sendo, portanto, completamente objetiva. Direito e justiça2 A justiça substantiva não é especificamente identificada com aquilo que cada um pensa no seu íntimo sobre justiça, mas com aquilo que todos necessariamente deveríamos pensar que a justiça é em si mesma. Assim, quando dizemos que uma lei X ou Y é injusta, se nos valemos da ideia de que todo e qualquer ser humano deveria considerá-la injusta, estamos nos valendo da ideia de justiça substantiva para justificar nossa posição. Se pretendemos ir um pouco mais a fundo no conceito de justiça substantiva, sobretudo no que diz respeito à questão da sua fonte originária, cabe uma distinção entre a justiça substantiva racional e a justiça substantiva divina. Enquanto a justiça substantiva racional identifica na própria razão humana a fonte última da justiça, a justiça substantiva divina considera que a justiça se origina dos designíos de Deus (ou de um panteão de deuses). No início do século passado, por uma série de razões que vieram a culminar na descrença nos valores absolutos, a própria existência da justiça substantiva foi colocada em xeque (juntamente com a ideia de Direito Natural). Entre eles, é possível citar a dificuldade em se obter qualquer consenso teórico acerca do que poderia contar como algo absolutamente justo. Isso se refletiu no contexto da filosofia do Direito com a ascensão do positivismo jurídico, bem como na ideia de que o Direito está ligado à ordem social, de modo que a própria questão sobre se uma lei é ou não injusta sequer poderia ser colocada, pois não teria qualquer sentido. Justiça legal A justiça legal é aquela que decorre do ordenamento jurídico do Estado, de modo que, enquanto a justiça substantiva é independente de deliberação legislativa, a marca distintiva da justiça legal é justamente ser dependente de um ato legislativo que a estipula ou convenciona. Além disso, considera-se que a justiça é realizada no contexto da aplicação das leis ao caso concreto. Dessa forma, torna-se possível compreender que a ideia de justiça está intimamente ligada à noção de legalidade. Nesse contexto, se uma ação é permitida pelo ordenamento jurídico, ela é considerada justa, ao passo que, se ela é proibida pelo ordenamento jurídico, ela é considerada injusta. 3Direito e justiça Justiça distributiva A justiça distributiva entra em cena no contexto da distribuição de ônus e bônus para aqueles que fazem parte do Estado. Ou seja, se estamos lidando com a questão sobre como os bens, honrarias, encargos ou obrigações serão distribuídos entre os indivíduos, estamos falando de justiça distributiva. Tendo isso em mente, torna-se possível compreender que tal acepção de justiça depende da existência de uma relação hierárquica ou de subordinação entre aqueles que distribuem os encargos ou os benefícios e aqueles que os recebem. Portanto, a justiça distributiva não é apenas vertical, mas também trata de uma relação de cima para baixo. Além de algo para ser distribuído, alguém que distribua e alguém que receba, para que tal justiça possa ser efetivada, é necessário adotar também algum critério de distribuição. É justamente em função da aplicação do critério ao caso concreto que a justiça distributiva é realizada. Quanto a isso, é possível encontrar na literatura acerca do tema pelo menos três: � o critério baseado na igualdade formal; � o critério baseado na distribuição proporcional; � o critério baseado no mérito. Com base no critério da igualdade formal, a distribuição é feita de modo fundamentalmente aritmético, de forma que todos os membros da sociedade devem possuir encargos e benefícios equivalentes. Por exemplo, todos deveriam pagar a mesma quantidade de impostos, independentemente de diferenças nas suas rendas. No caso do critério da distribuição proporcional, o fundamento último da distribuição é a necessidade. Nesse contexto, tendo em vista a ideia de igualdade material, considera-se que os iguais devem receber igualmente e os desiguais devem receber desigualmente, na medida da sua desigualdade. Por exemplo, os indivíduos deverão pagar impostos de modo proporcional às suas rendas. Por fim, com base no critério do mérito, o fundamento da dis- tribuição é inteiramente dependente do esforço. Tendo isso em mente, aquelesque produzem mais devem receber mais do que aqueles que produzem menos. Justiça social Contemporaneamente, muito se discute acerca da justiça social. Embora tal acepção de justiça parta da noção de justiça distributiva vinculada ao critério da distribuição proporcional, é correto dizer que ela não se resume apenas a Direito e justiça4 isso. Além da busca pela redução das desigualdades no campo econômico, ela também abrange a ideia de inclusão social de grupos desfavorecidos, como, por exemplo, as mulheres, os negros ou os homossexuais. Para promover a justiça social, o Estado seria responsável por editar uma série de leis com o objetivo de proteger tais grupos, tendo em vista a redução de tais desigualdades. Justiça corretiva A justiça corretiva, cuja significação está intimamente ligada à igualdade, entra em cena no contexto da reparação de abusos nas relações entre indiví- duos, ou seja, ela diz respeito ao restabelecimento de um estado de igualdade infringido em função de algo injusto (por exemplo, uma quebra de contrato). Se a justiça distributiva se caracteriza em função de uma relação assimétrica ou vertical entre os seus polos, a justiça corretiva tem como marca distintiva a horizontalidade, isto é, a ideia de que os polos da relação estão em uma relação de coordenação entre si, sendo de ordem tipicamente civil. Além disso, a justiça corretiva é basicamente objetiva e formal. Isto é, via de regra, ela não leva em consideração as peculiaridades ou aspectos subjetivos dos indivíduos — ela parte do princípio que eles são formalmente idênticos. Assim, por exemplo, de modo simplificado, se alguém viola as cláusulas estipuladas em um contrato de compra e venda, e não paga o valor acertado, a justiça corretiva viria com o seu pagamento. Justiça punitiva Na base da justiça punitiva, cuja ordem é penal, está a simples ideia de que as infrações devem ser punidas de algum modo. Se, no contexto da justiça distributiva, existe uma divergência a respeito de qual critério de distribuição deve ser seguido, no caso da justiça punitiva, a questão gira em torno do seu conteúdo, bem como da sua finalidade. Nesse contexto, é possível apresentar pelo menos duas concepções da justiça punitiva: a justiça retributiva e a justiça como maximização do bem-estar. Se a justiça punitiva carrega a ideia de retribuição, o objetivo é fazer com que o infrator seja punido de modo proporcional ao dano que ele causou. A título de exemplo de tal concepção, temos a famosa lei do talhão, cuja for- mulação original é “olho por olho, dente por dente”. Do que resulta uma ideia da justiça punitiva como algo que tem por finalidade algo muito próximo da vingança, pois ela seria realizada com base no sofrimento proporcional ao dano cometido pelo infrator. Se, contemporaneamente, a ideia do talhão foi 5Direito e justiça abandonada em nome de questões ligadas aos direitos humanos, a própria noção de justiça punitiva como retribuição passou a ser traduzida em termos de penas privativas de liberdade. Por outro lado, se a justiça punitiva tem como ideia a maximização do bem-estar, no lugar de buscar o sofrimento proporcional do infrator, ela busca tanto modos alternativos para que o infrator compense os seus delitos quanto educá-lo para que não os cometa novamente. Nesse contexto, a ideia é que um crime está muito mais ligado à ignorância ou à falta de oportunidades do infrator do que à sua vontade propriamente dita de cometer delitos. Assim, o que se visa é, sobretudo, à reabilitação dos infratores, para que eles possam compreender as leis e receber oportunidades para que não venham a infringi- -las novamente. Relação entre Direito e justiça A questão da relação entre o Direito e a justiça é muito mais elaborada do que o senso comum pode fazer parecer. Para compreender a complexidade do assunto, basta perceber que, muitas vezes, o Direito é visto como fun- damentalmente idêntico à justiça; outras vezes a justiça é vista como razão de ser ou finalidade do Direito. Também não é raro pensar que a justiça é o fundamento de validade das leis do ordenamento jurídico. Vejamos cada uma das ideias separadamente. Relação de identidade A ideia de que Direito e justiça são sinônimos pode significar duas coisas radicalmente distintas. Em um primeiro caso, é um modo de expressar literalmente a ideia segundo a qual as duas palavras significam a mesma coisa. A despeito de maiores considerações, não é difícil perceber que tal consideração consiste em uma compreensão irrefletida e infértil da relação entre ambas, pois ela ignora completamente as especificidades inerentes a cada uma das palavras. Em um segundo caso, e de modo mais sofisticado, a defesa da equivalência entre Direito e justiça pode ser extraída como uma conclusão da posição juspositivista. Nesse contexto, dado que não existe propriamente uma justiça substantiva e que tudo que há é a justiça legal, o Direito e a justiça — na sua Direito e justiça6 acepção legal — poderiam ser vistos como termos equivalentes. Isto é, Direito e justiça seriam equivalentes em função da consideração de que não existiria propriamente justiça fora do contexto jurídico. Com efeito, dizer que algo é justo seria um sinônimo de lícito, ao passo que dizer que algo é injusto seria um sinônimo de ilícito. Quanto à compreensão da relação entre Direito e justiça, é interessante perceber que ela tem como contrapartida a ideia de que, se tomamos como referência a acepção substantiva da justiça, então não existiria qualquer rela- ção entre Direito e justiça. Afinal de contas, se não existe algo que pode ser chamado de justiça substantiva, então o Direito sequer poderia ter alguma relação com isso. Nesse contexto, há alguns corolários importantes acerca da questão da finalidade do Direito que precisamos discutir, junto com o seu fundamento de validade. Se não existe justiça substantiva, evidentemente o Direito não poderia ter como finalidade a sua concretização. Nesse caso, a questão da finalidade do Direito geralmente está ligada à manutenção da ordem. Assim, ao regular certas condutas, não apenas prevendo penas para os transgressores, como também podendo fazer uso da força para coagir os cidadãos, torna-se possível compreender que Direito de um Estado tem por finalidade garantir a estabi- lidade, a segurança jurídica e a previsibilidade nas relações. No caso da questão acerca do fundamento de validade das normas, também é evidente que, se não é possível falar em uma justiça de ordem superior, então a própria ideia de que as leis poderiam buscar a validade nisso torna-se indisponível. A alternativa encontrada é vincular a questão da validade das normas aos próprios procedimentos empregados para a sua produção. Assim, evita-se buscar uma resposta para a indagação da validade em elementos externos ao próprio Direito. Relação de finalidade Em outro registro, a relação entre Direito e justiça é estabelecida por meio da ideia segundo a qual a primeira é um meio para se obter a segunda. Isto é, o Direito tem um caráter instrumental e tem como finalidade justamente a concretização da justiça. Em geral, é basicamente isso que temos em mente quando dizemos que a justiça é a razão de ser do Direito. Nesse caso, há, ainda que implicitamente, uma correlação da ideia de justiça com a noção de Direito Natural, do que resulta a ideia segundo a qual, se tomamos a justiça 7Direito e justiça como a finalidade do Direito, estamos de algum modo comprometidos com a existência de uma justiça substantiva. Em uma linha alternativa, também podemos pensar que as mais diversas acepções da justiça conformam o próprio conteúdo das leis de um ordenamento jurídico. A título de exemplo, podemos pensar na justiça distributiva. Supo- nhamos que o espírito que anima as leis de uma dada sociedade é embasado no critério da igualdade formal. Nesse caso, não será difícil inferir que o próprio ordenamento jurídico terá um viés mais liberal,visando, sobretudo, à busca por liberdades individuais como, por exemplo, o Direito à propriedade. Contrariamente, se a finalidade por trás do Direito for propiciar a justiça distributiva condicionada a um critério material, então as leis terão um caráter mais voltado para a prestação positiva do Estado. Relação de fundamentação Vinculada à ideia de que a justiça é a finalidade do Direito, também temos a ideia de que a justiça se relaciona com o Direito na medida em que serve como o seu fundamento de validade. Nesse caso, mais do que dizer que o Direito tem por objetivo a concretização da justiça, temos que ela garante a própria validade das leis do ordenamento jurídico. Assim, se uma norma qualquer não está de acordo com a justiça, então ela sequer pode ser considerada uma lei. Quanto a isso, não é difícil compreender que, ao tomar a justiça como critério de validade do Direito, estamos necessariamente assumindo uma posição jusnaturalista acerca do Direito. A título de esclarecimento, é interessante notar que, mesmo que as ideias de que a justiça como finalidade do Direito sejam assemelhadas, de modo algum elas não podem ser consideradas exatamente a mesma coisa. Enquanto a ideia de que a justiça é a finalidade do Direito possa ser tratada como uma condição necessária para que aquela seja fundamento de validade desta, isso, por si só, não é suficiente. Portanto, é necessária a ideia adicional de que uma lei só é válida se, e somente se, tem em vista a justiça. Nesse contexto, é perfeitamente concebível que alguém defenda que a justiça é a finalidade do Direito sem com isso se comprometer com a ideia de que constitui a sua própria validade. Direito e justiça8 Não é segredo que as leis são feitas de uma perspectiva geral e abstrata. Nesse con- texto, para que ela seja aplicada ao caso concreto, é necessária a atividade do juiz. Se é verdade que existem casos em que a questão da aplicação da lei é cristalina e não suscita qualquer margem para decisões divergentes, nem sempre esse é o caso, pois existem situações em que não existe consenso acerca de como a lei deve ser efetivamente aplicada. Em função disso, não é tão incomum que processos com fatos e causas de pedir similares gerem decisões muito distintas. Sem entrar em detalhes sobre os eventuais problemas para a segurança jurídica, tampouco sobre os modos de evitar esse tipo de situação, chamamos a sua atenção para o fato de que, assim como qualquer pessoa, um juiz também tem as suas convicções subjetivas e particulares. Quando ele vai julgar certo caso e a lei acaba dando alguma margem para interpretação, não é difícil compreender que ele acabe por utilizar as suas próprias convicções para proferir o julgamento. Tais convicções consistem ou são explicadas em função da própria concepção de justiça do julgador. Assim, se as concepções subjetivas de justiça do julgador podem desempenhar um papel na aplicação da lei ao caso concreto, então é inegável a existência de certa relação entre a justiça — tal qual entendida por aquele que aplica a lei — e a própria aplicação da lei. A justiça equitativa de John Rawls John Rawls (1921 d.C.–2002 d.C) é um dos maiores nomes da filosofia política do último século. A sua obra mais importante é Teoria da Justiça, lançada em 1971. Em tal obra, ele apresenta uma teoria sistemática e construtiva da justiça embasada na ideia de equidade. Inicialmente, é importante destacar que, em função das ideias de Rawls, tornou-se possível uma reinvenção das próprias bases do debate acerca da filosofia política, pois, antes dele, de modo simplificado, a filosofia política se resumia a um embate entre aqueles que defendiam e aqueles que se opunham ao utilitarismo. Um dos grandes méritos dele, portanto, consiste em fazer a passagem da filosofia política que gira em torno do utilitarismo para a filosofia política que coloca a questão da justiça no centro do debate. Tendo isso em mente, é importante notar, acerca da teoria da justiça de Rawls, que ela não trata especificamente da questão da justiça no contexto 9Direito e justiça das relações interpessoais, mas tem por finalidade aplicar-se às instituições mais importantes, que definem a estrutura básica da sociedade, isto é, “[...] a constituição política e os principais acordos econômicos e sociais” (RAWLS, 2000, p. 8). Nesse contexto, é um pressuposto do seu pensamento que a justiça desempenha em teorias políticas o mesmo papel que é desempenhado pela verdade em teorias científicas. Quanto a isso, ele afirma: A justiça é a primeira virtude das instituições sociais, como a verdade o é dos sistemas de pensamento. Embora elegante e econômica, uma teoria deve ser rejeitada ou revisada se não é verdadeira; da mesma forma leis e instituições por mais eficientes e bem organizadas que sejam, devem ser reformadas ou abolidas se são injustas (RAWLS, 2000, p. 4). Ou seja, enquanto a verdade é o resultado pretendido por teorias que visam explicar a realidade, a justiça é o que se busca com as instituições e as leis de uma dada sociedade. Assim, se uma teoria que pretende explicar a realidade não consegue o fazer, então ela não é uma boa teoria, ao passo que, se uma sociedade é regida por instituições e leis injustas, então tais instituições e leis não são boas. Com base nisso, é possível apresentar o projeto filosófico de Rawls como, de um lado, uma busca pelos princípios que devem ser aplicados à sociedade — a fim de que ela possa ser considerada efetivamente justa — e, de outro lado, a defesa dos métodos e critérios empregados por ele na sua investigação. Apesar de não ser difícil entrar em acordo sobre a ideia de que as insti- tuições básicas da sociedade devem ser estruturadas em função da justiça, isso não significa que haja qualquer consenso prático sobre quais são efetiva- mente esses princípios. Nesse ponto, a título de exemplo, basta lembrar que, na sessão inicial deste capítulo, apresentamos três critérios concorrentes e inteiramente defensáveis para completar a ideia de justiça distributiva. Assim, um dos grandes desafios enfrentados em Teoria da Justiça é justamente a questão do método ou critério empregado para a obtenção dos princípios da justiça. A compreensão da estratégia empregada por Rawls para extrair os seus princípios da justiça, bem como a própria ideia que justifica a noção de justiça como equidade, passa pela noção de contrato social estabelecido em uma “posição original”. Na teoria política, a ideia do contrato social surge a propósito da questão acerca da legitimação da existência do Estado. De modo geral, segundo a Direito e justiça10 concepção clássica, cujos principais expoentes foram Thomas Hobbes, John Locke e Jean-Jacques Rousseau, antes de o homem se organizar em socie- dade e constituir um Estado, ele vivia em um estado de natureza. Tal estado de natureza era marcado pelas guerras (Hobbes), pela insegurança jurídica (Locke). Em função disso, para evitar as guerras, a insegurança jurídica, a corrupção e a opressão, os homens concebem uma espécie de contrato social que estabelece a figura do Estado. Graças a isso, torna-se possível compreender a ideia de que o surgimento do Estado está ligado à garantia e à manutenção da própria ordem social. Dito isso, em primeiro lugar, é importante deixar claro que, diferentemente dos contratualistas clássicos, que propõem a ideia de contrato para superar as adversidades do estado de natureza, Rawls utiliza a ideia de contrato para estabelecer os princípios que devem ser utilizados para construir as bases da sociedade. Além disso, em segundo lugar, Rawls não está preocupado em utilizar a noção de contrato social para dar conta da questão acerca da origem do Estado, mas com o resultado de um certo experimento mental hipotético. É justamente nesse contexto que surge a ideia de posição original. Quanto a isso, Rawls deixa claro que: [...] essa posição não é, obviamente, concebida como uma situação históricareal, muito menos como uma condição primitiva da cultura. É entendida como uma situação puramente hipotética caracterizada de modo a conduzir uma certa concepção de justiça (RAWLS, 2000, p. 13). De modo simplificado, a posição original seria um momento anterior à constituição efetiva de um Estado cujos futuros membros discutiriam acerca dos princípios básicos de justiça que seriam utilizados para estruturá-lo. Dito isso, para compreender a ideia que fundamenta a própria noção de justiça equitativa, faz-se necessário introduzir a noção de véu da ignorância. Nas palavras de Rawls, acerca da posição original vinculada à noção de véu da ignorância, temos que: Entre as características essenciais dessa situação está o fato de que ninguém conhece seu lugar na sociedade, a posição de sua classe ou o status social e ninguém conhece sua sorte na distribuição de dotes e habilidades naturais, sua inteligência, força, e coisas semelhantes. Eu até presumirei que as partes não conhecem suas concepções de bem ou suas propensões psicológicas particulares (RAWLS, 2000, p. 13). 11Direito e justiça A ideia por trás do véu da ignorância é trazer isenção na decisão do con- trato social estipulado pelos seus membros, de modo que aqueles que estão debatendo sobre os princípios de justiça que serão aplicados na sociedade não sabem quais exatamente serão as suas posições nesta. Isto é, eles não sabem se nascerão mulheres ou homens, negros ou brancos, heterossexuais ou homossexuais, ricos ou pobres, com ou sem talentos naturais, saudáveis ou doentes, inteligentes ou ignorantes, etc. Em função disso, há uma pressuposição de que todos decidiriam com isenção sobre os princípios extraídos por meio do debate — e que serão aplicáveis às instituições mais importantes que regerão a sociedade —, seriam tão justos quanto possível. Tendo isso em mente, torna-se possível compreender a própria ideia por trás da nomenclatura oferecida por Rawls para a sua teoria da justiça, pois, da associação da ideia da posição original com a do véu da ignorância, ele considera que os princípios que serão extraídos do debate serão equitativos. Nas suas palavras: “uma vez que todos estão numa situação semelhante e ninguém pode designar princípios para favorecer sua condição particular, os princípios da justiça são o resultado de um consenso ou ajuste equitativo” (RAWLS, 2000, p. 13). De modo que, se, por exemplo, ninguém sabe se será um homem ou uma mulher, não seria prudente priorizar qualquer um deles no estabelecimento dos princípios de justiça das instituições sociais. Tendo apresentado o cenário do seu experimento, Rawls defende que, dado o véu da ignorância na posição original, chegaríamos a dois princípios de justiça para estruturar as instituições básicas do Estado: Primeiro: cada pessoa deve ter um Direito igual ao mais abrangente sistema de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para as outras. Segundo: as desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal modo que sejam ao mesmo tempo (a) consideradas como vantajosas para todos dentro dos limites do razoável, e (b) vinculadas a posições e cargos acessíveis a todos (RAWLS, 2000, p. 64). Dito isso, torna-se possível compreender que, enquanto o primeiro princí- pio trata da questão da liberdade, o segundo princípio se subdivide em duas partes, abordando tanto a questão da diferença quanto a da oportunidade justa. Vejamos cada um com um pouco mais de detalhes. Direito e justiça12 Princípio da liberdade. Segundo Rawls (2000), se levamos em consideração as especificidades da posição original, o primeiro princípio que acordaría- mos consistiria na ideia de que todos devem possuir um amplo conjunto de liberdades básicas iguais para todos. Caso contrário, estaríamos diante do seguinte dilema: ou deveríamos aceitar que algumas pessoas viriam a possuir menos liberdades do que outras, ou deveríamos aceitar que todos membros da sociedade possuiriam um conjunto restrito de liberdades. Enquanto o primeiro caso seria indesejável por constituir um grande risco para aqueles que não sabem qual exatamente será a sua posição efetiva na sociedade, o segundo caso seria indesejável, pois todos acabariam perdendo. Princípio da diferença. A ideia por trás do princípio da diferença é relati- vamente simples. O Estado só estaria autorizado a intervir caso o sistema de liberdades estivesse contribuindo para aumentar as desigualdades entre os membros da sociedade. Nesse caso, políticas interventivas só seriam aceitáveis se tivessem por objetivo melhorar a situação de todos, em especial daqueles que estivessem em piores condições. Dito isso, torna-se possível compreender que, por exemplo, de um ponto de vista econômico, o princípio da diferença não viria para proibir o livre mercado na sociedade, adotando um sistema de economia planificada, mas apenas regularia aquilo que viesse a contribuir para o aumento das desigualdades. Princípio da oportunidade justa. No cerne do princípio da oportunidade justa está a ideia de paridade de condições para os membros da sociedade, de forma que todos possam ingressar em cargos ou posições. Quanto a isso, é interessante destacar que Rawls não está se comprometendo com a adoção de políticas estatais assistencialistas, pois, segundo ele, tais políticas não vêm especificamente para gerar a independência dos menos favorecidos, mas para torná-los permanentemente dependentes delas. Nesse ponto, o objetivo seria, sobretudo, desenvolver políticas que permitam que os mem- bros desfavorecidos da sociedade possam chegar a um ponto que as tornem desnecessárias. 13Direito e justiça RAWLS, J. Uma teoria da justiça. Martins fontes: São Paulo, 2000. Leituras recomendadas ABBAGNANO, N. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007. BITTAR, E. C. B., ALMEIDA, G. A. de. Curso de filosofia do Direito. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2015. COMPARATO. K. F. A afirmação histórica dos direitos humanos. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. FERRAZ JÚNIOR, T. S. Introdução ao estudo do Direito: técnica, decisão dominação. São Paulo: Atlas: 1990. MASCARO, A. L. Filosofia do Direito. São Paulo: Atlas, 2016. MORRIS, C. Os grandes filósofos do Direito: leituras escolhidas em direito. São Paulo: Martins Fontes, 2002. NADER, P. Filosofia do Direito. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012. NADER, P. Introdução ao estudo do Direito. 24. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. REALE, M. Introdução à filosofia. São Paulo: Saraiva, 2015. REALE, M. Lições preliminares de Direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. VILLEY, M. Filosofia do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2008. Referência Direito e justiça14 Encerra aqui o trecho do livro disponibilizado para esta Unidade de Aprendizagem. Na Biblioteca Virtual da Instituição, você encontra a obra na íntegra. Conteúdo:
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