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Revista Jurídica Eletrônica Direito, Sociedade e Desenvolvimento – maio-outubro/2013 Coordenação : Professor Pós-Doutor Antônio Pereira Gaio Júnior Edição: Guilherme Fernandes da Cunha Corrêa Bandeira e Livia Guida Antonío 85 Revista Jurídica Eletrônica Volume 1 - Nº 1 - Ano 2013 Instituto de Três Rios O NÚCLEO MORAL DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: DIGNIDADE HUMANA THE CORE MORAL OF THE CONSTITUTION OF THE STATE OF DEMOCRATIC RIGHTS: HUMAN DIGNITY Márcio Gil Tostes dos Santos * RESUMO A compreensão do núcleo moral do Estado Democrático de Direito passa pela evolução do Constitucionalismo Liberal e do Social realizada em paralelo com o marco teóricos filosóficos do Direito então vigente, os positivismos exegético e normativista. O vazio moral do Direito daquela época favorecia sua interpretação e preenchimento de acordo com as ideologias políticas e morais dominantes, como o nazismo. Como resposta ao uso do Direito como mero instrumento para legitimar atrocidades surge após a segunda guerra mundial o Constitucionalismo Contemporâneo, cujo marco teórico é o pós-positivismo. Neste o Direito e a Moral se tornam cooriginários estabelecidos a partir de Constituições normativas, daí em diante o Direito é autônomo porque não mais sujeito à influência de morais exógenas, afinal, agora ele possui conteúdo moral próprio, a Dignidade Humana. Palavras-chave: Constitucionalismo Contemporâneo. Pós-positivismo. Estado Democrático de Direito. Dignidade Humana. ABSTRACT Understanding the moral core of the democratic rule-of-law state involves evolution of Liberal and Social Constitutionalism held in parallel with the philosophical theorists of law then in force, the exegetical and normative positivism. The moral void the law of that time favored the interpretation and fulfillment in accordance with the prevailing moral and political ideologies, such as nazism. In response to the use of law as a mere instrument to legitimize atrocities arises after the second world war Contemporary Constitutionalism, whose theoretical framework is the post-positivism. This Law and Moral cooriginários become established from normative constitutions, thereafter the law is autonomous because they no longer subject to the moral influence of exogenous, after all, now he has moral content itself, Human Dignity. * Mestre em Direito Público. Professor de Direito Constitucional e Direito Administrativo, Advogado Publicista Revista Jurídica Eletrônica Direito, Sociedade e Desenvolvimento – maio-outubro/2013 Coordenação : Professor Pós-Doutor Antônio Pereira Gaio Júnior Edição: Guilherme Fernandes da Cunha Corrêa Bandeira e Livia Guida Antonío 86 Revista Jurídica Eletrônica Volume 1 - Nº 1 - Ano 2013 Instituto de Três Rios Keywords: Contemporary Constitutionalism. Post-positivism. Democratic rule-of-law state. Human Dignity. 1. INTRODUÇÃO O Constitucionalismo Contemporâneo tem como marco teórico-filosófico o pós- positivismo que é responsável por rematerializar as Constituições oriundas do pós-segunda guerra, nelas inserindo a Dignidade da Pessoa Humana e extenso rol de Direitos Fundamentais, visando aproximar o Direito e Moral separados pelo positivismo jurídico, na realidade os torna cooriginários. A compreensão da atual realidade exige considerações sobre as duas primeiras fases do constitucionalismo, o liberal e o social, e dos marcos teórico-filosóficos do Direito de suas épocas, o positivismo legalista e o normativista. Por esta via será possível visualizar o papel das Constituições e as razões de sua baixa normatividade, bem como a ausência de autonomia do Direito dada a separação dele e da Moral, O novo constitucionalismo tem inicio na Europa a partir do início da segunda metade do século XX e tem como um dos pontos fulcrais a constitucionalização da Dignidade Humana como resposta às atrocidades praticadas pelo nazifascismo e ditaduras pelo mundo, esta viabilizada por um Direito dissociado da moral que permitiu a criação de normas ou interpretação das mesmas segundo valores dum juiz ou partido. Dado o conteúdo moral das Constituições, entre eles a Dignidade Humana, o Direito e a Moral de tornam cooriginários, porquanto trata-se de agora em diante de Constituições normativas, posicionadas no centro do Ordenamento Jurídico de onde é irradiado o conteúdo do Direito a ser criado ou interpretado, que só serão legítimos se acorde com o Constitucional, logo se de acordo com o conteúdo moral-jurídico da mesma. 2. POSITIVISMO E CONSTITUIÇÃO. O constitucionalismo nas palavras de Canotilho é “a teoria (ou ideologia) que ergue o princípio do governo limitado indispensável à garantia dos direitos em dimensão estruturante da organização político-social de uma comunidade.” 1 Ou, conforme Streck, é “ movimento teórico jurídico-político em que se busca limitar o exercício do Poder a partir da concepção de mecanismos aptos a gerar e garantir o exercício da cidadania”2 Em uma perspectiva histórico-evolutiva o constitucionalismo moderno conheceu três momentos, o liberal, o social e o contemporâneo. Cada um destas configurações foi deflagrada pelo período histórico antecedente objetivando superá-lo, seja pela eliminação ou aperfeiçoamento de elementos àqueles inerentes. Desta forma o Constitucionalismo 1 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 6 ed. Coimbra: Livraria Almedina, 2002. p.51. 2 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p.37 Revista Jurídica Eletrônica Direito, Sociedade e Desenvolvimento – maio-outubro/2013 Coordenação : Professor Pós-Doutor Antônio Pereira Gaio Júnior Edição: Guilherme Fernandes da Cunha Corrêa Bandeira e Livia Guida Antonío 87 Revista Jurídica Eletrônica Volume 1 - Nº 1 - Ano 2013 Instituto de Três Rios contemporâneo ao originar o Estado Democrático de Direito objetiva a superação e aperfeiçoamento do anterior Estado Social de Direito, fruto do constitucionalismo social, assim como este, por sua vez, procedeu em relação ao Estado de Direito oriundo do constitucionalismo liberal que, por fim, adveio como resposta ao Estado absolutista. Marco histórico do Constitucionalismo Liberal é a concepção das Constituições liberais dos Estados Unidos da América de 1787, ainda vigente, e da Polônia e da França, ambas de 1791; já o Constitucionalismo social tem como marco a Constituições Mexicana de 1917, da Rússia de 1918 e de Weimar de 1919. Na sequencia serão feitos apontamentos sobre os marcos teórico filosóficos destas duas fases do constitucionalismo, o positivismo exegético ou legalista e o normativista. No século XIX o positivismo como postura científica é elemento dominante, positivo seria tudo aquilo passível de ser mensurado medido ou definido por meio de um experimento. Transportado para o direito o positivismo jurídico caracterizou-se pela pretensão de criar uma ciência jurídica com características semelhantes às ciências exata e natural, e nesta busca pela objetividade científica, acentuada na realidade observável e não na especulação filosófica, o direito encontra seu objeto, sua mensurabilidade positiva, nos atos emanados pelos parlamentos, as leis, mais especificamente nos Códigos, tornando o direito apenas norma, afastando com isto elementos extrínsecos à mesma. 3 Bobbio, Matteucci e Pasquino aduzem que “transposto o direito racional para o código, não se via nem admitiaoutro direito se não este. O recurso a princípios e normas extrínsecos ao sistema, a do direito positivo foi considerado ilegítimo” 4 Havia pretensão de que os códigos cobrissem toda realidade fática, como se fosse possível ao legislador a todas prever. Esta pretensa autossuficiência dos Códigos de cobrir toda realidade fática sem a necessidade de lançar mão de elementos exógenos se mostrou inviável, mas àquela altura era inadmissível um “retrocesso” com a destruição daquela obra, bem como a inserção de elementos metafísicos na interpretação do Direito. A solução seria dada num primeiro momento pela análise da própria codificação, originando assim na França a escola da exegese e na Alemanha a jurisprudência dos conceitos, iniciando o que Streck 5 menciona como sendo positivismo primevo, exegético ou legalista. O termo exegese, cujo significado é conduzir para fora, deixa claro a metodologia de interpretação a ser aplicada que se caracterizava em examinar artigo por artigo, tendo como parâmetro o conteúdo gramatical, os termos e frases da lei, com isso havia o isolamento da norma de seu contexto histórico-social. O juiz não procedia a interpretações que alargassem o sentido daquelas leis, porque se assim o fizessem estaria usurpando a função legislativa, enfim, caberia ao juiz apenas interpretação literal, ser o boca da lei. Importante perceber no século XIX o direito foi aplicado sob a ótica da racionalidade, esta manifestada nas operações lógicas para deduzir da norma geral a 3 STRECK, Lenio Luiz..Aplicar a “Letra da Lei” é uma Atitude Positivista?. Revista Novos Estudos Jurídicos – Eletrônica, vol 15, n.1, p. 158-173, jan∕abr 2010. 4 BOBBIO, Norberto, MATTEUCCI, Nicola e PASUINO, Gianfranco. Dicionário de Política, 3 ed. Brasília: Editora UNB,1986. p.659 5 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011. Revista Jurídica Eletrônica Direito, Sociedade e Desenvolvimento – maio-outubro/2013 Coordenação : Professor Pós-Doutor Antônio Pereira Gaio Júnior Edição: Guilherme Fernandes da Cunha Corrêa Bandeira e Livia Guida Antonío 88 Revista Jurídica Eletrônica Volume 1 - Nº 1 - Ano 2013 Instituto de Três Rios individual aplicável ao caso concreto, procedendo, assim, a subsunção; o que leva Losano 6 afirmar que naquele século as leis da lógica eram tidas como leis naturais descobertas pela razão humana, por isto para o jurista do século XIX a lógica era, portanto, o instrumento principal para interpretação de uma norma. Já a segunda fase do positivismo, o normativista emerge num cenário no qual os modelos de interpretação dos códigos próprios do exegetismo se tornaram insuficientes e desgastados, levando ao surgimento de movimentos como o “Direito Livre” (livre do vínculo com a norma) e, a dele dissidente “jurisprudência dos interesses”, capitaneada por Philipp Heck, que favoreciam o aparecimento de argumentos ideológicos, políticos, psicológicos ao interpretar o direito. Se no século XIX o Direito foi aplicado sob a ótica da racionalidade, já no final daquele século e inicio do XX há a substituição da razão pela vontade, o que acarreta uma inversão na relação entre lei e as decisões judiciais, pois estas deixam de ser fruto das leis da lógica para se tornarem resultado dum ato volitivo, não necessariamente racional, do magistrado. É neste cenário que advém a proposta de Hans Kelsen 7 de criar uma teoria geral do direito e assim apresenta a Teoria Pura do Direito, de forma a resgatar a tradição positivista construída pela jurisprudência dos conceitos, expurgando da interpretação do Direito os elementos a ele exógenos trazidos Movimento do Direito Livre e pela Jurisprudência dos Interesses, que embora dessem maior autonomia ao magistrado, fortalecia a desconstrução do rigor jurídico levando baixa cientificidade do direito. No capítulo VIII de Teoria Pura do Direito Kelsen 8 deixa assente que o texto normativo admite uma margem de indeterminação permissionária duma pluralidade de significados, seria ele uma moldura continente de diversas possibilidades de aplicação. Estas possibilidades seriam indicadas pela doutrina ao através das chamadas proposições, que uma vez aplicada por autoridade competente - juiz – se tornaria uma norma jurídica. O Direito a aplicar forma, em todas estas hipóteses, uma moldura dentro da qual existem várias possibilidades de aplicação, pelo que é conforme ao Direito todo ato que se mantenha dentro deste quadro ou moldura, que preencha esta moldura em qualquer sentido possível 9 . Em outras palavras, o ato de escolher dentre as múltiplas interpretações é discricionário e, por isso, só cabe à consciência do aplicador do direito. Entretanto, se o órgão aplicador realizar interpretações não condizentes com as proposições verdadeiras ou que crie novo entendimento não respaldado pela ciência do Direito, será inválido, mas caso se o equívoco não for reparado pelas instâncias superiores, ao transitar em julgado aquela decisão não haverá mais espaço para discutir sobre validade, afinal a criação de normas é ato de vontade do órgão estatal. A propósito importa notar que, pela via da interpretação autêntica, quer dizer, da interpretação de uma norma pelo órgão jurídico que a tem de aplicar, não 6 LOSANO, Mario G. Sistemas e Estrutura no Direito, o século XX. Trad. Luca Lamberti. São Paulo: Martins Fontes, 2010. vol 2. 7 KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. Trad João Baptista Machado. 6ed. São Paulo: Martins Fontes,1998 8 Op.cit 9 ibid. p. 390 Revista Jurídica Eletrônica Direito, Sociedade e Desenvolvimento – maio-outubro/2013 Coordenação : Professor Pós-Doutor Antônio Pereira Gaio Júnior Edição: Guilherme Fernandes da Cunha Corrêa Bandeira e Livia Guida Antonío 89 Revista Jurídica Eletrônica Volume 1 - Nº 1 - Ano 2013 Instituto de Três Rios somente se realiza uma das possibilidades reveladas pela interpretação cognoscitiva da mesma norma, como também se pode produzir uma norma que se situe completamente fora da moldura que a norma a aplicar representa. 10 Por isso Streck 11 aduz que Kelsen fez ciência apenas na ordem das proposições jurídicas e deixou de lado a realização concreta do direito, relegando esta ao campo da discricionariedade do intérprete no momento de exercer o ato de vontade dentre ou fora dos limites da moldura da norma, o que indica a superação do positivismo exegético. Importante frisar que neste cenário positivista, seja o exegético ou normativista, as Constituições não eram documentos jurídicos, mas sim político e político-jurídico respectivamente 12 , meramente organizadores do Estado e que orientavam, sem vinculação, a atuação dos Poderes Legislativo e Executivo em promover a concretização constitucional, que ficava dependente da conformação do legislador. Isto fica claro no sistema de supra-infra- ordenação proposto por Kelsen, pelo qual a norma superior, por exemplo, a Constituição, regula a forma de produção da inferiores, como as leis ordinárias. Por isso “os Direitos Fundamentais valiam apenas na medida em que fossem protegidos pelas leis, e não envolviam, em geral, garantias contra o arbítrio ou descaso das maiorias políticas instaladas nos parlamentos” 13, enfim, a sua efetivação seria realizada quando, como e da forma que melhor aprouvesse aos Poderes Legislativo e Executivo, isto se fosse. Sobre a relação entre Direito e Moral, Kelsen 14 nega que o Direito, para ser considerado como tal tenha que abarcar uma parcela mínima da Moral,pois se assim fosse se pressupõe a existência de uma moral absoluta, comum a todos os ordenamentos jurídicos, elemento que inexiste para o autor. Afinal, segundo o autor, se é aceito que em diversas épocas entre distintos povos e até mesmo dentre um mesmo grupo social existem sistemas morais muito distintos e até mesmo contraditórios, levando com que o considerado injusto e mal por alguns seja considerado como justo e bom por outros, porque não há elemento comum às diferentes ordens morais. Diante desta percepção, Kelsen nega a existência de um a priori comum a todas as ordens morais, aquele valor que deveria estar presente em todos o Ordenamentos Jurídicos para serem considerados como moral e justo. Situação que sofrerá um revés com a introdução da Dignidade Humana nas Constituições do Pós-segunda guerra que aproximarão o Direito e Moral, especialmente a matriz kantiana, conforme abordagem infra. Com efeito, quando se não pressupõe qualquer a priori como dado, isto é, quando se não pressupõe qualquer valor moral absoluto, não se tem qualquer possibilidade de determinar o que é que tem de ser havido, em todas as circunstâncias, por bom e mau, justo e injusto. E nesse caso, não se poderá negar que também aquilo que aordem coercitiva em questão prescreve pode ser tido por bom ou 10 ibid. p.394 11 STRECK, Lenio Luiz. Aplicar a “Letra da Lei” é uma Atitude Positivista?. Revista Novos Estudos Jurídicos – Eletrônica, vol 15, n.1, p. 158-173, jan∕abr 2010. Disponível em https: http://www6.univali.br/seer/index.php/nej/article/view/2308. Acesso em: 15 set. 2011 12 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. 13 SARMENTO, Daniel. Neoconstitucionalismo no Brasil: Riscos e Possibilidades. In Daniel Sarmento (Coord). Filosofia e Teoria Constitucional Contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 116 14KELSEN, Hans. Jurisdição Constitucional. Trad. Alexandre Krug et alli. São Paulo: Martins Fontes, 2003. Revista Jurídica Eletrônica Direito, Sociedade e Desenvolvimento – maio-outubro/2013 Coordenação : Professor Pós-Doutor Antônio Pereira Gaio Júnior Edição: Guilherme Fernandes da Cunha Corrêa Bandeira e Livia Guida Antonío 90 Revista Jurídica Eletrônica Volume 1 - Nº 1 - Ano 2013 Instituto de Três Rios justo, e aquilo que ela proíbe por mão ou injusto; e que, portanto, também ela é – relativamente – moral e justa.15 Se não há uma ordem Moral absoluta para o autor não é possível pautar a validade do Direito com sua conformidade com a Moral, pois uma ordem jurídica valorada como “moral ou imoral, justa ou injusta, isto traduz a relação entre a ordem jurídica de um dos vários sistemas de Moral e não a relação entre aquela e “a” Moral”. Assim, imorais e não-Direito serão as ordens jurídicas dum determinado Estado que outro julgue dissonante daquilo que é entendido como Moral absoluta, por exemplo, “reconheçam ou não reconheçam a propriedade privada, tenham caráter democrático ou não democrático, etc.” 16 Ainda sobre a temática em tela, Kelsen 17 assevera que embora os princípios morais e políticos possam ser chamados de jurídicos por terem influenciado o legislador na criação da norma geral ou ao juiz quando da decisão judicial, eles não integram ou passam a fazer parte do Ordenamento Jurídico. Tal influencia sobre os atos destas autoridades não denotam qualquer obrigatoriedade destes princípios. O autor dedica o capítulo 28 do seu Teoria Geral das Norma para criticar a obra de Josef Esser que embora opusesse princípios e normas, não negava aqueles a condição de integrante do ordenamento jurídico. As críticas de Kelsen denotam a separação do Direito e Moral, já que os princípios não são jurídicos e como tais obrigatórios, o desinteresse da ciência jurídica pela razão prática, a não autonomia do direito, afinal Kelsen reconhece que pode o Direito geral ou individual é influenciado por moral e convicções políticas particulares do agente, o que significa discricionariedade tanto do legislador e julgador, ao “escolher” qual moral lhe influenciará. O positivismo passou a ser alvo de uma série de críticas e, embora tenha iniciado o séc. XX como a filosofia dos juristas, sofreu uma dramática derrota, ante que jamais foi possível transpor de maneira totalmente satisfatória os métodos das ciências naturais para a área da humanidade. É impossível ao Direito, ao contrário de outras ciências, deter uma postura puramente descritiva da realidade, ou seja, catalogar todos os elementos existentes nas relações sociais. Mas a afirmativa de o juspositivismo legitimou movimentos autoritários mundo a fora que em virtude do acrítico da lei viabilizou e legitimou o Nazismo alemão e o Fascismo italiano, porque “acenderam ao poder dentro do quadro da legalidade vigente e promoveram barbárie em nome da lei. Os principais acusados de Nuremberg invocaram o cumprimento da lei e a obediência a ordens emanadas da autoridade competente” 18 é um tanto simplista. Na realidade, conforme Losano, o nacional-socialismo se valendo de forma extremada da crítica da escola do direito livre, levou ao esvaziamento do Direito anterior a 1933, remanescente da república de Weimar, exigindo dos juízes que o interpretasse segundo os valores nazistas, o racismo e o autoritarismo. Com tal carga axiológica o caminho estava pavimentado para o holocausto num Estado não mais regido pela lei, mas sim pela vontade do Fuhrer e seu partido. A diferença, porém, de outros movimento revolucionários, o nacional-socialismo não substituiu um ordenamento jurídico velho por um novo, mas destruiu o direito herdado do 15 ibid.p.73∕74 16 ibid.p.75∕76∕78 17 KELSEN, Hans. Teoria Geral das Normas. Trad. José Florentino Duarte. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1986. 18 BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p.235 Revista Jurídica Eletrônica Direito, Sociedade e Desenvolvimento – maio-outubro/2013 Coordenação : Professor Pós-Doutor Antônio Pereira Gaio Júnior Edição: Guilherme Fernandes da Cunha Corrêa Bandeira e Livia Guida Antonío 91 Revista Jurídica Eletrônica Volume 1 - Nº 1 - Ano 2013 Instituto de Três Rios império alemão e da república de Weimar, esvaziando as velhas normas e impelindo os juízes a preencher o esse vazio jurídico com as diretivas do partido-Estado, que podiam assim, agir sem vínculos. Do ponto de vista da teoria do direito, o nacional-socialismo, foi portanto um movimento antipositivista e anti-sistémico: o direito vigente devia ser mudado, e as partes mudadas não deviam ser influenciadas por aquelas remanescentes à revolução. Ao alcançar o poder o nacional-socialismo impôs um respeito total pelas normas jurídicas inspiradas em sua ideologia, tanto que (...) o positivismo jurídico foi substituído por um Fuhrerpositivismus.19 Por isto após a segunda guerra foi percebido a necessidade de (re) introduzir valores morais no Direito, entretanto de forma distinta da admitida por Kelsen 20 ·, conforme linhas acima, mas de maneira indisponível, vinculante, enfim, um a priori não alcançável, substituível seja pela ideologia política dominante, pelo legislador ou julgador, ficando fora inclusive das deliberações de maiorias eventuais, com sito fazendo com que o Direito fosse dotado de autonomia e, portanto, não indiferente com injustiças. 3. CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORÂNEO E PÓS- POSITIVISMO, A DIGNIDADE HUMANA NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO O fim da segunda guerra mundialé o marco inicial da nova fase do constitucionalismo que emergiu na Europa e originou o Estado Democrático de Direito cuja principal referência é a Constituição Alemã de 1949 - Lei Fundamental de Bonn – seguida da Constituição italiana de 1947, de Portugal de 1976 e da Espanha de 1978. Posteriormente, com especificidades próprias, produziu efeitos em países em desenvolvimento, como no Brasil com a Constituição de 1988, Colômbia, Argentina, México e África do Sul. Esta fase do constitucionalismo é denominado de Contemporâneo por Streck 21 e de Neoconstitucionalimo por Barroso 22 , Sarmento 23 ·, com base na obra de Carbonell 24 ·. Este constitucionalismo do pós-segunda guerra herda e aperfeiçoa elementos dos modelos antecedentes, principalmente do social, todavia o principal é asseverar que as Constituições originadas desta fase, cujo marco teórico-filosófico é o pós-positivismo, foram reformatadas e rematerializadas, haja vista o reconhecimento de sua normatividade, inclusive os princípios nela carreados, passando a mesma ser documento jurídico-político, além da constitucionalização da Dignidade Humana acompanhada do alargamento e aprofundamento do rol de Direitos Fundamentais para protegê-la e promovê-la, decorrendo disto a necessidade do surgimento de” nova hermenêutica” voltada para atual realidade constitucional.25 19 LOSANO, Mario G. op.cit 20 KELSEN, Hans. op. cit. 21 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011. 22 BARROSO, Luis Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito (O Triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil). In Cláudio Pereira de Souza Neto e Daniel Sarmento (Coord). A Constitucionalização do Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 203-249 23 SARMENTO, Daniel. Op cit. 24 CARBONELL, Miguél. Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Trotta, 2003 25 MAIA, Antônio Cavalcanti. As Transformações dos Sistemas Jurídicos Contemporâneos: Apontamentos Acerca do Neoconstitucionalismo. Revista de Direito do Estado: Rio de Janeiro: Renovar, n. 5, p. 243 -266, jan∕mar. 2007 Revista Jurídica Eletrônica Direito, Sociedade e Desenvolvimento – maio-outubro/2013 Coordenação : Professor Pós-Doutor Antônio Pereira Gaio Júnior Edição: Guilherme Fernandes da Cunha Corrêa Bandeira e Livia Guida Antonío 92 Revista Jurídica Eletrônica Volume 1 - Nº 1 - Ano 2013 Instituto de Três Rios Frente ao fracasso político do positivismo pelo qual a desvinculação entre direito e moral não mais correspondiam aos anseios humanos, foi aberto espaço para uma ampla e ainda inacabada reflexão sobre o Direito, sua função social e interpretação. Certamente não era desejado um simples retorno para os fundamentos abstratos e metafísicos do historicamente superado jusnaturalismo, isto porque o discurso científico já havia tornado parte do Direito, era preciso um resposta da ciência jurídica, que a um só tempo mantivesse a cientificidade do direito e o dotasse da autonomia necessária para não ser solapado por teses políticas, morais e outras à disposição do sujeito solipsista. 3.1 Pós-positivismo. Para Bonavides 26 o pós-positivismo corresponde aos grandes movimentos constitucionais das últimas décadas do século passado, quando há o reconhecimento da normatividade dos princípios, deixando a posição de fonte subsidiária, de integração do direito, para se tornarem o centro das novas Constituições responsáveis pela aproximação do Direito e Moral. Conforme visto na abordagem supra sobre a obra de Kelsen 27 , o positivismo nunca se preocupou em fazer ciência sobre a razão prática no direito deixando-a assim relegada à mera discricionariedade do autoridade julgadora, a mero ato volitivo. Por isto o pós-positivistas têm por escopo enfrentar os problemas da razão prática através da delimitação de teorias interpretativas e concretizantes das normas constitucionais, enfim, fazendo ciência jurídica também sobre a razão prática, dando a ela “uma espécie de ‘dignidade epistemológica’ 28“ Neste novo paradigma constitucional o Direito é dotado de autonomia, pois se ele é alçado a elemento de transformação social não pode sua efetividade ficar a mercê de fatores econômicos, políticos, morais entre outros usados para impedi-lo, frustrá-lo ou “corrigi-lo” no cumprimento de seu desiderato transformador. Esta autonomia é conquistada no pós- positivismo mediante a incorporação daqueles sistemas no próprio Direito, tornando-os parte deste na forma de princípios. “Se a moral fora colocada ‘para fora’ do direito, os fracassos do modelo forma- burguês e dos modelos que o sucederam exigiram que fossem incluídos no direito os componentes que não o deixassem indiferente às injustiças sociais, aos golpes, aos desmandos e às desumanidades. Mas, de que modo fazer isso? Deixar a cargo dos juízes que, agora sem a limitação formal-burguês-liberal que os “transformava” em a “a boca da leis”, passariam a introduzir juízos morais em suas decisões? Passariam, 26 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, 14a ed. São Paulo: Malheiros: 2004 27 _____________. Teoria pura do Direito. Trad João Baptista Machado. 6ed. São Paulo: Martins Fontes,1998 28 STRECK, Lenio Luiz.. Pósfácio à obra “Neoconstitucionalismo e positivismo jurídico”, de Écio Oto Ramos Duarte e Susanna Pozzolo. 2ª. ed. São Paulo: Ed. Landy, 2010 b. p.22 Revista Jurídica Eletrônica Direito, Sociedade e Desenvolvimento – maio-outubro/2013 Coordenação : Professor Pós-Doutor Antônio Pereira Gaio Júnior Edição: Guilherme Fernandes da Cunha Corrêa Bandeira e Livia Guida Antonío 93 Revista Jurídica Eletrônica Volume 1 - Nº 1 - Ano 2013 Instituto de Três Rios assim a corrigir os defeitos e∕ou insuficiências da lei? Mas, antes disso, não era o direito que deveria mudar? 29 Perceba que com esta institucionalização da moral pelo direito, o que inclui a Dignidade Humana, além de superar dicotomia positivista que estabelecia a dependência ou a vinculação entre os dois, promove mudança na teoria das normas, pois os princípios constitucionais passam ser expressões deonticas. Desta forma, os novos princípios constitucionais não são meros sucessores diretos dos antigos princípios gerias do direito, “válvulas de escape” do positivismo, como já referido, não são aqueles agora positivados nas Constituições. “É nesse contexto que os princípios ingressam no direito neoconstitucional. No seu âmago, introduzem no direito as virtudes republicanas, a igualdade, os direitos fundamentais, as promessas de vida boa, a liberdade....!”30. No mesmo sentido Nascimento reconhece que embora haja diversas abordagens sobre a relação direito e moral, assevera o seguinte: O novo constitucionalismo é ideologicamente alinhado com a ideia de que a força racionalizadora do “meio” jurídico de organização da convivência guarda relação de dependência para com “virtudes cívicas” de conteúdo moral tais como respeito ao diferente e solidariedade, implicando : proibição de tratamento discriminatório; dever de assistência aos vulneráveis; e repúdio ao enriquecimento sem causa (rejeição ao parasitismo social e reconhecimento de que todos que contribuem com o patrimônio comunitário têm igual direito de usufruir do seu produto). 31 Observe que Dworkin 32 não pretende a normatização pura e simples dos princípios e sim uma reaproximação do Direito e a moral afastada pelo positivismo para que na resolução dos chamados hard cases o magistrado embasado em normas principiológicas decida o casoconcreto sem lançar-se ao campo do subjetivismo ilimitado. Dada normatividade constitucional a Constituição passa a pertencer ao mundo do dever ser, objetiva transformar a realidade social com a materialização fática de seu conteúdo, transformando o mundo do ser, fazendo-o aproximar-se dos desígnios traçados pelo poder constituinte. Assim, se o Estado Liberal objetivava abstenção, o Social a intervenção, o Democrático tem como objetivo a transformação social empreendida a partir de normas jurídicas constitucionais, dando efetividade à Dignidade Humana, cujo significado será visto no próximo item. 3.2 Dignidade Humana e o Estado Democrático de Direito Diante da virada copernicana estabelecida pelo constitucionalismo do pós- segunda guerra, a reaproximação do Direito com a Moral foi resposta às atrocidades vivenciadas no nazismo, fascismo e ditaduras várias, inclusive no Brasil, neste movimento a 29Ibid., p.32∕33 30 Ibd., p.33 31 NASCIMENTO, Rogério José Bento do. A Ideia do Justo como Chave para Compreensão do Constitucionalismo Contemporâneo. In Renata Braga Klevenhusen (coord). Temas sobre Direitos Humanos Em Homenagem do Professor Vicente de Paulo Barreto. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 157 32 DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. trad. Nelsom Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002. Revista Jurídica Eletrônica Direito, Sociedade e Desenvolvimento – maio-outubro/2013 Coordenação : Professor Pós-Doutor Antônio Pereira Gaio Júnior Edição: Guilherme Fernandes da Cunha Corrêa Bandeira e Livia Guida Antonío 94 Revista Jurídica Eletrônica Volume 1 - Nº 1 - Ano 2013 Instituto de Três Rios Dignidade Humana é alçada a núcleo moral das atuais Constituições, tem-se nela o principal valor a ser respeitado e promovido pelo Estado Democrático de Direito. A contribuição kantiana para reflexão sobre o estado democrático de direito caracteriza-se pela ênfase na necessária complementariedade entre a moral e o direito, como condição de institucionalização dessa forma de regime político. A relação entre essas duas ordens normativas assume função destacada no quadro do estado contemporâneo porque em função delas é que se pode estabelecer o argumento legitimador do sistema democrático. A leitura das constituições do estado democrático de direito torna-se, assim, necessariamente diferenciada em virtude da fonte moral de onde nasce o sistema político-institucional e jurídico. A Constituição por ter uma fonte moral, pois é fruto da manifestação da vontade de agentes morais autônomos estabelece limites ao arbítrio e à desigualdade social.”33 A partir de tal marco histórico a Dignidade Humana é inserida nas declarações de Direitos e nas Constituições, mais recentemente após a queda do comunismo na década de 90 foi consagrada em Constituições do Leste Europeu, como a da Croácia de 1990, Bulgária, Romênia e Letônia de 1991, Rússia de 1993, entre outras. Na Brasileira está consagrada como um dos princípios fundamentais, já no art. 1º inc. III. Mas qual o significado de Dignidade Humana, qual o conteúdo deste agora princípio, norma constitucional? A resposta está na contribuição kantiana, pois como aduz Barreto “a discussão que se processa na contemporaneidade em torno do assunto tem como interlocutor o filósofo iluminista” 34. A proposta e a influência de Kant no Direito contemporâneo é paradigmática se confrontada com de outros filósofos, conforme Sandel 35 é umas das mais poderosas e influentes já feitas por um filósofo. Neste sentido a definição não é jurídica, mas sim de cunho filosófico, moral, o que denota a reaproximação do Direito com a Moral. A Dignidade Humana é entendida de acordo com o imperativo categórico de Kant pelo qual o ser humano é um fim em si mesmo e não um meio para qualquer finalidade. Na mesma linha, o ser humano é insubstituível, diferente das coisas e dos seres irracionais, por isto estes possuem valor e aqueles possuem dignidade, elemento que impede sua reificação. Nas palavras de Kant “O homem, e, duma maneira geral, todo o ser racional, existe como um fim em si mesmo, não simplesmente como meio para uso arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo contrário, em todas as suas ações, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas que se dirigem a outros seres racionais, ele tem sempre de ser considerado simultaneamente como um fim (...) Os seres cuja existência depende, não em verdade da nossa vontade, mas da natureza, têm contudo, se são seres irracionais, apenas um valor relativo como meios e por isso se chamam coisas, ao passo que os seres racionais se chamam pessoas, porque a sua natureza os distingue já como fins em si mesmos, quer dizer, como algo que não pode ser empregado como simples meio e que, por conseguinte, limita nessa medida todo o arbítrio. (...). no reino dos 33 BARRETO, Vicente de Paulo. Fetiche dos direitos humanos e outros temas. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2010. p. 31 34Ibid.,p. 69 35 SANDEL, Michel J. Justiça O que é fazer a Coisa certa. Trad. Heloísa Matias e Maria Alice Máximo. 8 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. Revista Jurídica Eletrônica Direito, Sociedade e Desenvolvimento – maio-outubro/2013 Coordenação : Professor Pós-Doutor Antônio Pereira Gaio Júnior Edição: Guilherme Fernandes da Cunha Corrêa Bandeira e Livia Guida Antonío 95 Revista Jurídica Eletrônica Volume 1 - Nº 1 - Ano 2013 Instituto de Três Rios fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem preço, pode pôr-se em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo preço, e portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade (...) Nunca ela poderia ser posta em cálculo ou confronto com qualquer coisa que tivesse um preço, sem de qualquer modo ferir a sua santidade.” 36 A Construção de Kant sobre Dignidade Humana exige compreender o seu entendimento sobre autonomia, ação moral e imperativo categórico e sua diferença para o imperativo hipotético, visto que só é possível agir com autonomia se ação estiver assente com o imperativo categórico e não com o hipotético. Agir com autonomia para Kant é agir com liberdade, mas esta não significa agir livremente para fazer o que quer obter satisfação de desejos, pois se assim fosse feito a atitude não seria livre, mas um meio para satisfazer algo não racionalmente exigido, mas instintivamente desejado. Por isto só existe autonomia se ação é realizada de acordo com uma lei que alguém se impõe a si mesmo, isto porque, “quando nós, como animais, buscamos o prazer ou evitamos a dor, na verdade não estamos agindo livremente. Estamos agindo como escravos dos nossos apetites e desejos” 37. Neste sentido as escolhas, como o que comer e beber, não são exercício de liberdade, mas sim obediência a um desejo, quando será escolhido o meio para atingir o fim, que é a satisfação. As coisas ficam sujeitas às leis da física e os animais são refém de seus instintos e por isto, ambos, não podem fazer escolhas, não agem com liberdade e não possuem autonomia. Eis, portanto, a relação entre liberdade como autonomia e a concepção de Kant sobre moral. Agir Livremente não é escolher as melhores formas para atingir determinado fim; é escolher o fim em si- uma escolha que os seres humanos podem fazer e bolas de bilhar (e a maioria dos animais) não podem. 38 Não por outro motivo só há que se falar em responsabilidade moral pelas ações praticadas com autonomia, com liberdade em realizar atos por serem eles um fim em si,por serem a coisa certa a ser feita, uma ação não é boa devido ao resultado que produz, ela deve ser boa em si mesma. 39 Assim, se para Kant o respeito à Dignidade Humana implica em tratarmos as pessoas como fim em si mesma não se admite que sejam usadas como meros objetos, mesmo se o resultado deste uso trouxer um bem-estar geral, conforme pensa o utilitarismo. Por exemplo, é utilitarismo defender a tortura de alguém para que confesse onde está artefato explosivo e assim resguardará a vida de várias pessoas; mas também é utilitarismo ato de alguém contrário a esta tortura para por temer que aquilo se torne prática comum no Estado e um dia seja praticado contra ele e outras pessoas ou porque cause mal estar e insegurança; diferente daquele que condena o ato por ser ele reprovável em si, independente de qualquer benefício, simplesmente porque coisifica alguém. “Empurrar o homem corpulento nos trilhos a fim de deter o bonde seria usá-lo como um meio, e não respeitá-lo como um fim em si mesmo. Um utilitarista iluminado (como Mill) 36 KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes, in: Os Pensadores. Trad. Paulo Quintela. São Paulo: Abril Cultural, 1980, p. 133 37 SANDEL, Michel J. op. cit., p.140 38 Ibid., p.142 39 KANT, Immanuel. Op. cit. Revista Jurídica Eletrônica Direito, Sociedade e Desenvolvimento – maio-outubro/2013 Coordenação : Professor Pós-Doutor Antônio Pereira Gaio Júnior Edição: Guilherme Fernandes da Cunha Corrêa Bandeira e Livia Guida Antonío 96 Revista Jurídica Eletrônica Volume 1 - Nº 1 - Ano 2013 Instituto de Três Rios poderia recusar-se a empurrar o homem pelas consequências secundárias do ato que diminuiriam a felicidade em longo prazo. (Logo as pessoas passariam a ter medo de ficar paradas no alto de pontes etc.) Mas Kant argumentaria que esse seria um motivo errado para desistir de empurrá-lo, pois a vítima em potencial ainda é tratada como um instrumento, um objeto, um mero meio para proporcionar a felicidade alheia. Este raciocínio não preserva a vida do homem para o seu próprio bem, mas para que outras pessoas passem por pontes sem ter medo. 40 Para Kant a definição do que é o certo a ser feito decorre da razão, mas não como instrumento para atingir objetivos, como defendem os utilitaristas, “o conceito kantiano de razão” de razão prática, aquela que tem a ver com moralidade – não é o de uma razão instrumental e sim ‘uma razão prática pura, que cria suas leis a priori, a despeito de quaisquer objetivos empíricos’”41. Os meios como a razão pode comandar a vontade são dois: o imperativos hipotético, que é condicional, e o imperativo categórico, incondicional. Se ação for boa apenas para se atingir determinado fim, razão como instrumento, trata-se do imperativo hipotético, por isto ele é condicional, porque será praticada ação que dentre várias que melhor resultado produza. 42 Já se ação for boa em si trata-se do imperativo categórico, que não admite condições ou opções de outras atitudes, é invariável, porquanto não visa outro fim que não o da própria ação, trata-se de uma lei prática de comado absoluto. Nas palavras de Barreto, “é categórico quando representa uma ação como, objetivamente necessária, sem relação com qualquer fim; a ação é representada como boa em si mesma” 43 Apenas este pode ser considerado como imperativo da moralidade. Perceba com isto a posição de Kant contra relativismos, para ele “o julgamento e o ato moral não dependem de sentimentos pessoais, de decisões arbitrárias, de valores socioculturais ou de convenções” 44 Desta forma, só agirá livremente, com autonomia aquele que age segundo este a priori, de acordo com o imperativos categórico e não a partir de imperativos hipotéticos. O primeiro imperativo categórico apresentado por Kant é “Aja apenas segundo um determinado princípio que, na sua opinião, deveria constituir uma lei universal” Agir de acordo com princípios que podem ser universalizados e que não coloquem nossos desejos, interesses acima de qualquer outra pessoa. Para Kant, ao tentar universalizar a máxima da nossa ação e continuar a agir de acordo com ela, não estamos especulando sobre possível consequências. Isso é um teste para verificar se nossa máxima está de acordo com o imperativo categórico. Uma falsa promessa não é moralmente errada porque, de modo geral, subverte a confiança social (embora isso possa ser verdade). Ela é errada porque, ao fazê-la, priorizamos nossas necessidades e nossos desejos (...) em relação às necessidades e aos desejos de todos os outros. 45 40 SANDEL, Michel J. Op. cit ., p.143 41 Ibid., p.151 42 BARRETO, Vicente de Paulo. Op. cit.. 43 Ibid. p.44 44 Ibid.p.43 45 SANDEL, Michel J. op. cit.. p.153∕154 Revista Jurídica Eletrônica Direito, Sociedade e Desenvolvimento – maio-outubro/2013 Coordenação : Professor Pós-Doutor Antônio Pereira Gaio Júnior Edição: Guilherme Fernandes da Cunha Corrêa Bandeira e Livia Guida Antonío 97 Revista Jurídica Eletrônica Volume 1 - Nº 1 - Ano 2013 Instituto de Três Rios O Outro imperativo categórico é “trate as pessoas como fins em si mesmas”, tornando a humanidade como um fim. Neste imperativo Kant afasta a possibilidade de fundamentar a lei moral em interesses e objetivos particulares, pois se assim fosse consideraria apenas os interesses das pessoas envolvidas na questão, motivo pelo qual deve se buscar algo que tenha valor absoluto, este é a dignidade que apenas a humanidade possui. Por isto o ser humano não pode ser meio para algo, pois ele existe como um fim em si mesmo. Disto Kant estabelece aquilo que denomina dever de respeito, deixando claro que a dignidade humana é intrínseca a todas as pessoas, devendo respeitar os demais seres humanos e a si próprio, o que implica em não praticar contra os outros e contra si atos que o torne um meio. “O dever de respeito é um dever que temos para com as pessoas como seres racionais, que têm humanidade, sejam elas quem for” 46. Isto significa que não se pode abrir mão da dignidade que nos é atribuída, como escreveu Pico Della Mirandola, pela nossa condição nativa. Em outras palavras a dignidade é um respeito que deve antes de tudo a si mesmo. Por essa razão, ninguém pode submeter-se voluntariamente à violência ou desrespeitar-se. 47 Observe que é diferente dos sentimentos pelas pessoas próximas que se conhece e convive, como o amor e a solidariedade, o respeito kantiano independe de proximidade, de simpatia, de comungar das mesmas ideias, valores, sexualidade, cultura e etc. “O respeito kantiano, no entanto, é o respeito pela humanidade em si, pela capacidade racional que todos possuímos.” 48 Importante perceber neste ponto, conforme chama atenção Barreto o contributo de Kant para superação do positivismo, a discricionariedade que permitiu o uso do Direito para qualquer fim, e da personalização da moralidade, como no Nazismo. “Kant rejeita a moralização do direito, ou seja, assunção pelo sistema de leis, portanto, tornando-os obrigatórios, dos valores morais individuais” 49). A Consagração da Dignidade Humana nas Constituições estabelece para o Estado Democrático de Direito um a priori cuja observância afasta qualquer possibilidade de violação do ser humano, e exige sua promoção, mesmo que contra a vontade da majoritária. Dessarte, conceito de democracia nesta nova realidade não é mais mera vontade da maioria, mas a conjugação desta com o respeito à Dignidade Humana. Entretanto, esta não é posição unânime na doutrina, porque conformeNascimento 50 a dignidade humana não traz “carga se sentido” densa o suficiente para que possa ser apontada como elemento central das Constituições, aquele que deve ser sempre priorizado em detrimento dos demais. De acordo com o autor o consenso que há sobre o significado da dignidade é rejeitar qualquer atitude que leve a completa aniquilação da autonomia individual, como a tortura e a escravidão. Ainda de acordo com Nascimento, é insuficiente afirmativa de que o ser humano deve ser tratado como um fim e não como um objeto, meio para algo, isto porque são 46 Ibid. p.155 47 BARRETO, Vicente de Paulo. Op. cit. p.72 48 SANDEL, Michel J. Op Cit. p.156 49 BARRETO, Vicente de Paulo. Op Cit. p.40 50 NASCIMENTO, Rogério José Bento do. Op cit. p. 155-171 Revista Jurídica Eletrônica Direito, Sociedade e Desenvolvimento – maio-outubro/2013 Coordenação : Professor Pós-Doutor Antônio Pereira Gaio Júnior Edição: Guilherme Fernandes da Cunha Corrêa Bandeira e Livia Guida Antonío 98 Revista Jurídica Eletrônica Volume 1 - Nº 1 - Ano 2013 Instituto de Três Rios admitidas diversas situações nas quais há a reificação de pessoas, servindo como meio para satisfazer a vontade ou interesse de terceiros. Ainda na esteira do autor, podem ser mencionados como exemplos desta situação a alienação da força de trabalho que acaba por transformar a pessoa em mercadoria; cessão dos direitos federativos de atletas profissionais e a indústria da pornografia. “Portanto, para que se tome a dignidade como vetor será preciso ampliar seu sentido para além do conceito de que a pessoa humana é sempre fim e nunca meio ou instrumento para satisfação de interesses quaisquer que sejam eles. Será preciso ver na dignidade uma síntese (não no sentido hegeliano, e sim no sentido de sumo, de condensar fatores) das ideias de liberdade, de igual solidariedade. Neste papel dignidade e justiça terminam por se confundir” 51 Nos termos do indicado pelo autor, embora haja importância em considerar a Dignidade Humana como elemento das Constituições do Estado Democrático de Direito, a realização da pauta constitucional passa antes pela realização da justiça, na busca do justo, de harmonização da convivência social, cuja inserção no humanismo democrático faz com que a mesma não se contente com qualquer resultado, renegando, taxando de injustas qualquer postura utilitarista violadora do indivíduo, que desconsidere o pluralismo e diversidade, bem como a constitucional pauta social. 4. CONCLUSÃO Positivismo normativista supera o exegético, no qual o juiz era o boca da lei, tendo com um dos fundamentos a aposta na discricionariedade depositada no intérprete aplicador, pela qual interpretar é ato de vontade, viabilizada pela moldura normativa. No âmbito dos positivismos as Constituições não eram dotadas de força normativa, eram documentos políticos voltados aos poderes majoritários, como tal não podia a jurisdição aplicar as normas constitucionais aos casos decidendo. O Direito era aquele consagrado nas leis, cuja discricionariedade positivista permitia a entrada de valores particulares na formação da norma geral ou individual. As Constituições advindas do constitucionalismo contemporâneo passam a ser dotadas de força normativa e têm como centro irradiador a Dignidade Humana, fator que faz com que o novo modelo estatal por ela constituído, o Estado Democrático de Direito, tenha por finalidade a transformação social. Diante da força normativa da Constituição e seu novo centro irradiador, a transformação objetivada pelo Estado Democrático terá o Direito como instrumento de efetivação, ou seja, a realidade social será transformada através da efetivação dos Direitos Fundamentais que ao final protegem e promovem a Dignidade Humana. A superação do positivismo tem como ponto fulcral a inserção da Dignidade Humana nas Constituições do Pós-segunda Guerra cujo sentido é inspirado pela doutrina 51 Ibid. p. 166 Revista Jurídica Eletrônica Direito, Sociedade e Desenvolvimento – maio-outubro/2013 Coordenação : Professor Pós-Doutor Antônio Pereira Gaio Júnior Edição: Guilherme Fernandes da Cunha Corrêa Bandeira e Livia Guida Antonío 99 Revista Jurídica Eletrônica Volume 1 - Nº 1 - Ano 2013 Instituto de Três Rios Kantiana, estabelecendo-se assim, um a priori no Direito do Estado Democrático de Direito a ser observado inclusive de forma contra majoritária. Embora importante o reconhecimento da Dignidade Humana pela Constituições pós- segunda guerra existe posicionamento de que não há densidade semântica sobre seu significado, havendo algum consenso sobre o impedimento de reificação do ser humano, mas que de certa forma é contradito pela admissão de certas comportamentos que coisificam o homem. 5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2004. _____________. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito (O Triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil). In Cláudio Pereira de Souza Neto e Daniel Sarmento (Coord). A Constitucionalização do Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 203-249 BARRETO, Vicente de Paulo. Fetiche dos direitos humanos e outros temas. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2010. BOBBIO, Norberto, MATTEUCCI, Nicola e PASUINO, Gianfranco. Dicionário de Política, 3 ed. Brasília: Editora UNB,1986 BONAVIDES, Paulo. 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