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AVA-1
Você está na unidade Linguagem jurídica e significados da palavra “direito”. Conheça aqui quais são as origens e seus respectivos significados e funções frente ao estudo do Direito. Além disso, deriva-se outros significados também importantes e que darão a você base para compreender a teoria da norma jurídica, suas operações lógicas e classificações.
Bons estudos!
Palavra direito
A palavra direito, assim como diversas outras palavras na língua portuguesa, pode assumir significados variados, isso constitui o que em linguística se chama de polissemia, podemos encontrar, portanto, a palavra direito empregada com diferentes conotações e denotações, do ponto de vista semântico, e na função de substantivo, de adjetivo ou de advérbio, do ponto de vista sintático (FERRAZ JR., 2013).
Alguns destes significados terão pouco ou nada a interessar ao estudo do Direito, como, por exemplo, quando a palavra é usada nas frases “o livro está no canto direito da estante” ou “o trabalho não foi feito direito”. Por outro lado, em frases como “o direito brasileiro garante que” ou “pretendo lutar pelos meus direitos”, os significados, além de não serem sinônimos, se revestem de relevância jurídica e, consequentemente, interessam ao estudo do Direito.
1.1 Origens, significados e funções
A discussão sobre o surgimento do direito, historicamente, perpassa a discussão sobre o surgimento ou desenvolvimento das primeiras formas primitivas da sociedade e remonta a tempos que não necessariamente se pode determinar com precisão de forma pacífica. Existe um famoso brocardo romano que diz que: “onde há o homem, há a sociedade, onde há a sociedade, há o direito; logo, onde o homem, aí o direito”, o original em latim diz “Ubi homo, ibi societas, ubi societas, ibi jus; ergo, ubi homo, ibi jus” (MACHADO, 1981, p. 14).
Isso nos dá, de imediato, uma noção da relação intrínseca entre direito e sociedade e de como a experiência do direito caracteriza-se como um fenômeno histórico e cultural que varia no tempo e no espaço. A vida em sociedade exige a elaboração de regras de convivência que se manifestam com maior ou menor sofisticação a depender do contexto, do momento histórico, da localidade.
Ferraz Jr. (2013) aponta como o aumento da complexidade das relações sociais implica no desenvolvimento do direito, relações que antes eram de mero parentesco e faziam com que todo o poder se concentrasse nas mãos da figura do pai de família (que era simultaneamente chefe, sacerdote, juiz, e etc.), passam a se ampliar e a se tornar em relações entre papeis sociais regulados por um direito que busca abarcar um número cada vez maior de situações, valendo-se da abstração e da generalidade. Assim, o código bom/mau que vigorava na sociedade primitiva familiar-tribal é substituído pelo código lícito/ilícito, o que não mais implica na perda de pertencimento ao grupo como forma de sanção. O direito arcaico se manifesta determinado como a ordem querida por uma divindade, ou grupo de divindades, que se encontram tão obrigadas a essa ordem quanto a humanidade. Não estava ao alcance dos humanos modificar o direito, e se confundiam com todas as demais regras existentes dentro daquele grupo, essa confusão tinha por consequência não só a impossibilidade de alteração da ordem, mas também de separar o conhecimento do direito do direito como objeto: “a existência, a guarda, a aplicação e o saber do direito confundem-se”. 
As origens da palavra direito com seus significados jurídicos podem ser encontradas (assim como diversas palavras da língua portuguesa), no latim. Temos, no chamado baixo latim, os termos directum, rectum, derectum, que significam direito, reto.
Na Grécia Antiga e na Roma Antiga, havia deusas para representar o direito, representações estéticas que traduziam a concepção de direito presente em cada uma dessas civilizações:
Dentro, então, do sentido de direito regra, temos, como dado, o direito objetivo: trata-se exatamente do direito como se apresenta no texto da legislação. É a regra em si, ou seja, o “complexo de normas jurídicas que regem o comportamento humano e prescrevem uma sanção em caso de violação”. (DINIZ, 2001, p. 244) Em latim, utiliza-se a expressão norma agendi para se referir ao direito objetivo.
A outra faceta do direito regra é o direito subjetivo, que, como o próprio nome alude, refere-se ao direito que surge para o sujeito exercer, a partir do conteúdo jurídico garantido pela regra. É a “permissão oriunda da norma jurídica válida para fazer ou não fazer algo, para ter ou não ter algo ou a autorização para exigir, por meio dos órgãos competentes, o cumprimento da norma infringida ou a reparação do mal sofrido”. (DINIZ, 2001, p. 244)
Em latim, utiliza-se a expressão facultas agendi para se referir ao direito subjetivo. Maria Helena Diniz (2001) alerta para o fato de que a utilização da expressão facultas agendi, embora seja muito comum, não é totalmente adequada para caracterizar o direito subjetivo, considerando que as faculdades humanas são qualidades e não dependem da norma jurídica para existir, pois não são direitos, apenas existem em si. A norma jurídica apenas ordena as faculdades, mas faculdade de agir vem antes da permissão para usar dessa aptidão.
A melhor caracterização do direito subjetivo é, então, como permissão para o uso das faculdades humanas, que é lícito ou ilícito, conforme proibido ou permitido pelas normas. Tomemos, por exemplo, o art. 7º da Constituição Brasileira, que diz, “são direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: XV - repouso semanal remunerado, preferencialmente aos domingos” (BRASIL, 1988, online).
O direito objetivo, no caso, é a garantia do direito ao repouso semanal remunerado, que deverá ocorrer de preferência aos domingos, para trabalhadores urbanos e rurais. O direito subjetivo, no entanto, só aparece para aquelas pessoas (sujeitos de direito) que se encaixam no papel social previsto pelo texto da norma, alguém que não trabalha não tem direito subjetivo ao repouso semanal remunerado. E quem trabalha, tem, mas isso também não significa que o repouso ocorrerá, necessariamente, num domingo, dado que o direito subjetivo é ao repouso semanal remunerado e não ao dia específico. Há diversas profissões em que se torna impossível, ou quase impossível que isso ocorra.
Direito objetivo e direito subjetivo se ligam intimamente, mas são inconfundíveis. Machado reforça que “o direito é o mesmo, a regra é a mesma. Considerada em si, eis o seu aspecto objetivo: considerada no sujeito que a põe em exercício, eis o seu aspecto subjetivo. Não são dois direitos. São como o verso e o anverso de uma medalha” (MACHADO, 1981, p. 37).
Existem discussões a respeito da relação entre direito objetivo e direito subjetivo, especialmente quanto à possibilidade de um preceder o outro. Essas discussões, no entanto, não cabem aqui neste momento.
Por último, falemos do termo “direito” com o sentido de debitum, ou seja, aquilo que é devido, por atribuição da regra de direito. Dentro deste significado, temos duas formas tradicionalmente aceitas de manifestação do conteúdo da regra:
Historicamente, ambos os tipos de regras conviveram em harmonia durante muito tempo, de modo complementar. Atualmente, considera-se que esta dicotomia está enfraquecida, uma vez que o conteúdo do direito natural foi todo englobado pelo direito positivo, em busca de maior segurança jurídica. Voltaremos a esta discussão mais adiante, para aprofundar nos meandres históricos da relação entre direito natural e direito positivo. 
1.2 Direito como tecnologia social e a necessidade de resolução de problemas
Ferraz Jr. (2013) aponta o caráter eminentemente dogmático que o direito assume contemporaneamente (como consequência de todas as mudanças ocorridas na sociedade e no Estado e na relação entre eles) e como o estatuto teórico do saber jurídico foi alterado: “de saber eminentemente ético, nos termos da prudência romana, foi atingindo as formas próximas do que se poderia chamar hoje de sabertecnológico”. Afirma, ainda, que:
Um pensamento tecnológico é, sobretudo, um pensamento fechado à problematização de seus pressupostos – suas premissas e conceitos básicos têm de ser tomados de modo não problemático – a fim de cumprir sua função: criar condições para a ação. No caso da ciência dogmática, criar condições para a decidibilidade de conflitos juridicamente definidos (FERRAZ JR., 2013, p. 60).
Dessa forma, o problema central da ciência dogmática do direito é a decidibilidade, diferentemente da concepção de ciência que busca a verdade com validade universal (ainda que refutável e não absoluta). O direito busca solucionar os conflitos sociais de forma a gerar o mínimo de perturbação social possível (FERRAZ JR., 2013).
A decidibilidade pode ser abordada segundo aspectos ou critérios variados, como justiça, utilidade, certeza, legitimidade, legalidade, e etc. Isso decorre da pluridimensionalidade do direito, cujos enunciados, em sua aplicação diária, criam infindáveis consequências na esfera legislativa, judiciária, administrativa, contratual. As relações humanas são origem constante de conflitos, a vida em sociedade nos impõe a necessidade de elaborar um sistema de ordenação ética da convivência, inevitavelmente. A elaboração de códigos e leis se caracteriza como uma forma de adaptação humana em busca de contornar as imposições da natureza tanto quanto a construção de máquinas, casas ou desenvolvimento de técnicas de cultivo de alimentos. A diferença é que o direito é criado em busca de justiça, segurança, ordem, bem estar social (NADER, 2011). A decidibilidade, portanto, está no cerne da ciência dogmática do direito: é o que irá garantir a realização dos valores socialmente eleitos como conteúdo do direito elaborado e impedir que os conflitos sociais surgidos se perpetuem no tempo.
Ferraz Jr. (2013, p. 66-67) destaca três modelos teóricos, que se interrelacionam para proporcionar a tomada de decisão visada pela dogmática jurídica: são “modos como a ciência do direito se exerce como pensamento tecnológico”. 
Ciência do direito como teoria da norma, ou modelo analítico
Ciência do direito como teoria da interpretação, ou modelo hermenêutico
Ciência do direito como teoria da decisão jurídica, ou modelo empírico
1.3 Sanção e coação - fundamentos da distinção
A partir da caracterização de direito como tecnologia social e da detecção da exigência social de resolução de conflitos, dois conceitos se fazem necessários para darmos continuidade ao nosso estudo: sanção e coação.
A sanção, como veremos adiante, faz parte (embora não necessariamente), da estrutura da norma. Apresenta-se, dentro dessa estrutura, como forma de buscar garantir o cumprimento da norma, ou, nas palavras de Reale, “todo e qualquer processo de garantia daquilo que se determina em uma regra”. A sanção nada mais é que a consequência que surge para o destinatário da norma por não tê-la cumprido. A sanção não é elemento exclusivo da norma jurídica, podendo ser observada em outras esferas de controle social. As normas morais, sociais e religiosas também podem apresentar uma sanção, com a diferença que a sanção da norma jurídica, por ser institucionalizada (vem do Estado), será sempre dotada de organização e predeterminação.
No direito, temos diversas espécies de sanção, de acordo com o ramo em que se aplicam. Podemos citar como exemplos: 
Sanção internacional
Pode ter caráter diplomático, econômico ou comercial.
Sanção disciplinar
Sanção administrativa
Sanção civil
Sanção política
Sanção premial
Para Kelsen , a sanção é parte necessária da estrutura da norma jurídica, pois se a norma é um dever, o que se deve é a sanção. Diante do fato de existirem normas que não trazem em si uma sanção, Kelsen explica que há normas autônomas e normas dependentes. As primeiras trazem em si a sanção, as últimas têm sanção correspondente em outra norma, pois apenas estabelecem um comportamento. Hart denuncia o fato de a maioria das normas serem do segundo tipo e não do primeiro, hoje fala‐se cada vez mais em sanções premiais para encorajar atos e não para desencorajar, como incentivos fiscais, delação premial, acordo de leniência. Por isso, a tendência da doutrina é excluir a sanção como elemento necessário da estrutura da norma, mas a sanção só pode vir prescrita por norma, embora nem toda norma tenha prescrição de sanção. O direito não admite sanções implícitas ou Extra normativas como jurídicas (FERRAZ JR., 2013, p. 92-93).
Sanção e coação não se confundem. A sanção é uma consequência jurídica prevista pela norma jurídica; a coação é sua aplicação efetiva, segundo processos legais, ou, como diz Casarini Sforza, ‘é o modo de concretizar-se da sanção’. Exemplificativamente: a multa contratual é a sanção, e a cobrança judicial dessa multa é a coação (DINIZ, 2001, p. 367).
Machado (1981) nos apresenta a natureza e as espécies de coação, a partir da doutrina de Jhering, em seis aspectos: 1) coação física e coação psicológica; 2) coação propulsiva e coação compulsiva; 3) coação política e coação social. Vamos a eles:
A coação é exercida de forma mecânica ou de forma psicológica, seja física ou psicológica: “Na coação física ou mecânica, a ação pertence a quem a exerce; na psicológica, age quem a sofre; a primeira é fato externo que elimina a vontade; a segunda é motivo que impele a vontade à ação” (MACHADO, 1981, p. 110).
A coação se define segundo a natureza do fim visado ser positiva ou negativa: “propulsiva é a que se impõe contra a resistência a certo ato; compulsiva a que leva à execução desse ato” (MACHADO, 1981, p. 110).
coação se define a partir do critério de sua existência sob a forma organizada ou inorganizada: “A política ou organizada tem como objeto a realização do direito; a social, não organizada, visa à realização da moralidade” (MACHADO, 1981, p. 110). A coação política, justamente por ser organizada, transita dentre todas as possibilidades previstas pelos outros dois grupos, ou seja, pode ser física ou psicológica, e ainda propulsiva ou compulsiva.
Ainda o mesmo autor traz excelente exemplificação das conjugações possíveis dentre as espécies de coação:
Diremos que é mecânico-social-propulsiva a coação exercida pelo ladrão sobre a vítima; mecânico-política, a coação imposta ao ladrão pelo agente policial (propulsiva, se o impede de realizar o furto; compulsiva se o detém após a consumação deste); mas é psicológica, compulsiva (podendo às vezes ser também propulsiva) a coação que leva o cidadão a apresentar-se à polícia, quando responsável por um crime culposo (um atropelamento involuntário, p. ex.), ou quando comparece ao guichê de uma coletoria para pagar um imposto devido (MACHADO, 1981, p. 110).
Ainda é importante abordar a existência do termo coerção em oposição à coação, visto que existe discussão doutrinária relevante acerca da essencialidade ou não da coação como elemento caracterizador do direito:
Coação suscita de maneira mais imediata a ideia de obrigar contra a vontade, a noção de violência. Coagir é constranger, forçar. No direito positivo, a coação figura como defeito dos atos jurídicos, ao lado do erro e da ignorância, do dolo, da simulação e da fraude contra credores; e é crime previsto no Código Penal. Sem dúvida, um defeito do ato jurídico, tanto quanto o roubo e a extorsão, cujos conceitos integram o constrangimento mediante violência ou grave ameaça, é fenômeno de direito. Quem ousaria dizer, entretanto, que o Direito, em si, constitui uma empresa de força, violência, constrangimento e ameaça? O termo coerção parece menos agressivo. (MACHADO)
Segundo essa linha de raciocínio, temos a coerção como elemento que se encontra na consciência da pessoa que se obriga pela norma jurídica, exercendo pressão sobre sua vontade; a sanção reside na norma e só pode ser aplicada por autoridades competentes, em casos concretos, e segundo o devido processo legal; já a coação consistiria, então, na execução forçada da sanção, aplicada sobre a liberdade ou sobre os bens do sujeito passivo como forma de cumprir a prestação devida pelodescumprimento da norma jurídica.
2 Teoria da norma jurídica
Norma é um conceito não especificamente jurídico, podendo ter como sinônimos as palavras “regra” ou “comando”, por exemplo. Existem normas que prescrevem uma técnica, as chamadas normas do fazer, e normas que estabelecem comportamentos, as chamadas normas do agir. As primeiras são aquelas que, se seguidas, levarão a um resultado que é um produto, como numa receita culinária, por exemplo. As últimas, as normas do agir, por estabelecerem comportamentos, prescrevem comandos de como a vida deve ser vivida.
Nesse campo de normas encontramos esferas diversas como a moral, a social e a religiosa. Essas normas possuem como características, em maior ou menor grau, a obrigatoriedade, continuidade e permanência, a sociabilidade.
A norma jurídica, por ser institucionalizada, apresenta essas mesmas características de forma maximizada, além de ser exigível, ou seja, dispõe de mecanismos que irão garantir seu cumprimento. A norma jurídica é, então, uma norma do agir dotada de juridicidade e impessoalidade, o que possibilita a exigência, ou, ao menos a criação da expectativa, de que seja cumprida em caráter de obrigatoriedade.
Ferraz Jr. (2013, p. 88) afirma que do ponto de vista estrutural e sob uma perspectiva zetética, “normas jurídicas são expressões de expectativas contrafáticas, institucionalizadas e de conteúdo generalizável. Compõem-se, destarte, de mensagens, emissores e agentes receptores. As mensagens ocorrem em dois níveis: o da relação ou cometimento e o do conteúdo ou relato”.
O cometimento, ainda segundo o mesmo autor, é a relação institucionalizada estabelecida entre autoridade e sujeito, expressa, em geral, verbalmente através de operadores linguísticos como “é proibido”, “é vedado”, “é permitido”. Já o conteúdo é constituído por descrições de ações, de duas condições e consequências (FERRAZ JR., 2013, p. 88).
A norma jurídica, para a dogmática, precisa ser identificada dentro de um âmbito, recebido como um dado pelo jurista. Não é preciso definir a norma jurídica, é preciso assinalá‐la em seu contexto. Assim, para a doutrina dogmática a norma jurídica é uma espécie de comando despsicologizado, um comando no qual não se identifica o comandante nem o comandado. De um lado, a figura do legislador (emissor da norma, de modo geral) tem sua importância arrefecida depois de posta a norma, ao mesmo tempo em que não se identificam os destinatários da norma, considerando a generalidade e a universalidade do comando que é a norma jurídica.
As relações sociais contemporâneas exigem que o direito se volte mais para papéis do que para pessoas, privilegiando os agentes da relação por seu papel social (FERRAZ JR., 2013).
Enquanto do ponto de vista zetético a norma jurídica tem como elementos o cometimento e o conteúdo, do ponto de vista dogmático esses elementos correspondem, respectivamente, ao caráter vinculante e à hipótese normativa somada a sua consequência jurídica. Esses elementos estruturais serão explorados com mais profundidade logo abaixo. Ferraz Jr. conclui:
Podemos dizer que a dogmática analítica capta a norma jurídica como um imperativo despsicologizado. Para evitar confusões com a idéia de comando, melhor seria falar em um direito vinculante, coercivo no sentido de institucionalizado, bilateral, que estatui uma hipótese normativa à qual imputa uma consequência jurídica (que pode ser ou não uma sanção), e que funciona como um critério para a tomada de decisão (decidibilidade) (FERRAZ JR., 2013, p. 89-95).
2.1 Estrutura da norma jurídica e operações lógicas
Conforme assinalado anteriormente, se do ponto de vista zetético a norma jurídica tem como elementos o cometimento e o conteúdo, do ponto de vista dogmático esses elementos correspondem, respectivamente, ao caráter vinculante e à hipótese normativa somada a sua consequência jurídica. O caráter vinculante da norma jurídica se manifesta no fato de ser a norma jurídica um critério para a conduta humana, base de decisão para o jurista, para qualificar agentes sociais, (capaz/ incapaz), para estabelecer condições de atos e omissões, para interpretar o sentido de outras normas, e etc. Vincula, impositivamente, a conduta estabelecida para aqueles determinados papeis sociais e serve, assim, ao problema da decidibilidade de conflitos (problema central do direito) (FERRAZ JR., 2013). A hipótese normativa pode ser caracterizada, segundo a dogmática, como uma situação de fato prevista pela norma e à qual se imputa uma consequência, um efeito jurídico.
É nulo o negócio jurídico quando celebrado por pessoa absolutamente incapaz (art. 166, I do CCB). Isso significa dizer que a consequência da realização de um negócio jurídico por um agente (papel social) não autorizado pelo ordenamento para essa prática é a nulidade do próprio negócio realizado.
Outras denominações que a hipótese normativa pode apresentar são “tipo legal”, “hipótese de incidência”, “fato gerador” (FERRAZ JR., 2013, p. 91). A estrutura lógica que uma norma apresenta se identifica pela fórmula “Se A, deve ser B; se não B, deve ser C”, em que:
A = fato / situação (ou hipótese normativa);
B = conduta (preceito, ou seja, aquilo que a norma prescreve para a hipótese normativa);
C = sanção aplicável (ou consequência jurídica).
A hipótese se compõe de atos e fatos, cuja distinção nem sempre é cristalina, mas é preciso que seja feita. De uma forma geral, pode-se dizer que o critério para a análise é a ação envolvida (ato e omissão) e uma mudança de estado de coisas. Assim, “fatos jurídicos são estados de coisas que entram para o mundo jurídico sem interferência da vontade humana” (e por isso são meramente fatos, existem e pronto), enquanto “atos jurídicos são interferência voluntária no curso da natureza”, em conformidade ou não com a lei (podendo ser uma ação ou uma omissão), o que torna os atos qualificados como lícitos ou ilícitos (FERRAZ JR., 2013, p. 91-92)
Cabe distinguir norma e lei, iniciando pela útil afirmação de que toda lei é uma norma, mas nem toda norma é uma lei. A partir dos exemplos já apresentados e da classificação das normas jurídicas quanto à hierarquia, fica simples compreender a distinção. Normas do tipo moral ou religioso, por exemplo, não são leis.
Existe uma norma composta de fato, conduta e sanção quando um dogma religioso afirma que determinado comportamento é proibido e que quem o comete pecou. No entanto, essa norma não é uma lei e nem mesmo obriga pessoas que não fazem parte daquela determinada religião. Em outras palavras, podemos afirmar que essa norma sequer é jurídica.
As normas jurídicas se diferenciam, como já foi dito, por serem dotadas de juridicidade e exigibilidade, ou seja, têm um grau de obrigatoriedade superior ao das demais normas sociais (não jurídicas). Em seus respectivos procedimentos de elaboração as normas jurídicas podem ser oriundas tanto do Estado, quanto da própria sociedade, e receber denominações diversas, segundo sua natureza e partes envolvidas: lei, decreto, portaria, regulamento, regimento, sentença, acórdão, contrato etc.
Com isso, é possível passarmos ao estudo dos atributos da norma jurídica, considerando a necessidade de delimitar aqueles atributos que, de fato, traduzem a essência da norma jurídica e que se encontra simultaneamente em todas as normas existentes no mundo jurídico.
2.2 Atributos da norma jurídica: exterioridade, alteridade, bilateralidade, coercitividade e heteronomia
Os elementos apontados como caracterizadores da norma jurídica variam dentro da doutrina, e não são objeto de consenso, especialmente se confrontadas diferentes correntes de pensamento. A exterioridade é uma característica que se relaciona à intencionalidade do ato. O ordenamento jurídico, de forma geral, não leva em consideração o querer, a vontade, a intenção do agente no cumprimento do preceito normativo. Em sendo a norma cumprida e alcançado o objetivo social pretendido, pouco importa se o agente ficou feliz ou não ao obedecer o conteúdo exigido por aquela norma. A exterioridade é, no entanto,um atributo compartilhado com outros instrumentos de controle social, como a etiqueta ou as regras do trato social (NADER, 2011). A alteridade é uma característica relacionada à intersubjetividade da norma de direito, que, ao mesmo tempo que impõe um dever, atribui a outrem uma faculdade correspondente a tal dever (DINIZ, 2001).
Essa relação de intersubjetividade é chamada, por Reale (2004), de bilateralidade em sentido social, pois sem a existência de uma relação unindo duas ou mais pessoas não haveria Direito. A bilateralidade é a característica do direito de vincular sempre duas ou mais pessoas, nessa atribuição de papeis sociais de sujeito ativo e sujeito passivo. Ferraz Jr., no entanto, alerta:
Se entendermos por essa característica que toda norma estabelece relações jurídicas entre sujeitos (por exemplo, relações de obrigação), a bilateralidade não pode ser considerada nota essencial da norma jurídica. Afinal, nem todas determinam tais relações. Há normas que apenas qualificam um sujeito em termos de sua capacidade. Há normas que simplesmente prescrevem um regime: o Brasil é uma República Federativa. Obviamente, essas normas têm validade erga omnes, para todos. Contudo, isso significa que elas são bilaterais apenas no sentido de alteridade, isto é, que demarcam as posições socialmente relevantes dos sujeitos. Só com esse significado (alteridade) podemos dizer que todas trazem anota da biletaralidade (FERRAZ JR., 2013, p. 95).
Reale (2004, p. 51) fala, ainda, em bilateralidade atributiva, que afirma ser a nota distintiva essencial do Direito: “bilateralidade atributiva é, pois, uma proporção intersubjetiva, em função da qual os sujeitos de uma relação ficam autorizados a pretender, exigir ou a fazer, garantidamente, algo”.
A coercitividade é uma expressão que deriva de uma concepção tipicamente kelseniana, que define o Direito como a ordenação coercitiva da conduta humana. Essa e outras teorias semelhantes enxergam no direito uma expressão efetiva da força e buscam demonstrar a compatibilidade que há entre direito e força.
A heteronomia é uma qualidade do direito que traduz a validade objetiva e transpessoal das normas jurídicas, uma vez que são postas por terceiros e obrigam os sujeitos destinatários. Contrariamente à moral, por exemplo, que é autônoma, visto que posta pela própria pessoa e destinada exclusivamente a ela. As normas jurídicas se põem, então, “acima das pretensões dos sujeitos de uma relação, superando-as na estrutura de um querer irredutível ao querer dos destinatários” (REALE, 2004, p. 49).
Vocabulário mais compatível com a experiência jurídica contemporânea é “coercibilidade”, que traduz a possibilidade de uso da coação e contém os elementos psicológico e material. Miguel Reale afirma que “para milhares de contratos que se executam espontaneamente, bem reduzido é o número dos que geram conflitos sujeitos a decisão judicial. Não se pode, pois, definir a realidade jurídica em função do que excepcionalmente acontece” (REALE, 2004, p. 47).
 2.3 Classificações das normas jurídicas
As classificações propostas pela doutrina para as normas jurídicas não apresentam homogeneidade, motivo pelo qual é importante fazer uma exposição que inclua todas as classificações mais relevantes. Nader (2011, p. 89-93), com base na classificação proposta por García Maynez, traz os seguintes critérios de classificação:
Quanto ao sistema a que pertencem
Dividindo-as em nacionais, estrangeiras e uniformes. Nacionais são as normas jurídicas pertencentes ao ordenamento jurídico de um determinado Estado-nação, enquanto estrangeiras são as normas jurídicas oriundas de outro Estado-nação. Embora a regra seja as normas terem vigor apenas dentro do território a cujo ordenamento jurídico pertençam, eventualmente sua aplicação pode ocorrer extrapolando esse limite, no Direito Internacional Privado. Normas uniformes são, como o próprio nome sugere, normas adotadas conjuntamente por dois ou mais Estados-nação, por meio de tratados, padronizando a legislação.
Quanto à fonte
Segundo sua origem, as normas jurídicas podem ser legislativas, consuetudinárias e jurisprudenciais. Legislativas são aquelas elaboradas, geralmente, pelo Poder Legislativo e eventualmente pelo Poder Executivo de um país, apresentando-se sob a forma de legislação escrita positivada. Consuetudinárias são aquelas normas baseadas no costume, que se consolidou na coletividade como regra obrigatória a ser cumprida com valor jurídico. Jurisprudencial é a norma criada pelos tribunais, ou seja, vem do conjunto de decisões judiciais anteriores. A depender do sistema jurídico as normas consuetudinárias e jurisprudenciais podem ter maior (common law) ou menor (romano-germânica) importância.
Quanto aos âmbitos de validez
I. No âmbito espacial de validez as normas jurídicas classificam-se em gerais e locais, ou seja, se são destinadas a aplicação em todo o território nacional ou em parte delimitada dele. 
II. No âmbito temporal de validez as normas jurídicas classificam-se segundo seu prazo de vigência seja determinado ou indeterminado, ou seja, se trazem consigo próprias a determinação de um prazo limite de vigência (o que é menos frequente) ou não.
III. No âmbito material de validez as normas jurídicas classificam-se como de Direito Público ou de Direito Privado, tendo por característica uma relação de subordinação nas primeiras e de coordenação nas últimas. Isso significa dizer que, de modo geral, nas relações em que o Estado faz parte atuando com poder de imperium, ele se coloca em posição superior aos administrados e, por isso, as relações são de subordinação. Nas relações entre particulares, pelo contrário, ambas as partes encontram-se no mesmo patamar e, por isso, há coordenação.
IV. No âmbito pessoal de validez as normas jurídicas classificam-se em genéricas e individualizadas, segundo sejam dirigidas a toda e qualquer pessoa que se encontre naquela determinada situação jurídica ou sejam dirigidas a uma pessoa ou grupo individualmente determinado.
Quanto à hierarquia
Considerando a relação de precedência, as normas jurídicas classificam-se em constitucionais, complementares, ordinárias, regulamentares e individualizadas. No mais alto patamar estão as constitucionais, que fazem parte (material ou formalmente) da Carta Constitucional do país e determinam as condições de validade das demais normas do ordenamento. As normas complementares têm sua existência prevista, na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/1988) e estão, portanto, abaixo delas na hierarquia, mas estão acima das ordinárias. A exigência específica que caracteriza uma norma complementar é a necessidade de aprovação no Parlamento por maioria absoluta.
As normas ordinárias são aquelas contidas em leis, medidas provisórias, leis delegadas. Encontram-se abaixo das complementares e requerem a existência das normas regulamentares para, como o próprio nome diz, regulamentá-las – geralmente por meio de decretos. Por último, as normas individualizadas são aquelas que estão contidas em negócios jurídicos e vinculam apenas suas partes, como em contratos, testamentos etc. 
Quanto à sanção
Segundo o critério da consequência que resulta do seu descumprimento, as normas jurídicas podem ser perfeitas, mais que perfeitas, menos que perfeitas e imperfeitas. Perfeitas (ou perfectae) são normas que sancionam o seu descumprimento com a nulidade do ato, enquanto mais que perfeitas (ou plus quam perfectae) preveem tanto a nulidade quanto uma pena. Menos que perfeitas (ou minus quam perfectae) são normas cuja sanção é apenas a pena, enquanto as normas imperfeitas (ou imperfectae) são as normas que não possuem nenhuma previsão de sanção para sua violação, ou seja, nem nulidade do ato, nem pena ao seu autor.
Quanto à qualidade
Nesse sentido, as normas jurídicas podem ser positivas ou permissivas e negativas ou proibitivas. As primeiras contêm permissão de ação ou de omissão, enquanto as últimas, de modo contrário, proíbem a ação ou a omissão.
Quanto às relações de complementação
As normasjurídicas podem ser, segundo suas relações de complementação, primárias ou secundárias, sendo as primárias aquelas que têm seu sentido complementado pelas secundárias. As normas secundárias, por sua vez, aparecem em diferentes espécies, a depender do tipo de complementação que proporcionam:
I. De iniciação, duração e extinção da vigência.
II. Declarativas ou explicativas.
III. Permissivas.
IV. Interpretativas.
V. Sacionadoras.
Quanto à vontade das partes
Segundo a vontade das partes envolvidas na relação jurídica, as normas podem ser taxativas ou cogentes e dispositivas. As taxativas ou cogentes são aquelas que obrigam sem considerar a vontade das partes, uma vez que zelam por interesses maiores, que se sobrepõem ao particular. As normas dispositivas, por outro lado, consideram a expressão da vontade das partes para admitir sua não execução.
AVA-2
1 Direito público e direito privado
O direito positivo é o direito posto pelo Estado, criado artificialmente para atender às necessidades da sociedade no tocante à decidibilidade dos conflitos que inevitavelmente aparecem, visando à manutenção da ordem e da convivência ética entre seus integrantes. A divisão do direito positivo em direito público e direito privado, ou seja, em dois grandes grupos que se subdividem internamente, é apresentada pela doutrina como uma dicotomia, que é uma classificação em que cada uma das divisões tem dois termos, que se excluem mutuamente por serem totalmente opostos. Veremos que a relação entre direito público e direito privado não é de oposição total e que existe uma grande parcela de interpenetração de um no outro.
O primeiro uso de que se tem notícia da divisão do direito em público e privado remonta ao Direito Romano, com Ulpiano, no trecho do Digesto que diz que “O direito público diz respeito ao estado da coisa romana, à pólis ou civitas, o privado à utilidade dos particulares” (FERRAZ JR., 2013, p. 105) .
A concepção de “público” e “privado” não se manteve estática ao longo dos períodos históricos que se sucederam, e isso implicou a dificuldade existente atualmente em encontrar uma classificação definitiva e totalmente satisfatória. Visando ao estabelecimento de conceitos iniciais para que seja possível a discussão teórica, iniciemos com uma definição de direito público e com uma definição de direito privado.
Direito público 
Aquele que “regula as relações em que o Estado é parte, ou seja, rege a organização e atividade do Estado considerado em si mesmo, em relação com outro Estado e em suas relações com os particulares, quando procede em razão de seu poder soberano e atua na tutela do bem coletivo” (DINIZ, 2001, p. 274).
Direito privado
Aquele que “disciplina as relações entre particulares, nas quais predomina, de modo imediato, o interesse de ordem provada, como compra e venda, doação, usufruto, casamento, testamento, empréstimo etc.” (DINIZ, 2001, p. 274).
O direito é tradicionalmente subdividido em ramos, que também denominamos “ramos do direito público” ou “ramos do direito privado”. Assim, temos segundo Maria Helena Diniz (2001, p. 275-277), como ramos do direito público interno o direito constitucional, o administrativo, o tributário, o processual e o penal; como ramos do direito público externo temos o direito internacional público e o direito internacional privado; e como ramos do direito privado o direito civil, o comercial e o direito do trabalho. 
 Figura 1 - Ramos do direito público e do direito privado Fonte: Elaborada pela autora, 2019.
#PraCegoVer: Na imagem, temos a representação gráfica dos ramos do Direito Público e do Direito Privado. O primeiro se subdivide em dois tipos: interno (Direito constitucional, administrativo, tributário, processual e penal) e externo (Direito internacional público e internacional privado). Já o segundo, se divide apenas em Direito civil, comercial e do trabalho.
1.1 Labor, trabalho e ação como âmbitos do público e do privado 
Os conceitos de labor, trabalho e ação, como apresentados no título deste tópico, referem-se à obra A Condição Humana, de Hannah Arendt, lançada em 1958. No original, a autora utiliza os termos “labor”, “work” e “action”. As edições da obra em português traduzidas por Roberto Raposo até o ano de 2010 fizeram a opção de usar “labor”, “work” e “action” como “labor”, “trabalho” e “ação”, respectivamente. A tradução inicial recebeu críticas por não permitir a compreensão dos questionamentos propostos por Arendt quanto à durabilidade das três atividades humanas comparadas: 
A distinção entre trabalho [labor], obra [work] e ação [action] deveria ser examinada acentuando o ponto de vista temporal da durabilidade dessas diferentes atividades humanas. (...) Infelizmente, a tradução de Roberto Raposo não nos ajuda, mas apenas dificulta, confunde e até impede a compreensão desta distinção (MAGALHÃES, 2006, p.).
A partir da 11ª edição de A Condição Humana em língua portuguesa a tradução passou a empregar os termos “trabalho”, “obra” e “ação” para “labor”, “work” e “action”, respectivamente. Utilizaremos, então, as expressões atualizadas mais condizentes com a profundidade da distinção destacada por Hannah Arendt no texto original, como veremos a seguir.
O contexto de análise da obra é o mundo Antigo, especificamente a cidade-Estado ou pólis. Temos, então, uma distinção e uma separação muito clara entre espaço público e espaço privado, com papeis igualmente assinalados de forma praticamente inalterável.
A ação (action), é apresentada por Arendt como a única atividade livre e que se dá entre pessoas iguais, na po­lis, sem intermediações materiais (ARENDT, 1958, p. 9). Acontece no espaço público por excelência, quando o cidadão deixa o espaço privado de sua casa para exercer sua participação política na pólis. Essa atividade é restrita àqueles que têm o direito de cidadania, do qual se excluíam mulheres, escravos e estrangeiros, por exemplo (FERRAZ JR., 2013, p. 106).
Quando Ulpiano, pois, distinguia entre jus publicum e jus privatum certamente tinha e mente a distinção entre a esfera do público, enquanto lugar da ação, do encontro dos homens livres que se governam, e a esfera do privado, enquanto lugar do trabalho [labor], da casa, das atividades voltadas à sobrevivência (FERRAZ JR., 2013, p. 107).
Afirma Ferraz Jr. que na Modernidade passou a surgir, por diversos fatores históricos, políticos e econômicos, uma tendência à noção de social como algo comum a ambas as esferas, público e privado, governo e família, criando uma nova dicotomia, dessa vez entre social e individual. Na civilização do homo faber a ação passa a ser um fazer também. “O agir político começa, então, a ser visto como atividade produtora de bens de uso: a paz, a segurança, o equilíbrio, o bem-estar, e o domínio das técnicas políticas (entre as quais se inclui a violência, a revolução) e seu instrumento” (FERRAZ JR., 2013, p. 107).
O Estado passa a assumir um papel de diferenciador entre corpo social e indivíduo, já que o elemento social passou a caracterizar ambos, sendo, cada vez mais orientado pela noção de soberania. Por meio da ideia de soberania o direito torna-se relação de poder: relações de poder na esfera de soberania do Estado e relações de poder na esfera dos indivíduos, ou seja, uma esfera pública e outra privada, ambas orientadas por um direito que é comando, que é poder. O mercado passa a ser parte da esfera privada, que passa a identificar-se com a ideia de riqueza: “Distingue-se o direito público do privado como a oposição entre os interesses do Estado (administração, imposição de tributos, de penas) e os interesses dos indivíduos (suas relações civis e comerciais cuja base é a propriedade da riqueza)” (FERRAZ JR., 2013, p.107).
Os eventos político-históricos que criaram as bases para a existência da sociedade Moderna capitalista criaram também a necessidade de adaptação do direito que atenderia a essa sociedade e, com isso, a distinção entre direito público e direito privado se tornou menos clara em comparação com suas origens romanas na classificação de Ulpiano. Suautilidade prática, no entanto, é imprescindível, o direito deixa de ser, como na Antiguidade, “ação, diretivo para ação, âmbito do encontro dos homens pela palavra” e desde a Modernidade (alcançando o mundo contemporâneo) se torna trabalho [labor] “comando, norma soberana que regula o fazer social, [...] algo como uma regra técnica de organização da atividade contínua do homem na produção de bens de consumo para sua sobrevivência” (FERRAZ JR., 2013, p 109).
1.2 Relação de subordinação e coordenação como critérios dogmáticos
Agora que já vislumbramos, ainda que rapidamente, a fundamentação histórica da divisão do direito em público e privado e também como se explica a dificuldade contemporânea de se fazer uma distinção clara e definitiva entre os dois âmbitos podemos adentrar o estudo das teorias que procuram explicar e justificar essa divisão, Montoro (1999, p. 403) afirma que:
Essa divisão é clássica e acompanhou a evolução história do direito. Mas não é perfeita. Inexiste, na verdade, critério perfeito para essa distinção. Tal fato é comprovado pela multiplicidade de critérios insatisfatórios, que através dos tempos vêm sendo propostos. Alguns autores, como Holiger, chegaram a catalogar mais de cem critérios apontados como base dessa divisão (MONTORO, 1999, p. 403).
O primeiro e mais antigo dos critérios é o que se baseia na noção de interesse ou utilidade. Essa teoria tenta delimitar o âmbito do público e o âmbito do privado a partir da oposição entre o que seriam os interesses do Estado e o que seriam os interesses particulares. No entanto, a prática mostra que há diversas normas que protegem o interesse geral no direito privado, como no caso do Direito de Família (MONTORO, 1999).
Outra teoria é a da relação de preponderância do interesse: como o próprio nome diz, foi acrescentada à teoria do interesse a noção de preponderância. Assim, se o interesse preponderante é do Estado, tratar-se-ia de direito público e se o interesse preponderante é particular, tratar-se-ia de direito privado. O problema da estreita conexão e interpenetração entre os interesses permanece como obstáculo a impedir a exatidão da análise (DINIZ, 2001, p. 250). A proposta de diferenciação a partir do sujeito-fim do direito de propriedade foi defendida por Jhering, dividindo-o em três grupos.
Maria Helena Diniz critica essa teoria por reduzir o direito ao direito de propriedade, quando, na verdade, existem diversos outros grupos de direitos que não são contemplados por essa divisão (DINIZ, 2001).
A teoria que fundamenta a divisão segundo o poder de império foi desenvolvida por Jellinek. Segundo esse critério, o direito privado regulamenta relações de indivíduos particulares, enquanto o direito público regulamenta relações e organização de entes dotados de poder de império, tanto uns com os outros, quanto dos entes com particulares. A crítica a essa tese é que nem sempre o Estado participa de relações jurídicas na qualidade de Estado, fazendo valer seu poder de império. Num contrato de locação ou de seguro, por exemplo, o particular não está em situação muito diferente do Estado enquanto parte contratual (DINIZ, 2001, p. 251). O critério que classifica direito privado e direito público segundo as noções de relação de coordenação e subordinação aparece em Telles Jr., em Gurvitch e também em Radbruch (2010) (DINIZ, 2001, p. 252).
Uma relação jurídica de coordenação é uma relação em que as duas partes se encontram no mesmo patamar, sem que uma esteja submetida à outra, tratando-se de igual para igual. Contrariamente, numa relação jurídica de subordinação, uma das partes encontra-se em situação de inferioridade, ou seja, subordinada à outra. Isso pode se justificar em função dos interesses representados pela parte que está no polo superior da relação, ou seja, o Estado, que é representante dos interesses de toda a sociedade política, responsável por promover o bem comum, terá o poder de mando nas relações com indivíduos particulares.
Segundo essa teoria, portanto, o direito privado seria caracterizado por relações jurídicas de coordenação, enquanto o direito público seria caracterizado por relações jurídicas de subordinação. Essa teoria parece abranger aspectos de algumas das outras, como, por exemplo, a delimitação do interesse envolvido na relação jurídica e o poder de império do Estado para justificar a subordinação do particular a normas cogentes e à coercibilidade.
Ainda assim, surge a crítica de que o direito internacional não é contemplado pela teoria das relações de coordenação e subordinação. Embora seja tradicionalmente classificado como direito público, o direito internacional não se caracteriza por relações de subordinação. Por envolver questões relacionadas à soberania, dificilmente será possível o exercício do poder de império no direito internacional, em que predominam relações de coordenação (DINIZ, 2001).
Maria Helena Diniz defende que hodiernamente predomina o critério do elemento diferenciador no sujeito ou titular da relação jurídica, numa conjugação de fatores objetivos e subjetivos. Esse critério levaria à classificação apresentada acima, segundo as quais direito público é aquele que “regula as relações em que o Estado é parte, ou seja, rege a organização e atividade do Estado considerado em si mesmo, em relação com outro Estado e em suas relações com os particulares, quando procede em razão de seu poder soberano e atua na tutela do bem coletivo” e direito privado é aquele que “disciplina as relações entre particulares, nas quais predomina, de modo imediato, o interesse de ordem provada, como compra e venda, doação, usufruto, casamento, testamento, empréstimo etc” (DINIZ, 2001, p. 253).
A maioria dos juristas entende ser impossível uma solução absoluta ou perfeita do problema da distinção entre direito público e privado. Embora o direito objetivo constitua uma unidade, sua divisão em público e privado é aceita por ser útil e necessária, não só sob o prisma da ciência do direito, mas também do ponto de vista didático. Todavia, não se deve pensar que sejam dois compartimentos estanques, estabelecendo uma absoluta separação entre as normas de direito público e as de direito privado, pois intercomunicam-se com certa frequência (DINIZ, 2001, p. 254).
A respeito dessa intercomunicação, temos exemplos explícitos quando examinamos algumas normas de direito do trabalho, de direito do consumidor e de direito de família. Esses três ramos encontram-se classificados como direito privado, pois as relações que regulam são eminentemente privadas.
Não obstante serem relações privadas, o Estado tem interesse em interferir e regulamentar mais incisivamente alguns aspectos dessas relações para garantir que o interesse comum seja observado, além de buscar proteger as partes consideradas hipossuficientes nessas relações (o trabalhador, o consumidor e as crianças e adolescentes, respectivamente). Essa postura é reflexo do modelo de Estado adotado e resultado das mudanças políticas que acontecem ao longo do tempo e não significam, necessariamente, que existe homogeneidade quanto ao grau de interpenetração entre público e privado no conteúdo do ordenamento jurídico. 
1.3 Importância da dicotomia para os ramos do direito positivo
Machado (1981) observa, em excelente síntese, que a dimensão sociológica existe tanto no direito público, quanto no direito privado, eles têm como fundamento último a pessoa humana, visando à realização de ideais de igualdade e liberdade; que “se o privado e o público se acham, pois, em planos diferentes, não se opõem um ao outro, do ponto de vista social e da livre expansão da personalidade. Daí porque não se devem dissociar, e de fato não se dissociam antes se interpenetram”.
A preservação da tradicional dicotomia, apesar de todos os fatores já elencados, é de ordem metodológica. Por mais que haja comunicação entre os ramos do direito, seu estudo será realizado de acordo com sua metodologia respectiva e interpretado segundo seus princípios orientadores.
Temos, assim, a possibilidade de destacar o conceitoapresentado por Maria Helena Diniz (2001, p. 275-277) como minimamente consensual a respeito de cada um dos ramos do direito, público e privado:
Direito constitucional
Visa regulamentar a estrutura básica do Estado, disciplinando a sua organização ao tratar da divisão de poderes, das funções e limites de seus órgãos e das relações entre governantes e governados, ao limitar suas ações.
Direito administrativo
Disciplina o exercício de atos administrativos praticados por quaisquer dos poderes estatais, com o escopo de atingir fins sociais e políticos ao regulamentar a atuação governamental, a execução dos serviços públicos, a ação do Estado no campo econômico, a administração dos bens públicos e o poder de polícia.
Direito tributário
Consiste no conjunto de normas que correspondam, direta ou indiretamente, à instituição, arrecadação e fiscalização de tributos.
Direito processual
Rege a atividade do Poder Judiciário e dos que a ele requerem ou perante ele litigam, correspondendo, portanto, à função estatal de distribuir a justiça.
Direito penal
Constitui um complexo de normas que definem crimes e contravenções, estabelecendo penas, com as quais o Estado mantém a integridade da ordem jurídica, mediante sua função preventiva e repressiva.
Direito internacional público
Consiste no conjunto de normas consuetudinárias e convencionais que regem as relações, diretas ou indiretas, entre Estados e organismos internacionais.
Direito internacional privado
Regulamenta as relações do Estado com cidadãos pertencentes a outros Estados, dando soluções para os conflitos de leis no espaço.
Direito civil
Rege as relações familiares, patrimoniais e obrigacionais que se formam entre indivíduos encarados como tais, ou seja, enquanto membros da sociedade.
Direito comercial
Disciplina a atividade negocial do comerciante e de qualquer pessoa, física ou jurídica, destinada a fins de natureza econômica, desde que habitual e dirigida à produção de resultados patrimoniais.
Direito do trabalho
Regulamenta as relações entre empregador e empregado, abrangendo normas, princípios e instituições relativas à organização do trabalho e da produção e à condição social do trabalhador assalariado.
Regulamenta as relações entre empregador e empregado, abrangendo normas, princípios e instituições relativas à organização do trabalho e da produção e à condição social do trabalhador assalariado.
Podemos afirmar que embora a dicotomia não seja perfeita e a delimitação entre direito público e direito privado não seja totalmente clara em boa parte do ordenamento, existe relevância e importância prática em sua manutenção. O aspecto metodológico da abordagem dos ramos do direito positivo ficaria sobremaneira prejudicado não fosse a possibilidade de agrupamento dicotômico que nos foi legada pelo Direito Romano.
2 Zetética jurídica e dogmática jurídica
Zetética e dogmática são dois enfoques possíveis para se realizar determinada investigação, qualquer investigação, não apenas as jurídicas. São termos que têm origem no idioma grego e cujos significados já indicam de forma bastante clara o que cada um dos enfoques implica. Qualquer problema que se investigue pode ser abordado com mais ênfase no problema da pergunta ou no problema da resposta, isso significa dizer que qualquer problema que se investigue pode ser abordado sob uma perspectiva dogmática ou sob uma perspectiva zetética (FERRAZ JR., 2013).
Já empregamos anteriormente o adjetivo “dogmática” para fazer referência ao fenômeno jurídico quando tratamos da questão da decidibilidade.
A palavra “zetética” vem da palavra grega zetein, que significa perquirir, indagar.
Por isso falamos em dogmas como algo inquestionável. As questões dogmáticas têm função diretiva e são finitas, pois possuem uma relação mais estreita com o mundo do ser. As questões zetéticas têm funções especulativas e são infinitas, pois possuem uma relação mais estreita com o mundo do dever-ser. (FERRAZ JR., 2013).
As investigações zetéticas e as investigações dogmáticas precisam, ambas, de um ponto de partida. A diferença central entre essas duas abordagens é a forma de encarar esse ponto de partida. Enquanto as investigações zetéticas partem de evidências, as investigações dogmáticas partem de dogmas. A solidez desses pontos de partida não é a mesma. Uma evidência é uma premissa considerada verificável e comprovável, mas não inquestionável. Já um dogma é, sim, inquestionável, pelo simples fato de ter assim sido estabelecido por um ato de vontade, um arbítrio ou o poder de algo ou de alguém. (FERRAZ JR., 2013:18)
Assim como possuem enfoques diferentes, zetética e dogmática possuem consequências diferentes. A investigação zetética tem objetivo especulativo, enquanto a investigação dogmática tem por objetivo um agir, uma tomada de posição, de decisão, uma busca de resposta segura e suficientemente definitiva:
A primeira [zetética] não se questiona, porque admitimos sua verdade, ainda que precariamente, embora sempre sujeita a verificações. A segunda [dogmática], porque, diante de uma dúvida, seríamos levados à paralisia da ação: de um dogma não se questiona não porque ele veicula uma verdade, mas porque ele impõe uma certeza sobre algo que continua duvidoso (FERRAZ JR., 2013, p. 18).
A zetética jurídica em especial, é, então, uma aplicação da abordagem zetética a temas jurídicos. Vale dizer que a zetética investiga o direito no âmbito de outras disciplinas como o da Sociologia, da Antropologia, da Psicologia, da História, da Filosofia, da Ciência Política, e etc. Essas disciplinas gerais se relacionam estreitamente com o direito e por isso há implicações recíprocas entre essas disciplinas e o fenômeno jurídico. (FERRAZ JR., 2013)
A zetética jurídica é especulativa e não tem um compromisso com a criação de condições para a decisão e a solução de conflitos, como vimos anteriormente a respeito do problema central da dogmática jurídica (que é a decidibilidade) (FERRAZ JR., 2013).
Ferraz Jr. aponta limites zetéticos que derivam da existência de pressupostos que orientem a investigação. Isso implica a existência de investigações zetéticas realizadas no nível empírico (dentro da experiência) ou para além dele, analiticamente (lógica, teoria do conhecimento); é possível, ainda, conduzir a investigação com sentido puramente especulativo ou produzindo resultados para aplicação técnica à realidade (FERRAZ JR., 2013).
Dessa maneira temos que a zetética jurídica subdivide-se analítica e empírica, que, por sua vez, subdividem-se em pura ou aplicada.
Temos, assim, um total de quatro categorias: zetética jurídica analítica pura, zetética jurídica analítica aplicada, zetética jurídica empírica pura e zetética jurídica empírica aplicada.
Zetética jurídica analítica pura
Cuida dos pressupostos últimos e condicionantes e da crítica dos fundamentos formais e materiais do fenômeno jurídico e de seu conhecimento. São exemplos das disciplinas que se classificam como zetética jurídica analítica pura a Filosofia do direito, a Lógica formal das normas, a Metodologia jurídica (FERRAZ JR., 2013).
Zetética jurídica analítica aplicada
Cuida da instrumentalidade dos pressupostos últimos e condicionantes do fenômeno jurídico e as disciplinas que se classificam como zetética jurídica analítica aplicada, exemplificativamente, são a Teoria geral do direito e a Lógica do raciocínio jurídico (FERRAZ JR., 2013).
Zetética jurídica empírica pura
Cuida de encontrar explicações para os diferentes fenômenos sociais (comportamento, expectativas e atitudes). São exemplos de disciplinas que se classificam como zetética jurídica empírica pura a Sociologia jurídica, a Antropologia jurídica, a Etnologia jurídica, a História do direito, a Psicologia jurídica, a Politologia jurídica e a Economia política (FERRAZ JR., 2013, p. 22-23).
Zetética jurídica empírica aplicada
Cuida do direito como instrumento que atua socialmente dentro de certas condições sociais e tem por exemplos de disciplinas a Psicologia forense, a Criminologia, a Penalogia, a Medicina legal, a Política legislativa(FERRAZ JR., 2013).
A dogmática jurídica considera certas premissas em si e por si arbitrárias, como vinculantes para o estudo e renuncia ao postulado da pesquisa em nome de um compromisso com a decidibilidade. Rege-se pelo princípio da proibição da negação, ou seja, seus pontos de partida (premissas) ou dogmas não podem ser negados. Isso não quer dizer que a dogmática se reduza a esse princípio, mas sim que ela depende dele. O que equivale a dizer que o conhecimento dogmático do direito parte de dogmas que não podem ser negados, mas não que trabalha com certezas. Muito pelo contrário, em consequência das normas serem elaboradas e postas com o objetivo de regular as relações e a convivência humana de forma ordenada e ética, o seu papel é tentar eliminar incertezas.
Os dogmas, então, são uma forma de estabilizar a incerteza em abstrato, mas isso não gera, por si só, nenhuma certeza. Assim, diante de uma situação de aplicação da norma ou de análise quanto a qual norma deve ser aplicada ou interpretação quanto à extensão da aplicação da norma, o ponto de partida é a norma, o dogma, e este não pode ser negado, mas a situação em si é de incerteza. O que a dogmática faz é tornar as incertezas controláveis “de modo que elas sejam compatíveis com duas exigências centrais da disciplina jurídica: a vinculação às normas, que não podem ser ignoradas, e a pressão para decidir os conflitos, pois para eles tem-se de achar uma saída” (FERRAZ JR., 2013, p. 26-27).
2.1 Zetética jurídica e ensino jurídico
O ensino jurídico e a atuação do jurista, de forma geral, dão mais ênfase à dogmática jurídica. O aspecto dogmático acaba prevalecendo tanto pelo volume de conteúdo teórico a ser superado no tempo de duração curso, fazendo com que a maior parte das disciplinas sejam de cunho dogmático, quanto porque existe uma cobrança do mercado de trabalho por profissionais que sejam capazes de se desvencilhar o mais rápido possível dos desafios que se lhes apresentam. Isso tem por consequência a especialização excessiva dos juristas, numa formação universitária fechada e formalista. Após algumas poucas disciplinas de caráter zetético no início do curso, o ensino jurídico, tradicionalmente, reveste-se, gradativamente, de dogmática. No entanto, cabe o alerta de que a dogmática não pode se distanciar ou ignorar a zetética para que não se reduza a uma visão acrítica do direito e de sua aplicação (FERRAZ JR., 2013).
A Resolução do MEC que trata do Projeto Político-pedagógico do Curso (PPC), em vigor desde 2004, estabelece a necessidade de inclusão de um eixo de formação fundamental no art. 5º, I:
Eixo de Formação Fundamental tem por objetivo integrar o estudante no campo, estabelecendo as relações do Direito com outras áreas do saber, abrangendo dentre outros, estudos que envolvam conteúdos essenciais sobre Antropologia, Ciência Política, Economia, Ética, Filosofia, História, Psicologia e Sociologia (BRASIL, MEC, 2004).
Além disso, prevê, no inciso seguinte, o chamado eixo de formação profissional, com o cuidado de destacar que devem ser incluídos.
Além do enfoque dogmático, o conhecimento e a aplicação, observadas as peculiaridades dos diversos ramos do Direito, de qualquer natureza, estudados sistematicamente e contextualizados segundo a evolução da Ciência do Direito e sua aplicação às mudanças sociais, econômicas, políticas e culturais do Brasil e suas relações internacionais (BRASIL, MEC, 2004).
As diretrizes, portanto, são de que o curso seja conduzido de forma a não aniquilar a zetética dentro de conteúdos dogmáticos, mas, antes, pelo contrário, que ela seja também o fio condutor das discussões, para além do enfoque dogmático, como destacado no trecho citado. Uma compreensão profunda do fenômeno jurídico e da ciência do direito exige ambos os enfoques, simultanea e complementarmente, como afirma Roesler (2003):
Um ensino jurídico ou uma educação jurídica, como mais apropriadamente deve-se considerar a nossa tarefa enquanto professores, já que não apenas “ensina-se” alguns conteúdos mas pretende-se “formar” um profissional do Direito com um conjunto de habilidades e qualidades, precisa levar em conta a constante relação entre estes enfoques. Se se privilegiar o enfoque zetético, não se estará atendendo ao caráter de orientação da ação que o profissional do Direito terá de cumprir e que a Sociedade lhe irá exigir. Se, ao contrário, a ênfase for pura e simplesmente dogmática, formar-se-á um profissional incapaz de inovar e recriar o Direito na medida das transformações sociais, eis que preso a uma forma pouco reflexiva de compreensão do fenômeno jurídico.
Uma educação jurídica nesses termos requer esforços tanto da parte docente quanto da parte discente, pois não comporta as velhas metodologias de ensino-aprendizagem meramente passivas, com aulas exclusivamente expositivas e nenhum espaço para reflexão. O emprego de metodologias ativas de ensino-aprendizagem não é ainda familiar para boa parte do corpo docente em atuação hoje e, consequentemente, é desconhecido também de boa parte dos estudantes. Sua introdução tem acontecido lentamente nos cursos de Direito e nem sempre é bem vista, justamente porque demanda postura ativa do corpo discente também, que deverá estar mais comprometido com sua formação, atuando como protagonista.
A conjugação permanente de dogmática e zetética no ensino do direito é imperativa e demanda uma articulação dialogada entre o eixo de formação fundamental e o eixo de formação profissional. Docentes do eixo de formação fundamental precisam conhecer a dogmática e se valer dela para dar exemplos concretos e reafirmar a importância dos conteúdos ali trabalhados; e docentes do eixo de formação profissional precisam conhecer a zetética e dela se valer para promover reflexões e questionamentos a respeito dos conteúdos dogmáticos abordados; sob pena de se formarem juristas incapazes de realizar suas funções sociais precípuas. 
2.2 Dogmática jurídica e poder
A dogmática analítica assume, dentro da sociedade contemporânea, uma função social de neutralização política e econômica, fruto da necessidade de estabilização de relações de conflito que é o problema central do direito.
Uma decisão jurídica comporta, portanto, não apenas a função de colocar fim ao conflito em si, mas de evitar uma série de outros conflitos que poderiam advir daquele que se encerra. No entanto, para fazer isso, é necessário fazer uma simplificação dogmática da situação concreta. Sem isso, o tempo necessário para cada conflito seria impraticavelmente longo. Por exemplo, num conflito em que estão envolvidos, de um lado, a prefeitura municipal de uma cidade e uma senhora que quebrou a perna ao cair num bueiro destampado, a análise dogmática abrange apenas os fatos objetivamente: houve um acidente? Quais os prejuízos materiais foram comprovados? Existe responsabilidade objetiva por parte da prefeitura? Por mais que se pretenda incluir na demanda os fatores emocionais relacionados, juridicamente falando não há nada que possa ser feito quanto a isso exceto sua conversão em danos morais, uma sanção de cunho patrimonial visando a compensar pelo dano emocional sofrido.
A dogmática, por sua própria natureza, precisa ignorar determinadas discussões (que podem até ser válidas e legítimas do ponto de vista da realidade) para focar no que é possível ser depurado e encontrar uma forma de solucionar o conflito. É feita, então, uma “neutralização do conflito em termos de ele não ser tratado em toda a sua extensão concreta, mas na medida necessária a sua decidibilidade com um mínimo de perturbação social” (FERRAZ JR., 2013).
A visão dogmática da realidade, embora seja relativamente eficiente, tem um papel social que transita permanentemente no limiar do perigo. O direito encarado como dogma sem o equilíbrio e a sensibilidade social do aspecto zetético encerra o risco de se distanciar demasiadamente da realidade. Existe um poder muito grande associado à elaboração e à aplicação do direito. Exercer essas funções de forma estritamente dogmática, fechando completamenteos olhos à realidade social, pode ter como consequência a não realização do que é justo, ainda que os atos resultantes tenham a aparência de legalidade. 
2.3 Direito como instrumento decisório e discurso de justificação
Após os eventos históricos que consagraram o chamado positivismo jurídico, estabelece-se uma concepção do direito como norma dentro de um ordenamento que é entendido como um sistema completo, capaz de trazer respostas a todo e qualquer conflito surgido na sociedade. Essa forma de encarar o direito deriva de uma busca por segurança e certeza que, supostamente, os movimentos de codificação resolveriam. A consequência é um direito que, em tese, se reduz a um catálogo de normas preexistentes, das quais deverá sair a fundamentação para toda decisão jurídica prolatada. Não é possível nem aceitável juridicamente trazer fundamentos de justificação da aplicação da norma que não sejam preexistentes no ordenamento.
Para quando o ordenamento não tem uma resposta clara, são previstos mecanismos que possibilitarão contornar essa lacuna de forma a demonstrar que nunca houve lacuna. Ou, como afirmou Ferraz Jr., “eventuais incongruências ou tratadas como exceções (natureza híbrida) ou contornadas por ficções” (FERRAZ JR., 2013, p. 57). Essa dinâmica de aplicação do direito, já enraizada na nossa cultura, toma o ordenamento como um dado pronto e recebido pelo jurista, que deverá identificar qual a norma aplicável e quais as condições para sua aplicação. Ferraz Jr. afirma que: 
Podemos dizer, nesse sentido, que a ciência dogmática do direito costuma encarar seu objeto, o direito posto e dado previamente, como um conjunto compacto de normas, instituições e decisões que lhe compete sistematizar, interpretar e direcionar, tendo em vista uma tarefa prática de solução de possíveis conflitos que ocorram socialmente. O jurista contemporâneo preocupa-se, assim, com o direito que ele postula ser um todo coerente, relativamente preciso em suas determinações, orientado para uma ordem finalista, que protege a todos indistintamente. (FERRAZ JR., 2013, p. Alex
A justificação da norma, ou discussão quanto a sua validez, passa pela determinação da relação entre a aplicação da norma propriamente dita e as consequências que isso acarretará. Existem teorias defendidas por muitos juristas e filósofos (como Immanuel Kant, Hans Kelsen, Richard Hare, Robert Alexy, Jürgen Habermas, Klaus Günther) a respeito da existência ou não de uma separação entre os discursos de justificação e os discursos de aplicação da norma, que passam pelo profundo debate que ainda existe sobre a relação entre direito e moral e a fundamentação do direito em princípios morais. Discutir se a validade da norma está ou não submetida às suas condições de aplicação é discutir o modo de concepção do ordenamento jurídico dos últimos dois séculos. Diante de uma teoria do ordenamento que se sustenta sob as frágeis e fictícias ideias de completude e coerência, a pergunta latente quanto à aplicação da norma é se é realmente possível prever todas as situações de aplicação.
AVA-3
Juspositivismo x jusnaturalismo 
pessoas compartilham das mesmas crenças, valores, costumes, o positivismo se apresenta, posteriormente, como o projeto adequado numa sociedade em que a ideia de sujeito ganha espaço privilegiado. Num contexto socio-histórico em que o todo é mais importante que a parte, ou seja, que a coletividade prevalece sobre o indivíduo, o direito natural se mostra como uma ordem jurídica suficientemente abrangente e segura para trazer as respostas necessárias aos conflitos que surgem no seio deste grupo, pois se trata de um grupo que vivencia a mesma cultura e concorda de forma maciça com os conteúdos das normas e, consequentemente, com as soluções que serão encontradas para os conflitos.
No juspositivismo, o conhecimento jurídico se converte em ciência, aparecendo como lei-objeto criado pelo homem e sua racionalidade. Há uma ruptura em relação ao arcabouço teórico do jusnaturalismo, já que, após a positivação, a lei decorre da vontade do legislador e não mais da natureza ou da divindade. A característica é a neutralidade da abordagem, ao cientista cabe apenas descrever o ordenamento, sem avaliar ou valorar seu objeto. No positivismo, o direito é colocado e conhecido racionalmente sem justificação transcendental (BOBBIO, 2006).
Outra distinção é segundo a forma de se conhecer o direito: “o direito natural é aquele de que obtemos conhecimento através da razão, de vez que esta deriva da natureza das coisas; o direito positivo é aquele que conhecemos através da declaração de vontade do legislador” (BOBBIO, 2006, p. 22).
O direito é um catálogo ou elenco de normas em princípio aplicáveis tão-somente às hipóteses que elas mesmas estabelecem, exaurindo-se nesse catálogo. As obrigações jurídicas e os direitos encontram seu fundamento em normas jurídicas que foram estabelecidas a partir de decisões, acordos ou convenções jurídicas ao longo da história institucional de uma comunidade. Só há obrigações e direitos por referências a essas normas positivadas, daí falar-se em um catálogo finito no qual se encerra o direito. O aplicador deve guardar coerência estrita às normas anteriormente estabelecidas, exigindo o cumprimento de obrigações e garantindo direitos nos limites do anteriormente convencionado. O direito reduz-se, certa maneira, à compreensão da norma e do ordenamento.
Norberto Bobbio (2006, p. 131-132) elenca o que chama de “pontos fundamentais da doutrina positivista” em sete tópicos, a saber:
Primeiro
Trata-se do modo de abordar o direito: o positivismo considera o direito como um fato e não como um valor – a validade do direito se funda em critérios unicamente formais, sua validade independe da afirmação do seu valor.
Segundo
Diz respeito à definição do direito, que se dá em função do elemento coação. 
Terceiro
Fala da teoria das fontes do direito, sendo a lei a fonte preeminente, embora as outras fontes (como jurisprudência e costume) não desapareçam por completo. 
Quarto
Trata-se da teoria da norma: o positivismo considera a norma como um comando, formulando a teoria imperativista do direito a partir de imperativos binários como positivo/negativo, autônomo/heterônomo, ético/técnico.
Quinto
Faz referência à teoria do ordenamento, que não toma a norma isoladamente, mas sim o ordenamento como um todo, sustentando sua coerência e completude (como um sistema).
O sexto
Trata do método da ciência jurídica (ou problema da interpretação): sustenta a teoria da interpretação mecanicista, em que há a prevalência do elemento declarativo sobre o produtivo/criativo do juiz, ou seja, o espaço para interpretação é restrito.
O sétimo
Refere-se à teoria da obediência, que preconiza uma obediência absoluta ao direito posto, a partir da máxima de que lei é lei. Esse último ponto trata-se de afirmação de ordem moral ou ideológica, não científica, com origens históricas mais relacionadas ao pensamento filosófico alemão do início do séc. XIX (principalmente as teorias de Hegel).
Refere-se à teoria da obediência, que preconiza uma obediência absoluta ao direito posto, a partir da máxima de que lei é lei. Esse último ponto trata-se de afirmação de ordem moral ou ideológica, não científica, com origens históricas mais relacionadas ao pensamento filosófico alemão do início do séc. XIX (principalmente as teorias de Hegel).
Refere-se à teoria da obediência, que preconiza uma obediência absoluta ao direito posto, a partir da máxima de que lei é lei. Esse último ponto trata-se de afirmação de ordem moral ou ideológica, não científica, com origens históricas mais relacionadas ao pensamento filosófico alemão do início do séc. XIX (principalmente as teorias de Hegel).
Ainda segundo a doutrina de Bobbio (2006), faremos a reprodução dos critérios principais de distinção entre direito natural e direito positivo esquematicamente:
 Figura 1 - Direito natural e direito positivo Fonte: Elaborada pela autora, baseada em BOBBIO, p. 22-23.
#PraCegoVer: Na imagem, temos a representação gráfica do Direitonatural e do Direito positivo em duas colunas distintas. As características que aparecem no Direito natural são: universalidade, imutabilidade, natureza (natura) como fonte, conhecimento através da razão (ratio), comportamento regulado como bom ou mau e ação valorizada por ser boa. Já as características que aparecem na segunda coluna, ou seja, no Direito positivo, são: particularidade, mutabilidade, vontade popular como fonte, conhecimento através da promulgação (voluntas), comportamento indiferente desde que obedeça à Lei e ação valorizada por ser útil.
1.2 Evolução da dicotomia: indiferenciação, jusnaturalismos teológico, antropológico; positivismo jurídico
A evolução das relações entre direito natural e direito positivo ao longo da história passou por vários períodos e não pode ser descrita homogeneamente. Em alguns momentos, o direito natural foi considerado superior; em outros, o direito positivo foi considerado superior. Mas, durante a maior parte do tempo, ambos eram igualmente considerados direito.
Na época clássica, “o direito natural não era considerado superior ao positivo; o natural era comum e o positivo, especial” (BOBBIO, 2006, p. 25) A relação era, portanto, de complementaridade, com uma leve tendência à predominância do direito positivo em razão de ser considerado especial. Para Aristóteles, por exemplo, o direito natural está em toda parte e prescreve ações de bondade objetiva, enquanto o direito positivo só tem eficácia onde é posto e prescreve ações que devem ser cumpridas segundo o regulado pela lei. Em Roma, o jus civile é posto pelo povo e a ele se limita, já o jus gentium não tem limites e é posto pela naturalis ratio (BOBBIO, 2006).
Na Idade Média, o direito natural passa a ser considerado superior ao positivo, porque o direito natural passa a ser visto como norma fundada na vontade de Deus. Não nos esqueçamos de que se trata de um período histórico de forte influência da Igreja Católica no âmbito social, político e cultural. A fundamentação do direito, portanto, passava também por essa noção religiosa da realidade. O direito positivo continua a existir, mas não pode ser considerado superior ao natural, uma vez que uma norma elaborada pelos homens não poderia nunca ser mais perfeita que uma norma fundada na vontade divina. A distinção não implicava diversidade de qualificação: ambos são direito. “O primeiro uso da fórmula jus positivum remonta ao século XI, com Abelardo: o direito positivo é posto pelos homens e o direito natural é posto por algo ou alguém que está além dos homens. Todos os escritores medievais compartilham dessa distinção” (BOBBIO, 2006, p. 19).
Esse conteúdo teológico que caracteriza o direito natural escolástico faz dele um conjunto de normas ou primeiros princípios morais imutáveis, consagrados ou não na legislação da sociedade, visto que resultam da natureza das coisas e do homem, sendo por isso apreendidos imediatamente pela inteligência humana como verdadeiros (BITTAR; ALMEIDA, 2010, p. 279).
Princípios são perceptíveis de imediato pela razão comum da generalidade dos homens, sob a doutrina básica de que o bem deve ser feito e o mal deve ser evitado. A Ciência do Direito é ligada a concepções mítico-religiosas, já que a lei emana de uma força superior: Deus (BITTAR; ALMEIDA, 2010, p. 279). No pensamento dos jusnaturalistas dos séculos XVII e XVIII, direito natural e direito positivo ganham contornos diferenciados em comparação aos do período histórico anterior graças às mudanças político-sociais que estão ocorrendo e que caracterizam a passagem para a Modernidade. Na Idade Média, o Direito Romano se difundiu “com o nome de direito comum e se contrapunha ao jus proprium (direito próprio das diversas instituições sociais” (BOBBIO, 2006, p. 32) que se subordinava ao direito comum). Com a independência dos reinos do Império, o direito próprio (do Estado) passou a predominar, até que o direito comum se extinguiu com as codificações do séc. XVIII-XIX. “Esse processo de monopolização da produção jurídica é estreitamente conexo à formação do Estado Absoluto” (BOBBIO, 2006, p. 32).
Na passagem para o período Moderno, a razão matemática e geométrica guia a noção de verdade nas ciências, influenciado a Ciência do Direito a buscar também sua fundamentação na razão humana. Como reação racionalista ao teocentrismo medieval, floresce um Antropocentrismo racionalista às normas que emanam da natureza mas são apreendidas pelo homem através do uso da razão. É o pensamento jusnaturalista, que prepara as bases intelectuais da Revolução Francesa. Embora não haja um consenso a respeito de qual é a verdadeira natureza do ser humano, este se torna o ponto central das discussões e é abordada por diversos pensadores relevantes para o desenvolvimento da ciência do direito.
Para Grócio, Pufendorf e Locke, a natureza do ser humano é concebida como genuinamente social. Para Hobbes, Spinoza e Rousseau, a natureza do ser humano é concebida como originariamente a-social ou individualista. 
Hugo Grócio faz a mais célebre distinção entre direito natural e direito positivo do pensamento moderno ao afirmar que “o direito natural é um ditame da justa razão destinado a mostrar que um ato é moralmente torpe ou moralmente necessário segundo seja ou não conforme a própria natureza racional do homem” (BOBBIO, 2006, p. 20).
Por ser originário de uma cidade chamada Delft, na Holanda, Grócio formula uma doutrina que reflete o típico desejo de autonomia das cidades em que predomina o comércio. Por isso, afirma que o fundamento do Direito é a natureza humana e a natureza das coisas. Embora não negue a existência de Deus, busca fundamentar as coisas humanas sem precisar recorrer à religião: “O Direito Natural existiria mesmo que Deus não existisse ou que, existindo, não cuidasse dos assuntos humanos”. Intuiu que o senso social, peculiar à inteligência humana, é fonte do direito. Seu pensamento contribui decisivamente para a criação do Direito Internacional – relações baseadas em contratos, de cumprimento obrigatório (pacta sunt servanda), porque elaborados pela reta razão segundo princípios do Direito Natural pertinentes ao caso em tela. Grócio (BITTAR; ALMEIDA, 2010, p. 279-281) divide o Direito em duas categorias:
Samuel Pufendorf foi discípulo de Grócio e presenciou o nascimento da Paz de Westfália, que pôs fim à chamada Guerra dos Cem Anos, tendo uma importância histórica enorme por marcar o nascimento político da noção de soberania. O acordo chamado Paz de Westfália impõe aos países envolvidos um dever de respeitar os limites territoriais determinados em seu texto e representa um marco para as Relações Internacionais como o início do sistema internacional como conhecemos hoje. Trata-se de um evento histórico de muita relevância jurídica e que influenciou em muito o pensamento da época.
Para Pufendorf, o direito natural é imutável e é acessível pela razão natural, sendo elemento ínsito à natureza própria do homem e fundamental para a paz social a partir da legitimidade de atuação do Estado soberano. Sua teoria busca, nitidamente, conciliar teologismo medieval e racionalismo moderno, tendo papel fundamental na sistematização do processo de secularização do direito natural. A Lex naturalis resulta de forças exteriores, ligando os homens em sociedade. O caráter fundamental do direito repousa em sua função imperativa (BITTAR; ALMEIDA, 2010, p. 281-284).
John Locke considera que a experiência é força motriz do conhecimento e que por isso leis naturais não são inatas, não estão na mente humana, mas sim na natureza, onde podem ser facilmente conhecidas através do uso da razão. 
John Locke considera que a experiência é força motriz do conhecimento e que por isso leis naturais não são inatas, não estão na mente humana, mas sim na natureza, onde podem ser facilmente conhecidas através do uso da razão. Como é notoriamente sabido, Locke postula que o estado de natureza é um estado de paz e que o surgimento do contrato social se deve à necessidade de um terceiro neutro para decidir lides surgidas na vidasocial. A sociedade é apenas um mecanismo criado para que sejam mantidos e protegidos os direitos naturais, por isso não pode corrompê-los, desvirtuá-los ou suprimi-los. 
A originalidade da obra de Locke está em sua radical defesa dos direitos naturais, que não são inatos, mas de fácil apreensão pela razão e não podem ser desrespeitados pelo estado civil que é instituído, exatamente, com o intuito de assegurar sua proteção. A sociedade é, então, apenas o artifício para que se mantenham os direitos naturais, e não pode corrompê-los, desvirtuá-los ou suprimi-los (BITTAR; ALMEIDA, 2010, p. 287).
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Entrega total da pessoa dos bens de cada particular ao poder da comunidade, à vontade geral do povo soberano, competente para fixar o patrimônio social e redistribuir os bens visando ao bem comum. O contrato social apregoa o egocentrismo, pois não implica autêntico engajamento social do indivíduo, não dá nada a ninguém: ao receber de todos o mesmo que entregou, nada perde e apenas ganha força pública para conservar o que tem (BITTAR; ALMEIDA, 2010, p. 290-306).
2 Direito e historiografia: direito antigo e medieval
Ao tratarmos do Direito Antigo e do Direito Medieval, faremos recortes específicos para abordar aqueles aspectos mais relevantes para o estudo e a compreensão do Direito Contemporâneo. Assim, merecerá destaque o Direito Romano e sua recepção na Alta Idade Média (séculos IV a X) pelos povos que se organizaram politicamente após a queda do Império Romano do Ocidente e pelas compilações elaboradas pelo Império Romano do Oriente. As invasões de povos denominados pelos romanos de bárbaros, ou seja, todos aqueles que não compartilhavam da tradição greco-romana, além de ter sido um dos fatores que levou o Império Romano a ruir, também contam com sua parcela de contribuição para a formação do Direito Moderno. Além disso, abordaremos a tradição escolástica em seu avatar maior, Tomás de Aquino, seguido pela escola dos glosadores, responsáveis pela recuperação histórica do direito romano clássico.
2.1 Raízes greco-romanas, bárbaras e canônicas do Direito Moderno
A influência que o Direito Antigo e o Direito Medieval terão na formação do Direito Moderno é fruto de centenas de eventos históricos diferentes e também da forma como se preservou e se absorveu o conhecimento jurídico acumulado. De certo modo, pode-se dizer que uma boa parte desse legado se deve à forma como se desenvolveu e posteriormente se dissolveu a civilização romana. Ordinariamente, vemos a civilização romana ser denominada de “Império”, no entanto, desde sua fundação até sua queda, Roma passou por três momentos de organização política diferentes
2.2 Tradição escolástica
Inicialmente, deve-se atentar ao caráter ecumênico da Igreja e que coloca o cristianismo como a única e verdadeira religião para a humanidade, algo que praticamente se confirma em toda a Europa entre os séculos VIII e XV. Diversos assuntos jurídicos de direito privado foram tratados pelo Direito Canônico, como casamento e divórcio, logo, portanto, jurisdição dos Tribunais Eclesiásticos. Enquanto o direito laico em sua essência era consuetudinário, o Direito Canônico é escrito, comentado e analisado desde a Alta Idade Média, e com o tempo é sistematizado e de certa forma codificado. Finalmente, por ser escrito, também foi objeto de estudo e trabalho de diversos doutrinadores, constituindo-se, portanto, uma ciência do direito a influenciar o desenvolvimento de outros direitos, como o próprio laico (BAGNOLI; BARBOSA; OLIVEIRA, 2014, p. 67).
As fontes do direito canônico são as mais diversas, desde os decretos de concílios de todas as esferas administrativas da Igreja até estatutos próprios de cada diocese e as determinações papais, que podem ser encíclicas, bulas ou breves. Compilações foram sendo elaboradas reunindo esses documentos e receberam o nome de coleções. O conjunto dessas coleções recebeu o nome de Corpus iuris canonici e vigorou até o ano de 1917, quando foi atualizada e substituída pelo Codex iuris canonici. (BAGNOLI; BARBOSA; OLIVEIRA, 2014, p. 71-72).
O direito canônico teve regras de competência e jurisdição próprias muito bem delimitadas e respeitadas na Idade Média (BAGNOLI; BARBOSA; OLIVEIRA, 2014:72-74) e a influência quanto ao conteúdo é sensivelmente perceptível, segundo Hespanha (1945, p. 161):
A escolástica constitui um método de estudo de filosofia e teologia que surge em universidades medievais a partir dos séculos XII e XIII para trabalhar preceitos cristãos de forma sistematizada. É importante lembrar que a cultura universitária europeia se consolida por meio do trabalho da Igreja, que dominava o espaço intelectual. O principal expoente da escolástica é Tomás de Aquino, nascido em 1225. Seu papel na recuperação das discussões sobre a obra de Aristóteles e no avanço de discussões metafísicas é importantíssimo. Tomás de Aquino foi o grande responsável pela conciliação entre a obra do corpus aristotélico com a doutrina da Igreja, dominante até então e aparentemente incompatível com uma obra considerada pagã.
Ao argumentar sobre a liberdade, afirma que Deus deu ao homem a liberdade de ser, agir, decidir. A vontade existe no homem para que possa escolher o caminho para realizar o Bem. A liberdade consiste justamente em poder escolher dentre os inúmeros valores que se apresentam como caminhos, ou seja, a atividade ética é a atividade de discernir mal e bem e buscar o bem. Na ética do coletivo, Tomás de Aquino segue o aristotelismo e postula que a ética deve presidir o convívio social, a autoridade dirigente da sociedade deve ser prudente na busca do bem comum.
O jusnaturalismo tomista prega uma justiça variável e contingente como a razão humana, sendo a positivação do que é contrário à lei natural um direito injusto e ilegítimo. Sua contribuição ao jusnaturalismo é muito importante ao admitir uma lei natural mutável e estabelecer que o direito positivo deve respeitar tanto a lei natural quanto a lei divina, pois ambos lhe são superiores. Do pensamento tomista, depreende-se a exigência de submeter-se o direito positivo ao direito natural, que é expressão da natureza racional humana, criando, assim, um direito de resistência ao governo em caso de não conformidade entre direito positivo e direito natural. 
Assim, na Suma Teológica (2002) de Tomás de Aquino, é apresentada uma hierarquia entre a lei eterna, apenas conhecida por Deus Ele próprio; seguida, por um lado, da lei divina, que é a parte da lei eterna revelada por Deus ou declarada pela Igreja e, por outro lado, da lei natural, que é aquela que o homem pode descobrir através da razão; por último, vem a lei humana, positivada pelo legislador (LIPOVETSKY, 2013).
Tomás de Aquino contribui, também, para a promoção da individuação humana, o que é fundamental para a valorização do homem enquanto ser original, para a construção de uma ideia de dignidade única e própria a cada ser humano. A construção cristã de que o homem não é nem apenas alma, nem apenas corpo, mas uma composição necessária e única dos dois será, portanto, fundamental para o conceito de dignidade humana. A contribuição do tomismo, ainda que busque meramente explicar a individuação em si, aponta o caminho para que a questão seja posteriormente analisada sob outros aspectos (LIPOVETSKY, 2013).
A justiça é, para Tomás de Aquino, uma virtude que supõe uma relação com outrem, ao contrário das outras virtudes, que aperfeiçoam o homem em seu interior. Por se tratar, necessariamente, de uma relação com o outro, a justiça implica igualdade, pois “o que se iguala se ajusta”. A virtude da justiça é praticada em relação ao outro, enquanto todas as outras virtudes afetam diretamente apenas ao próprio agente. Para Tomás de Aquino, justo é aquilo que a justiça realiza, de forma independente de como procede quem age, também de modo contrário ao que ocorre com as outras virtudes humanas: o objeto justo é determinado em si mesmo. Na Suma Teológica (2002), a justiça é definida como “o hábitus, pelo qual, com vontade constante e perpétua, se dá a cadaum o seu direito” ou, ainda, “o ato de justiça consiste precisamente em dar a cada um o que é seu”. A alteridade é necessária no ato de justiça, poisa justiça existe para retificar atos humanos. Então, em seu conceito mesmo, a justiça implica a relação com outrem, “pois nada é igual a si mesmo, mas a um outro” (LIPOVETSKY, 2013).
2.3 Tradição jurídica medieval: os glosadores
A Escola dos Glosadores realizou um trabalho de grande importância na recuperação e, consequentemente, na recepção, do chamado direito justinianeu. Justiniano foi um imperador romano do Oriente que viveu de 462 a 565, deixando um legado importantíssimo para a preservação do Direito Romano, conhecido como Corpus Juris Civilis, obra composta de quatro partes: o Codex, o Digesto ou Pandectas, as Institutas e as Novelas. Essa obra constitui uma compilação do direito já existente, além de trazer algumas inovações e complementos. Esse trabalho de reunião do direito permitiu que, séculos depois, a Escola dos Glosadores pudesse trazer de volta toda a experiência da jurística romana.
Um monge chamado Irineu dá início, no século XII, ao estudo do direito justinianeu na Universidade de Bolonha, movimento que depois extrapola os muros dessa Universidade e atinge diversos outros centros de estudo na Europa. O método se baseava na fidelidade ao texto justinianeu e tinha carácter analítico, tratando os textos como quase sagrados – só poderiam ser interpretados cuidadosa e humildemente. A glosa era exatamente uma explicação de um trecho que suscitasse dificuldades, feita à margem do livro. (HESPANHA, 1945, p. 197-199).
De qualquer modo, cabe aos glosadores o mérito de terem recriado, na Europa Ocidental, uma linguagem técnica sobre o Direito. Não se trata mais de descrever ou reproduzir algumas normas ou fórmulas de Direito Romano, com intuitos exclusivamente práticos, como tinha sido relativamente comum nos estudos de arte notarial usuais em algumas chancelarias eclesiásticas ou seculares. Trata-se, agora, de começar a fixar uma terminologia técnica e um conjunto de categorias e conceitos específicos de um novo saber especializado – a jurisprudência (HESPANHA, 1945, p. 200).
Acúrsio, por volta do ano de 1240, reúne todo o trabalho da Escola dos Glosadores na chamada Glosa, Glosa Ordinária ou, apenas, Glosa. A influência jurídica e política dos glosadores foi grande à época e seus sucessores ficaram conhecidos como pós-glosadores ou comentaristas, um grupo que deixa de apenas interpretar o Corpus Juris Civilis para passar a elaborar uma doutrina sistematizada a partir dele, utilizando o método escolástico.
O que este movimento promove, ao fim e ao cabo, é uma racionalização e uma sistematização do direito europeu, que passa a se orientar pela busca do justo, do razoável e de uma aplicação comum, abrindo caminho para o desenvolvimento da preponderância da lei como fonte do direito – que será uma das características do positivismo jurídico, como já visto anteriormente. Paralelamente, ocorria um desenvolvimento cada vez maior dos mercados e do comércio, exigindo, cada vez mais, que o direito desse conta de forma segura da preservação dos bens do comerciante e da cumpribilidade dos contratos, o que leva, também, à necessidade de refinamento do direito aplicado. Vimos aqui, então, como o Direito Antigo e Medieval se conectam com o direito Moderno e, considerando o caso do ordenamento jurídico brasileiro, porque chamamos o nosso sistema de romano-germânico: Portugal foi um dos lugares mais influenciados pela romanização e nos legou, dentre muitas outras influências culturais, essa carga jurídica também.
AVA-4
FORMAÇÃO DOS SISTEMAS CONTINENTAL E ANGLO-SAXÃO
Você está na unidade Formação dos sistemas continental e anglo-saxão. Conheça aqui a formação dos sistemas continental e anglo-saxão consolidados a partir do século XV no continente europeu, o estado moderno e a positivação do direito. Estude, também, o Direito no Brasil Colônia, império e república velha, veremos um breve histórico, e o constitucionalismo pós-independência e o Direito na primeira República.
1 Formação dos sistemas continental e anglo-saxão
Conforme já assentado anteriormente, a partir da queda do Império Romano do Ocidente teve início um longo processo de formação do que veio a ser chamado de direito comum e se consolidou a partir do século XV no continente europeu. Hespanha (1945) identifica a sua unidade como característica essencial:
(i) quer enquanto unifica as varias fontes do direito (direito justinianeu, direito canônico e direitos locais); (ii) quer enquanto constitui um objecto único (ou comum) de todo o discurso jurídico europeu; (iii) quer ainda enquanto "trata" este objecto segundo métodos e estilos de raciocinar comuns; (iv) forjados num ensino universitário do direito que era idêntico por toda a Europa; e (v) vulgarizados por uma literatura escrita numa língua então universal - o latim (HESPANHA, 1945, p. 121).
Tanto a Igreja, quanto o Sacro Império Romano-Germânico, então unificado, possuíam ordenamentos que coexistiam, e cujo ensino e prática se mostravam homogeneizados em todos os centros de ensino do continente. A tríade "uma religião, um império, um direito" (una religio, iinum imperium, unum ius) parecia mesmo a expressão adequada de uma organização humana natural (HESPANHA, 1945, p. 122).
Fora do continente, nas ilhas onde hoje é o Reino Unido, a trajetória do direito não se deu da mesma maneira, resultando, por isso, em um tipo diferente de organização jurídica e de formação dos centros de poder que dão origem ao direito.
Nesta primeira parte da unidade faremos, então, uma investigação a respeito das origens dos sistemas de civil law (continental) e de common law (anglo-saxão) e, consequentemente das fontes do direito que lhe são peculiares. Reale (2004, p. 140-141) sintetiza um encadeamento lógico fundamental para o entendimento do assunto deste começo de unidade, afirmando que a essa altura o direito já pode ser encarado como um conjunto sistemático de regras que determinam comportamentos (atos e abstenções de agir), para cujas transgressões há uma consequência (sanção). Isso implica que para falarmos a respeito das fontes do direito, ou seja, fontes que são obrigatórias, dotadas e vigência e de eficácia é necessário identificar um poder do qual emane o conteúdo daquilo que se obriga. Reale (2004) afirma que a partir dessa conclusão, que existem quatro fontes do direito, que advém das quatro formas de poder que identifica:
Importante observar que o entendimento de Reale identifica como fonte o processo legislativo em si, e não as leis que dele decorrem; a jurisdição em si, e não a jurisprudência produzida por ela; os usos e costumes como poder social, mas não o procedimento de sua formação; a fonte negocial em si, e não o processo em si de externalização da autonomia privada. Por isso, é importante destacar que:
O que a Idade Moderna vem revelar sobre o Direito é que, com essa divisão dos sistemas em Civil Law e Common Law, definitivamente pautaram-se os parâmetros para toda e qualquer interpretação ou formulação teórica posterior. Os sistemas de direito da família romano-germânica configuraram-se como sistemas fechados, enquanto o Common Law configurou-se como um sistema aberto, onde novas regras são continuamente reveladas e fundadas na razão, a grande rainha desse período (BAGNOLI; BARBOSA; OLIVEIRA, 2014, p. 93).
Isso não significa que um sistema seja preferível ao outro ou que não tenham absolutamente nada em comum, significa, antes, que são sistemas que se organizaram a partir de fundamentos distintos que seguiram caminhos bastante diversos. 
1.1 Formação do sistema continental
O chamado sistema continental não tem sua origem de modo uniforme ou simultâneo em todo o continente, considerando que é tributário da formação dos Estados Nacionais e que estes, por sua vez, não se erigiram todos no mesmo momento histórico. Dentre as muitas exigências que a unificação de um Estado comporta, uma delas é a de um ordenamento jurídico que seja reflexo dasoberania daquele Estado, outras exigências são, por exemplo, a unificação do idioma, da moeda, das unidades de medida. Estabelecer uma legislação própria e forte passou a ser parte da trajetória de constituição de uma identidade do Estado. 
Nessa esteira, ganha força o movimento da codificação, sobretudo em consequência dos eventos históricos e políticos dos séculos XVII e XVIII. O código é uma forma de proporcionar organização, segurança e certeza para essas novas sociedades que se estabeleciam: traziam num único documento toda a matéria referente a um determinado ramo do direito – penal, civil, comercial etc.
A base do sistema continental será, portanto, a lei escrita positivada, elaborada pelo poder legislativo. Essa característica é consequência da ruptura com os antigos regimes absolutistas e com todas as práticas e costumes que lhe eram próprias, até mesmo por desconfiança geral quanto ao seu funcionamento, tipicamente corrupto e permeado de privilégios para determinados grupos. Além disso, a lei é vista como produto da racionalidade e da abstração humana, tão festejada pelos paradigmas científicos do momento. “Para Rousseau, o Direito é a lei, porque a lei é a única expressão legítima da vontade geral. Nenhum costume pode prevalecer contra a lei ou a despeito dela, porque só ela encarna os imperativos da razão” (REALE, 2004, p. 152).
Os primeiros Estados Nacionais a se organizarem, ainda no século XII foram Portugal e Espanha. Em razão dessa precocidade histórica, não são elaboradas codificações já aprimoradas em termos de sofisticação, mas não se poderia mais persistir com o uso do direito costumeiro:
com o desenvolvimento da indústria, da técnica, do comércio, com aquilo que se pode chamar de primórdios do capitalismo ou da civilização capitalista, o Direito costumeiro não era mais suficiente. Os reis sentiram necessidade de fazer a coordenação ou ordenação das leis dispersas, bem como das costumeiras regras vigentes, que tinham o grande defeito de ser desconexas ou particularistas. Surgiram, assim, as primeiras consolidações de leis e normas consuetudinárias, que tomaram o nome de Ordenações por serem o resultado de uma ordem do rei. São as “Ordenações” do rei da Espanha, ou da França, bem como dos grandes monarcas portugueses. Portugal foi um dos primeiros países a procurar por ordem e sistema no seu direito (REALE, 2004, p.151).
Dois códigos recebem destaque nesse momento histórico, o alemão (1900) e o francês (1804). O código instituído pela recém unificada Alemanha chamava-se Bürgerliches Gesetzbuch, ou BGB e foi elaborado por um grupo grande de juristas. O Código Civil Francês foi instituído por Napoleão e teve inspiração no direito romano, nas ordenações reais e no direito revolucionário, cujos princípios foram respeitados, abolindo vestígios do feudalismo e privilégios para realeza e nobreza (BAGNOLI; BARBOSA; OLIVEIRA, 2014, p. 91-92).
Na França a codificação é produto direito da Revolução Francesa, primeiro momento em que se aventou a necessidade de um direito único para a totalidade das classes, abolindo, portanto, as desigualdades. O surgimento de um direito nacional é um marco histórico importantíssimo, porque dá vigência ao princípio da igualdade, pois o direito é um só e todos são tratados pela lei da mesma forma (REALE, 2004, p.152). 
O fantasma a ser evitado era e, de certa forma, continua sendo, o casuísmo na lei. A certeza da existência e do conteúdo da norma que o direito escrito apresentava, bem como a busca de generalidades racionais que o conjunto normativo (códigos) representava, fizeram com que a ‘glosa judiciária’ (jurisprudência casuística) fosse afastada, em favor da ‘glosa erudita’ (a doutrina) e que tanto o costume geral como o assim dito ‘costume judiciário’ (a jurisprudência) fossem desprezados, em benefício da lei escrita (e, sempre que possível, reunida em conjuntos harmônicos e racionais: os códigos) (BAGNOLI; BARBOSA; OLIVEIRA, 2014, p. 91).
A principal característica do sistema continental, portanto, é eleger a lei como fonte do direito por excelência (ainda que outras possam ser admitidas), o que se fez necessário por razões culturais, ou seja, as experiências passadas desses povos os levou desconfiar nas demais fontes do direito e a elevar a legislação escrita, positivada e, de preferência, codificada, à primazia.
1.2 Formação do sistema anglo-saxão
Enquanto o sistema continental caminhou para encontrar na lei sua principal fonte do direito, o sistema anglo-saxão revela-se formado pelos usos e costumes e pela atuação jurisdicional. Essa característica aparece, assim como foi com o sistema continental, como consequência dos eventos e experiências históricas e políticas vivenciadas por esse povo, que não se assemelham em muito ao ocorrido no continente. 
O quadro evolutivo do direito inglês configura-se por dois períodos de nítida distinção e manifesto antagonismo: 
 Figura 1 - Quadro evolutivo do direito inglês Fonte: Elaborada pela autora, 2019.
#PraCegoVer: Na imagem, temos o quadro evolutivo do direito inglês dividido em dois períodos: histórico, também denominado direito anglo-saxônico, e Common law, em substituição aos costumes dispersos de vertente tribal. O segundo se subdivide em três etapas, representadas graficamente: a de formação, a partir da conquista normanda (1066) até o advento da dinastia dos Tudors (1485), fase na qual o direito nacional cristalizou com o concurso da jurisprudência baseada nos precedentes; a outra, que podemos chamar de fase da razão, em que um sistema retificador, a equity, ou ‘regras de equidade’, passou a complementá-lo; e a última, a partir do meio século passado, na qual a lei escrita, votada por corpos legislativos, o statute law, entrou a disputar espaço na construção do edifício jurídico, em par com a tradicional jurisprudência.
Pode-se afirmar, então, que o sistema de common law é a soma da jurisprudência e da equidade (GILISSEN, 2001). Até o ano de 410 a ilha da Bretanha, que viria a ser a Inglaterra, estava sob domínio romano. Invasões e ocupações eram frequentes e foram muitas, tendo mais relevância história a invasão normanda que foi mais uma reivindicação de trono que conquista propriamente dita, e a partir daí deu-se início à busca de unidade política. A pulverização do poder político era enorme, haja vista o número muito alto de pequenos feudos, o que enfraquecia o poder central. Para reverter essa situação, o rei deu início à construção de um sistema jurídico nacional centralizado. Essa construção, inevitavelmente, teve influência material do direito costumeiro, não escrito, residual dos costumes das tribos que ali habitaram por invasão (GILISSEN, 2001). A justiça encabeçada pelo rei convivia com a aplicação do direito costumeiro, princípio imemorial assegurado ao jurisdicionado emanado por leis germânicas. Essa convivência ocorria enquanto aumentavam as competências e o poder real, que se tornou exclusiva por volta do século XV passando a ser exercida apenas em Westminster:
É a essas cortes de Westminster que se deve a coordenação dos costumes locais da Inglaterra, laborada na síntese e seleção de numerosos elementos de direito material que, durante séculos, passaram pelo crivo judicial do caso a caso, no dia a dia; em suma, o common law, um direito que é ‘comum’ na acepção de nacional, não local, e que deixou de ser costumeiro porque a partir daí o que passou a prevalecer foi a jurisprudência, não o costume, um direito jurisprudencial, até o marco de nossos dias (GILISSEN, 2001, p. 90).
O sistema anglo-saxão se alimenta e se renova, portanto, das decisões. O juiz tem uma função quase legislativa, reforçando os precedentes já estabelecidos por outros juízes antes dele, numa permanente construção do direito, a partir de cada caso concreto que se apresenta. O uso da equity passou a ser proibido como forma de criação de jurisdições paralelas às de common law, mas poderia ser usada segundo os casos em que até então fora aplicada, criando um sistema em que ambas as lógicas subsistem. A equity passou,então, a exercer um papel de correção e suprimento das regras do precedente, integrando-se totalmente um ao outro. Semelhante à relação entre direito público e direito privado passou a ser a relação entre precedentes e equity (GILISSEN, 2001, p. 92-93).
De meados do século XIX em diante o direito inglês passou a admitir também o statute law, ou seja, leis escritas, que não tem a função de criar direito, exercendo apenas função regulamentar na administração e com papel secundário no direito, podendo, no máximo, levantar exceções perante o direito jurisprudencial (GILISSEN, 2001, p. 93). É interessante observar que o common law não se afetou pela recepção do direito romano ocorrida no continente e, de certo modo, foi pouco ou quase nada afetado pelas transformações políticas e econômicas históricas e conta, por isso, com uma continuidade histórica riquíssima, permitindo que juristas invoquem, nos dias de hoje, precedentes do século XIII ou XIV: “o common law não era baseado em leis e por isso ficou praticamente impossível a utilização do direito romano na sua complementação, ou seja, como fonte subsidiária que poderia vir a suprir uma lacuna” (BAGNOLI; BARBOSA; OLIVEIRA, 2014, p. 91).
1.3 Estado moderno e positivação do direito
O Estado Moderno é marcado pela extinção de uma sociedade constituída por uma pluralidade de agrupamentos sociais que se autogeriam, em que o direito se apresentava como um fenômeno social, produzido pela sociedade civil e não pelo Estado. A estrutura social do Estado Moderno é, portanto, monista, pois todos os poderes estão concentrados nas mãos do Estado, especialmente aquele de elaborar e aplicar o direito. A atuação do juiz, após o movimento de positivação do direito, se reduz a buscar respostas para solucionar o conflito dentro do catálogo de normas que constitui o direito positivo, sem grandes possibilidades de recurso a outras fontes ou fundamentações. Da mesma forma que o único direito existente é o direito positivo, o juiz como um mero terceiro neutro integrante da comunidade e dotado de credibilidade e idoneidade para que lhe fosse confiada a tarefa de decidir também desaparece, o juiz passa a ser funcionário do Estado.
Quando identificamos o direito com as normas postas pelo Estado, não damos uma definição geral do direito, mas uma definição obtida de uma determinada situação histórica, aquela em que vivemos. Enquanto, de fato, num período primitivo, o Estado se limitava a nomear o juiz que dirimia as controvérsias entre os particulares, buscando a norma a aplicar ao caso sob exame tanto nos costumes quanto em critérios de equidade, e a seguir, adicionando à função judiciária aquela coativa, providenciando a execução das decisões do juiz, com a formação do Estado Moderno é subtraída ao juiz a faculdade de obter as normas a aplicar na resolução das controvérsias por normas sociais e se lhe impõe a obrigação de aplicar apenas as normas postas pelo Estado, que se torna, assim, o único criador do direito (BOBBIO, 2006, p. 29)
Inaugura-se a era o racionalismo exacerbado, instituído “como método de comparação, construção e avaliação de todos os problemas do mundo, da ciência e da vida” (BAGNOLI; BARBOSA; OLIVEIRA, 2014, p. 81-84). O racionalismo passa a ser a medida de todas as coisas, e irá orientar, portanto, a existência e atuação do Estado. Os padrões, inclusive para as ciências humanas e sociais, passa a ser a perfeição matemática, geométrica, físico-química. A soberania e o poder passam a ser o norte do Estado e a sociedade passa por profundas mudanças também, sobretudo em razão das grandes revoluções sociais e da revolução industrial.
A estrutura da sociedade se modifica, surgem novas classes, em especial o assalariado e o burguês, figuras típicas da Modernidade, e surge a novíssima possibilidade de ascenção ou mobilidade social. O Estado Moderno possibilita, ainda, a ampliação da liberdade de consciência e da liberdade religiosa, bem como centraliza o poder e promove uma virada na organização econômica com a ascensão da burguesia e a consequente e inevitável busca por direitos que derivou de seu fortalecimento e poder de barganha. Na esfera organizacional, instituiu-se uma ordem em que está definitivamente legitimado o monopólio do uso da força por parte do Estado, atendendo ao primitivo requisito da soberania como autodeterminação postulado por Jean Bodin séculos antes (BAGNOLI; BARBOSA; OLIVEIRA, 2014, p. 84).
 1.4 Lei e jurisprudência como fontes estatais do direito moderno
Agora que já compreendemos o processo de formação dos sistemas continental e anglo-saxão e as características que apareceram no Estado Moderno, podemos adentrar o estudo das fontes do direito propriamente ditas, com especial destaque para as duas protagonistas, uma de cada sistema, lei e jurisprudência. Tradicionalmente, a doutrina classifica as fontes do direito em materiais e formais e estas, por sua vez, em estatais e não estatais. As fontes do direito são os meios pelos quais o direito se positiva, ou seja, é através delas que os conteúdos pré-jurídicos revestem-se de juridicidade:
Fontes materiais
São aqueles elementos que emergem da realidade social e dos valores que inspiram o ordenamento jurídico (DINIZ, 2001).
Fontes formais
Referem-se ao modo de manifestação das normas, apontando como o direito pode ser conhecido – são os canais por onde se manifestam as fontes materiais (DINIZ, 2001).
Em resumo, temos: 
 Figura 2 - Fontes formais Fonte: Elaborada pela autora, 2019.
#PraCevoVer: Na imagem, temos a representação gráfica das fontes formais que derivam do Estado e das fontes formais que não derivam do Estado. As primeiras geralmente são divididas em legislativas e jurisprudenciais, enquanto as últimas são divididas em costume e fontes negociais ou negócios jurídicos.
Quando nos referimos ao vocábulo lei, há mais de uma acepção possível, uma amplíssima, outra ampla e outra estrita ou técnica. A acepção amplíssima é sinônimo de norma jurídica: como toda norma geral de conduta que de fine e disciplina as relações de fato incidentes no direito e cuja observância é imposta pelo poder do Estado; a acepção ampla é no sentido de aquilo que se lê: como oriundo do verbo legere (ler em latim) designa todas as normas jurídicas escritas e distinguia, no direito romano, o jus non scriptum do jus scriptum; a acepção estrita ou em sentido técnico: como norma jurídica elaborada pelo processo legislativo, ou seja, produto do processo legislativo (DINIZ, 2001, p. 283-284).
É importante ressaltar que a legislação ou atividade legiferante é o processo pelo qual um ou vários órgãos estatais formulam e promulgam normas jurídicas de observância geral, enquanto a fonte jurídica formal é o processo legislativo constituído por um conjunto de fases constitucionalmente estabelecidas, pelas quais há de passar o projeto de lei, até sua transformação em lei vigente.
Lei e norma não são necessariamente sinônimo, como já destacado anteriormente:
Norma 
É a prescrição, que não necessariamente é jurídica
Lei 
É a forma de que se reveste a norma ou conjunto de normas no ordenamento, ou seja, a lei transforma uma prescrição em direito através da institucionalização. Vale lembrar a máxima de que nem toda norma é lei, mas toda lei é norma.
A jurisprudência é produto da função jurisdicional, jurisprudência é o conjunto de decisões uniformes e constantes dos tribunais, resultantes da aplicação de normas a casos semelhantes, sendo uma norma geral aplicável a todas as hipóteses similares ou idênticas, enquanto não houver nova lei ou modificação na orientação jurisprudência. Isso significa dizer que os recursos ordinários e extraordinários do STF é que vão estabelecendo a possível uniformização das decisões judiciais, mediante enunciados normativos que resumem as teses consagradas em reiteradas decisões (DINIZ, 2001, p. 290-291).
Somente constitui jurisprudência em sentido estrito no sistema brasileiro a prática reiterada de tribunais superiores. Fora isso, trata-se de decisões anteriores, que constituem costume judiciárioque se forma pela prática dos tribunais e podem ser invocados como jurisprudência em sentido lato. A jurisprudência pacífica acaba prevalecendo, mas no sistema brasileiro é uma fonte interpretativa, argumentativa.
Como já vimos, no sistema de Common law os juízes encontram-se vinculados aos precedentes para julgar e, caso precisem contrariar o precedente, será necessário uma demonstração de que não se trata de situação idêntica à estabelecida. Já no sistema de Civil law a desconfiança histórica remanescente do Ancien Régime proporcionou a não há vinculação dos juízes inferiores nem aos de mesma hierarquia, nem às mesmas decisões – independência da magistratura de julgar conforme a consciência.
O requisito é a fundamentação da decisão retirada de uma norma preexistente no ordenamento, ou seja, não existe liberdade de criar a norma diante do caso concreto e atuar de forma semelhante ao legislador como no sistema de common law. O costume é uma fonte não estatal e é a forma de expressão do direito decorrente da prática reiterada e constante de certo ato com a convicção de sua necessidade jurídica, sob a tradição de que algo deve ser feito porque sempre o foi. É uma fonte do direito subsidiário para completar a lei e se presta mais à função de preencher lacunas. Não é qualquer hábito ou prática social que poderá ser reconhecida como costume no sentido de ser fonte do direito. É necessário atender a dois os elementos constitutivos do costume como fonte do direito (ambos estão contidos na fórmula em latim inveterata consuetudo et opinio juris necessitatis): o primeiro deles é o elemento objetivo, que é a longevidade, ou seja, prática reiterada e prolongada de certos atos; o segundo é o elemento subjetivo, que é o reconhecimento da obrigatoriedade jurídica daquela prática como se fosse lei por parte da coletividade. Suas condições de vigência são a continuidade, a uniformidade, a diuturnidade (longa duração), a moralidade e a obrigatoriedade. O grau de objetividade do costume é muito baixo, pois não é promulgado (e sim criado, formado), por isso a dificuldade em se determinar quando inicia sua vigência. O costume deve ser provado por quem o alega (DINIZ, 2001, p. 299-304).
Outra fonte formal não estatal são as fontes negociais, expressão da autonomia privada, que estabelecem normas individuais vinculantes que podem até criar situações não previstas em lei, desde que obedecidos os preceitos sobre a capacidade do sujeito que pratica o ato, sobre a liceidade e possibilidade do objeto, sobre a forma prevista ou não defesa em lei. A autonomia privada é reconhecida pelo Direito Privado estatal, como, por exemplo, na parte final do caput do art. 2.035 do CCB: 
A validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos antes da entrada em vigor deste Código, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no art. 2.045, mas os seus efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução (BRASIL, 2002).
Há muitas normas cogentes no direito privado atualmente que se traduzem como limitação à manifestação da vontade privada, como, por exemplo, com a positivação dos preceitos de ordem pública do parágrafo único do art. 2.035 do CCB: “Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos”. Em razão da limitação que a autonomia privada sofre é que a doutrina costuma apontar a inadequação da clássica dicotomia entre direito público e direito privado e há, inclusive, autores que prefiram falar em uma terceira categoria, de ramos mistos do direito, a exemplo do direito do trabalho ou do consumidor (DINIZ, 2001, p. 320-322).
Por último, a doutrina, que optamos, aqui, na esteira de Reale, por não considerar como fonte do direito, embora alguns autores e autoras o façam. Doutrina é o nome que têm os estudos de caráter científico que os juristas fazem sobre o direito, com propósitos meramente teóricos ou de interpretação e aplicação das regras. Por ser atividade intelectual livre, não podemos considerar a doutrina como fonte formal do direito, pois não cria direito. A doutrina é empregada e decisões como aporte argumentativo, o chamado argumento de autoridade (ab auctoritate), que é fundado no prestígio de uma pessoa que é citada para demonstrar que a tese defendida na argumentação se apóia na obra de reconhecido jurista.
Para Reale (2002, p. 178), embora não seja fonte do direito, “nem por isso deixa de ser uma das molas propulsoras, e a mais racional das forças diretoras, do ordenamento jurídico”. O papel da doutrina não pode ser posto de lado na construção conceitual, sobretudo na atual cultura jurídica, que recorre, às vezes excessivamente, aos princípios gerais do direito para solucionar conflitos.
2 Direito no Brasil Colônia, Império e República Velha
Neste último tópico abordaremos o direito num período histórico brasileiro que vai do início de sua existência, com a chegada dos portugueses, até o que se chama República Velha, que durou até o ano de 1930. Veremos, assim, as Ordenações de Portugal, seu breve histórico e como incidiram no ordenamento jurídico brasileiro, para, em seguida, abordar o constitucionalismo instaurado no pós-independência, e, ao final, trataremos do direito na primeira República.
Importante destacar um aspecto não apenas jurídico, mas também de cunho social e humanístico muito relevante, que é o período da escravidão – compreendido exatamente neste mesmo momento histórico abordado neste tópico. Tendo vigorado de 1500 até 1888, a escravidão teve seu fim jurídico apenas um ano antes da proclamação da República de 1889. A Constituição de 1824 ignora completamente o tema, com o claro propósito de não desagradar interesses econômicos envolvidos na manutenção do sistema, que muito rapidamente tornou-se incompatível com normas internacionais e ainda assim não recebia o tratamento necessário e definitivo que merecia. Soluções paliativas foram aplicadas, como a Lei do Ventre Livre, em 1865 e a Lei dos Sexagenários, em 1885. Ambas pareciam pretender proporcionar um período de transição para que os latifundiários pudessem se reorganizar com novas formas de mão de obra, mas sem prescindir daqueles que já se encontravam na situação de escravizados, mantendo a situação confortável exatamente para aquelas pessoas que sempre estiveram em situação de superioridade. 
O Brasil conseguiu adiar por muitas décadas as medidas efetivas para acabar com a escravidão. Mesmo com a constante pressão internacional, o país foi, paulatinamente, desvencilhando-se da escravidão. Primeiro, aboliu o tráfico de escravos, depois alforriou os sexagenários, depois aqueles que eram filhos de escravos e, somente, no fim do período, aboliu a escravidão. Esse impasse e essa demora desgastaram severamente o país em suas relações internacionais e, principalmente, em suas relações internas, gerando um grande desconforto e uma grade decepção da elite agrária em relação ao governo monárquico e culminando no apoio desta à República nos anos de 1880 (BAGNOLI; BARBOSA; OLIVEIRA, 2014, p. 129-130).
O trecho citado pondera a respeito da demora sob uma perspectiva de desgaste político, deixando de lado o mais importante, que é a situação dessas pessoas que foram tratadas como patrimônio e mercadoria por mais de três séculos. Esse traço de quase completo silêncio, durante mais de 300 anos, quanto a um tema gravíssimo não pode deixar de ser objeto de reflexão em se tratando de história do direito, para que possamos aprender com o nosso passado e evitar cometer novos erros da mesma monta.
2.1 Ordenações do reino português: afonsinas, manuelinas e filipinas
Conforme já comentamos acima, em Portugal e Espanha, antes da fase de codificação chegar com total força e impulsionar a elaboração de legislações novas, houve um momento já de influência dos movimentos de codificação em que foram elaboradas as chamadas Ordenações que eramconsolidações de leis e normas consuetudinárias elaboradas por ordem dos reis, daí seu nome. Seu objetivo, em sintonia com o movimento da codificação, era o de colocar ordem e sistematizar o Direito.
A primeira das Ordenações portuguesas foram as Afonsinas, publicadas por D. Afonso V (1446); seguidas pelas Manuelinas, compiladas no reinado de D. Manuel (1512-1521). Finalmente, quando Portugal passou para o domínio da Espanha, adotamos as Ordenações Filipinas (1603) cujos preceitos de Direito Civil, embora profundamente alterados e atualizados, graças à Consolidação das Leis Civis elaborada por Teixeira de Freitas, vigoraram, no Brasil, até 1916, quando entrou em vigor o [...] Código Civil (REALE, 2004, p. 151).
 Figura 3 - Ordenações Afonsinas Fonte: Elaborada pela autora, 2019.
#PraCegoVer: Na imagem, temos a representação gráfica das ordenações afonsinas que se dividem em cinco livros que tratam dos regimentos dos oficiais maiores e subalternos à Justiça; da jurisdição, pessoas e bens dos eclesiásticos, dos direitos reais, de sua arrecadação, da jurisdição dos donatários e mouros; da ordem judiciária; dos contratos, sucessões e tutorias; dos delitos e das penas.
A organização interna das Ordenações Afonsinas era bem estruturada e seu conteúdo era bastante complexo e detalhado, trazendo normas de organização e relação interna do sistema, como:
I) primazia das leis do Reino, mesmo em relação à disposições das leis imperiais;
II) na ausência de determinação da lei do Reino, empregar-se-ia leis imperiais e cânones;
III) na antinomia entre cânones e leis imperiais, prevaleceriam os cânones, caso as leis imperiais trouxessem pecado;
IV) na ausência destas últimas, utilizar-se ia das glosas de Acúrcio incorporadas em tais leis e se não houvesse determinação por elas, seria usada a opinião de Bartolo, demonstrando o papel relevante da escola de glosadores para a elaboração das Ordenações do Reino;
v) inexistindo também tais glosas e opiniões, recorrer-se-ia à determinação do El-Rei, para que resolvesse a questão, de modo que a solução teria o caráter de lei geral e seria aplicada aos demais casos semelhantes (BAGNOLI; BARBOSA; OLIVEIRA, 2014, p. 115).
As Ordenações Manuelinas foram compiladas poucas décadas após por iniciativa de D. Manuel que desejava deixar sua marca não apenas nas navegações, mas também no campo legislativo. Na prática a quantidade de títulos foi reduzida, aprimorou-se a sistematização do direito civil, mas permaneceu o nacionalismo explícito. Uma compilação de leis extravagantes acabou, ainda, sendo publicada em 1569, visando a complementar a matéria já regulada pelas Ordenações Manuelinas. No ano de 1580, com a unificação da Península Ibérica, o sistema jurídico português passou por mais uma reforma para que incorporasse a legislação espanhola. Foi quando entrou em vigor outra compilação, as Ordenações Filipinas que não tinham essência muito diversa das Ordenações Manoelinas. Mesmo após o fim da unificação da Península Ibérica, em 1640, a vigência das Ordenações Filipinas permaneceu, tendo vigorado por um total de 264 anos. É importante destacar que as Ordenações Filipinas tiveram um papel importante na formação do cenário jurídico brasileiro em seu período colonial, pois tinham também vigor na colônia (BAGNOLI; BARBOSA; OLIVEIRA, 2014).
Mesmo após a independência do Brasil as Ordenações Filipinas permaneceram em vigor, sendo revogadas apenas as disposições que se mostraram totalmente incompatíveis com a nova ordem político-jurídica, especialmente porque não havia nem tempo hábil nem maturidade político-constitucional para que fosse elaborada nova legislação de imediato. (BAGNOLI; BARBOSA; OLIVEIRA, 2014).
2.2 Constitucionalismo monárquico/imperial brasileiro
A ideia de que o Brasil necessitava de uma Constituição já fazia parte do movimento pró-independência, por influência do constitucionalismo que andava lado a lado com o movimento da codificação e que estavam por trás da formação dos Estados Nacionais europeus. Uma Constituição escrita traria mais segurança para o povo em sua relação com o Estado e ajudaria a conter o poder que estava nas mãos dos governantes. Sob a influência de matrizes teóricas como Rousseau, Locke e Montesquieu, vigorava a inclinação a ao liberalismo e à democracia, causando entraves, desde o início, ao reinado de D. Pedro I. As reivindicações da elite incluam, assim, a construção de um novo ordenamento jurídico compatível com o novo país independente, e a criação de cursos superiores que pudessem preparar os jovens para a atuação jurídica e política na nascente sociedade (BAGNOLI; BARBOSA; OLIVEIRA, 2014, p. 130-132).
Em 1822 tiveram início os trabalhos para convocação da primeira constituinte brasileira, que, como sabemos, não conseguiu concluir os trabalhos devido a interferências do Imperador, que, em menos de 40 dias apresentou e outorgou um novo texto, a Constituição de 1824, que vigorou por 65 anos, e foi a mais longeva da história brasileira até hoje, e não contou com participação popular alguma em sua elaboração. Segundo a Constituição de 1824 o Brasil se constituía em monarquia parlamentar, hereditária, constitucional e representativa. O individualismo econômico era festejado, privilegiando as elites com centralização do governo e do poder e restrições à participação popular pelo voto censitário (homens livres, com renda maior que 100 mil réis, maiores de 25 anos). Além, é claro, do famoso Poder Moderador, exercido pelo Imperador pessoalmente (BAGNOLI; BARBOSA; OLIVEIRA, 2014, p. 132-136).
Sobre o Poder Moderador, devido a singularidade do mesmo, temos alguns comentários. Nos termos da Constituição, ele, como já dito, era a chave de toda a organização política, sendo delegado ao Imperador como chefe Supremo da Nação, para que velasse sobre a manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos demais poderes políticos, nos termos do art. 98. Dentre as competências que foram atribuídas ao Imperador, merecem destaque: nomeação de senadores (art. 101), a aprovação e suspensão das resoluções dos conselhos das Províncias (art. 101), a prorrogação ou adiamento da Assembleia Geral da dissolução da Câmara dos Deputados (art. 101), bem como a suspensão dos magistrados (art. 101). Com isso “tamanha era a concentração de poderes ensejada pela instituição do Poder Moderador, que, Paulo Bonavides e Pes de Andrade, a caracterizaram como a constitucionalização do absolutismo, se isso fora possível (FERNANDES, 2013, p. 255).
2.3 Direito na república
A República no Brasil, última do continente, nasce por meio de um golpe aplicado por militares na Monarquia, apoiada pelas elites e sob influências do positivismo que estava em voga na Europa. Logo de cara o governo provisório já assume para si a tarefa de indicar os governadores de províncias e a de legislar até que se reunisse uma Assembleia Constituinte, bem como o comando das forças armadas. A relação entre os governos das províncias e o Presidente da República se dava na base da troca de favores e da propagação de práticas coronelistas, o que provocava a crítica de jornalistas e políticos (BAGNOLI; BARBOSA; OLIVEIRA, 2014, p. 144-149).
No período da República Velha foi também instituído um Código Penal, em 1890, e o Código Civil de 1916, que vigorou até o final do ano de 2002. A Assembleia Constituinte para elaboração da Constituição que viria a ser promulgada em 1891 não possuía representação democrática ou sequer em número absolutos suficiente, pois mulheres e analfabetos estavam excluídos do voto para eleição dos constituintes. No entanto, o grupo eleito estava mais ligado aos interesses das elites latifundiárias que aos interesses dos militares que se encontravam no poder. As características mais relevantes dessa Constituição são ter instaurado a República Federativa, ter eliminado o Poder Moderador e retornado à tripartição clássica de poderes, ter optado por um sistema Presidencialista e de Parlamento Bicameral. Nesse texto constitucional já se estabeleceu, também, o Supremo Tribunal Federal comoo guardião da Constituição (BAGNOLI; BARBOSA; OLIVEIRA, 2014, p.149-152). De todas as 8 Constituições que o Brasil já teve, a de 1891 foi a mais curta, contando com apenas 90 artigos.
Conforme Fernandes (2013, p. 260-261), o instituto do habeas corpus foi constitucionalizado nessa Carta, o que é uma característica importante. O remédio constitucional era garantido “sempre que o indivíduo sofrer ou se achar em iminente perigo de sofrer violência ou coação por ilegalidade ou abuso de poder”. Em 1926, numa reforma no texto constitucional, a concessão de habeas corpus foi restrita a casos de violência ou coação à liberdade de locomoção, eliminando a previsão contra ilegalidade ou abuso de poder, o que demonstra o viés centralizador da reforma. Afirma Fernandes, citando Sarmento, que “a Constituição de 1891 teve pouquíssima efetividade. Entre o país constitucional – liberal e democrático – e o país real – autoritário e oligárquico, manteve-se um instransponível abismo”.

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