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TRABALHO INFANTIL NA TERCEIRA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul Chanceler: Dom Dadeus Grings Reitor: Joaquim Clotet Vice-Reitor: Evilázio Teixeira Conselho Editorial: Ana Maria Tramunt Ibaños Antônio Hohlfeldt Dalcídio M. Cláudio Delcia Enricone Draiton Gonzaga de Souza Elvo Clemente Jaderson Costa da Costa Jerônimo Carlos Santos Braga Jorge Campos da Costa Jorge Luis Nicolas Audy (Presidente) Juremir Machado da Silva Lauro Kopper Filho Lúcia Maria Martins Giraffa Luiz Antonio de Assis Brasil Maria Helena Menna Barreto Abrahão Marília Gerhardt de Oliveira Ney Laert Vilar Calazans Ricardo Timm de Souza Urbano Zilles EDIPUCRS: Jerônimo Carlos Santos Braga - Diretor Jorge Campos da Costa – Editor-chefe Honor de Almeida Neto TRABALHO INFANTIL NA TERCEIRA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL PORTO ALEGRE 2007 © EDIPUCRS, 2007 Capa: Vinícius de Almeida Xavier Diagramação: Carolina Bueno Giacobo e Gabriela Viale Pereira Revisão: Daniela Origem A447t Almeida Neto, Honor de Trabalho infantil na terceira revolução industrial / Honor de Almeida Neto. – Porto Alegre : EDIPUCRS, 2007. 244 p. ISBN 978-85-7430-662-9 (on-line) 1. Trabalho Infantil. 2. Redes Sociais. 3. Inovações Tecnológicas – Aspectos Sociais. I. Título. CDD 331.31 Ficha catalográfica elaborada pelo Setor de Processamento Técnico da BC- PUCRS EDIPUCRS Av. Ipiranga, 6681 - Prédio 33 Caixa Postal 1429 90619-900 Porto Alegre, RS - BRASIL Fone/Fax: (51) 3320-3523 E-mail: edipucrs@pucrs.br http://www.pucrs.br/edipucrs SUMÁRIO APRESENTAÇÃO.............................................................................................. 8 INTRODUÇÃO ................................................................................................... 9 PARTE I - UM NOVO OLHAR SOBRE O TRABALHO INFANTIL ................... 11 1- ELUCIDANDO CONCEITOS ....................................................................... 11 1.1- Trabalho Infantil contemporâneo............................................................... 11 1.2 - Novas mediações tecnológicas: novas revoluções .................................. 14 1.3 - Trabalho infantil: gênese e transformações ............................................. 21 1.4 - Novos “possíveis” ao trabalho infantil ...................................................... 25 1.5 - Rede Dinâmica: a metáfora da complexidade do trabalho infantil ........... 27 1.6 - Rede de significações do trabalho infantil na 3ª Revolução Industrial ..... 36 PARTE II - TRABALHO INFANTIL EM REDE: UMA ABORDAGEM COMPLEXA ......................................................................................................................... 40 2 - NOVAS MEDIAÇÕES, NOVAS RELAÇÕES SOCIAIS E NOVA INFÂNCIA ......................................................................................................................... 40 2.1 - Novas Tecnologias de Informação e Comunicação (NTIC) ..................... 40 2.1.1 - Sociedade informacional ....................................................................... 42 2.1.2 - Novas relações sociais: campos sociais em movimento....................... 44 2.2 - Novas relações sociais: a adultização de toda criança ............................ 48 2.2.1 - Trabalho infantil: uma categoria de análise que se complexifica .......... 48 2.2.2 - Criança jornaleira: a adultização pelo emprego .................................... 50 2.3 - Novas mediações, nova infância.............................................................. 55 2.3.1 - Novas mediações, novos mitos............................................................. 58 2.3.2 - Novas mediações, velhos mitos............................................................ 60 2.4 - Adultização precoce e NTIC..................................................................... 65 2.4.1 - Televisão e infância .............................................................................. 67 2.4.1.1 - Comunicação imagética e construção social da infância ................... 71 2.4.2 - Televisão e sexualidade........................................................................ 74 2.4.3 - Internet e sexualidade........................................................................... 77 2.4.4 - A visibilidade e o controle social ........................................................... 81 2.4.5 - Os possíveis da era digital: novas interações, novo habitus ................. 83 3 - TRABALHO INFANTIL: UMA REDE DINÂMICA......................................... 90 3.1 - Aldeia global: os PAE’s e seus reflexos para o trabalho infantil no Brasil 91 3.1.1 - Distribuição de renda e trabalho infantil ................................................ 98 3.2 - Novos programas, novas mediações? ................................................... 100 3.2.1 - PAE’s, Estado e fiscalização............................................................... 104 3.2.2 - Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI)......................... 107 3.2.2.1 - PETI: uma rede aprendente ............................................................. 108 3.2.2.2 - Jornada Ampliada e quantidade de trabalho.................................... 110 3.2.2.3 - PETI: auto-organização e controle social......................................... 113 3.3 - Arcabouço legal & trabalho infantil ......................................................... 117 3.3.1 - Arcabouço legal: rigidez e flexibilidade ............................................... 117 3.3.2 - A Legislação une o uno e o múltiplo ................................................... 119 3.3.3 - Mito do trabalho infantil: obstáculo à realização das leis..................... 122 3.4 - Trabalho infantil e responsabilidade social............................................. 130 3.4.1 - Responsabilidade social: uma cultura emergente no meio empresarial ....................................................................................................................... 133 3.5 - NTIC, visibilidade e os novos possíveis ................................................. 137 3.5.1 - Apartheid digital .................................................................................. 140 3.5.2 - LINUX: um software livre democratizando as relações sociais ........... 144 3.5.3 - Visibilidade e NTIC: os possíveis à erradicação do trabalho infantil ... 148 4 - PRODUÇÃO SOCIAL E NOVAS MEDIAÇÕES........................................ 155 4.1 - Quando a mídia gera a informação como a maior herança ................... 156 4.1.1 - Visibilidade e os possíveis ao habitus social....................................... 165 4.2 - Formação dos agentes sociais em suas competências múltiplas .......... 168 4.2.1 - Processos auto-eco-organizativos ...................................................... 176 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................... 186 GLOSSÁRIO .................................................................................................. 196 REFERÊNCIAS.............................................................................................. 204 ANEXOS ........................................................................................................ 221 APRESENTAÇÃO As mediações desencadeadas a partir das novas tecnologias de informação e comunicação (NTIC) complexificam-see rompem as relações sociais tradicionais, instaurando um novo olhar sobre o trabalho infantil. Esse processo construído em rede desencadeia novas possibilidades que tendem tanto a favorecer formas mais sofisticadas de exploração social, quanto a desmantelar, de forma irreversível, tal dinâmica. Este livro procura desvendar os aspectos do trabalho infantil que estão se construindo em rede. Para isso, demonstra como se materializam as dimensões da categoria de análise ‘Rede Dinâmica’ referente ao fenômeno analisado. Toda a criança, não mais somente a criança pobre (baixa renda), vem sendo adultizada precocemente. O trabalho da criança abastada assume hoje outra dimensão, enquadrando-se igualmente no ponto nevrálgico da questão que é o roubo da infância. O movimento de produção social impulsionado por novas mediações, ao criar novos possíveis, tende a erradicar o trabalho infantil. Isso supõe a instauração cada vez mais intensa de práticas de formação dos agentes que atuam junto a este fenômeno, incluindo o desenvolvimento de competências estimuladas por processos auto-eco-organizativos que configuram a dinâmica da sociedade atual. Face ao dinamismo dos fenômenos na Terceira Revolução Industrial, estratégias de enfrentamento ao trabalho infantil passam necessariamente pela construção de redes, de vínculos, de planejamento frente aos inúmeros possíveis associados às novas mediações. Os exploradores de crianças lançam mão das novas mediações para realizarem o roubo da infância. Impõe- se a utilização das novas tecnologias por parte daqueles que querem garantir os direitos das crianças e erradicar o trabalho infantil. Daí se constituírem como estratégias urgentes ao enfrentamento desse problema secular, a instrumentação dos órgãos de defesa e o investimento na formação de seus agentes. INTRODUÇÃO Este livro1 analisa o processo de constituição do trabalho infantil contemporâneo, tendo em vista as modificações que caracterizam a sociedade atual, informacional, a partir da Terceira Revolução Industrial, cujo advento das novas tecnologias de informação e comunicação (NTIC), ao estabelecerem rupturas nas mediações e, portanto, nas relações sociais, tensionam o fenômeno em análise, hoje construído em rede, complexificando-o. Propõe-se um novo olhar sobre o trabalho infantil para abarcar a complexidade que o constitui. Para tanto, o livro traz à tona os diversos tensionamentos que envolvem e complexificam as relações que constroem e reconstroem este fenômeno, a partir de um novo ritmo e velocidade. Partindo do pressuposto de que todos os fenômenos sociais, hoje, são construídos em rede, e que é na relação entre as diversas partes que a compõem que se torna possível abarcar sua complexidade, e ainda, com o intuito de mapear a rede do trabalho infantil neste começo de milênio, esta investigação desvenda e relaciona aspectos como: a complexificação das novas tecnologias e os impactos que representa para a formação do habitus social ante o tema; a nova visibilidade que expõe o fenômeno; a adultização precoce da criança; a globalização da economia e suas conseqüências para o mundo do trabalho, e sobretudo, para a problemática do trabalho infantil; as novas possibilidades de instauração de competências frente ao novo perfil de trabalhador exigido pelo mercado; o trabalho infantil enquanto roubo da infância e do tempo do brinquedo; os vários riscos que o trabalho precoce ocasiona independentemente de segmento social; a desmistificação da idéia do trabalho infantil como forma privilegiada de formar; a postura do empresariado, do Estado e do Terceiro Setor em face da questão. Como produto final, oferece subsídios a políticas e práticas sociais sobre o fenômeno. 1 Este livro é uma adaptação da versão final da tese de doutorado: “A constituição em rede do trabalho Infantil na Terceira Revolução Industrial”, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da PUCRS em dezembro de 2005. A pesquisa está integrada à Rede de Pesquisa FTO (“Formação, Trabalho e Organização) coordenada pela professora Julieta Beatriz Ramos Desaulniers, IFCH-PUCRS. O pressuposto teórico que norteia esta obra busca apreender toda a complexidade que envolve o fenômeno trabalho infantil, trazendo de forma articulada os inúmeros aspectos que devem ser analisados conjuntamente em rede, sob pena de viciarem o olhar sobre o real, caindo em uma análise totalizante e/ou maniqueísta da realidade. Neste sentido, esta abordagem se diferencia de outros trabalhos relativos a crianças em situação de risco, por lançar um novo olhar ao fenômeno, que dê conta da rede de relações que o envolvem, extrapolando a questão de segmento social. Importante ressaltar que este livro se constitui de um modelo de investigação aplicável a outros fenômenos sociais por tratar das novas mediações sociais e sua episteme. Esta estrutura teórico-metodológica e sua epistemologia que ora apresento, são modalidades para análise de diferentes fenômenos sociais construídos na Terceira Revolução Industrial. As alternativas ao trabalho infantil, bem como a outros fenômenos sociais hoje, estão associadas à epistemologia da rede, que dá sustentação à complexidade, ao caos, à auto-organização, daí a pertinência e a atualidade deste caminho metodológico que proponho. 10 PARTE I - UM NOVO OLHAR SOBRE O TRABALHO INFANTIL 1- ELUCIDANDO CONCEITOS 1.1- Trabalho Infantil contemporâneo O trabalho infantil é um fenômeno mundial cujas configurações exigem, para um melhor entendimento de sua complexidade, alguns recortes, algumas delimitações. Os fenômenos sociais, hoje, são construídos a partir de uma nova episteme, e o que ocorre com o trabalho infantil não é diferente. Daí a importância em lançar um olhar cada vez mais complexo sobre este fenômeno que se movimenta, se estrutura e se reestrutura. O trabalho infantil alcançou tal grau de complexidade, que, na atualidade, não deve ser visto apenas como emprego. A própria categoria trabalho vem-se reconfigurando ante as modificações impulsionadas, sobretudo, pela complexificação das relações sociais, agora mediadas pelas novas tecnologias de informação e comunicação (NTIC), que redimensionam este conceito. Ainda que seja ilegal todo e qualquer tipo de exercício profissional para menores de quatorze anos, admitindo-se, no entanto, a condição de aprendiz a adolescentes de quatorze a dezoito anos, existem hoje alguns tipos de emprego infantil mais perversos, já que colocam a criança em contato com outros tipos de crime ou situações de risco. São exemplos a prostituição, o tráfico de drogas ou o recrutamento de crianças para as guerras. Algumas categorias diferenciadas podem ser aqui apontadas. Há o emprego infantil percebido enquanto troca de trabalho (sobretudo de força física) por dinheiro, por comida, por sobrevivência e subsistência. Há outros empregos aparentemente menos violentos, menos perversos do que os citados anteriormente, como o das crianças vendedoras de jornais, dos ambulantes, o trabalho doméstico, entre outros. Há também o trabalho da criança “abastada” que, apesar de trabalho infantil, assume outra dimensão, principalmente no que diz respeito à sua aceitação pela sociedade. É o caso da criança que tem seu tempo tomado pelas aulas de línguas, de danças, de atividades esportivas, de informática, entre outras atividades. Esta prática também aborta a infância, roubando-lhe precioso tempo livre e de brincadeiras, forma pela qual a criança seprepara para o mundo adulto. A infância, por ser uma construção social, exige mediações para que se efetive em todo o seu potencial. Quanto à dificuldade em redefinir o trabalho infantil, vou abrir os inúmeros leques de possíveis a esta categoria, tendo claro que minha busca leva em conta que algumas dimensões deste fenômeno estão configuradas, e outras, ainda se configurando. Não se trata de uma análise a respeito de um tipo de trabalho com um enfoque local, até porque, tal como a metáfora ‘Rede Dinâmica’2, está este fenômeno se reorganizando, auto-organizando-se, expandindo-se. Nesse sentido, o objeto científico construído nesta análise não pode ter fronteiras, é glocal (global e local), senão não caracterizaria uma abordagem na perspectiva de rede. Trata-se do trabalho infantil mediado pelas NTIC em um espaço desterritorializado e atemporal. O recorte a ser dado, porém, como forma de escapar ao risco de fechar a complexidade do fenômeno, não será pautado por uma análise restrita a segmentos sociais. A questão central gira em torno do fato de ser o trabalho infantil, como outros tantos fenômenos, um fenômeno global, e o enfoque é o de que o trabalho infantil rouba a infância por motivos vários, inclusive o econômico, adultizando precocemente a criança. Trabalho infantil, portanto, não restringe-se a emprego. Em face das novas mediações, os pais das camadas média ou alta da sociedade, vêem-se atônitos diante do vendaval de novos possíveis que a sociedade informacional traz consigo, do ritmo alucinante de mudanças e de inovações mediadas pelas novas tecnologias. Diante disso, recorrem a um universo de obrigações, impondo um acúmulo de trabalho para a criança, esquecendo-se, assim, da infância, deste período que deveria ser sempre privilegiado, do lúdico, do tempo do brinquedo, do tempo livre. Assim, é adultizada precocemente toda criança, e não mais somente a criança pobre, pois considera-se haver trabalho infantil sempre que a criança é dissociada das condições, necessidades e limites característicos da sua idade e de seu estágio de formação. Trata-se, nesse sentido, de trabalho inadequado, impróprio à idade. E, assim, a exploração pode ser vista também como a realização dos pais através 2 Ver análise sobre essa metáfora no Capítulo 1.5 da Parte I. 12 dos filhos, das projeções feitas sobre as crianças, no sentido de que os possíveis problemas financeiros, emocionais e de auto-estima dos pais, por exemplo, serão resolvidos através da vida desejável que impõem aos filhos, e, portanto, do trabalho dos filhos. O “aborto” da infância da criança "abastada" também, em alguma medida, acontece por uma questão econômica, embora não se restrinja mais apenas a este aspecto. A idéia que está por trás desta postura é, também, a de formar a criança, prematuramente, para o enfrentamento da competição, perante um mercado mais escasso, perante novas exigências e a necessidade de instauração de determinadas competências. As novas mediações rompem fronteiras, o trabalho infantil é agora extensivo a toda criança. O trabalho é concebido como fazer (Homo faber)3, a questão está na quantidade e na qualidade do fazer, na proporção de atividades por faixa etária. Desta forma, devendo-se dar um recorte nesta investigação, vou pautá- la justamente na análise sócio-técnica do trabalho infantil a partir da Terceira Revolução Industrial, trazendo alguns dos inúmeros possíveis ao fenômeno. Possíveis que abrem um inédito leque de atuação, no sentido da articulação e da mobilização voltadas à erradicação do trabalho infantil. É com esse objetivo que movo o meu interesse de pesquisador e de cientista sobre o tema. Pois, se é verdade que as novas tecnologias de informação e comunicação (NTIC) potencializam novas intervenções, entre elas podem-se encontrar formas mais sutis de exploração do emprego perverso (pedofilia, trabalho escravo, trabalho infantil). As novas mediações potencializam o crime, são mais sutis, mais rápidas, mais extensas nos empregos perversos ou criminosos. A tecnologia que faz a mediação das relações sociais hoje complexificando-as, reflete o movimento do homem e seu grau de evolução, ou de hominização.4 Quando se fala de infância enquanto construção social, levam-se em conta características que a distinguem da idade adulta, como a importância do segredo, por exemplo, que hoje é tensionada justamente pelas NTIC, e sua enorme capacidade de difundir informações a um ritmo muito veloz. 3 Segundo Edgar Morin: “O homem em relação a outros seres, é reconhecido pelo utensílio (Homo faber), pelo cérebro (Homo sapiens) e pela linguagem (Homo loquax)...” (MORIN apud PETRAGLIA, 2001, p. 23). 4 Ver este e outros conceitos no glossário ao final do livro. 13 A dúvida radical que move minha caminhada quanto ao fenômeno investigado passa também pela busca de reconstrução dos principais campos que constituem o fenômeno trabalho infantil hoje, por uma nova epistemologia, não mais pautada somente na oralidade, mas, também, na digitalidade. Nesta ótica, modifica-se a dinâmica de delimitação dos campos, constroem-se novos campos, obrigando o pesquisador a desvendar as diferentes formas de disputas, de busca pela valorização dos capitais, dos novos capitais, em face do espaço global, agora desterritorializado, atemporal. Pois, "a tecnologia será importante, principalmente porque irá nos forçar a fazer coisas novas, e não porque irá permitir que façamos melhor as coisas velhas" (DRUCKER apud MACHADO, 2002, p. 171). Ante a um desafio tão vasto e grandioso como este a que me proponho neste trabalho, reporto-me a um autor chamado Carr quando afirma que: Eu não vou desembaraçar todo o emaranhado, pela simples razão de não saber como fazê-lo. Há nele partes importantes onde me sinto como uma mosca numa teia de aranha. Posso zumbir, mas não desembaraçar-me (CARR apud MACHADO, 2002, p. 171). Assim, parece ser sempre impossível desembaraçar-se completamente. O real é relacional e dinâmico, é movimento, nunca pode ser apreendido em sua essência pelo pesquisador, pelo analista. Com isso, lanço- me a este desafio, devendo complexificar o meu olhar para dar conta do real que é embaraçado, é complexo, para desvendar o que no real do trabalho infantil se está construindo em rede, demonstrando como se materializam as dimensões da categoria ‘Rede Dinâmica’ no fenômeno analisado. 1.2 - Novas mediações tecnológicas: novas revoluções As modificações advindas com a Terceira Revolução Industrial e os novos espaços de possíveis à erradicação do trabalho infantil associam-se às características e rupturas trazidas à História, através das revoluções pelas quais passamos. 14 Na gênese da Era Moderna está a utilização da ciência para o aumento da produtividade, com o advento da técnica, que teve, ao longo da história da humanidade três grandes rupturas, revoluções. Motor da acumulação e expansão capitalista, a máquina a vapor promoveu a revolução tecnológica do Séc. XVIII. O mesmo ocorreu com a eletricidade no século XIX e com a automação, que representa o estágio mais recente da evolução tecnológica, ou a terceira onda da Revolução Industrial (ALBORNOZ, 2000). Caracterizada como um processo de mudança de uma economia agrária e manual para uma economia dominada pela indústria e mecanização da manufatura, a Primeira Revolução Industrial tem início na Inglaterra em 1760 e se alastra para o resto do mundo, provocando profundas mudanças na sociedade. Entre as principais rupturas instauradas por este processo,podemos destacar que caracteriza-se pelo uso de novas fontes de energia; invenção de máquinas que permitem aumentar a produção com menor gasto de energia humana; divisão e especialização do trabalho; desenvolvimento do transporte e da comunicação e aplicação da ciência na indústria. A revolução também promove mudanças na estrutura agrária e o declínio da terra como fonte de riqueza; a produção em grande escala voltada ao mercado internacional; a afirmação do poder econômico da burguesia; o crescimento das cidades e o surgimento da classe operária (REVOLUÇÃO industrial. Disponível na Internet em: <http://www.vestigios.hpg.ig.com.br> Acesso em 08 Jan.2004). Segundo Lester Thurow (EXAME, nov. 2001, p. 101), se há trezentos anos cerca de 90% da população vivia da agricultura, atividade que era exercida com a mesma tecnologia primitiva - cavalos, bois, pessoas e fertilizantes de origem animal, foi a invenção da máquina a vapor que fez com que 8 mil anos de agricultura como atividade dominante da humanidade chegassem ao fim. E, em 30 anos, os industriais da Inglaterra conseguiram reunir uma fortuna maior que a dos nobres, que foram os homens mais ricos dos séculos anteriores. A Primeira Revolução Industrial concentra os trabalhadores em fábricas, promove o desenvolvimento urbano e muda radicalmente o caráter do trabalho. Para aumentar o desempenho dos operários, a produção é dividida 15 em várias operações. O operário executa uma única etapa, sempre do mesmo modo, o que o aliena do processo de trabalho. Entre a segunda metade do século XIX e primeira metade do século XX, após a Primeira Guerra Mundial, surgiu um novo período denominado "Nova Revolução Industrial" ou "Segunda Revolução Industrial". Neste período, alimenta-se na indústria a mística de lucratividade da ciência, e empresas começam a financiar tanto a pesquisa básica como a aplicada: Ao contrário do empirismo tecnológico, totalmente dissociado da ciência, que caracteriza a Primeira Revolução Industrial, a dinâmica tecnológica comandada pela grande empresa se associa com a ciência acarretando uma aceleração do processo de desenvolvimento científico e tecnológico (A SEGUNDA revolução industrial. Disponível na Internet em: <http://www.ufv.br/dee/evonir/eco461> Capturado em 08 jan. 2004). A Segunda Revolução Industrial compreende o período em que os alemães criaram o conceito de investimento sistemático em pesquisa e em desenvolvimento, tendo como base a ciência acadêmica, fato que modificou para sempre as formas de desenvolvimento técnico. Neste período, a grande ruptura foi trazida pela invenção da eletricidade, que multiplicou a capacidade produtiva do homem, libertando-o dos limites naturais, como a noite e o dia. Era a tecnologia desafiando os ciclos da natureza. A energia elétrica está para a Segunda Revolução Industrial assim como a máquina a vapor esteve para a Primeira. Com a luz elétrica, as taxas de lucratividade foram elevadas, permitindo o acelerado crescimento industrial. Para aumentar a produtividade do trabalho, surge o método de administração científica de Frederick W. Taylor, que se tornaria mundialmente conhecido como taylorismo. Para ele o grande problema das técnicas administrativas existentes consistia no desconhecimento, pela gerência, bem como pelos trabalhadores, dos métodos ótimos de trabalho. A busca dos métodos ótimos, seria efetivada pela gerência, através de experimentações sistemáticas de tempos e movimentos. Uma vez descobertos, os métodos seriam repassados aos trabalhadores que se transformavam em executores de tarefas pré-definidas (A SEGUNDA revolução industrial. Disponível na Internet em: 16 <http://www.ufv.br/dee/evonir/eco461> Capturado em 08 jan. 2004). Vê-se aqui a diminuição de espaços voltados à auto-eco-organização5 dos trabalhadores, típicos da época e do então estágio de desenvolvimento das forças produtivas, rígidas, controladoras, hierarquizadas e com tarefas compartimentadas e mecânicas. Primeiro foi a substituição das ferramentas manuais pelas máquinas; depois, a eletricidade e o motor de combustão interna, bem como o início das tecnologias de comunicação, como o telégrafo e o telefone. Na Segunda Revolução Industrial, é marcante a utilização dos conhecimentos científicos como guias do desenvolvimento tecnológico, sendo ambos períodos marcados por transformações constantes e de grande velocidade (CASTELLS, 1999). A gênese da Terceira Revolução Industrial encontra-se no período Pós- Segunda Guerra Mundial, quando as indústrias química e eletrônica desenvolvem-se. Os avanços da automação, da informática e da engenharia genética são incorporados ao processo produtivo, que depende cada vez mais de alta tecnologia e da mão-de-obra especializada. Os computadores tornam-se a principal ferramenta em quase todos os setores da economia, e o conhecimento, ou a informação, o requisito primordial ao trabalhador (REVOLUÇÃO industrial. Disponível na Internet em: <http://www.vestigios.hpg.ig.com.br> Acesso em 08 Jan.2004). A transformação do modelo produtivo começou a se apoiar nas tecnologias que já vinham surgindo nas décadas do pós-guerra (automação e robotização) e nos avanços das novas tecnologias da informação, pois, o método de produção americano foi substituído pelo método japonês de produção enxuta, que combina máquinas cada vez mais sofisticadas com uma nova engenharia gerencial e administrativa de produção - a reengenharia, que elimina a organização hierarquizada. Agora, engenheiros de projetos, programadores de computadores e operários interagem face a face, compartilhando idéias e tomando decisões conjuntas (TERCEIRA Revolução Industrial e a Reengenharia. Disponível na internet em: <http://www.ime.usp.br/projetos/fim-dos empregos> Capturado em 08 jan. 2004). 5 Ver glossário ao final do livro. 17 Um novo perfil de trabalhador é exigido pelo mercado, com maior valorização de sua capacidade criativa e exigência do desenvolvimento de novas competências. Sob o título amplo de reengenharia, as empresas estão achatando suas tradicionais pirâmides organizacionais e delegando, cada vez mais, a responsabilidade pela tomada de decisão às equipes de trabalho. As NTIC têm tanto aumentado o volume, quanto acelerado o fluxo de atividade em cada nível da sociedade. A compressão de tempo requer respostas e decisões mais rápidas para continuar competitivo, frente ao fluxo de informações que requerem resolução. O novo papel a ser desempenhado pelos trabalhadores no processo produtivo, a importância da informação e a maior exigência de qualificação da mão-de-obra, somados às novas mediações (instrumentos) características da Terceira Revolução, constituem-se em novos possíveis às relações sociais. Na análise do fenômeno trabalho infantil, na perspectiva do emprego, há que se destacar a relação entre a reestruturação produtiva com substituição de mão-de-obra, a diminuição de postos de trabalho (sobretudo não especializados) e a conseqüente pauperização das famílias, o que gera uma crescente utilização de crianças como mão-de-obra. Somam-se a isso o inchaço no mercado informal e o processo de terceirização da economia, cujas características favorecem a absorção de mão-de-obra infantil, devido, entre outros aspectos, à flexibilização e à precarização nas relações de trabalho, sobretudo pela ausência de fiscalização. Diante da crise do emprego há um acirramento nas disputas pelos espaços de trabalho em meio à globalização, fenômeno que pode ser ilustrado através de um depoimento de uma das crianças jornaleirasentrevistadas em pesquisa realizada em Porto Alegre em 19996: “É, eu gostaria de vender todos os dias, mas é só sábado. Eu não sei porque é só sábado, eu acho que é porque os outros também tem que vender a Zero Hora, senão os outros maiores vão ter que largar a Zero Hora só pra nós vendermos” (12 anos) (NETO, 2004, p.64). 6 NETO, 2004. 18 Como pôde perceber este entrevistado, em meio à nova disputa por empregos, utilizar diariamente uma criança na venda de jornais significa deixar de empregar um adulto, pois aquele trabalho que antes atendia somente os interesses de uma criança, por seu caráter flexível, pela ausência de garantias e pelo baixo rendimento, em um contexto de desemprego em massa como vivemos hoje, desperta o interesse de uma mão-de-obra mais qualificada e exigente como a mão-de-obra adulta. A Terceira Revolução Industrial, que surgiu imediatamente após a II Guerra Mundial, somente agora está começando a ter um impacto significativo no modo como a sociedade organiza sua atividade econômica. O movimento de produção do social sempre foi, ao longo da História, auto-eco-organizativo, porém, na Terceira Revolução Industrial, temos mais espaços para realizar os nossos potenciais, pois as mediações, hoje, têm mais elementos voltados à autonomia, por serem mais complexas. Hoje temos mais espaços para realizar aquilo que de virtual carregamos conosco, pois as mediações estão mais de acordo com o ritmo de cada um. Para tanto, é preciso um aparato técnico que permita o acesso às novas tecnologias, às novas mediações, mas, também, uma disponibilidade por parte dos quadros pessoais de empresas, órgãos públicos e demais organizações. A valorização de competências humanas em meio ao processo produtivo é que leva diversos autores a denominar a sociedade atual de sociedade do conhecimento, que substituiu o velho modelo fordista de produção em massa por um modelo flexível informatizado em escala global. Visto que a durabilidade dos produtos observada no modelo fordista modificou- se sensivelmente e que, em meio à produção flexível, as inovações são constantes, ao trabalhador cabe uma formação que possa torná-lo participante ativo de todo o processo produtivo e que lhe permita mudar rapidamente de função quando a anterior tornar-se obsoleta. O paradigma anterior, calcado na idéia da especialização7, do trabalhador, ainda está em fase de superação. 7Ver glossário. 19 Há a necessidade de mudança na postura do trabalhador, pois, apesar de ainda depender do conhecimento meramente técnico, não mais se limita a isso. Hoje se requer habilidades como flexibilidade, autonomia, capacidade de trabalhar em grupo, postura pró-ativa, entre outras, que não se instauram com treinamentos e adestramentos, mas estão relacionadas com o desenvolvimento pessoal do trabalhador. É preciso aprender a aprender e, para isso, já se pode observar mudanças nas relações dentro das empresas, com reflexos nos processos de formação, agora voltados para o despertar do espírito investigativo e criador do homem, brutalizado pelas antigas relações fabris dos modelos fordista e taylorista de produção. Nos dias de hoje, com a revolução da informática, os trabalhadores precisam aprender não somente o alfabeto, mas também a lógica do funcionamento dos computadores e das máquinas de alta tecnologia. Além de adquirir, isto é, aprender, formas de relacionamento e posturas como iniciativa, criatividade, capacidade de comunicação e de trabalho em equipe, coisas que o padrão anterior (das linhas de produção nas indústrias) não só não exigia, mas também proibia. (ASSMANN, 2000, p.91). A instauração de competências e a conquista de uma maior autonomia são, neste contexto, potencializadas, visto que o tensionamento entre o habitus8 do trabalhador e as estruturas objetivas do campo econômico representam uma nova prática formativa, anterior ou concomitante ao ingresso no mercado de trabalho, ou seja, otimizam a aquisição de uma série de saberes que possibilitam uma visão diferenciada do mundo que o cerca e do papel que desempenha nas relações que neste se estabelecem, em outras palavras representam, por exemplo, a aquisição de um maior volume de capital intelectual. Esta nova prática se produz através da lógica dialética do capitalismo, visto que, ao mesmo tempo em que o mercado exige um novo perfil de trabalhador em função das novas formas de organização do trabalho e das novas tecnologias produzidas como forma de nutrir o sistema, o próprio processo produtivo exige a inovação constante e requer educação permanente, 8Ver conceito no glossário. 20 o que, inevitavelmente, forma alguma dose de consciência crítica, podendo, assim, contribuir para a superação da pobreza política da população, condição para superação da pobreza material. (NETO, 2003). Observa-se que o processo de globalização da economia é dialético, o efeito negativo é global e torna as necessidades de atuação e organização para combatê-lo também globais. Nesta perspectiva, é semelhante à forma como ocorria no capitalismo industrial, no qual a extração de mais-valia do proletariado industrial era concomitante com a potencial possibilidade de organização dos trabalhadores em sindicatos ou conselhos de fábricas, capazes de reverter ou amenizar sua condição de exploração e de ampliar os seus direitos (NETO, 2003). Há, hoje, a necessidade de forjar um novo habitus no trabalhador, mais flexível, que represente uma nova postura, uma nova visão em face da realidade e que acompanhe o frenético ritmo de inovações advindas com a sociedade pós-industrial. Essa nova postura exige uma formação ampla, que envolva inúmeros saberes e que extrapole a concepção tradicional ligada a uma qualificação específica, talvez até mecânica, para o cumprimento de determinada função: “é a pessoa inteira, nos fundamentos da sua própria personalidade, que é envolvida pelo ato de formação” (DESAULNIERS, 1997, p.191). Esta exigência não está de acordo com a formação instaurada a partir do trabalho infantil, que “rouba” a infância da criança e adultiza-a precocemente. O melhor aproveitamento dos novos espaços de possíveis, requer a instauração de competências que não estão associadas a este processo. 1.3 - Trabalho infantil: gênese e transformações Em meados do séc. XIX, o avanço da maquinaria nas fábricas inglesas tornou desnecessário o emprego da força muscular para a produção, permitindo o uso de mão-de-obra feminina e infantil. O emprego passou a ocupar o tempo do brinquedo e do trabalho doméstico livre. Desde lá, as concepções e costumes referentes ao trabalho infantil vêm-se modificando, e a proteção à criança e ao adolescente, sobretudo a proteção legal, intensificando-se. 21 Basta relembrar que a utilização de crianças nas fábricas inglesas se assemelha muito ao que hoje entendemos como tráfico de escravos, como, por exemplo, o uso de crianças como "limpadoras vivas" de chaminés. Além de uma legislação que permitia em até 6 horas o trabalho para meninos com menos de 13 anos, os empregadores burlavam essa legislação através da falsificação de documentos e de atestados (MARX, 1985). Relembremos também o alto índice de acidentes de trabalho junto às máquinas de estomentar o linho, cujas conseqüências levavam, na maioria das vezes, à morte ou a graves mutilações. Sem mencionar as inúmeras e constantes doenças pulmonares como a tuberculose, ocasionadas, entre outros fatores,pelo insuficiente oxigênio nos ambientes de trabalho (MARX, 1985). A exploração do trabalho infantil era de tal forma alarmante em meados do séc. XIX, que, nas manufaturas metalúrgicas em Birmingham, Inglaterra, era empregado o trabalho de cerca de 30 000 crianças. Eram atividades extremamente insalubres, nas fundições de cobre, na fabricação de botões, nas oficinas de esmaltar, de galvanizar e de laquear. Em Londres, as impressoras de livros e de jornais exigiam um trabalho tão excessivo que eram denominadas de matadouros (MARX, 1985). Em 1866, nas olarias da Grã-Bretanha, a jornada de trabalho durava das 5 horas da manhã até às 8 horas da noite, e chegava-se a empregar crianças de 6 e até de 4 anos, ocupadas pelo mesmo número de horas dos adultos ou mais. Nas fábricas de renda, o trabalho domiciliar era ainda mais cruel, algumas crianças começavam a trabalhar com menos de 5 anos de idade, enfrentando uma jornada diária de 12 horas em ambientes fétidos e insalubres. O depoimento dado por uma menina trabalhadora à época da industrialização inglesa, reforça essa idéia: '-Sou encarregada de abrir e fechar as portas de ventilação na mina de Gauber, tenho de fazer isso sem luz e estou assustada. Entro às quatro, e às vezes às três e meia da manhã, e saio às cinco e meia. Nunca durmo. Às vezes canto quando tenho luz, mas não no escuro: não ouso cantar'. Esta é a descrição feita por uma menina de oito anos, Sarah Gooder, de um dia nas minas, em meados do século XIX. As revelações de Sarah e de outras crianças levaram finalmente a uma legislação proibindo o emprego de crianças nas minas - quer 22 dizer, crianças abaixo de dez anos de idade! (POSTMAN,1999, p.67). Ainda sobre esse período tirano da história da infância, segundo Postman: A industrialização foi uma inimiga constante e terrível da infância. Com o crescimento da indústria e a necessidade de trabalhadores nas fábricas e nas minas, a natureza especial das crianças foi subordinada à sua utilidade como fonte de mão-de-obra barata [...] um dos efeitos do capitalismo industrial foi dar apoio aos aspectos penais e disciplinares da escola, que eram vistos como um sistema para dobrar a vontade da criança e condicioná-la ao trabalho rotineiro nas fábricas [...] isto se a criança tivesse a sorte de ir à escola, pois no século XVIII e em parte do séc. XIX, a sociedade inglesa foi especialmente feroz na maneira de tratar os filhos dos pobres, que foram usados como combustível no parque industrial inglês (POSTMAN, 1999, p. 67). Em Rochdale, região de Manchester na Inglaterra, trabalhadores de uma tecelagem eram submetidos a vexatórias condições de trabalho. Era insuportável a pressão exercida pelo sistema que obrigava crianças impúberes a quatorze horas ininterruptas de jornada em condições verdadeiramente brutais, em meio à tóxica manipulação e vaporosidade dos elementos químicos aplicados nas oficinas de trabalho (ALVES, 2002, p. 22). Inúmeros aspectos do desenvolvimento físico, cognitivo, emocional, social e moral da criança podem ser ameaçados pelo trabalho, como por exemplo: saúde, coordenação, visão, audição, alfabetização, aprendizado, níveis de auto-estima, de ligação familiar, sentimentos de amor e de aceitação, sentido de identidade de grupo, espírito de cooperação e capacidade de distinguir entre o certo e o errado. Sendo a educação um fator vital para romper com o cerco ao trabalho infantil (emprego), o trabalho pode trazer prejuízos a uma formação escolar, na medida em que o ambiente social do trabalho diminui o valor que a criança dá à educação, fato particularmente comum a crianças de rua. É importante levarmos em conta que, por vezes, a formação física da criança ainda em fase de crescimento não suporta as exigências requeridas 23 pelo trabalho; uma forma de trabalho não prejudicial a um adulto pode ser extremamente prejudicial a uma criança. A FUNABEM (Fundação Nacional para o Bem Estar do Menor de Belo Horizonte), já em 1983 manifesta que: Figura 1: Trabalho infantil 1 (MTE, 2000a). Retomando a época da industrialização inglesa, um poema de William Blake, poeta, pintor, sábio e gravurista inglês, expressa bem aqueles dias: De fato, aos 12 anos de idade está o púbere em plena crise da adolescência, com o arcabouço de sua educação muito longe ainda de qualquer configuração definitiva que nos autorize a substituir a ação formativa pelo recurso à participação do menor na força de trabalho. Sob o ponto de vista biológico, aos 12 anos de idade encontra-se o menor em fase de crescimento e desenvolvimento orgânico, como acusam as alterações morfológicas que apresenta, que também contra-indicam sua iniciação na vida de trabalho, e a interrupção do processo educativo, ou mesmo sua atenuação. A primeira conseqüência do trabalho infantil não orientado é a fadiga excessiva (VASCONCELOS, 1983, p. 5). 24 Figura 2: Trabalho Infantil 2 (USP, 2003). Comentando esta última estrofe, Alves (2002) traz uma frase de Mahatma Gandhi que na Índia afirmava: "Como posso falar de Deus às populações famintas? Para os famintos, Deus só pode aparecer sob a forma de pão" (BLAKE apud ALVES, 2002, p. 23). Penso que o tempo livre, a garantia do espaço do lúdico, e a proteção integral a que têm direito as crianças, as aproximariam, e muito, do pão de que fala Gandhi. 1.4 - Novos “possíveis” ao trabalho infantil Em face das inúmeras mudanças ocorridas na sociedade mundial até os dias de hoje, à quebra de tabus, à superação de antigas limitações, ao aprofundamento dos direitos e dos deveres humanos e sociais, sobretudo no âmbito legal, percebe-se hoje a existência de espaços de possibilidades9 para a instauração de um novo habitus social relativo à questão do trabalho infantil, que permita a criação de alternativas humanizadoras para o problema. Contextualizando o nosso objeto de estudo, ressaltamos que a digitalidade10 contribui para que as práticas voltadas ao combate ao trabalho infantil possam encontrar condições de se efetivarem, instiga o virtual para se tornar real, mas não determina por si só essa realização, pois isso vai depender da criação de espaços de possibilidades, de condições (materiais, 9 Ver glossário. 10 Ver glossário. É uma coisa sã ver em uma rica e promissora terra, meninos reduzidos à miséria, nutridos com fria e usurária mão? É esse amedrontado pranto uma canção? Pode ser um canto de alegria? E tantas crianças pobres? Esta é uma terra de miséria! E seu sol nunca brilha, Se seus campos estão descolados e rasteiros, E seus caminhos estão cheios de espinhos: Há aqui um eterno inverno. Porque em qualquer parte em que brilhe o sol, E em qualquer parte em que a chuva caia, Aí os meninos não podem nunca ter fome, Nem a miséria espantar o espírito (BLAKE apud ALVES, 2002, p. 23) 25 ideológicas, culturais, políticas, técnicas) que extrapolam, por exemplo, a existência da rede mundial de computadores, pois as técnicas criam novas condições e possibilitam ocasiões inesperadas para o desenvolvimento das pessoas e das sociedades, mas elas não determinam automaticamente nem as trevas nem a iluminação para o futuro humano (LEVY, 1999, p.17). A utilização das novas tecnologias constitui um espaço de luta, uma potencialidade que, de forma nenhuma, está dada automaticamente. A tecnologia, hoje, impõe ao homem o desenvolvimento de novas habilidades mentais, o que significa aquisição de conhecimento, e portanto, de consciência, e aumento de capitais que lhe possibilitem ocupar umaposição mais favorável dentro do espaço social. No entanto, se por um lado essas novas tecnologias trouxeram ao mundo moderno “magníficos feitos”, como por exemplo, a invenção de automóveis, dos meios de comunicação de massa, dos eletrodomésticos e computadores, além dos avanços na área da saúde, educação, política, e habitação, o que, consequentemente trouxe conforto e bem-estar, por outro lado trouxe também inúmeros riscos e retrocessos. O domínio do homem sobre a natureza criou aquilo que Edgar Morin chama de agonia planetária;11 com o aumento das incertezas e da insegurança em relação a questões como a fome, o risco nuclear e as inúmeras e crescentes afrontas à biosfera e ao ecossistema. Ilusão da modernidade, a liberdade e a emancipação humanas a serem trazidas pela técnica, não só não libertaram o homem da pobreza e da miséria, como ameaçam nossa sobrevivência enquanto espécie. Obra que perpetua a existência humana e sobrevive à vida, negação do ócio, fabricação e fonte de reconhecimento social e auto-reconhecimento, o grande diferencial entre o trabalho do homem e o de outros animais está no fato de esse ter consciência e intencionalidade (ALBORNOZ, 2000). Aqui reportamo-nos ao fato de ser essa liberdade e poder criativo do homem opostos ao instinto e à tendência à repetição das outras espécies, fato o qual o 11 "A agonia planetária não é só a soma de conflitos tradicionais de todos contra todos, mais as crises de diversas espécies, mais o surgimento de problemas novos sem solução, é um todo que se nutre desses ingredientes conflituais, de crise, de problemas, englobando-os, ultrapassando-os e por sua vez alimentando-os. A agonia de morte/nascimento é talvez a via, com riscos infinitos para a metamorfose geral[...] Na condição de que, justamente dessa agonia, nos venha a tomada de consciência" (MORIN, 2000, p. 102). 26 caracteriza como único animal que não nasce pronto, tendo, portanto, que se desenvolver, adquirir competências12 que o preparem para a vida e para o enorme potencial criativo que o caracteriza e o distingue. É neste sentido, que o trabalho infantil representa um entrave à instauração de competências básicas13, com vistas à formação do cidadão planetário do século XXI. E é a partir desta perspectiva que se impõe uma discussão que tensione e complexifique as produções e noções sobre o tema. A categoria de análise ‘Rede Dinâmica’ contribui para a atualização da temática sobre o trabalho infantil, como abordarei a seguir. 1.5 - Rede Dinâmica: a metáfora da complexidade do trabalho infantil Nós, humanos, somos seres que não nascemos prontos, precisamos ser formados para desenvolver todo o nosso potencial. Somos seres auto-eco- organizativos, precisamos também do entorno, daí que Machado aponta para importância das metáforas no processo de ensino e aprendizagem, como forma de acender um novo arco de energia perceptiva, de relacionar áreas de experiência até então não relacionadas; essa nova relação pode ser uma contrapartida orgânica direta na medida em que centros de memória e exploração do córtex, até então separados, são postos em circuito (MACHADO, 2000, p. 166). Esse autor reforça a visão do "corpo humano" como algo incompleto a ser preenchido ou desenvolvido em toda a sua potência através de práticas, de experiências. Refere ainda a comprovação da existência de "mudanças reais nas sinapses sob ação de excitações freqüentes, onde pelo uso, as sinapses se tornam mais eficientes” (MACHADO, 2000, p.166). É o cérebro conectado através de práticas. O epistemólogo Gaston Bachelard dizia ser preciso provocar uma relação permanente entre os elementos que compõem o ato de conhecer. Talvez seja por isso que, quando Rubem Alves, aponta para o verdadeiro papel do formador, ele demonstra ser "não o de ensinar as pessoas 12 “Uma competência pressupõe a existência de recursos mobilizáveis, mas não se confunde com eles, pois acrescenta aos mesmos ao assumir sua postura em sinergia com vistas a uma ação eficaz em determinada situação complexa” (PERRENOUD, 2000, p. 35). 13 "O desenvolvimento das capacidades básicas é condição imprescindível à realização da dinâmica entre o poder das energias humanas disponíveis e as necessidades sociais e está ligada à instauração de competências sociais...” (DESAULNIERS, Resenhista, 2000, p.20). 27 e sim de completar as pessoas, os corpos das pessoas que nascem incompletos" (ALVES, 2003). Esse mesmo autor afirma ainda que "um bom professor tem de ser um mestre em fazer analogias, pois a analogia torna o mundo habitável" (ALVES, 2001, p. 88). Daí a importância da apreensão teórica da categoria de análise ‘Rede Dinâmica’ como um “paradigma de conhecimento”, um instrumento das redes de significados e como metáfora, cujos pressupostos contribuem para traçar um caminho com vistas ao entendimento do real contemporâneo. A ‘Rede Dinâmica’ é um construto, uma categoria que condensa a complexidade e a diversidade do mundo atual, os potenciais trazidos pelas novas tecnologias de informação e comunicação (NTIC), pelas novas mediações que caracterizam a Terceira Revolução Industrial: O Átomo é passado. O símbolo da ciência para o próximo século é a Rede Dinâmica [...] Enquanto o Átomo representa uma clara simplicidade, a Rede canaliza o poder confuso da complexidade [...] A única organização capaz de crescimento sem preconceitos e aprendizagem sem guias é a rede. Todas as outras topologias são restritivas. Um enxame de redes com acessos múltiplos e, portanto, sempre abertas de todos os lados [...] De fato, uma pluralidade de componentes realmente divergentes só pode manter-se coerente em uma rede. Nenhum outro esquema – cadeia, pirâmide, árvore, círculo, eixo – consegue conter uma verdadeira diversidade funcionando como um todo (KELLY apud CASTELLS, p. 85). Na origem da ciência, o método experimental fundamentava-se na separação, retirando o objeto de análise de seu contexto para analisá-lo, porém, o princípio da separação torna-nos talvez mais lúcidos sobre uma pequena parte separada do seu contexto, mas nos torna cegos ou míopes sobre a relação entre a parte e seu contexto, pois, o conhecimento de nós próprios não é possível, se nos isolarmos do meio em que vivemos (MORIN, 1999, p. 20). Um dos princípios da complexidade, o sistêmico (ou organizacional), liga o conhecimento das partes ao conhecimento do todo e nos mostra que é impossível conhecer o todo sem conhecer as partes, assim como conhecer as partes sem conhecer o todo, e ainda, que o todo é mais e menos do que a 28 soma das partes (MORIN, 1999). Hoje, temos, potencialmente, a capacidade de processar informações não de forma seqüencial e fragmentada, mas hipertextual, complexa, relacional, holística. Assim, é preciso levar em conta que as propriedades das partes podem ser entendidas apenas a partir da dinâmica do todo, pois em última instância, não existem partes, o que nós chamamos parte é apenas um padrão em um tecido inseparável de relações (CAPRA apud MACHADO, 2000, p. 162). Pierre Levy afirma ser o hipertexto a linguagem das redes, e a rede a organização que sustenta os hipertextos e entre suas dimensões, ou princípios, está o princípio de multiplicidade e de encaixe das escalas: O hipertexto se organiza em um modo 'fractal', ou seja, qualquer nó ou conexão quando analisado pode revelar-se como sendo composto por toda uma rede, e assim por diante, indefinidamente (LEVY, 1999, p. 26). O real é uma rede, cada um de nós está situado em diferentes redes, daí a importânciade pensarmos também em rede, mas falamos aqui de uma ‘Rede Dinâmica’ e não atomizada, pois o átomo divide, compartimenta. Aqui entra a idéia da "análise", já a ‘Rede Dinâmica’ relaciona, busca ver e trazer as relações. Relações que podem ser melhor entendidas tendo como ponto de partida que não só as organizações são, podem ou devem ser uma rede, como o fato de que cada um de nós, seres humanos, constitui uma rede (mais ou menos complexa, mais ou menos atomizada, mais ou menos dinâmica, mas virtualmente uma rede). A metáfora rede representa, neste sentido, um ótimo "instrumento" de autoconhecimento e auto-avaliação, fundamental para melhor interagirmos com o mundo complexo e sua nova organização. Ou seja, há relação entre ser rede, compreender-se como ‘Rede Dinâmica’, quase que como um ideal a ser alcançado, para interagir de maneira mais vantajosa com o entorno, com o social em rede, com o movimento da rede, para que não sejamos "sugados" 29 pelo caos.14 A importância desta metáfora para o autoconhecimento diz respeito ao vetor de produção do social, cuja perspectiva epistemológica adotada neste livro parte da idéia de que o movimento do social se dá do auto para o eco, de dentro para fora, questão que aprofundaremos no Capítulo 3. Manuel Castells demonstra a lógica que rege a teia que une e move as inúmeras mutações verificadas no social, estreitamente associadas ao ritmo veloz com que ocorrem, denominadas por ele de sociedade informacional. A possibilidade de compreensão dessa teia, ou do fio da meada que rege este novo contexto mundial na virada do século, remete o leitor ao sentimento de que ainda há uma lógica de funcionamento desse nosso mundo aparentemente ilógico, mesmo construído com um grau cada vez maior de imprevisibilidade e de incerteza. Tal lógica é a lógica da rede, à qual vivemos conectados, interligados, interdependentes. A riqueza de dados e a diversidade de olhares que Castells nos apresenta, e que é fruto de uma pesquisa de mais de uma década, fortalecem a idéia de que a categoria de análise (rede) torna-se imprescindível ao se investigar a complexidade dos fenômenos sociais. Há um sentimento de que somos privilegiados por testemunhar e vivenciar um daqueles raros momentos que entrarão para a História e que aparecerão, seja na forma que for, em documentos e em relatos sobre a evolução do homem e das sociedades no futuro. Esse sentimento é mobilizado por suas análises sobre a forma como a sociedade hoje se organiza a partir de um novo modo de desenvolvimento cujo elemento fundamental é a informação, maior fonte de produtividade e poder, e que tem na revolução tecnológica e no advento de novas tecnologias sua mola propulsora. A metáfora ‘Rede Dinâmica’ nos traz subsídios para que entendamos a nova dinâmica de funcionamento da sociedade contemporânea e a nova forma de constituição dos fenômenos sociais, como a problemática do trabalho infantil, aqui analisada: 14 E também aqui a importância de o próprio pesquisador complexificar seu olhar para poder ver o complexo, abarcar a complexidade do real, a rede intrincada de relações que forma o real, sendo ele (o pesquisador) o principal recurso empreendido em uma pesquisa. 30 Quanto à lógica interna do sistema informacional, diz respeito à capacidade de transformar todas as informações em um sistema comum de informação, processando-as em velocidade e capacidade cada vez maiores e com custo cada vez mais reduzido em uma rede [...] (CASTELLS, 1999, p. 51). Daí a utilização do termo sociedade em rede, cujo resultado histórico segundo Castells “é muito indeterminado, visto que a interação da tecnologia e da sociedade depende de relações fortuitas entre um número excessivo de variáveis parcialmente independentes...” (CASTELLS, 1999, p. 69). A rede, portanto, compreende pontos de nexo, articulação, pois este processo, embora perpassado por inúmeros possíveis, não se instaura automaticamente. Embora virtualizada a partir de um suporte técnico informacional, a instauração do processo em ‘Rede Dinâmica’ não tem seu fluxo por vida própria, requer o desempenho de papéis estratégicos voltados à solidez da rede, ao objetivo, à sua finalidade15. A dimensão do fortuito que a complexidade das sociedades contemporâneas traz não elimina a necessidade de planejamento, ao contrário. Porém a interação com o movimento e o imprevisível é garantida pela forma de estruturação e de entendimento da sociedade atual como uma sociedade em rede, pois conforme Castells Essa configuração topológica pode ser implementada materialmente em todos os tipos de processo e organizações graças a recentes tecnologias da informação [...] E essa lógica de redes, contudo, é necessária para estruturar o não- estruturado, porém preservando a flexibilidade, pois o não- estruturado é a força motriz da inovação na atividade humana (CASTELLS, 1999, p. 78). A passagem a seguir reforça uma das dimensões do conceito de ‘Rede Dinâmica’, a flexibilidade: O que distingue a configuração do novo paradigma tecnológico é a sua capacidade de reconfiguração, um aspecto decisivo em uma sociedade caracterizada por constante mudança e fluidez organizacional [...] Porém, a flexibilidade tanto pode ser uma força libertadora como também uma tendência repressiva, se os redefinidores das regras forem sempre os poderes constituídos (CASTELLS, 1999, p. 78). 15 Neste sentido, um fórum, como o Fórum Estadual de Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção do Trabalho do Adolescente, que mobiliza e reúne uma diversidade de entidades e de pessoas, constitui-se como uma rede cujo movimento e cuja eficácia dependem dos objetivos a que se propõe. Os objetivos da rede, neste caso a erradicação do trabalho infantil e a proteção do trabalhador adolescente, é que lhe dão forma. 31 Aqui, Castells chama atenção para o fato de que a sociedade em rede é potencialmente democrática, sendo esta uma condição para que aflore a flexibilidade. É uma ótica que traz agilidade nas decisões e reorganizações, pois uma organização não se sustenta, ante a ‘Rede Dinâmica’, sem democracia, até porque a estrutura da ‘Rede Dinâmica’ pressupõe um poder horizontalizado e, não, verticalizado; é nesse sentido, portanto, oposto a pirâmide. Pierre Levy, ao desenvolver as características do hipertexto, denominou como o princípio de mobilidade dos centros, o fato de que "a rede não tem centro, ou melhor, possui permanentemente diversos centros que são como pontas luminosas [...] saltando de um nó para outro" (LEVY, 1993, p.23). Aponta, também, para o princípio da metamorfose, que se refere ao fato de estar a rede hipertextual em constante construção e renegociação, em permanente transformação. A fluidez, única forma de adaptação constante ao novo, ao imprevisto, ao imponderável, caracteriza a dinâmica da nossa sociedade do conhecimento, pois é a fluidez que garante o movimento da rede, a não rigidez: As organizações devem se abrir a uma circulação contínua e constantemente renovada de especialidades científicas, técnicas, sociais ou mesmo estéticas, assim que essa renovação diminui seu ritmo, a empresa ou organização corre o risco de esclerose e logo de morte [...] pois o saber tornou-se a nova infra-estrutura (LEVY, 1998, p. 20). Na sociedade informacional, tende a envelhecer a organização cuja capacidade de reestruturação, de desburocratização das ações e agilidade na gestão sejam limitadas. Aqui, reportamo-nos a uma outra dimensão que caracteriza a sociedade do conhecimento, a de não se organizar emuma perspectiva apenas local, mas sim glocal. A riqueza da sociedade em rede está em sua diversidade, e não na uniformidade, sendo esta, outra de suas características fundamentais. Temos hoje, condições de explorar a diversidade dos agentes que a compõem, os diversos e impensáveis capitais que possuem, que formam o que esse autor denomina de inteligência coletiva16, coletivos inteligentes a serem construídos 16 Ver conceito no glossário. 32 de forma intencional pela Rede. Levy, refere a engenharia do laço social como “a arte de suscitar coletivos inteligentes e valorizar ao máximo a diversidade das qualidades humanas” (LEVY, 1998, p. 32). O princípio da heterogeneidade aponta que "os nós e conexões de uma rede hipertextual são heterogêneos" (LEVY, 1993, p.25). A sociedade em rede é heterogênea e também aberta. A rede está aberta por todos os lados, possui várias entradas e várias saídas que estabelecem diversos níveis de conexão e participação. Também por isso não é local, pois qualquer mobilização em rede que lida com organismos vivos não pode proceder de forma atomística (compartimentada) e, sim, holística (relacional), sendo, por isso, também, ilimitada. Conforme Castells (1999, p.81), “O paradigma da tecnologia da informação não evolui para o seu fechamento, mas rumo a uma abertura como uma rede de acessos múltiplos”. De acordo com Levy, "a rede hipertextual está em constante construção e renegociação", está em permanente transformação, assim como a rede do trabalho infantil na Terceira Revolução Industrial que está, ainda, se configurando (LEVY, 1993). Quanto às NTIC, que complexificam as relações e as mediações sociais na sociedade da informação, temos hoje, potencialmente, melhores condições de interagir com o social a partir de uma postura mais autônoma, auto-eco-organizativa. Partimos do pressuposto de que o social se constrói do individual para o coletivo através do movimento que desencadeiam seus agentes, das energias e interesses dos agentes para o todo, em que todos têm sua força, e a construção social se dá por isso. Daí que, na ‘Rede Dinâmica’, não há espaço nem para "chefe" nem para "massa de manobra", pois a autonomia é fundamental e está ligada à consciência das ações e das adesões. As formas de organizações piramidais estão incorporadas nos agentes sociais e estão associadas a uma postura passiva que ainda caracteriza nossa sociedade, possível de ser rompida através dessa adesão consciente e autônoma. Trata-se também de uma sociedade eminentemente aprendente, no sentido de poder constituir-se enquanto um espaço de formação para os seus agentes: 33 Quanto melhor os grupos humanos conseguem se constituir em coletivos inteligentes, em sujeitos cognitivos, abertos, capazes de iniciativa, de imaginação e de reação rápidas, melhor asseguram seu sucesso no ambiente altamente competitivo que é o nosso (LEVY, 1998, p. 19). A qualidade aprendente deste novo modelo de desenvolvimento, diz respeito ao fato de que: A empresa, como outras instituições, acolhe e constrói subjetividades. Já que condiciona todas as outras, a produção contínua de subjetividades será provavelmente considerada, no próximo século, a principal atividade econômica (LEVY, 1998, p. 21). Outra dimensão da metáfora ‘Rede Dinâmica’ é a visibilidade. Por isso é glocal; a "aldeia global" é possibilitada pelas NTIC, que permitem fazer circular as informações internas e externas, o que a torna também cada vez mais intricada, interdependente, e, por isso, também, mais complexa. Quando Levy refere o potencial democrático da sociedade informacional, ele fala da possibilidade de construção de coletivos inteligentes que valorizem a diversidade das inúmeras redes que a dinâmica do social constrói e reconstrói, que escapem de controles verticalizados, que misturem lazer, cultura, trabalho e produção, pois se inserem na lógica econômica dos mercados, visto que: Se a fronteira entre vida profissional e desenvolvimento pessoal se apaga, é a morte de certo economismo [...] os imperativos econômicos não podem mais girar em círculo fechado, uma vez que um verdadeiro engajamento subjetivo é requerido dos atores humanos, as finalidades econômicas devem remeter ao político [...] à ética e à vida da cidade (LEVY, 1998, p. 21). A ausência de um controle verticalizado e totalitário, associado a um desenvolvimento autônomo, são condições para o aumento da liberdade e da democracia, potencial que a sociedade em rede, em função de suas características, de sua engenharia, traz consigo. Embora este subcapítulo tenha a intenção maior de situar o leitor a respeito das dimensões da categoria ‘Rede Dinâmica’, cuja materialização dos 34 pressupostos será demonstrada no Capítulo 2, é importante trazer algumas passagens que reforçam esta necessidade, este olhar. Acredito que dessa forma, será possível vislumbrar mais concretamente em que medida o tema trabalho infantil é também influenciado pelas questões aqui levantadas, ou seja, o que no real do trabalho infantil se está construindo em rede. É importante ressaltar que, inevitavelmente, toda a sociedade está sendo afetada pela nova dinâmica social, fato que reforça a importância de lançar um olhar que dê conta destas transformações. Uma análise sociotécnica do trabalho infantil na Terceira Revolução Industrial, como a que me proponho realizar, diz respeito a esta nova episteme, este novo paradigma que perpassa a dinâmica social: Os principais aspectos do paradigma da tecnologia e da informação representam a base material da sociedade da informação [...] a primeira característica é que a informação é sua matéria-prima: são tecnologias para agir sobre a informação, não apenas informação para agir sobre a tecnologia, como foi o caso das revoluções tecnológicas anteriores [...] o segundo aspecto refere-se à penetrabilidade dos efeitos das novas tecnologias. Como a informação é uma parte integral de toda a atividade humana, todos os processos de nossa existência individual e coletiva são diretamente moldados (embora, com certeza, não determinados) pelo novo meio tecnológico (CASTELLS, 1999, p. 78). Vale lembrar aqui o que pensa Pierre Levy, que elaborou a noção de hipertexto: as novas tecnologias da inteligência, enquanto extensões naturais da oralidade e da escrita representadas pelas tecnologias informáticas, reconstroem a constituição dos universos de significados [...] o hipertexto é talvez uma metáfora válida para todas as esferas da realidade em que significações estejam em jogo (LEVY, 1998, p. 25). Finalizando este subcapítulo, reporto-me à passagem a seguir, que expressa meu sentimento atual referente ao tema: Não tenho medo de que meu tema possa, em exame mais detalhado, parecer trivial. Receio apenas que eu possa parecer presunçoso por ter levantado uma questão tão vasta e tão importante (CARR apud MACHADO, 2000, p. 171). 35 1.6 - Rede de significações do trabalho infantil na 3ª Revolução Industrial A sociedade se reproduz com a participação dos agentes na construção social, embora reconheça os limites colocados pelas condições objetivas das estruturas sociais. A estrutura é sempre estruturante, mas não há determinação. Há sempre lugar para a auto-organização, para a mudança, para a inovação. O rigor científico passa pela construção do objeto de pesquisa, que distingue o cientista e o campo científico. Este livro traz um olhar bastante incomum em trabalhos e debates do gênero, no que diz respeito a uma questão tabu como o trabalho infantil.Visão que não prioriza a análise da questão de segmentos sociais, mesmo entendendo sua importância e significação. A forma como venho objetivando a realidade do trabalho infantil, desde a análise do processo de formação das crianças jornaleiras de Porto Alegre no ano de 2004, chamando atenção para aspectos não revelados daquelas práticas e, hoje, ao conceituar o trabalho infantil como roubo da infância, independentemente, portanto, de segmento social, reporta-me a Bourdieu, segundo o qual, os conceitos podem e em certa medida, devem permanecer abertos, provisórios, o que não quer dizer vagos, aproximativos ou confusos [...] A contribuição de um pesquisador pode consistir, em mais de um caso, em atrair a atenção para um problema, para alguma coisa que não era vista porque evidente demais, clara, porque, como dizemos em francês, ‘saltava aos olhos’ (BOURDIEU, 1990, p.56). O uso de um modelo complexo hoje, diz respeito ao fato desta análise ser mais abrangente, e extrapolar a questão local, presa apenas a um segmento de trabalhadores infantis, marcada pela questão de segmento social, como no caso da análise referida anteriormente. É importante ressaltar que a complexificação do meu olhar só foi possível pela capacidade de complexificação dos filtros utilizados nessa análise, que permitem vislumbrar o fenômeno a partir de uma nova episteme. 36 Daí que por isso recorro a outras abordagens, trazendo de forma profunda o objeto, através de uma visão complexa, de ‘rede’. Sobre este processo de ruptura na construção do saber científico me reporto às idéias de Capra segundo o qual diz que: Em ciência, esta mudança (de paradigma) é uma das coisas mais difíceis de aceitar, porque os cientistas estão fortemente condicionados pela velha metáfora. Ela está tão entranhada na linguagem da ciência que se torna muito difícil mudar para o ‘pensamento em rede’ (CAPRA apud MACHADO, 2000, p. 171). Desde um folder, onde crianças de mãos dadas trazem a questão dos direitos garantidos pelo ECA, até os programas nacionais são todos provas de que este modelo é demonstrável, que o trabalho infantil está em rede. Por estar sendo construído hoje por um olhar mais complexo, vê-se quão efêmero se torna este fenômeno fluído, sob um ritmo de mudanças muito mais veloz. Este é um risco inerente à intenção de problematizar o objeto a partir de suas rupturas, e este esforço em perceber a descontinuidade do real, um dos postulados do referencial aqui utilizado, requer a renúncia às grandes filosofias do devir histórico. No que diz respeito a esta dialetização de conceitos, conforme Morin: “A renúncia ao melhor dos mundos não está significando a renúncia por um mundo melhor” (MORIN; KERN, 2000, p.11). Vê-se que não é mais permitido ser conservador na Terceira Revolução Industrial, mesmo com relação ao trabalho infantil. Neste sentido, minha preocupação nada mais é do que demonstrar como se complexificou o fenômeno no momento em que novas mediações entram na sua construção. Bruno Latour, referindo-se aos cientistas, afirma que: Nós mesmos somos híbridos [...] optamos por descrever as tramas onde quer que estas nos levem [...] Nosso meio de transporte é a noção de tradução de Rede, mais flexível que a noção de sistema, mais histórica que estrutura, mais empírica que complexidade [...] é o fio de Ariadne dessas histórias confusas (LATOUR, 1994, p. 9). 37 Como forma de reconstruir a rede de significações do trabalho infantil na Terceira Revolução Industrial, abordo o fenômeno através de operadores, instrumentos para dar conta da complexidade, através das dimensões da categoria ‘Rede Dinâmica’. Configuro metodologicamente, assim, a teoria materializada pela ‘Rede Dinâmica’, da qual a própria construção da ‘Rede do Trabalho Infantil’ já é o pressuposto. Utiliza-se a metáfora rede, como instrumento de conhecimento, como caminho para conhecer, através de inter-relações referentes ao objeto e à forma como o cercamos, à forma como estabelecemos analogias a fim de entendê-lo. Entre as principais dimensões comuns nas diversas abordagens sobre a categoria rede, podemos destacar a ‘Rede Dinâmica’, cujas características apontam para o fato de ser interdependente, fluída, estar em constante movimento, ser indeterminada, flexível, aberta a todos os lados, glocal (global e local), auto-organizativa, aprendente, visível e complexa. Podemos, a seguir, vislumbrar graficamente estas principais dimensões: Figura 3: Dimensões da categoria de análise ‘Rede Dinâmica’ Este livro visa mapear e demonstrar a rede e as fontes de cada “nó” dessa rede, a forma como se complexificou. É importante ter claro que um fato novo modifica a dinâmica da rede, daí o fato dela ser dinâmica. Trata-se de FLUÍDA DEMOCRÁTICA VISÍVEL FLEXÍVEL GLOCAL ABERTA ILIMITADA DIVERSIFICADADA COMPLEXA AUTO-ORGANIZATIVA APRENDENTE INTERDEPENDENTE REDE DINÂMICA 38 uma análise acumulativa que se complexifica a cada novo operador que é trazido para demonstrar o fenômeno pesquisado. As NTIC abrem, expandem, disseminam a rede, que tem vários centros; na verdade as tecnologias são a própria rede, são o espaço, a rede é o espaço. 39 PARTE II - TRABALHO INFANTIL EM REDE: UMA ABORDAGEM COMPLEXA 2 - NOVAS MEDIAÇÕES, NOVAS RELAÇÕES SOCIAIS E NOVA INFÂNCIA A história das relações humanas e da construção social dos fenômenos não pode ser desvinculada da história das mediações sociais, das técnicas, das tecnologias disponíveis em cada período histórico, bem como, das rupturas que a penetrabilidade dessas mediações instaura nas sociedades, em todas as suas dimensões. Daí a importância de fazermos uma análise sociotécnica do trabalho infantil, dando visibilidade às novas relações sociais associadas ao advento de novas técnicas. As mediações desencadeadas a partir das novas tecnologias de informação e comunicação (NTIC), características da sociedade pós-industrial, complexificam-se, rompem as relações sociais tradicionais, instaurando uma nova dinâmica nos fenômenos, incluindo o trabalho infantil. Tal processo, antes restrito aos segmentos populares, agora atinge crianças de todos os segmentos sociais, mesmo que de diferentes formas. Em decorrência disso, a adultização precoce dispõe de possibilidades inusitadas. 2.1 - Novas Tecnologias de Informação e Comunicação (NTIC) Ao se complexificarem, as mediações instauram rupturas nas relações sociais, e é o nível da técnica, as possibilidades associadas às técnicas disponíveis, que permitem a realização da potência dos sujeitos. Mas então, quais são essas novas mediações? Quais suas características? Qual a penetrabilidade nas sociedades e quais os impactos e transformações que instauram? Jornais, revistas, programas de rádio e TV, simpósios acadêmicos, filmes, documentários e inúmeros livros, apontam para o fato de que vivemos em uma sociedade da informação, era digital, planetária, sociedade midiática. O conceito de mídia, segundo Levy, refere-se “ao suporte ou veículo da mensagem. O impresso, o rádio, a televisão, o cinema ou a Internet, por exemplo, são mídias” (1999, p.61). O acesso e a troca de informações sempre estiveram presentes nas sociedades humanas, hoje, porém, as mediações disseminam a informação de uma maneira inédita e com características que a distinguem das mediações anteriores, instaurando profundas rupturas na dinâmica dos fenômenos. Os dispositivos comunicacionais, hoje disponíveis, possibilitam as diferentes formas de comunicação
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