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ALDEMIRO REZENDE DANTAS JÚNIOR A TEORIA DOS ATOS PRÓPRIOS Elementos de identificação e cotejo com institutos assemelhados DOUTORADO EM DIREITO CIVIL PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA SÃO PAULO – 2006 ALDEMIRO REZENDE DANTAS JÚNIOR A TEORIA DOS ATOS PRÓPRIOS Elementos de identificação e cotejo com institutos assemelhados Tese apresentada à Banca Examinadora da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Direito Civil, sob a orientação do Professor Doutor Sílvio Luís Ferreira da Rocha. PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA SÃO PAULO - 2006 Meus agradecimentos aos Excelentíssimos Senhores Doutores integrantes da Banca e a todos os que me ajudaram nessa árdua cami- nhada, e que deixo de nominar para não cometer a injustiça de esquecer de alguém. Minha especial homena- gem, contudo, ao ilustre Professor Doutor Sílvio Luís Ferreira da Rocha, a quem tive a honra de ter como Orientador e o privilégio de ter como amigo. Meus mais sinceros agradecimentos a tão ilustre jurista, cujo apoio incondicional mostrou-se essencial à conclusão do presente trabalho. PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA SÃO PAULO - 2006 Banca Examinadora ____________________________ ____________________________ ____________________________ ____________________________ ____________________________ Para Vera, Simone, Bruno e meus pais. Este trabalho é dedicado a vocês. Resumo O objetivo principal do presente trabalho é realizar a abordagem sistematizada da boa-fé considerada como norma de conduta, de modo a suprir uma lacuna existente em nossa doutrina, e que pode ser constatada pela verificação de que embora a boa-fé objetiva seja mencionada com grande freqüência, geralmente o é apenas como um simples reforço lingüístico, sem qualquer precisão científica ou terminológica. Além disso, os poucos autores que se dedicaram ao exame da boa-fé centraram seus estudos nas relações contratuais, em inaceitável redução de assunto que se mostra extremamente amplo. Assim, buscou-se demonstrar e exemplificar a aplicação do princípio em outras áreas do Direito, como o Direito Administrativo e o Direito Processual. Buscou-se, ainda, a decomposição da boa-fé em seus principais elementos constitutivos, de modo a que também fosse possível identificar as diversas subespécies de institutos que derivam da boa- fé, cada um com suas características próprias e sendo distinto dos demais. A partir dessa decomposição, foi dada ênfase no estudo do venire contra factum proprium, cujos elementos constitutivos foram individual e minuciosamente abordados, o que permitiu não apenas a elaboração de uma definição para o instituto, mas também o cotejo mais preciso com institutos assemelhados, tais como o tu quoque, a exceptio doli, a suppressio, etc. Para o atingimento de tais objetivos, partiu-se do exame da fides dos romanos, passando pela sua recepção e atualização, levada a cabo pelo trabalho dos glosadores e dos pós-glosadores, e pela sua inclusão no Código Civil francês. Seguiu-se, ainda, o caminho trilhado pelos tribunais franceses, no exame dessa boa-fé agora codificada, com sua nítida influência no direito civil alemão, de onde saltou para o Código Civil grego, para o Código Civil português e, finalmente, para o atual Código Civil brasileiro. Neste último, buscou-se a identificação de várias disposições legais que, no fundo, nada mais são do que hipóteses de aplicação do venire, ainda que nosso Código Civil, em nenhum momento, faça referência a tal instituto e, a partir dessa identificação construiu-se a buscada definição da figura do venire contra factum proprium , composta dos seus elementos caracterizadores. Abstract The main purpose of this paper is to realize the systematic approach regards good- faith, considered a conduct norm in a way that supplies the existing lacuna in our doctrine, which can be ascertained by checking that although the objective good-faith is frequently mentioned, it is usually done as a simple linguistic reinforcement lacking any scientific or terminologic accuracy. Moreover, the few authors who dedicated themselves to the examine of good-faith focused primarily on contractual relations , showing this unacceptable tendency to decrease the discussion around this topic when there is so much to talk about it. Thus it was tried to demonstrate and to exemplify the principle application in other fields of the Law, such as the Administrative Law and Processual Law. It was also tried to decompose the good-faith into its principals constitutes elements, in a way that was possible to identify the several subspecies of institutes that are originated from good-faith, each one with its own characteristics, been really different from others. From this decomposition the studies about venire contra factum proprium were emphasized, of which the constitutes elements were individually and detailed described and commented, what allowed not only the elaboration of a definition for the institute but also a preciser collation for similars institutes, such as tu quoque, exceptio doli, suppressio, etc. To reach those purposes the romans fides were examined, going through its reception and modernization and its inclusio n on the french Civil Code. It can also be found in here the path chosen by the french court in the exam of this codified good-faith, with its clear influence in the german civil law, where it went toe the greek, portuguese and finally the brazillian civil code. In its last one it was identified several legal dispositions that, deep inside, are nothing more than application hypothesis of venire even though our Civil Code never mention such institute, and from this identification was built a definition for venire contra factum proprium with its characterizing elements. Resumé L´objectif principal de ce travail est la réalisation d´un exposé systématique de la bonne foi, autant que règle de conduite, dans le but de remplir une lacune qui existe à la doctr ine e qui peut être verifiée par la constatation que malgré la bonne foi objective soit prononcée très fréquemment, dans la plupart des cas l´expression n´est utilisée que comme un simple élément linguistique, sans aucune précision cientifique ou terminolo gique. En outre, les auteurs qui ont dédié leurs études à la bonne foi, l´ont fait spécifiquement sur les rapports contractuels, ce qui signifie une réduction inacceptable d´un objet très vaste. Cela étant, on a essayé de démontrer et exemplifier l´application du principe de la bonne foi à d´autres parties du Droit, comme le Droit Administratif et le Droit Processuel. On a aussi essayé de décomposer la bonne foi en ses éléments constitutifs, de manière à identifier également les plusieurs subdivisions d´instituts qui s´originent de la bonne foi, chacun ayant ses caractéristiques individuelles, qui les font différents des autres. À partir de cette décomposition, on a relevé l´étude du venire contra factum proprium, dont les éléments constitutifs ont été traités individuellement et en detail, ce qui a permis pas seulement la construction d´une définition pour l´institut, mais aussi la comparaisonplus précise avec des institus similaires, comme le tu quoque, l´ exceptio doli, la suppressio etc. Pour atteindre ces objectifs, on a parti de l´étude de la fides des romains, en passant par sa récéption et son actualisation, concretisée par le travail des glossateurs et des post-glossateurs, et par son inclusion dans le Code Civil Français. Ensuite on a parcouri le chemin suivi par les cours françaises, en ce qui concerne l´examen de cette bonne foi, maintenat codifiée, avec sa nette influence sur le Droit Civil Allemand, d´où elle est partie por arriver au Code Civil Grec, au Code Civil Portugais et, finalement, à l´actuel Code Civil Brésilien. Sur ce dernier on a essayé d´identifier plusieurs règles qui, vraiment, signifient des hypothèses d´aplication du venire, malgré notre Code ne mentionne pas cet institut. A partir de cette identification, on a construit la definition visée du venire contra factum proprium , composé de ses éléments caractéristiques. Sumário Introdução. 10 1. Desenvolvimento histórico da boa- fé. 24 1.1. Considerações gerais. 24 1.2. A boa-fé romana e sua recepção no direito europeu. 40 1.3. O direito europeu pré-codificações. 47 1.4. A boa-fé após o Código Civil francês. 60 1.5. A boa-fé no Direito Civil Alemão. 75 1.6. A boa-fé objetiva e seu aspecto normativo. Tendência expansionista. 99 1.7. A boa-fé objetiva no Direito Público e no campo processual. 136 1.8. A responsabilidade pré e pós-contratual e a complexidade das obrigações. 154 1.9. As conseqüências jurídicas da proteção conforme o princípio da boa- fé. 230 2. Violações típicas da boa- fé. 255 2.1. Considerações gerais. 255 2.2. O abuso do direito. 258 2.3. O venire contra factum proprium. 294 2.3.1. Considerações gerais. 294 2.3.2. Elementos característicos. 301 2.3.2.1. Os comportamentos contraditórios. 324 2.3.2.2. A contradição. 365 2.3.2.3. O dever acessório que está sendo violado. 380 2.3.3.4. Um conceito para o venire contra factum proprium. 393 2.3.3. Conseqüências jurídicas do venire contra factum proprium. 393 2.4. Tu quoque. 409 2.5. Suppressio e surrectio. 421 Conclusão. 447 Referências bibliográficas 456 10 A teoria dos atos próprios: elementos para a sua identificação e para o seu cotejo com institutos assemelhados. Uma lei imutável não se pode conceber, senão numa sociedade imóvel. Jean Cruet Introdução. O Código Civil de 1916, tomando por paradigma os Códigos francês e alemão (principalmente o primeiro), simplesmente não tratou da boa-fé, exceto em regra localizada e pontual, específica para o contrato de seguro (art. 1.443, do Código Civil de 1916). Apesar disso, no entanto, já era muito comum que a doutrina e a jurisprudência pátrias se referissem com freqüência ao tema, principalmente em virtude da grande influência por nós recebida, direta ou indiretamente, dos tribunais alemães. Essa influência indireta, à qual nos referimos, é porque as decisões dos tribunais germânicos serviram de clara fonte de inspiração para alguns Códigos alienígenas, como o grego e o português, e estes, por sua vez, acabaram influenciando o texto do nosso Código Civil vigente, como abordaremos em detalhes, ao longo do presente estudo. Por outro lado, em virtude do grande lapso temporal decorrido entre a apresentação do projeto de lei e a sua efetiva transformação em um Código Civil, a doutrina e os tribunais não se quedaram inertes, e começaram a fazer referências e a elaborar textos que enfocam a boa-fé e suas conseqüências. No entanto, não se pode deixar de notar que tais referências, de um modo geral, começaram a ser feitas de um modo pouco sistematizado, ou mesmo sem sistematização alguma, o que pode ser atribuído, conforme 11 acreditamos, à inexistência quase que completa de obras doutrinárias que tivessem o assunto “boa-fé” como seu principal foco de estudo, uma vez que os textos que tratavam do assunto, de um modo geral, faziam-no apenas de modo passageiro, ao se referirem aos princípios contratuais, incluindo dentre eles o da boa-fé, e mesmo assim, no mais das vezes, apenas se limitando a comentar que os contratantes deveriam se comportar de boa-fé, sem maiores explicações sobre o que seria tal comportamento. Essa falta de sistematização pode ser notada, inclusive, pelo fato de que em algumas situações, os tribunais pátrios se referiam à boa-fé apenas como um reforço lingüístico, pois na verdade a questão a ser decidida já encontrava tratamento legal específico, e a decisão já havia sido tomada com esteio nessa norma positivada, sem que houvesse qualquer real necessidade de que se fizesse menção à boa-fé. Em outras palavras, muitas vezes se tratava de uma ilegalidade pura e simples, e não de atuação do princípio da boa-fé, e essa distinção não costumava ser feita em várias situações concretas. Ou, ainda, pelo fato de serem usadas, para “explicar” o que seria a boa-fé, expressões vagas e imprecisas, cujo preenchimento variava ao sabor das convicções pessoais de cada intérprete. Por outro lado, e principalmente pelo fato de que todo o estudo da boa-fé, desenvolvido no direito germânico, foi inicialmente ligado às relações contratuais, o que se podia notar era que as menções à boa-fé se limitavam precisamente ao campo dos contratos, como se o instituto não fosse de aplicação geral, vale dizer, como se não se tratasse de um regramento que se aplica não apenas a todos os campos do direito privado, mas também ao direito público, ou seja, para a regência das relações entre a administração pública e os administrados. Aliás, é até desnecessário que se ressalte a extrema importância que decorre do fato de que também a administração pública 12 deverá seguir uma conduta balizada pela boa-fé, sendo que, precisamente em virtude de tal importância, dedicamos um item específico para o tratamento do mesmo (item 1.7). Outra questão que se mostra significativa, para o estudo dos temas ligados à boa-fé, é a que diz respeito às dificuldades lingüísticas. Ao contrário da língua alemã, sempre muito precisa e específica, não temos expressões, no vernáculo, que por si só permitam identificar se se trata da boa- fé como uma norma de conduta (objetiva) ou da que se liga aos aspectos psicológicos do sujeito (subjetiva), ou seja, ao conhecimento ou desconhecimento de um fato ou à intenção subjacente à prática de um ato. Essa adoção de uma expressão única, para a indicação de dois aspectos da boa-fé que se mostram completamente distintos, serve como moldura a realçar a necessidade de estudos mais detalhados, acerca da boa-fé, pois faz com que tenham que ser redobrados os cuidados para a conceituação e a identificação dos elementos característicos de cada uma dessas duas hipóteses de boa-fé, sob pena de se ter dificuldade em identificar até mesmo o verdadeiro significado de um determinado texto legal que a ela se refira. E veja-se que não há qualquer exagero, quando nos referimos à dificuldade de captação do real sentido da expressão, pois essa interpretação errônea do sentido do texto legal, especificamente em relação à boa-fé, já ocorreu alhures. Com efeito, desde o começo do século XIX que o Código Civilfrancês já apontava que as convenções que tenham sido validamente formadas devem ser executadas de boa-fé (art. 1.134). No entanto, precisamente em decorrência da absoluta falta de domínio doutrinário sobre o tema, tal norma foi interpretada nos mesmos moldes em que os glosadores e pós-glosadores haviam colhido a boa-fé dos textos romanos, ou seja, como se fosse apenas referente à ciência ou à ignorância de uma determinada circunstância ligada ao 13 contrato. Em outras palavras, como se fosse a boa-fé subjetiva. Hoje, o mesmo texto legal é facilmente lido como sendo referente à boa-fé objetiva, ou seja, como imposição de uma norma de conduta a ser observada pelos contratantes. É esse tipo de equívoco, que certamente atrasou em várias décadas o desenvolvimento adequado do estudo da boa-fé, que só poderá ser evitado com o exame doutrinário sistemático do tema. Nos últimos anos, felizmente, a situação começa a se alterar, e começam a surgir algumas poucas obras cujo enfoque principal está centrado na questão da boa-fé. Esse aumento na quantidade de trabalhos específicos sobre o tema, em grande parte, foi ainda impulsionado pela aprovação, depois de mais de duas décadas e meia, do Código Civil de 2002, que em seu artigo 421, dentre outros, trouxe a explicitação do princípio da boa-fé. Contudo, não se pode deixar de observar que o estudo doutrinário do tema ainda é muito incipiente entre nós. Além disso, a hipertrofia das relações contratuais se manteve, ou seja, a quase totalidade dos trabalhos recentes diz respeito ao estudo da boa-fé nas relações contratuais, embora apanhando, também, algumas variações “internas” do assunto, como o exame da mesma em relação aos momentos pré e pós-contratuais e a análise da boa- fé aplicada às relações (contratuais) de consumo, mas deixando de lado outras áreas importantes das relações jurídicas, não apenas no direito privado, mas, principalmente, no direito público, onde são muito escassas as obras referentes ao tema. Além disso – e, ainda mais, pior do que isso –, pode-se apontar que está ocorrendo, em relação às diversas facetas que podem ser apresentadas pela boa-fé, a repetição do mesmo problema que ocorreu quanto ao estudo da boa-fé em si mesma. Expliquemos melhor. 14 Como mencionamos acima, durante muito tempo nossos autores ou ignoravam a boa-fé ou apenas se referiam ao tema de modo breve, sem a preocupação de maiores detalhes ou esclarecimentos, incluindo-a sem muitas explicações entre os princípios contratuais. Pois bem, agora que a boa-fé começa a ser estudada mais amiúde, pelos nossos doutrinadores, o que se percebe é que apenas de modo passageiro são mencionadas as diversas hipóteses de concretização da mesma, e que embora tendo todas a mesma fonte, apresentam características que, pelo menos em tese, as diferenciam de modo nítido (na prática, como veremos, essa diferenciação nem sempre é assim tão clara). E foi essa falta de abordagem das “subespécies” da boa-fé, na verdade, que motivou o presente trabalho. Com efeito, o que desde logo se adianta é que a expressão “boa- fé”, na realidade, é bastante ampla, abrangendo um grande leque de situações que, sendo embora todas originárias da mesma fonte (essa mesma boa-fé), apresentam alguns traços peculiares, que permitem diferenciá-las umas das outras, e aí chegamos a figuras importantíssimas e de grande aplicação prática, como o venire contra factum proprium, o tu quoque, a suppressio e a surrectio, o abuso do direito, etc, e que de um modo geral ou são ignoradas pela doutrina ou apenas são mencionadas en passant, sem o cuidado de maiores esclarecimentos. Precisamente, como dissemos, como antes ocorria em relação à boa-fé em si mesma. Uns poucos autores, quando muito, se referem com um pouco mais de vagar à figura do abuso do direito, que sem sombra de dúvida é a mais conhecida de todas essas variações da boa-fé, até mesmo pelo fato de se tratar de tema que foi há muito desenvolvido pela jurisprudência dos tribunais franceses, antes mesmo do surgimento do Código Civil alemão, e que por essa razão influenciou fortemente nossos autores. No entanto, não costumam 15 nossos juristas observar que o abuso do direito, na realidade, também é figura que se mostra bastante ampla, abrangendo as outras situações mencionadas, como, por exemplo, o venire contra factum proprium. Assim, se por um lado é verdade que uma situação que poderia ser enquadrada como um caso de venire também pode ser apresentada como hipótese de abuso do direito (pois aquela é uma hipótese deste), por outro, também é certo que tal situação poderia ter sido qualificada de modo mais preciso, uma vez que a figura do venire contra factum proprium apresenta características próprias, que permitem destacá-la dentre as figuras que se inserem no abuso do direito, para um exame mais detalhado e minucioso. O abuso do direito, portanto, também precisa ser examinado com maior riqueza de detalhes, para que melhor se possa compreender a figura do venire, uma vez que esta se insere no campo mais amplo daquele. Da mesma forma, existem situações em que nossos tribunais abordam hipóteses que claramente poderiam ser enquadradas como casos de venire contra factum proprium, ou de suppressio, ou de tu quoque, etc, mas em geral o fazem sem qualquer preocupação com tais figuras decorrentes da boa-fé, apenas cuidando de realçar quais são as características do caso concreto, mas sem a preocupação de fazer o mais adequado enquadramento jurídico. Em outros casos, ainda, o enquadramento vem a ser feito, de modo incorreto, denominando-se de venire contra factum proprium, por exemplo, situação que na realidade seria mais bem enquadrada como sendo de tu quoque. Todas essas situações, naturalmente, serão abordadas no desenvolvimento do presente estudo, na busca de serem fornecidos elementos mais precisos para as distinções. Nosso objetivo, na presente tese, está voltado precisamente para essas subespécies da boa-fé, em especial o venire contra factum proprium, 16 possivelmente o que encontra maior aplicação concreta no quotidiano. Mas é evidente que não se buscou, tão-somente, a abordagem da figura do venire, isolada, fora de contexto, e considerada de modo integral, pois é certo que uma análise feita dessa forma teria o pecado mortal de tornar praticamente ininteligível o venire. A estratégia adotada, portanto, foi a de fazer uma abordagem inicial macro, de modo a situar a figura do venire no plano mais amplo e genérico da boa-fé, para depois partir para um exame atomizado, buscando a decomposição do venire em seus menores elementos, os quais são em seguida examinados com uma lupa, de modo minucioso e detalhado, de modo a facilitar a identificação da figura e, mais do que isso, possibilitar o adequado cotejo entre as diversas hipóteses de concretização da boa-fé. Buscou-se, portanto, suprir uma lacuna existente em nossa doutrina, acerca do tema, tendo em vista que as poucas obras que o abordam, como dissemos linhas atrás, em geral o fazem de modo passageiro e superficial, sem se preocupar com o exame minucioso dos seus componentes. Vejamos, em seguida, qual foi a estrutura que se deu ao presente estudo e os motivos de tê-la adotado. Como as figuras a serem abordadas decorrem da boa-fé, logo de início buscou-se o resgate histórico da mesma, vale dizer, fizemos o estudo do desenvolvimento da mesma, a partir da fides dos romanos, passando pela sua qualificação como bona fides, abordando inclusive a sua transposição, ainda no direito romano, do campo dos direitos reais para o direito obrigacional,onde iria fincar suas mais sólidas raízes, e também pelo campo processual. Mas a visão que os romanos tinham sobre a boa-fé de nada nos serviria, se tivéssemos deixado de lado a aferição do modo pelo qual essa boa-fé foi absorvida pelo direito posterior e acabou chegando até nós. Passamos, então, 17 por sobre a Idade das Trevas (Idade Média), e chegamos aos séculos XVII e XVIII, com o chamado fenômeno da recepção. Uma parte significativa do direito romano, notadamente em relação ao direito das obrigações, foi primeiramente compilada pelo trabalho dos glosadores e, posteriormente, atualizada (para a época) pelo trabalho dos pós-glosadores, tudo isso na fase que antecedeu às grandes codificações européias, que tiveram início no começo do século XIX, com o Código Civil francês, mais precisamente em 1806. Ora, se o direito romano foi recebido pelos juristas europeus, é muito fácil de se concluir que o mesmo teve marcante influência nos Códigos Civis da Europa, e, por conseqüência, nos Códigos do mundo inteiro, pois é sabido que tais Códigos, notadamente o francês e, quase um século depois, o alemão, foram refletidos pelas legislações de todo o mundo civilizado, inclusive o Código Civil brasileiro de 1916. Foi por essa razão, vale dizer, por ter sido tão ampla e tão importante a influência do direito romano nas legislações mais recentes do mundo inteiro, inclusive a nossa, que nos pareceu essencial, para uma melhor compreensão da visão atual que se tem sobre a boa-fé (e que, na realidade, segundo nos parece, ainda está em formação), que fizéssemos esse resgate histórico, esse exame da boa-fé desde a sua origem primeira, entre os romanos, e passando em seguida pelas principais etapas de sua evolução, dentre as quais se mostra de fundamental importância esse mencionado fenômeno da recepção, porta de entrada da fides romana no direito moderno. Feito o exame sobre como se deu essa recepção do direito romano na Europa, em seguida passamos a analisar as principais características do direito europeu no período anterior ao começo das grandes codificações, com rápidas pinceladas sobre o racionalismo e o direito natural, que se mostraram de grande importância, por exemplo, para a visão do direito como um sistema, 18 e não como um simples agrupamento de regras. Na fase das codificações, nosso exame mais detido, como não poderia deixar de ter sido, ocorreu em relação ao direito civil francês e ao alemão, esses que foram os grandes influenciadores do nosso próprio direito civil, mas não deixando de realçar as diferenças entre as visões francesa e alemã acerca do princípio da boa-fé. Em relação ao direito civil germânico, inclusive, percorremos o interessante caminho da boa-fé, a partir dos tribunais tedescos, passando pelo Código Civil grego e, daí para o segundo Código Civil português, de 1966, de onde acabou migrando para o atual Código Civil brasileiro, em uma trilha que durou mais de um século. E com essa “viagem” foi concluída a abordagem da parte histórica da boa-fé, à qual dedicamos cerca de um sexto do desenvolvimento do trabalho. Na seqüência, passamos a examinar algumas questões relevantes acerca da visão atual que se tem da boa-fé, com destaque para o seu caráter normativo (ou seja, a boa-fé enquanto norma de conduta) e a sua tendência expansionista, de modo que sua aplicação passa a se dar em todos os ramos do direito. É que essa boa-fé agora se apresenta como um princípio geral e fundamental, cujo assento pode ser encontrado diretamente no tecido constitucional, mais precisamente na solidariedade social, que se apresenta como um dos objetivos fundamentais da nossa República Federativa, conforme se encontra expresso no art. 3º, I, da Constituição Federal. Ora, uma vez verificado que a boa-fé normativa tem fundamento constitucional e que se constitui em um princípio fundamental, fica fácil de ser explicado o seu caráter expansionista, ou seja, a sua extensão a todos os ramos do direito, ultrapassando não apenas as fronteiras do direito civil, mas, muito mais do que isso, indo além das fronteiras do direito privado, até se espraiar pelo direito público e pelo direito processual, campos onde um perfunctório 19 exame poderia transmitir a errônea idéia de que o instituto da boa-fé não seria capaz de encontrar aplicação. Face à relevância do tema e por se tratar de assunto que, até o presente momento, foi tão pouco desenvolvido pela nossa doutrina, dedicamos um item específico (item 1.7) ao exame desse espraiar da boa-fé em geral – e do venire contra factum proprium em particular – pelos campos do direito processual e do direito público. Em seguida, contudo, ou seja, especificamente no item 1.8, retornamos para a aplicação da boa-fé que se mostra como a mais comum no quotidiano, ou seja, em relação ao direito obrigacional, principalmente em relação aos contratos. Nessa parte do trabalho foi feita a abordagem acerca dos estudos de Rudolf von Jhering sobre a existência de uma responsabilidade pré e pós-contratual, vale dizer, que se forma antes mesmo do contrato chegar a ser celebrado e que persiste depois de sua extinção pelo cumprimento. Esses estudos de Jhering se mostraram cruciais para que se percebesse que uma obrigação, na realidade, não pode ser considerada como um todo unitário, sendo composta, isso sim, por um complexo que se apresenta formado, simultaneamente, por prestações principais e por prestações acessórias, sendo que a decomposição da boa-fé nestas últimas foi a grande mola propulsora de toda a evolução do exame da boa-fé enquanto norma de conduta. Por último, no que se refere a essa abordagem dos aspectos gerais e atuais da matéria, passamos a examinar as conseqüências concretas da aplicação do princípio da boa-fé, ou seja, como se dá e qual o resultado da incidência do princípio da boa-fé em uma hipótese real. Na realidade, apenas se mostra possível que examinemos as situações mais comuns, pois a amplitude da boa-fé é tamanha que se torna simplesmente impossível o exame completo de todas as situações práticas (e, portanto, impossível também se 20 mostra o exame de todas as conseqüências práticas) que podem surgir no quotidiano. Assim, tais conseqüências podem ser de diversas espécies, tais como a intervenção judicial sobre o próprio conteúdo do contrato, de modo a invalidar ou a modificar, conforme o caso, uma determinada cláusula, ou a determinação para que um dos sujeitos contratuais adote um comportamento positivo ou negativo, ou a determinação judicial para que o contrato seja rescindido, ou, ao contrário, para que o mesmo seja mantido por mais algum tempo, ou, ainda, a condenação ao pagamento de uma indenização, etc. Enfim, são variados os resultados que decorrem da incidência do princípio da boa-fé, mudando de uma situação para a outra, mas sempre buscando, em cada caso concreto, qual é a solução que mais adequadamente protege a boa-fé do sujeito. Um desses resultados que se mostra de acentuada importância prática é a possibilidade de que, em decorrência do princípio da boa-fé, um negócio jurídico cuja nulidade se encontra expressamente determinada pela lei venha a produzir todos os efeitos de um negócio válido. E, ao contrário do que geralmente se afirma, entendemos que esses efeitos poderão ser produzidos não apenas quando se trate da hipótese de nulidade decorrente de vício formal, mas também, em certas e especiais circunstâncias, até mesmo quando se tratar de nulidade que tenha a sua causa na incapacidade absoluta de um dos sujeitos envolvidos. E com o exame dessas conseqüências da incidência concreta doprincípio da boa-fé, encerramos essa análise dos aspectos gerais do princípio da boa-fé, na visão da moderna ciência do direito, sendo que dedicamos a essa análise cerca de um terço de todo o trabalho. Passamos, em seguida, ao exame das situações que se constituem em violações típicas da boa-fé, objetivo maior 21 do presente estudo e ao qual foi dedicada, aproximadamente, a metade de todo o desenvolvimento do mesmo. No segundo capítulo do trabalho, o estudo das violações típicas da boa-fé (ou, mais adequadamente, dos casos típicos de proteção à boa-fé) se inicia pela figura do abuso do direito, por se tratar de figura bastante ampla e genérica, dentro da qual se enquadram várias outras. Além disso, foi com as decisões judiciais sobre o abuso do direito, que tiveram origem na França e depois foram assimiladas e desenvolvidas pelos tribunais alemães, que se iniciou o estudo moderno dessas figuras ligadas à boa-fé. A primeira abordagem que é feita, acerca do abuso do direito, é a que se refere à denominação do mesmo, colocando-se em destaque a erronia dos vários textos doutrinários e mesmo legais que se referem ao abuso de direito, quando o correto é falar-se em abuso do direito. Mostramos, em seguida, que a idéia central do tema é a de que todo direito, ao ser deferido pela sociedade ao seu titular, está vinculado a uma causa, uma finalidade que o justifica, e que ao mesmo tempo lhe serve de limite, e nos casos em que tal finalidade é desconsiderada é que se tem a hipótese do abuso. Como um subitem do abuso do direito, em seguida o trabalho faz a análise da exceptio doli , figura que teve grande importância, e que inclusive foi desenvolvida para o esteio das decisões dos tribunais alemães, ao mesmo tempo em que os tribunais franceses apoiavam suas decisões na figura do abuso do direito. Mostramos, inclusive, que quando os tribuais germânicos começaram a também fazer referência à figura do abuso do direito, a exceptio acabou por ser praticamente abandonada, face à grande afinidade entre as duas figuras (afinidade essa que levou à inclusão da exceptio como um subitem do abuso). Hoje a exceptio quase que desapareceu por completo da jurisprudência e, por conseqüência, deixou de despertar o interesse da doutrina. 22 A partir daí, a abordagem passa a se concentrar especificamente na figura que se constitui no objeto central do presente estudo, o venire contra factum proprium. Após traçar uma breve visão panorâmica geral sobre o venire, começamos a buscar os sinais do venire no nosso Código Civil atual. É evidente que não se encontrará, no nosso Diploma Civil, disposição expressa que remeta ao venire. No entanto, realçamos diversas disposições legais que claramente se apresentam como sendo casos de aplicação concreta e específica do venire, e não apenas em relação ao direito contratual, pois tais disposições se encontram presentes, também, em outros livros do nosso Código Civil. Nesse realce de alguns dispositivos legais, mostramos inclusive que, em alguns casos, a contradição entre dois comportamentos, por ser justificada, é explicitamente admitida pela norma legal, conclusão essa que se mostra importante para que, mais à frente, possamos fazer o exame em separado de cada um dos elementos que compõem a figura do venire. No exame desses elementos pontuais que compõem o venire, é feita a separação entre os dois comportamentos do sujeito e a contradição inaceitável que se verifica entre eles e, a partir desse ponto, cada um desses elementos é ainda decomposto em elementos menores, para que o exame possa ser feito do modo mais minucioso possível, dentro do nosso declarado objetivo de permitir a identificação mais segura do venire e de permitir a sua mais precisa comparação com outros institutos assemelhados, também derivados da boa-fé. Finalmente, concluído o exame do venire contra factum proprium, passamos a examinar os principais traços de caracterização do tu quoque e da suppressio (e surrectio), figuras que com freqüência são confundidas com o venire. Esse exame, contudo, é feito de forma breve, pois não se constituem no objetivo do presente trabalho, e por isso nos limitamos à 23 busca dos elementos que se mostrem suficientes para caracterizar as distinções e as semelhanças entre tais figuras e o venire. Por último, convém ressaltar que, ao longo de todo o desenvolvimento do trabalho, buscamos a todo instante apresentar exemplos concretos, ou seja, situações que possam ser apresentadas como aplicações práticas do que estava sendo examinado em teoria. Isso foi feito não apenas pela farta indicação de decisões dos tribunais, tanto alienígenas quanto pátrios, mas também com o freqüente recurso à pura e simples construção de situações hipotéticas. Entendemos que esse recurso a situações concretas (ou, pelo menos, possíveis de concreção), ou seja, que aparecem com os contornos e com a moldura da vida quotidiana, facilita sobremaneira o acompanhamento do desenvolvimento puramente teórico do assunto. Em apertadíssima síntese, eis aí todo o conteúdo deste trabalho. 24 1. Desenvolvimento histórico da boa-fé. 1.1. Considerações gerais. A boa-fé encontra larga aplicação no Direito em geral, mas em particular se destaca a sua vasta utilização no direito privado. Se questionado sobre a mesma, qualquer profissional da área jurídica, com certeza, dirá que conhece o princípio da boa-fé. Instado a transformar esse conhecimento em um conceito, no entanto, poucos serão os que ousarão fazê-lo, e entre os que o fizerem, certamente não haverá dois conceitos idênticos. Trata-se, como se vê, de “algo que el jurista práctico entiende perfectamente sin llegar a formulárselo”1. Na realidade, essa dificuldade conceitual tem razões históricas, estando intrinsecamente relacionada com a noção de boa-fé que veio dos romanos e a sua respectiva recepção no direito civil europeu, notadamente em França, com a primeira codificação (Código Civil de 1806), e na Alemanha, onde surgiu a segunda codificação civil (1900) que marcou fortemente o direito civil dos demais países (inclusive o Brasil). Ao longo desses dois últimos séculos, desde o começo da vigência do Código Civil de Napoleão, os juristas vêm tentando completar adequadamente as normas legais que, de modo geral e aberto, se referem à boa-fé. E nessa busca, o que se tem visto é uma grande diversidade de definições, que em boa parte se apresenta como resultado de uma profunda vinculação que existe entre a boa-fé e os fatores ético e axiológico, pois como nessas matérias existe acentuada disparidade de critérios, a relatividade das 1 José Luis de Los Mozos, El Principio de La Buena Fe, p. 34. 25 soluções encontradas se traduz em matizes diversos a respeito de todos os conceitos que com elas se relacionam2. Na verdade, como veremos em seguida, pode-se apontar que antes mesmo da vigência do Código Civil francês já se verificava a busca de um conceito científico para preencher a referida expressão, o que ora era feito com o apoio em noções metajurídicas, ora era buscado dentro do próprio direito. Esse panorama, na realidade, não mudou muito até os dias de hoje. No entanto, é inegável que houve um grande avanço no tema, podendo- se apontar, como o mais importante desses avanços, a diferenciação entre a boa-fé como regra objetiva de conduta e a boa-fé esteada na ignorância, ou seja, no desconhecimento de determinadas circunstâncias do caso concreto. Essa distinção3, que hoje se nos apresenta como extremamente simples, nem sempre foitão clara, sendo renitente, por várias décadas, a 2 Delia Matilde Ferreira Rubio, La Buena Fe: el principio general em el derecho civil, p. 77. Mas deve-se observar, como bem alerta a ilustre autora espanhola, que a vinculação com a ética e a axiologia não justifica uma relativização absoluta do conceito de boa-fé, sob pena de ser privada de seriedade qualquer intenção conceitual. Na realidade, continua a autora, se por um lado é certo que a validade das normas morais e a estimação dos valores dependem das condições particulares de cada pessoa, por outro, é inaceitável a idéia de que não se podem formular normas morais médias ou gerais, que possam servir para caracterizar uma época ou uma comunidade específica (Ob. Cit., p. 78). 3 O presente trabalho está focado, primordialmente, no estudo da boa-fé normativa, ou seja, da boa-fé como norma objetiva de conduta. No entanto, logo de início deve-se alertar que se pode falar em distinção entre a boa-fé objetiva e a boa-fé subjetiva, mas não em independência daquela em relação a esta. Com efeito, a boa-fé objetiva, como veremos adiante (vejam-se os itens 1.6 e 1.8), diz respeito à proteção à confiança e à legítima expectativa do sujeito, enquanto a boa-fé subjetiva diz respeito ao desconhecimento de uma determinada circunstância. Logo, se o sujeito não desconhece a circunstância, nem ao menos chegou a criar a justa expectativa, não se formou em seu interior a confiança. Pode-se dizer, por isso, que a boa-fé objetiva pressupõe a boa-fé subjetiva, englobando-a. Vejamos um exemplo, que ajudará a clarear essa afirmação. Suponha-se que em um contrato de locação não residencial de um imóvel, com prazo indeterminado, e que por isso pode ser rescindido a qualquer tempo pelo locador, este é procurado pelo locatário, que requer a sua concordância para que seja realizada, nesse imóvel, obra de elevado valor, que permitirá significativo aumento de ganhos pelo locatário, em sua atividade empresarial. Concordando o locador, o locatário realiza a obra. Alguns poucos meses depois, no entanto, o locador denuncia o contrato, pedindo a devolução do imóvel, sendo que o tempo decorrido, claramente, não é suficiente para que o locatário tenha recuperado o seu alto investimento. Nesse caso, quando o locador concordou com a realização da obra, criou-se no locatário uma legítima expectativa, a confiança de que o locador não romperia o contrato antes de decorrido o tempo suficiente para a recuperação do investimento que fizera. Logo, a atuação do princípio da boa-fé levará a que seja protegida essa legítima expectativa criada pelo locatário, impedindo-se que a denúncia produza seus 26 confusão que entre os dois conceitos se fazia, e que em última análise misturava em um mesmo caldeirão os conceitos de boa-fé subjetiva e boa-fé objetiva, impedindo o adequado desenvolvimento científico deste último. O grande entrave que sempre se apresentou à abordagem adequada da questão, sem sombra de dúvida, foi o fato de que a boa-fé, na realidade, é uma criação do direito, mas tratando-se de uma criação que, na sua própria gênese, por definição, sempre terá que se mostrar inacabada, por isso que estará sempre a requer um complemento que depende dos valores vigentes em cada época4. Dito em outras palavras, a boa-fé está sempre e indissoluvelmente ligada aos fatores sócio-culturais de um determinado lugar e momento. E efeitos de imediato, devendo-se aguardar, antes que isso ocorra, o tempo necessário à recuperação dos gastos, pelo locatário. No entanto, suponha-se que, nessa mesma situação narrada, o locador, ao concordar com a obra, tivesse informado ao locatário que, em uns poucos meses, precisaria retomar o imóvel, e mesmo assim o locatário resolveu levar a obra a cabo. Ora, nesse caso, o locatário sabia que o imóvel seria em breve retomado pelo locador, e por isso não se pode dizer que teria surgido no locatário a legítima expectativa de que o imóvel não seria pedido de volta tão cedo, pelo locador, pois ele sabia que esse pedido de devolução seria feito. Logo, se não havia o desconhecimento da circunstância (ou seja, se não havia a boa-fé subjetiva), parece evidente que não surgirá a legítima expectativa, a confiança a ser protegida, e por isso não se poderá falar em boa-fé objetiva do locatário. Como se disse, pois, para que haja a concretização da boa-fé objetiva, é necessária a presença da boa-fé subjetiva. Parece-nos que é nesse mesmo sentido a afirmação de Bruno Lewicki, quando diz que os dois aspectos da boa-fé, objetivo e subjetivo, “divergem entre si na mesma medida em que se complementam”. Cf. Bruno Lewicki, Panorama da boa-fé objetiva. In: Tepedino, Gustavo (Coord.). Problemas de Direito Civil-Constitucional, p. 57. 4 Afirmando exatamente o contrário, ou seja, no sentido de que a boa-fé é um dado da realidade, e não uma criação arbitrária e técnica do Direito, veja-se a lição de Delia Matilde Ferreira Rubio, La Buena Fe: el principio general em el derecho civil , pp. 78-81. Curiosamente, no entanto, a oposição entre a afirmação que fizemos acima e a feita pela ilustre autora é apenas aparente. Com efeito, ao afirmar que a boa-fé não é criada pelo Direito, mas por ele apropriada a partir do recurso à realidade social, aponta a autora que tal recurso vem determinado pela necessidade de se vincular o ordenamento jurídico às considerações ético-axiológicas vigentes, e o legislador nada cria, mas apenas, partindo da realidade, atribui à boa-fé certos conteúdos e lhe impõe determinadas limitações, sendo que estas conferem, em cada ordenamento concreto, determinados traços que, sem afetar a essência do princípio da boa-fé, modificam sua aplicabilidade, seu alcance e seus efeitos. “El caso de la buena fe es el segundo, la ley parte de algo que está em la natureza, pero matiza su significado transformándolo em um concepto jurídico. Pero, rei teramos, el punto de partida es la realidad, no hay creación arbitraria de um concepto”. Mas, como se vê, apesar das afirmações iniciais diametralmente opostas, o que se tem, na essência, é a idéia de que a boa-fé será sempre um conceito intimamente ligado às condições sociais, às noções éticas e aos valores vigentes em cada época. Tal idéia tanto pode ser colhida no texto acima quando na lição da autora mencionada, ainda que acima se sustente que a boa-fé é uma criação do Direito, que não o fez de modo arbitrário, mas levou em consideração, previamente, a realidade social, enquanto na obra de Delia Rubio esteja a afirmação de que a boa-fé já existia nessa realidade social, apenas tendo sido apreendida pelo Direito. 27 como tais fatores influem fortemente na própria definição dos contornos da ordem jurídica vigente, com extrema facilidade se pode perceber que a boa-fé sempre refletirá uma determinada cultura jurídico-social, vale dizer, sempre estará a espelhar uma ordem jurídica e social, o que a toda evidência impede que se possa obter um conceito definitivo e acabado para a mesma. A grande problemática com que se depara o cientista do direito, portanto, é avaliar como se dá esse processo e qual será o conteúdo refletido na ordem jurídica. No dizer de Los Mozos5, o problema é que a aplicação do princípio da boa-fé faz penetrar no ordenamento jurídico um elemento natural, propriamente extrajurídico, mas que em virtude desse ingresso passa a formar a própria regra jurídica, o que provoca a necessidade de que os juristas busquem identificar como se dá esse ingresso e qual o conteúdo extrajurídico que passa a fazer parte da regra jurídica. As observações acima servem para, desde logo, alertar o leitor no sentido de que neste trabalho não será encontradauma definição universal e completa para a boa-fé, pelo simples fato de que tal definição não existe. Como diz, sem meias palavras, Béatrice Jaluzot6, “a boa-fé é uma noção que não pode ser definida”. Aliás, o simples exame do nosso direito positivo já permite verificar que em um mesmo ordenamento, conforme a hipótese que esteja sendo tratada pelo legislador, são múltiplas e variadas as definições que podem ser obtidas para a boa-fé. Com efeito, no artigo 1.201, do Código Civil, verifica-se que o conceito de boa-fé se refere ao possuidor que ignora o vício ou obstáculo que impede a aquisição da coisa, o que significa que a boa-fé é sinônimo de ignorância. No artigo 1.256, no entanto, o mesmo diploma material aponta que 5 José Luis de Los Mozos, El Principio de La Buena Fe, p. 15. 6 Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et japonais, p. 79, n° 289. 28 está de má-fé o proprietário que, estando presente, não impugnou o trabalho de construção ou lavoura feito por terceiro em seu terreno, o que leva a concluir que a boa-fé, neste caso, consistiria em um comportamento ativo do proprietário, que deveria se opor à atuação desse terceiro. No artigo 1.561, ainda do Código Civil, verifica-se que produzirá os efeitos do casamento válido aquele no qual, embora anulável ou mesmo nulo, pelo menos um dos cônjuges estava de boa-fé, sendo considerado como tal o cônjuge que, no momento em que se realizou o casamento, não tinha conhecimento da causa que tornava o matrimônio anulável ou mesmo nulo, sendo, contudo, que mesmo a descoberta posterior do vício não impede que continue a ser tratado como sendo cônjuge de boa-fé, por isso que será favorecido com todos os efeitos benéficos do casamento, até o dia da sentença anulatória7. Novamente a ignorância, mas agora restrita a um único e exato momento: o da celebração do casamento. No artigo 1.826, por sua vez (em regra que também se mostra aplicável aos efeitos da posse quanto aos frutos, benfeitorias e deteriorações, previstos nos artigos 1.214 a 1.222), verifica-se que aquele que, na qualidade de herdeiro (ou mesmo sem título), possui herança que, no todo ou em parte, pertence a terceiro, ainda que de nada soubesse quanto ao fato de não ser o verdadeiro herdeiro, caso venha a ser vencido na demanda, passará a ser considerado de má-fé a partir da citação. A boa-fé, aqui, não depende do desconhecimento em si mesmo, mas da combinação entre a citação e o resultado da demanda. Como se percebe, a partir dessa breve amostragem, têm-se aí quatro conceitos nitidamente distintos. Na primeira situação (art. 1.201), com efeito, verifica-se que o conceito de boa-fé aborda aspecto puramente 7 Sílvio Luís Ferreira da Rocha, Introdução ao Direito de Família, pp. 90-91. 29 subjetivo, ou seja, decorre da ignorância de uma determinada circunstância de fato: se o possuidor tinha conhecimento dessa circunstância, estava de má-fé e, se não tinha tal conhecimento, é considerado possuidor de boa-fé. Na segunda hipótese (art. 1.256), contudo, o aspecto subjetivo já não se mostra suficiente, pois o conceito de boa-fé já passa a ser relacionado com um dever de agir do proprietário, que será considerado de má-fé se nada fizer para impedir o terceiro de construir ou plantar em seu imóvel. Na terceira e na quarta situações enfocadas (arts. 1.561 e 1.826), no entanto, embora em ambas a questão da boa-fé volte a se relacionar com o aspecto subjetivo do conhecimento ou desconhecimento de determinada circunstância de fato, verifica-se significativa distinção entre as duas. De fato, na hipótese do casamento, ainda que tenha descoberto o vício que o torna nulo, o cônjuge continua a ser tratado de boa-fé, até o trânsito em julgado da sentença anulatória. Dessa forma, o desconhecimento no momento da celebração fez com que o cônjuge fosse considerado como sendo de boa-fé, mas o conhecimento posterior não afasta essa qualificação como cônjuge de boa-fé. Na situação do que possui a herança, no entanto, se o mesmo não sabia dos motivos pelos quais não era o verdadeiro herdeiro (por exemplo, no caso do irmão do de cujus que recebeu a herança por ser desconhecida a existência de um filho do mesmo), será considerado como possuidor de boa- fé. No entanto, vindo a ser citado, ainda que continue a acreditar que de fato é o herdeiro (ou seja, ainda que continue a desconhecer a circunstância que o impede de possuir, pois é certo que a citação não tem o condão de, por si só, fazer surgir o conhecimento da realidade), passará a ser considerado, a partir daí, como pessoa de má-fé, mas isso estando condicionado ao resultado da ação contra ele ajuizada. 30 Veja-se que, nessa primeira abordagem, todas as definições de boa-fé, apesar das diferenças, podem ser relacionadas com os aspectos íntimos, psicológicos, da pessoa envolvida, ora referindo-se ao conhecimento ou desconhecimento de uma circunstância fática, ora à culpa dessa mesma pessoa (negligência por nada ter feito). E apesar desse liame entre elas, como vimos, as diferenças ainda assim podem ser facilmente detectadas, em alguns casos se mostrando acentuadas. O fosso aumenta, no entanto, se observarmos que existem outras situações em que a lei não se satisfaz com a abordagem dos aspectos internos do sujeito, buscando ainda a influência de fatores externos. Assim, por exemplo, nos termos do artigo 187 do Código Civil, a boa-fé se apresenta como sendo um limite imposto ao exercício de um direito, ou seja, como um fator externo que se impõe à atuação do titular de um direito ao exercê-lo, e que uma vez ultrapassado faz com que seja ilícito tal exercício. Pode-se apontar, igualmente, o artigo 113 do Código Civil, que determina que os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa- fé, por isso que, em tal situação, mais uma vez, tem-se a boa-fé como elemento externo ao sujeito8, e tanto assim que invocada para interpretar os negócios que esse mesmo sujeito já celebrou. Da mesma forma, na conclusão e na execução de um contrato, determina o artigo 422 que os contratantes observem o princípio da boa-fé. 8 Nesse sentido a lição de Moreira Alves, que ao analisar o artigo 113, do Código Civil, ensina que “a boa-fé a que alude esse dispositivo não é evidentemente a boa-fé subjetiva, fato psicológico em que, quando conceituado como convicção de não se estar ofendendo direito alheio, se levam em consideração também valores morais de honestidade e retidão, mas sim, a boa-fé objetiva que se caracteriza como regra de reta conduta do homem de bem no entendimento de uma sociedade em certo momento historico. É, portanto, ao contrário do que ocorre com a boa-fé subjetiva, algo exterior ao sujeito, vinculando-se ao dever de cooperação que se exige nas relações obrigacionais, e regra de interpretação que ora conduz a um resultado integrador das obrigações assumidas, ora a um resultado limitador delas...”. Cf. José Carlos Moreira Alves, O novo Código Civil brasileiro e o direito romano – seu exame quanto às principais inovações no tocante ao negócio jurídico. In: Franciulli Netto, Domingos; Mendes, Gilmar Ferreira e Martins Filho, Ives Gandra da Silva (Coord.). O Novo Código Civil – Estudos em Homenagem ao Prof. Miguel Reale, p. 120. 31 Como se vê, nessas três últimas disposições legais mencionadas, em todas elas a boa-fé apresenta, em comum, o fato de se apresentar como elemento externo ao sujeito, e não mais como um elemento interno ligado ao mesmo. Apesar dessefator comum, no entanto, são muito claras as diferenças entre cada uma das situações, eis que a boa-fé, como fator externo, pode se apresentar como um limite previamente estabelecido à atuação concreta do sujeito (art. 187), como uma diretriz interpretativa dos atos por ele praticados, ou mesmo com a generalidade de um princípio, que se infiltra por todo o ordenamento jurídico. O primeiro grupo de situações acima apontadas, ou seja, as que relacionam a boa-fé com os aspectos íntimos e psicológicos do sujeito, estão ligados ao que se denomina de boa-fé subjetiva, enquanto que o segundo, o que apresenta a boa-fé como um fator externo, relaciona-se à chamada boa-fé objetiva9. A denominação, no entanto, não difere, em ambos os casos sendo usada, pela lei, a expressão “boa-fé”, ao contrário, por exemplo, do direito alemão, onde são usadas expressões distintas para a boa-fé subjetiva (guter Glauben) e para a boa-fé objetiva (Treu und Glauben), o que facilita a mais rápida distinção10. Além disso, e principalmente, como vimos acima, mesmo 9 Há quem prefira usar as denominações “boa-fé-crença” e “boa-fé-lealdade”, sendo a primeira a posição de quem ignora determinados fatos e pensa, portanto, que sua conduta é legítima e não causa prejuízos a ninguém; a segunda é referente à conduta da pessoa que considera cumprir realmente com o seu dever, pressupõe uma posição de honestidade e honradez no comércio jurídico. Cf. Américo Plá Rodriguez, Princípios de Direito do Trabalho, p. 425. Também Guillermo Guerrero Figueroa, Principios Fundamentales del Derecho del Trabajo , p. 45, prefere “distinguir la buena fe-creencia y la buena fe-lealtad. La primera se refiere a la buena fe de quien cree obrar con arreglo a derecho, aunque fundado en una creencia equivocada, excusable por una apariencia engañosa. La segunda trata de la conducta de la persona que considera cumplir realmente con su deber. Supone una posición de honestidad que lleva implícita la plena conciencia de no engañar, ni perjudicar, ni danar. Implica la convicción de que las transacciones se cumplen normalmente, sin abusos ni desvirtuaciones”. 10 Na realidade, a doutrina alemã, com a precisão que lhe é peculiar, vale-se dessa dualidade objetividade/subjetividade como um dos critérios para diferenciar a boa-fé no direito das coisas da boa-fé no campo das relações contratuais. A primeira, ou seja, no direito das coisas, seria a boa-fé subjetiva, ligada ao estado de espírito do sujeito, que conhece ou ignora os vícios do seu título, enquanto a segunda seria objetiva, 32 dentro de cada uma dessas modalidades de boa-fé encontramos diferenças marcantes. Todos esses fatores, como facilmente se pode imaginar, têm-se constituído, ao longo da evolução da análise da boa-fé pela Ciência do Direito (e até hoje se constituem), em obstáculo quase intransponível à obtenção de um conceito abstrato e teórico que se mostre satisfatório. Muito pelo contrário, embora algumas linhas mestras abstratas possam ser traçadas, sempre haverá de se mostrar indispensável a análise minuciosa do caso concreto onde tais linhas devam ser aplicadas, sendo inviável que se atinja solução adequada apenas em função das normas e valores que informam o sistema. Na lição de Los Mozos11, distingue-se na atualidade um pensamento aporético (ou problemático) e um pensamento sistemático (ou axiomático). O primeiro busca a solução de cada problema depois de avaliar as circunstâncias da situação concreta onde esse mesmo problema foi detectado, e com ele se relaciona a tópica, enquanto o segundo busca, primordialmente, a sistematização dos conceitos e das soluções que serão usados em cada caso concreto. não dependendo do sujeito, mas sim de valores que dele independem. Cf. Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et japonais, p. 80, n° 291. 11 José Luis de Los Mozos, El Principio de La Buena Fe, pp. 19-20. 33 No pensamento tópico12 (aporético), não há como se fazer a sistematização dos conceitos, de modo a que tenham aplicação ampla, pois com isso se perderia a sua finalidade específica, e é nessa situação que se enquadra o princípio da boa-fé, que não pode ser considerado senão como um conceito tópico, cujo conteúdo não consegue encontrar guarida em um conceito único, válido para todo o sistema. Nesse mesmo sentido, afirma Béatrice Jaluzot13 que a boa-fé é o instrumento de uma justiça feita caso a caso, o que inclusive levou a Corte Federal da Alemanha a expressar sua intenção de não sistematizar as condições para a sua aplicação14. A sistematização, portanto, prossegue Los Mozos15, não pode ser feita de modo arbitrário, sem que se faça o necessário enquadramento do indivíduo na realidade que o cerca, assim como sua vinculação a determinados problemas que se apresentam de modo permanente em um complexo problemático determinado e real, tais como o negócio jurídico, a proteção da confiança, etc. 12 Nas palavras de Tércio Sampaio Ferraz Jr., “a tópica não é propriamente um método, mas um estilo. Isto é, não é um conjunto de princípios de avaliação da evidência, cânones para julgar a adequação de explicações propostas, critérios para selecionar hipóteses, mas um modo de pensar por problemas, a partir deles e em direção deles. Assim, num campo teórico como o jurídico, pensar topicamente significa manter princípios, conceitos, postulados, com um caráter problemático, na medida em que jamais perdem sua qualidade de tentativa. Como tentativa, as figuras doutrinárias do Direito são abertas, delimitadas sem maior rigor lógico, assumindo significações em função dos problemas a resolver, constituindo verdadeiras <fórmulas de procura> de solução de conflito. Noções-chaves como <interesse público>, <vontade contratual>, <autonomia da vontade>, bem como princípios básicos como <não tirar proveito da própria ilicitude>, <dar a cada um o que é seu>, <in dubio pro reo>, guardam um sentido vago, que se determina em função de problemas como a relação entre sociedade e indivíduo, proteção do indivíduo em face do Estado, do indivíduo de boa-fé, distribuição dos bens numa situação de escassez, etc., problemas estes que se reduzem, de certo modo, a uma aporia nuclear, isto é, a uma questão sempre posta e renovadamente discutida e que anima toda a jurisprudência: a aporia da justiça”. Tércio Sampaio Ferraz Jr., Prefácio do Tradutor. In: Viehweg, Theodor. Tópica e Jurisprudência, p. 3. 13 Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et japonais, p. 103, n° 370. No entanto, é necessário que se alerte que a referida autora menciona, na mesma obra e local citados, que, ao lado dessa parte que ela denomina de subjetiva, e que só pode ser aferida caso a caso, existe também uma parte objetiva, que segundo ela não varia em função das circunstâncias, e que consiste nos usos e nos valores. 14 Nas atentas palavras de Teresa Negreiros: “A boa-fé constitui um exemplo riquíssimo de como o Direito é indissociável de sua aplicação”. Cf. Teresa Negreiros, Fundamentos para uma Interpretação Constitucional do Princípio da Boa-Fé, p. 19. 15 José Luis de Los Mozos, El Principio de La Buena Fe, pp. 21. 34 Assim, conclui o respeitado jurista espanhol, o sistema jurídico deve ser funcional, buscando sua concreção não nas leis positivadas (sistema teórico), mas principalmente nos princípios de valoração que a prática desenvolve e que podem ser extraídos da lei, mas são sempre descobertos e comprovados no problemaconcreto. Dessa forma, prossegue o festejado autor, não é o sistema, em sentido racional, que se deve constituir no centro do pensamento jurídico, mas sim o problema16, o que torna impossível, como dito acima, tendo em vista a diversidade de situações possíveis, que se elabore um conceito geral de boa-fé17. Nos próximos itens, buscaremos traçar uma linha evolutiva do conceito de boa-fé, até que se atinja o conceito atual, para ao final apresentarmos as “linhas mestras abstratas” acima mencionadas, mas sempre com freqüentes remissões a situações concretas, que melhor ajudem à compreensão adequada do tema, e de modo a nos permitir, inclusive, a mais fácil diferenciação dos institutos que decorrem da boa-fé, institutos esses cuja análise se constitui no objeto principal do presente trabalho. Antes de prosseguirmos, contudo, convém observar que, nessa abordagem coordenada de aspectos abstratos com situações concretas, com alguma freqüência precisaremos nos valer do direito positivo. É que a dogmática jurídica, como bem afirma Menezes Cordeiro, deve ser muito mais do que um simples elemento de captação do material jurídico, devendo também permitir que seja racionalmente verificada e feita a crítica das 16 Aliás, nas palavras do próprio Theodor Viehweg, Tópica e Jurisprudência, “a tópica é uma técnica de pensar por problemas, desenvolvida pela retórica” (p. 17), ou seja, trata-se de “uma techne do pensamento que se orienta para o problema ” (p. 33). 17 Em certa medida, tal posição se apresenta coincidente com a que é apresentada por Juarez Freitas, A interpretação sistemática do direito , p. 54. Diz o jurista gaúcho que o sistema é uma rede axiológica e hierarquizada topicamente de princípios fundamentais. Ora, essa hierarquização tópica nada mais é, segundo nos parece, do que o cerne da idéia de Los Mozos, ou seja, o topo da hierarquia será ocupado por um princípio indeterminável em abstrato, só podendo ser apontado com precisão segundo as circunstâncias tópicas do caso concreto. 35 soluções porventura encontradas, ou seja, deve atender às necessidades da vida, e por essa razão não pode ficar alheia aos elementos do direito posto, sob pena de tornar qualquer debate alheio ao Direito e à sua Ciência18. No entanto, e de um certo modo até paradoxalmente, importante é que se alerte que no estudo da boa-fé objetiva, campo onde preferencialmente se situam a Teoria dos Atos Próprios e os demais institutos que lhe são assemelhados, em geral se mostrarão impossíveis a interpretação e a aplicação tradicionais da lei, fazendo-se a subsunção do caso concreto à mesma. O problema é que a boa-fé objetiva, embora esteja, a toda evidência (e a todo instante), inserida no ordenamento jurídico, de uma certa forma se mantém fora da norma legal. Com efeito, facilmente se verifica que as normas legais que fazem menção à boa-fé não têm, por si sós, uma solução para o caso concreto, vale dizer, não contêm em seu bojo uma decisão a ser aplicada pelo juiz por meio da subsunção, ao contrário do método aplicativo tradicional. Quando o Código Civil, por exemplo, menciona que nas obrigações provenientes de ato ilícito o devedor deve ser considerado em mora desde o momento em que o praticou (art. 398), o juiz considera a norma legal como sendo a premissa maior. Ao examinar um caso concreto, verifica que “A” deve pagar a “B” uma indenização decorrente de um ato ilícito, e tal situação real é considerada como a premissa menor. Faz, então, a subsunção, concluindo com facilidade que “A” está em mora desde o momento em que praticou o ato que deu origem à dívida, e portanto deverá responder pelos juros da mora desde o referido momento. No entanto, veja-se que quando o mesmo Diploma Civil manda que os direitos sejam exercidos dentro dos limites impostos pela boa-fé (art. 18 Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil , pp. 30-31. 36 187), sob pena de se caracterizar o exercício abusivo, a norma legal mais se assemelha a uma lacuna, a ser preenchida pelo aplicador, uma vez que não dá a este qualquer critério para que possa aferir quais são esses limites traçados pela boa-fé, e o limite dependerá unicamente da atuação do próprio juiz. Como se vê, portanto, a boa-fé é buscada em virtude da determinação que emana da ordem legal, mas o seu conteúdo não está – e, como veremos, nem poderia estar – na lei, mas sim na própria decisão judicial, que deverá buscar-lhe o melhor preenchimento para as circunstâncias do caso concreto em exame. Em outras palavras, a compreensão da boa-fé objetiva decorre muito mais da atividade jurisprudencial do que da análise teórico- doutrinária dos textos legais. É evidente que, com a evolução da jurisprudência, torna-se possível que os estudos se encaminhem para uma sistematização da matéria, o que facilita sobremaneira a análise dos casos futuros, que se torna mais segura, uma vez que, em sua maioria, tais casos tenderão a ser enquadrados nas situações já organizadas de modo científico. Como bem aponta Béatrice Jaluzot19, é o estudo jurisprudencial e doutrinário que permite que nos aproximemos do conteúdo da boa-fé. Por outro lado, no entanto, também não se pode perder de vista que as decisões judiciais jamais se consolidarão até o ponto de esgotar todas as novas hipóteses que poderão surgir, vale dizer, sempre surgirão situações que até então não haviam sido abordadas, com nuances e características próprias, o que faz com que o estudo de fenômenos como o da boa-fé esteja em evolução permanente e contínua, sempre havendo espaço para novas 19 Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et japonais, p. 79, n° 289. 37 construções e, ao mesmo tempo, sempre havendo uma necessária e insuperável indefinição conceitual. O sistema jurídico, como se sabe, está em incessante interação com o meio social onde encontra sua aplicação, em uma troca recíproca de conceitos e de soluções, e por isso as inovações sociais repercutem quase que de imediato no ordenamento jurídico, e com freqüência surgem situações que são alheias às normas legais ou em relação às quais é quase nenhum o tratamento dispensado pelo direito posto. E é exatamente nessas situações, pouco ou nada reguladas pela lei, que com mais intensidade se mostra aplicável a boa-fé, exatamente por ser um conceito estranho à lei, não podendo ser por esta aprisionado. Tome-se, a título de exemplo, a questão do abuso do direito, prevista em nosso ordenamento, unicamente, no artigo 187 do Código Civil, sem que se possa encontrar qualquer norma legal que cuide de explicar em maiores detalhes sobre o tema. Ora, em qualquer relação jurídica, onde um dos sujeitos estará sempre exercendo um ou mais direitos subjetivos, haverá sempre um largo espaço para a atuação do juiz, com esteio no conceito de abuso do direito, o que tem a inegável vantagem de permitir que possam ser corrigidas eventuais distorções – ou mesmo injustiças – decorrentes da aplicação direta da norma legal. Tomemos, como exemplo ainda mais específico, para tornar mais clara a afirmação, um caso que ocorre na prática com muita freqüência, que é o trabalho do empregado doméstico em extensas jornadas, inclusive aos domingos e feriados. O problema começa porque a lei, ao tratar das horas extras e do Repouso Semanal Remunerado, expressamente exclui o empregado doméstico da sua abrangência, como se pode observar no Decreto-Lei nº 5.452, de 38 01.05.1943(CLT), art. 7º, a, e na Lei nº 605, de 05.01.1949, que trata do Repouso Semanal Remunerado e, em seu artigo 5º, a, explicitamente declara que seus dispositivos não são aplicáveis aos empregados domésticos. Ao entrar em vigor, contudo, a atual Constituição Federal determinou, em seu artigo 7º, parágrafo único, que aos domésticos fosse deferido o Repouso Semanal Remunerado, preferencialmente aos domingos, continuando a não se lhe aplicar, contudo, as regras sobre horas extras, previstas na CLT. Tem-se, portanto, com grande freqüência, a seguinte situação: a empregada doméstica trabalha em jornadas muito extensas, por vezes começando antes das 07:00 horas e terminando por volta de 20:00 horas, ou mesmo depois disso. Ainda, é também muito comum que a empregada doméstica trabalhe em dias feriados ou mesmo aos domingos. Ora, a única norma legal a tratar sobre o assunto, como acabamos de mencionar, é o dispositivo constitucional (CF, art. 7º, parágrafo único), que assegura ao doméstico o direito ao Repouso Semanal Remunerado, preferencialmente aos domingos. O que deve fazer o juiz, portanto, em tais situações? Condenar o empregador ao pagamento de horas extras ao doméstico? O problema é que do direito às horas extras são expressamente excluídos esses empregados pela norma legal. Determinar que o empregador forneça o dia de repouso, preferencialmente aos domingos? O problema, agora, é que em geral, quando o empregado busca a Justiça do Trabalho, já não mais trabalha para aquele empregador, e por isso a determinação não teria qualquer objeto. O que fazer, então? No enfrentamento dos casos concretos, a primeira e óbvia conclusão a que chegaram os juízes do trabalho, foi no sentido de que a falta de regulamentação da matéria, caso implicasse na ausência de qualquer 39 conseqüência, estaria sendo transformada em manifesta injustiça. A segunda, foi no sentido de que o empregador doméstico, ao exercer seu direito de exigir a prestação dos serviços por parte do empregado, em troca do pagamento dos salários, deveria exercê-lo dentro dos limites que se impõem a todo e qualquer exercício de direitos subjetivos, sob o risco de se configurar o abuso. A partir de tal constatação, com uma certa facilidade pôde ser preenchida a lacuna existente na lei, pois o que se verificou foi que o empregador doméstico, ao exigir o trabalho em extensas jornadas, que se mostram desarrazoadas, ou o trabalho nos dias feriados ou em todos os domingos, estava exercendo de modo abusivo o seu direito, extrapolando os limites que a boa-fé impõe a tal exercício. Logo, tal empregador deve ser condenado a pagar ao empregado doméstico uma certa quantia, que, se não poderá ser paga a título de horas extras, face à expressa exclusão legal, deverá sê-lo a título de indenização em virtude de ato ilícito, consistente no exercício abusivo do direito de exigir a prestação dos serviços. Como se vê, portanto, o juiz recebeu, para decidir, situação concreta que se encontra sujeita a quase nenhuma regulamentação legal e, para decidi-la, precisou preencher os claros legais. Ao fazê-lo, lançando mão do conceito de boa-fé (e dos institutos que dela derivam), além de suprir uma lacuna legal, corrigiu uma situação que poderia se caracterizar em manifesta injustiça, caso fosse simplesmente aplicada a norma legal que exclui os domésticos do âmbito de aplicação da Consolidação das Leis do Trabalho. Além disso, como também já havíamos alertado linhas atrás, quanto mais avançar o tratamento jurisprudencial dado à questão, mais seguro se tornará o enfrentamento da mesma, que poderá ser enquadrada em uma sistematização que permita prever, com razoável acerto, a solução a ser aplicada aos futuros casos concretos que se mostrem similares, solução essa 40 que se tornará previsível em seus diversos aspectos, inclusive quanto aos parâmetros de apuração do valor a ser fixado para a indenização. Deve-se alertar, contudo, para um sério risco, do qual se deve fugir, que é o da tentação de preencher o espaço aberto pela indefinição conceitual de boa-fé com outros conceitos que também se mostram vagos e indefinidos, e que também são externos à norma legal. Assim ocorre, por exemplo, quando se busca dizer que os limites da boa-fé são aqueles impostos pela eqüidade, ou quando se diz que age de boa-fé quem age com equilíbrio ou conforme a ética. O problema, que se mostra bastante evidente, é que essas expressões também não estão conceituadas pela lei, e continuarão a requerer a atuação do juiz, para o seu preenchimento em cada caso concreto, o que significa que não se resolveu coisa alguma, mas tão-somente se fez a substituição de uma expressão indefinida por outras que igualmente o são. Ademais, substituir a boa-fé por expressões que, supostamente, resolveriam o problema do seu conteúdo, na realidade seria o mesmo que afirmar que a boa- fé não se mostra funcional, não podendo ser aplicada nas soluções jurídicas em virtude da inviabilidade de se construir um conteúdo próprio, por isso que se teria mostrado indispensável a substituição. E a construção desse conteúdo próprio é perfeitamente viável, como pretendemos demonstrar mais à frente. 1.2. A boa-fé romana e sua recepção no direito europeu. Não se nota, nos autores modernos, qualquer interesse no estudo da fides romana, o que pode ser facilmente explicado quando se observa que, na realidade, o instituto chegou ao direito moderno através do direito europeu, que o recebeu e modificou. Mais interessante tem se mostrado, por isso, o 41 estudo da boa-fé nos países da Europa, principalmente a Alemanha, Portugal e França, destacando-se esta última face à grande contribuição, para o direito civil em geral, em que se constituiu a primeira grande codificação, e de modo especial, quanto à boa-fé, sobressaindo-se a Alemanha, onde o estudo do assunto teve incomparável desenvolvimento. Mas veja-se, contudo, que há quem alerte que não é possível determinar o conteúdo e a forma da boa ou má- fé a não ser observando a enorme diversidade de aplicações da fides no campo do Direito20. De qualquer modo, ainda que brevemente, não é demais mencionar que a primitiva fides romana, na realidade, desdobrava-se em diversos significados, podendo-se apontar, à guisa de exemplo, a fides-sacra, prevista na Lei das XII Tábuas, através da qual se cominava sanção religiosa contra o patrão que defraudasse a fides do cliente21, a fides-facto, que não apresentava qualquer conotação religiosa ou moral, ligando-se à questão da garantia de alguns institutos, e a fides-ética, que também se referia à noção de garantia, mas agora consistente na qualidade de uma pessoa, por isso que eivada de um conteúdo moral22. Na realidade, todos os povos da antiguidade, os romanos em especial, davam extraordinária importância à fides, inclusive revestindo-a de um conteúdo religioso e informando toda a vida e a consciência social23. Mas havia, ainda, outros sentidos para a fides romana. Assim, por exemplo, a fides-sacra poderia ser ainda dividida em fides-poder e em fides- promessa, a primeira referente à posição do patrão, que detinha poderes de 20 José Luis de Los Mozos, El Principio de La Buena Fe, pp. 22. 21 A clientela, entenda-se, consistia em uma das classes que compunham a estratificação social romana, cujos integrantes, os clientes, estavam situados entre o cidadão livre e o escravo, e que assumiam deveres de lealdade e de obediência ao patrão, em troca da proteção. 22 Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil , pp. 55-56. 23 José
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