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1 Sistemas políticos e eleitorais Marcelo Debonis PALAVRAS-CHAVE: Ciências sociais, sociologia, Estado, Governo, partido, partido político, eleição, voto, sistema eleitoral, sistema político, sistema de governo, monarquia, república, democracia, parlamentarismo APRESENTAÇÃO PROFESSOR AUTOR/CONTEUDISTA MARCELO DEBONIS Mestre em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), área de concentração Sociologia, sob o tema: “Urbanismo e Sustentabilidade”. É bacharel em Ciências Sociais, licenciado em Sociologia, Elementos de Economia e Geografia. Professor em cursos de Pós-Graduação na Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS), na Universidade Estácio de Sá (Unesa) e no antigo Centro Federal de Educação Tecnológica de São Paulo (Cefet/SP), atual Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP). Docente do curso Estudos Abertos para a Terceira Idade pelas Faculdades Integradas Campos Salles (FICS) e professor universitário em cursos de graduação no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFSP) e na Universidade Bandeirante de São Paulo (Uniban). Coordenador pedagógico concursado da Rede Estadual de Ensino de São Paulo, na Escola Estadual Brigadeiro Gavião Peixoto, e coordenador de área do Ensino Médio no Colégio Módulo Paulista, instituição privada de ensino. É escritor de artigos relacionados à área de Educação e Sociologia. Autor da obra Introdução à Economia Solidária e Desenvolvimento Local (IPEPS) e coautor das obras Sociologia e Economia do Trabalho (Degrau Cultural/Central de Concursos) e Ibama-Tema I: Regularização, Controle, Fiscalização, Licenciamento e Auditoria Ambiental (Degrau Cultural/Central de Concursos). 2 Palestrante e desenvolvedor de treinamento no IFSP, no Núcleo de Ação e Pesquisa em Economia Solidária (Napes) e no Centro Pastoral Santa Fé, ambos em São Paulo. Elaborador e executor de cursos para professores da Rede Pública e Privada de Ensino sobre o Plano Decenal de Educação para Todos/Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s) pelo Núcleo de Trabalhos Comunitários (NTC) da PUC-SP (2000). CURRÍCULO http://lattes.cnpq.br/6935650589255712 Mestrado em Ciências Sociais (2008 – 2011) Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUC/SP Graduação em Ciências Sociais (1993 – 2002) Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUC/SP OBJETIVOS Apresentar os conceitos básicos sobre os Sistemas Políticos e Eleitorais, elaborando uma visão panorâmica dos diversos sistemas existentes, identificando sua relação com a organização de governo e representação do público, para a partir desta comparação, realizar uma a análise dos sistemas políticos eleitorais no Brasil. 3 Sumário Introdução 1 As Ciências Sociais 1.1 Origens da Ciência Política 2 A gênese do Estado 3 O Estado Moderno 3.1.1 Forma de Estado - federativo ou unitário 3.1.2 Forma de governo- monarquia ou república 3.1.3 Sistema de governo - parlamentarista ou presidencialista 3.1.4 Sistemas partidários - bipartidarismo ou pluripartidarismo 3.1.5 Regimes políticos - democrático ou totalitário 4 Sufrágio Universal 4.1 O Sufrágio Universal no Brasil 5 Os partidos políticos 6 O sistema político eleitoral 6.1 O Sistema Majoritário de Representação 6.2 O Sistema Majoritário e Eleições Presidenciais 6.3 O Sistema Proporcional de Representação 6.3.1 Representação proporcional por voto único transferível 6.3.2 Representação proporcional pelo sistema de lista 6.4 O sistema misto de representação 6.4.1 O sistema de superposição 6.4.2 O sistema de correção 7 Financiamento de campanha 7.1 O financiamento de campanha na atualidade 7.2 Brasil - financiamento misto de campanha 8 O sistema político brasileiro 8.1 A (des)proporcionalidade na representação política no Poder Legislativo 8.2 Pluripartidarismo e governabilidade 8.3 8.3 Mandato político, processo de cassação e impedimento de mandato. 8.3.1 O mandato político 8.3.2 O processo de cassação 8.3.3 O impedimento de mandato 9 O sistema político europeu e estadunidense 4 9.1 O sistema político europeu 9.2 O sistema político estadunidense Referências 5 Apresentação Caros alunos, Este material foi produzindo visando estabelecer a introdução aos estudos sobre os Sistemas Políticos e Eleitorais. Dada a complexidade dos diversos temas abordados e a exiguidade temporal, a estratégia para a confecção do presente trabalho pautou-se pela apresentação dos conceitos principais, fundamentais para o entendimento da temática central do curso, isto é, os sistemas políticos eleitorais, sem, contudo, estabelecer grandes aprofundamentos ou debates. Não se trata de uma proposta de trabalho que tenha um caráter de defesa deste ou daquele ponto de vista, mas sim, uma visão panorâmica sobre os temas, buscando identificar o ponto de vista dos defensores e dos críticos dos diversos temas elencados. Muito mais um manual básico de introdução às discussões sobre o tema supracitado, o material está estruturado em quatro grandes campos de discussão da Ciência Política, distribuídos ao longo dos capítulos. Assim, na primeira parte, o foco temático são os elementos constitutivos das Ciências Sociais e dentro delas a Ciência Política, além de uma pequena discussão acerca da origem e evolução do Estado Moderno. Em um segundo momento, é a organização política do Estado Moderno e os valores democráticos, como o sufrágio universal, que são apresentados e analisados. Os partidos políticos, os tipos de sistemas eleitorais e temas como o financiamento de campanhas políticas, são os assuntos abordados na terceira parte do trabalho. Por fim, com a análise dos sistemas políticos eleitorais no Brasil e, em alguns países selecionados, concluímos nossa abordagem sobre este momento inicial de contato, com essa importante área de estudo da Ciência Política. O autor 6 Introdução Ao iniciar este livro/apostila, considera-se ser importante esclarecer o que vem a ser a Ciência Política. De maneira simplificada, podemos defini-la como a busca de compreensão sobre como se distribui e organiza o poder nas sociedades.1 Portanto, analisar e conceituar a formação e o desenvolvimento das diversas formas e sistemas de governos, dos regimes políticos e das formas de Estado; dos diversos mecanismos político-eleitorais, suas singularidades e generalidades, são alguns elementos que se constituem em objetos de estudo, fundamentais, para a Ciência Política. FIGURA 1 – Sistemas de Governos Fonte: Rawpixel.com/shutterstock ID: 218757928 Para que consigamos atingir a maior compreensão acerca dos objetivos acima elencados, faz-se necessário um amplo conhecimento em torno dos principais conceitos e aspectos metodológicos presentes na análise a que a Ciência Política se propõe. É importante ressaltar que a Ciência Política representa campo muito vasto do conhecimento, sendo assim, buscaremos trabalhar de forma esclarecedora, sem, no entanto, rebuscar a linguagem para que, através da assimilação dos elementos analíticos e conceituais, possamos contribuir no processo de formação o qual o curso, como um todo, objetiva. Muitos cientistas políticos compreendem queo sentido maior da Ciência Política é que ela é, por excelência, a ciência que se ocupa do estudo do Estado. Assim, será também tema fundamental, a busca de compreensão sobre a origem, evolução e estruturação do Estado moderno. Os elementos constitutivos da atual organização do Estado moderno e os tipos e regras dos sistemas de representatividade são elementos extremamente relevantes, assim, temas como: tipos de sistemas eleitorais, voto obrigatório ou facultativo, critérios para a elegibilidade, exigências para a fundação de um partido político, tipos de financiamento de campanhas etc. são de fundamental importância e serão também abordados. Dado o caráter 7 bastante amplo das discussões elencadas e, por outro lado, o caráter conciso deste material de estudo, os diversos temas serão apresentados dando-se ênfase nos aspectos concernentes, no plano teórico, à Ciência Política, deste modo, a legislação que regula os sistemas eleitorais, não será trabalhada de forma aprofundada. Cabe ainda esclarecer o caráter transdisciplinar que a Ciência Política apresenta, pois não é possível em muitos casos, compreendê-la sem considerar-se, por exemplo, as interferências culturais ou religiosas em determinadas sociedades. Nesta direção, faz-se necessário que recorra-se às contribuições de outras Ciências Sociais; portanto, em sequência e de forma sucinta, abordaremos alguns elementos constitutivos, assim como, o objeto de análise principal dessas ciências. 1. As Ciências Sociais Segundo Debonis e Galvão (2004), denominam-se Ciências Sociais ao conjunto de conhecimentos que nos permitem pesquisar e estudar os comportamentos sociais, ou seja, o objeto de estudo das Ciências Sociais é o comportamento social humano. Assim, podemos dizer que “trata-se do estudo sistemático do comportamento social do ser humano em suas várias dimensões e possibilidades”. Conforme esses autores, a complexidade inerente ao estudo do comportamento social humano, as Ciências Sociais apresentam-se, além é claro da própria Ciência Política, estruturadas em áreas de concentração ou disciplinas a saber: Economia2: basicamente a economia tem por objeto de estudo principal, as atividades humanas, no que diz respeito a maneira pela qual está organizada a produção, distribuição e consumo das mercadorias. Assim, produção e distribuição de renda e políticas salariais, entre outros, são fenômenos estudados por esta ciência. Sociologia: como se sabe, trata-se da ciência que estuda as relações sociais e as formas de associação, considerando as interações que ocorrem na vida cotidiana; abrange, portanto, estudos relativos aos grupos e camadas sociais, aos processos de cooperação, competição e conflitos na sociedade. 8 Antropologia: ocupa-se do estudo e pesquisa das semelhanças e diferenças culturais entre os agrupamentos humanos, preocupa-se também com a origem e evolução das culturas. Atualmente, a maioria dos trabalhos nesta área aponta para a necessidade de compreensão da diversidade cultural existente nas sociedades industriais ou pós-industriais. São ainda objetos de estudos da Antropologia, os tipos de organização familiar, as religiões, a magia, as gangues de rua, entre outros. FIGURA 2 – Ciências Sociais Fonte: pogonici/shutterstock ID: 273985694 1.1 Origens da Ciência Política Inserida como está no campo das Ciências Sociais, a Ciência Política se desenvolveu imbricada a este campo do conhecimento. As primeiras tentativas de compreensão da vida social remontam à Antiguidade, e baseavam-se muito mais na imaginação onde diversas mitologias - sumérios gregos, hebreus, entre outros - foram criadas buscando explicar certos fenômenos sociais. Durante a Idade Média, sobretudo na Europa, a explicação e compreensão da vida social estava muito vinculada principalmente à religião, esta era que propunha as regras para a organização social de acordo com seus dogmas e princípios. Podemos afirmar, no entanto, que já na Antiguidade Oriental3 e na Antiguidade Ocidental ou Clássica, sobretudo na Grécia Antiga, encontramos as primeiras tentativas de estudo sistemático da sociedade humana e das relações de poder, aqui merecem destaque os filósofos Platão (427-347 a.C.) em sua obra República, e Aristóteles (384-322 a.C.) em seu livro Política. Ambos analisaram a sociedade em que viviam e propuseram mudanças na organização sociopolítica de seu tempo. Durante a Idade Média, como já dissemos, é a explicação religiosa da vida social que prevalecerá, todas as normas e regras estavam baseadas no princípio de uma vida sem pecado. Aqui merecem destaque os filósofos Santo Agostinho (354-430) que pregava uma iluminação onde a verdade é infundida 9 no espírito de Deus; e Santo Tomás de Aquino (1225-1274), que, recuperando o pensamento aristotélico - até então condenado pela Igreja- e adaptando-o à visão cristã, trabalha a ideia de um “ser movente original”, ou seja, Deus. Ao final da Idade Média (séculos XIV ao XVI), os alicerces da vida social serão abalados pelo movimento denominado Renascimento, que buscava explicações para a vida social baseadas na racionalidade humana, em vez de atribuí-las somente aos dogmas religiosos. Aqui merece destaque Nicolau Maquiavel (1469-1527) que em sua principal obra, O Príncipe, ao não reconhecer o caráter sagrado e, portanto, conceber a política como determinação das ações dos homens e não obra divina inaugura a Ciência Política moderna alicerce e ao mesmo tempo, alicerçada no surgimento do Estado Moderno.4 SAIBA MAIS Nicolau Maquiavel, além de filósofo, historiador, poeta e dramaturgo, foi também integrante do governo da cidade de Florença, no final do século XV, durante o governo de Lorenzo de Médici, ao qual dedicou sua principal obra: O Príncipe. FIGURA 3 – Maquiavel Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/File:Portrait_of_Niccol%C3%B2_Machiavelli_by_Santi_di_Tito.jpg Cabe ressaltar que, para o inglês Thomas Hobbes, filósofo moderno pioneiro, com sua obra Leviatã, de 1651, na articulação de uma teoria mais detalhada sobre o contrato social, em estado de natureza, “o homem é o lobo do homem” e para que se evite o conflito infindável entre os humanos5, a constituição do Estado é condição essencial. Esses dois autores, considerados os fundadores da Ciência Política moderna, assim como outros do período, Jean Bodin (1530-1596) e Jacques Bossuet6 (1627-1704), defendiam o Estado Absolutista como forma de governo ideal, porém, diferentemente destes, apontavam o laicismo e a concepção da política como resultado das relações humanas e baseada na racionalidade. Assim, foram fundamentais para o início do processo de dessacralização da política, fato de extrema importância, pois, seus desdobramentos conduziram, 10 sobretudo nos séculos XVIII e XIX, às chamadas Revoluções Burguesas, como veremos adiante. 2 A gênese do Estado Outra definição válida para o sentido maior da Ciência Política é que ela é, por excelência, a ciência que se ocupa do estudo do Estado. Neste sentido, é imperativo que compreendamos a origem, evolução e estruturação do Estado, pois, somente dessa forma será possível melhor analisar os seus vários mecanismos de funcionamento, a que este trabalho se propõe. Comecemos pela definição de um conceito. Ressalte-se, entretanto, não se tratar de tarefa fácil dada a complexidade do tema, pois, em primeiro lugar, envolve diversas áreas do conhecimento, como a Filosofia, o Direito, a História, a Sociologia, a Economia, a Geografia, dentre outras; e, em segundo lugar, por ser objeto dessa ampla gamade enfoques teórico-metodológicos, observa-se especificidades conceituais importantes. Assim, à guisa de definição conceitual, em um primeiro momento, observamos que a discussão deve se dar em torno da instituição do poder político como “regulador” das relações sociais. Segundo o jurista Dalmo de Abreu Dallari, em sua contribuição acerca deste tema, A maioria dos autores que têm estudado o poder o reconhece como necessário à vida social, embora variando enormemente as justificativas para sua existência e as considerações sobre aspectos relevantes [...] A observação do comportamento humano, em todas as épocas e lugares, demonstra que mesmo nas sociedades mais prósperas e bem ordenadas ocorrem conflitos entre indivíduos ou grupos sociais, tornando necessária a intervenção de uma vontade preponderante, para preservar a unidade ordenada em função dos fins sociais [...] (DALLARI,1998, p. 19). 11 Observe-se, não tratar-se ainda do surgimento do Estado propriamente dito, mas tão somente, reconhece-se a necessidade nas sociedades humanas, desde tempos imemoriais, de organização da vida social. FIGURA 4 – Organização social Fonte: Photobank gallery/shutterstock ID: 97561373 Considerando-se as contribuições da antropologia do século XIX, Engels, em sua obra, A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, desenvolve uma interessante discussão em torno da imbricação dos três elementos que dão título ao livro, assim, em consonância com o filósofo iluminista francês J. J. Rousseau, entre outros, observa que o surgimento da propriedade privada está na base do aparecimento do poder político centralizado, isto é, o Estado. Segundo ele, no capítulo A Gênese do Estado Ateniense, [...] a riqueza passa a ser valorizada e respeitada como bem supremo e as antigas instituições da gens são pervertidas para justificar-se a aquisição de riquezas pelo roubo e pela violência. Faltava apenas uma coisa: a instituição que não só assegurasse as novas riquezas individuais contra as tradições comunistas da constituição gentílica, que não só consagrasse a propriedade privada, antes tão pouco estimada, e fizesse dessa consagração santificadora o objetivo mais elevado da comunidade humana, mas também imprimisse o selo geral do reconhecimento da sociedade às sovas formas de aquisição da propriedade, que se desenvolviam umas sobre as outras, [...] [assim], inventou-se o Estado. (ENGELS, 1984, p. 132) 12 SAIBA MAIS As comunidades gentílicas, ou GENOS, formavam a base da organização social grega durante o chamado Período Homérico. Com o início do Período Arcaico (700-500 a.C.) as comunidades gentílicas, que apresentavam organização social horizontal baseada nas terras comunais, foram sendo extintas e, paulatinamente, deram lugar a uma concentração de terras, marcando assim, o surgimento da propriedade e desigualdade econômica, presentes, posteriormente, na pólis grega. Assim, para esta linha de pensamento em relação ao nascimento do Estado, observa-se que dois elementos são centrais: o viés classista e o aspecto econômico. Nesta direção, o autor corrobora a visão marxiana (também porque ajudou a construí-la), de que o Estado representa o instrumento político das parcelas sociais dominantes, visando a manutenção e, portanto, o domínio desta classe sobre a sociedade. Em outras palavras, o Estado é a organização política que objetiva a defesa dos interesses da classe dominante, aquela que, em cada época, em função de concentrar a maior parte da riqueza produzida, detém o controle do Estado. O caráter economicista desta definição, que coloca todo o peso da análise nas relações de produção e nas contradições entre as classes sociais7, foi, e é, bastante contestada, exatamente por seu determinismo econômico. Um dos maiores expoentes na crítica a esta visão foi, sem dúvida, o sociólogo alemão, Max Weber, que segundo Bianchi, [...] interrogou-se a respeito do significado de uma “associação” política (ein politischer Verband) e do próprio Estado (Staat). Uma definição não idealizada dessas realidades sociais implicava, para o sociólogo alemão, a recusa de conceitos propriamente normativos. Descartando assim toda definição que remetesse aos fins do Estado, procurou uma definição sociológica nos meios que seriam próprios a este [...] (BIANCHI, 2014, p. 84) Como se pode concluir, Weber não procura focar sua análise em nenhum tipo de determinismo. Não se preocupa em responder sobre a finalidade do 13 Estado; desta forma, diferentemente da visão marxiana, o Estado não é tratado como um elemento objetivo completamente separado da vida. Enfim, Weber, que defende a ação racional individual, considera que o Estado “consiste em relações de vontade de uma variedade de homens. Formam o substrato desse Estado homens que mandam e homens que obedecem” (JELLINEK, 2000, p. 190). Para que se estabeleça e seja real, faz-se necessário que o Estado esteja fundado em uma espécie de pacto de legitimidade8, isto é, a legitimidade da existência do Estado é que faz com que os indivíduos a ele se submetam. No limite, “o Estado é aquela comunidade humana que, dentro de determinado território – este, o ‘território’, faz parte de suas características – reclama para si (com êxito) o monopólio da coação física legítima” (WEBER, 1982, p. 98). FIGURA 5 – Concepção de Estado Fonte: PowerUp/shutterstock ID: 363500030 Compreendida como associação política, a concepção de Estado em Weber difere diametralmente da de Marx. O enfoque principal não se relaciona com as relações de produção, e os antagonismos de classe. Weber era um teórico da ação, portanto, em oposição a Marx, não via a dominação como inconsciente e resultante das contradições de classe. Em sua visão, a dominação é sempre presente, o que importa é a compreensão de sua aceitação e legitimidade.9 A partir da contribuição de Norberto Bobbio (2004), que, de certa forma estabelece uma espécie de “meio-termo”, podemos compreender o Estado como a representação sistematizada dos interesses individuais, portanto, o poder presente nas instituições políticas visa promover a própria dinâmica, em que o poder político apresenta forma coativa e se impõe sob a vontade de seu detentor (classe dominante), e sob o argumento da legitimidade. Ao utilizarmo-nos das contribuições de dois dos principais representantes das Ciências Sociais, Marx e Weber, para a definição de um conceito a partir do qual possamos melhor localizar a discussão acerca do Estado, percebe-se claramente que embora em perspectivas diferentes, as duas linhas de análise convergem em pelo menos um ponto, a saber: o Estado, a partir do momento 14 em que definitivamente se consolida é, na prática, o mecanismo fundamental a permitir a dominação, organização e estruturação de determinada sociedade. 3 O Estado Moderno Em termos práticos, o objetivo maior deste trabalho, conforme já se salientou, é a compreensão dos sistemas políticos em vigência no mundo contemporâneo, suas especificidades e mecanismos de funcionamento, assim, não será objetivo nesta unidade, a realização de uma longa e aprofundada discussão acerca do surgimento do chamado Estado-moderno, portanto, nos limitaremos tão somente, a estabelecer os principais elementos constitutivos do processo de formação desta instituição e suas características gerais. O Estado romano, que em seu auge possuía um território de mais de cinco milhões de quilômetros quadrados e governava cerca de oitenta milhões de pessoas, apresentava uma característicapolítica fundamental: a centralização do poder político. Ao lado das contradições sociais referentes ao estatuto da escravidão, à marginalização dos povos considerados bárbaros e da crise econômica generalizada, nos dois últimos séculos de sua existência, foram exatamente as dificuldades em manter a centralização política que levaram ao progressivo esfacelamento do “mundo romano”. Como se sabe a partir deste evento a Europa viveu um processo de fragmentação política que vai caracterizar a chamada Idade Média (476-1453). Apesar de algumas ações que visavam o restabelecimento da centralização política, como o caso do Império Carolíngio (732-987), predominaram as relações políticas de fidelidade, representadas, principalmente pela suserania e vassalagem. Do ponto de vista econômico, o feudo era a unidade básica de produção da subsistência e aos servos, que formavam a imensa maioria, eram reservadas as atividades laborativas. A partir do século XI, com o início das Cruzadas e nos séculos posteriores, com o restabelecimento do comércio inter-regional entre o ocidente e o oriente, diversas transformações, lentamente, foram conduzindo a importantes alterações, não só no modo de vida, mas também na constituição da própria sociedade medieval. Portanto, esse contexto sugere um processo de transição em que, 15 As deficiências da sociedade política medieval determinaram as características fundamentais do Estado Moderno. [...] Os senhores feudais, já não toleravam as exigências de monarcas aventureiros e de circunstância, que impunham uma tributação indiscriminada e mantinham um estado de guerra constante, que só causavam prejuízo à vida econômica e social. Isso tudo foi despertando a consciência para a busca da unidade, que afinal se concretizaria com a afirmação de um poder soberano, no sentido de supremo, reconhecido como o mais alto de todos dentro de uma precisa delimitação territorial. Os tratados de paz de Westfália10 tiveram o caráter de documentação da existência de um novo tipo de Estado, com a característica básica de unidade territorial dotada de um poder soberano. Era já o Estado Moderno [...] (DALLARI, 1998, p. 29). FIGURA 6 – Tratados de Paz de Westfália Mapa 1: Tratados de Paz de Westfália de 1648. Fonte: Segundo a literatura a respeito desse momento crucial para o desenvolvimento da civilização ocidental, desde os liberais até os marxistas, para que tais mudanças fossem possíveis, a lenta emergência de uma nova força social, no contexto da crise da chamada Baixa Idade Média11, foi fundamental. Trata-se da lenta constituição da chamada “burguesia”. CURIOSIDADE A partir do desenvolvimento do processo histórico conhecimento como Cruzadas (séculos XI ao XIII), observa-se na Europa, a lenta reativação do comércio entre o Oriente e o Ocidente. Nas rotas comerciais que foram se desenvolvendo, verifica-se o surgimento de cidades fortificadas chamadas “burgos”. Nestas cidades homens livres que se dedicavam às atividades 16 comerciais e bancárias e, portanto, livres da lógica estamental medieval, tornam-se, paulatinamente, “indivíduos embriões” da futura classe burguesa. FIGURA 7 – Cidade de Estrasburgo, entre França e Alemanha Fonte: Netfalls Remy Musser/shutterstock ID: 10450654 FIGURA 8 – Estrasburgo em 1580 Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Wolf-Dietrich- Klebeband_St%C3%A4dtebilder_G_096_III.jpg Inicialmente a burguesia encontra no seio do Estado Absolutista, as condições mínimas para o desenvolvimento de seus interesses. A centralização do poder representada pelo monarca absoluto garantia o estabelecimento de uma relativa paz político-territorial e, além disso, diferentemente da fragmentação medieval, a nova ordem nascente, necessitava de estabelecimento de limites territoriais, sistema de pesos e medidas, algum tipo de monetarização da economia... Todas essas necessidades iam de encontro aos anseios da nova classe burguesa. O monopólio do poder na figura do soberano permitiu o desenvolvimento de uma política econômica baseada no rígido controle, por parte do Estado, dos mais amplos aspectos da vida social, econômica e política. Assim, embora detivesse uma expressiva importância econômica a classe burguesa, via-se limitada em seus propósitos pelo mercantilismo e, ao mesmo tempo era achacada pelos altos tributos cobrados pelo Estado Absolutista. Além disso, em termos sociais, a lógica estamental medieval, predominante ainda na sociedade europeia deste contexto, criava empecilhos para uma vigorosa mobilidade social. Esse contexto conduziu a uma inevitável contradição socioeconômica que, em torno do século XVIII já seria insustentável. Em análise bastante pontual, Norbert Elias nos ensina que, 17 O governo monopolista, fundamentado nos monopólios da tributação e da violência física, atingira assim, nesse estágio particular, como monopólio pessoal de um único indivíduo, sua forma consumada. Era protegido por uma organização de vigilância muito eficiente. O rei latifundiário, que distribuía terras ou dízimos, tomara-se O rei endinheirado, que distribuía salários, e este fato dava à centralização um poder e uma solidez nunca alcançados antes. O poder das forças centrífugas havia sido finalmente quebrado. Todos os possíveis rivais [inclusive a burguesia] do governante monopolista viram-se reduzidos a uma dependência institucionalmente forte de sua pessoa. Não mais em livre competição, mas apenas numa competição controlada pelo monopólio, apenas um segmento da nobreza, o segmento cortesão, concorria pelas oportunidades dispensadas pelo governante monopolista, e ela vivia ao mesmo tempo sob a constante pressão de um exército de reserva formado pela aristocracia do interior do país e por elementos em ascensão da burguesia. A corte era a forma organizacional dessa competição restrita [...] (1993, p. 170). QUADRO SINÓPTICO 1 – Monopólio político e econômico no contexto do Absolutismo Fonte: Cabe ressaltar que essas limitações ao pleno desenvolvimento da burguesia em suas perspectivas, conferiram a esta classe, na transição do Estado Feudal para o Estado Moderno, o seu teor revolucionário. Nas palavras de Marx, “vemos, pois, que a própria burguesia moderna é o produto de um longo processo de desenvolvimento, de uma série de revoluções no modo de 18 produção e de troca” (2007, p. 40-50). Como sabemos, ele é considerado o crítico maior do sistema socioeconômico capitalista, mas, mesmo assim, não deixou de reconhecer a importância da burguesia neste processo de transição quando afirma que “a burguesia só pode existir com a condição de revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, por conseguinte, as relações de produção e, com isso, todas as relações sociais” (2007, p. 40-50). Esta força revolucionária da classe burguesa torna-se mais factível quando observamos o conjunto das chamadas Revoluções Burguesas, processos políticos que tem início ainda no final do século XVII, com a Revolução Inglesa, composta de diversas fases e que culmina com a consolidação da Monarquia Constitucional, a partir da Revolução Gloriosa de 1688; a Independência dos Estados Unidos que surge da reação contra a tentativa de maior rigor de controle colonial por parte da Inglaterra, a partir de 1776 e a Revolução Francesa que, sem dúvida, representa o processo de maior repercussão em todo o mundo. Iniciada em 1789, consolida seu caráter burguês durante a chamada Era Napoleônica (1799-1815). QUADRO SINÓPTICO Principais Revoluções Burguesas (EsteQuadro será convertido em um infográfico) Ao longo do século XIX, os ideais iluministas/liberais, representarão o verdadeiro combustível de diversos processos revolucionários por toda a Europa. Assim ocorrerão as jornadas revolucionárias de 1820, 1830 e 1848, durante a chamada Primavera dos povos. Na segunda metade do século XIX, as chamadas Unificações Tardias de Alemanha e Itália, sob o comando de setores da própria nobreza (Bismarck e Reino Sardo Piemontês, respectivamente), visto que as respectivas burguesias nacionais não estavam suficientemente fortalecidas para conduzir os processos, consolidam, através de suas revoluções liberais, o projeto de Estado Burguês. Cabe destacar, por fim, que a força política dos movimentos revolucionários pôde ser observada também na disseminação dos ideais liberais/burgueses para fora do continente europeu. Além da Independência dos Estados Unidos, em 1776, a América Latina, como um todo, principalmente nas primeiras décadas do século XIX, vivenciou diversos processos de independência alicerçados no “novo” ideário burguês. Como se pode compreender, embora o Estado moderno tenha suas origens ainda no período 19 absolutista europeu12, sua configuração burguesa somente ganhará as feições finais a partir do triunfo das Revoluções Liberais ao longo do século XIX. Ideais como nacionalismo, como nos ensina Hobsbawm e Ranger (1984), o nascimento da “religião cívica”, ou seja, a legitimação do Estado como uma espécie de novo dogma que comporá o novo quadro da realidade político organizacional do nascente Estado Burguês. FIGURA 9 – Burguesia Francesa medieval Fonte: Marzolino/shutterstock ID: 88286158 Para Benedict Anderson (1993), em sua obra Comunidades Imaginadas, ao longo do século XIX, em função das novas demandas por matérias-primas, fontes energéticas e mercados consumidores - derivadas dos desdobramentos da Revolução Industrial em andamento-, a necessidade de delimitação territorial ganhou enorme dimensão. Assim, o “novo” Estado deveria, em primeiro lugar, firmar-se sobre uma base territorial, diferentemente do que ocorria nos chamados Reinos Dinásticos, quando nos coloca que, Pode ser difícil imaginar agora enfaticamente em um mundo onde o reino dinástico apareceu para a maioria dos homens como o único sistema "político" imaginável [...] Em alguns aspectos fundamentais, a monarquia "formal" se opõe a todas as concepções de [Estado] moderno. O reino organiza em torno de um centro elevado. Deriva da legitimidade da divindade, e não de populações [...] Na concepção moderna, a soberania do Estado funciona como completo, pleno e uniformemente em cada centímetro quadrado legalmente demarcado de território (op. cit., p. 39) Percebe-se, portanto, que todo o processo acerca da constituição do Estado Moderno, até agora desenvolvido, se assentou em um conjunto de 20 transformações, políticas, econômicas e sócioculturais que, aos poucos, permitiram a configuração e legitimidade de três elementos (cf. GUIMARÃES, 2012) fundamentais que o definem: Território: é a base espacial do poder do Estado onde este exerce o poder coercitivo estatal sobre os indivíduos humanos, sendo materialmente composto pela terra firme, incluindo o subsolo e as águas internas (rios, lagos e mares internos), pelo mar territorial, pela plataforma continental e pelo espaço aéreo; Nação: (entidade moral) é um grupo de indivíduos que se sentem unidos pela origem comum, pelos interesses comuns, e principalmente, por ideias e princípios comuns [e assim, legitimam, a partir do princípio da autodeterminação dos povos, a existência do Estado]. É uma comunidade de consciência, unidas por um sentimento complexo, indefinível e poderosíssimo: o nacionalismo/patriotismo. Governo: é o conjunto das funções necessárias à manutenção da ordem jurídica e da administração pública. A palavra governo tem dois sentidos; coletivo e singular. O primeiro, como conjunto de órgãos que orientam a vida política do Estado. O segundo, como poder executivo, “órgão que exerce a função mais ativa na direção dos negócios públicos” (BOBBIO, 2012). Assim, o Estado moderno pode ser definido como o conjunto das instituições que, em nome do povo/nação e da soberania nacional que o legitima, detém o poder para organizar e regulamentar o funcionamento de determinada sociedade em um território delimitado. Como vimos em Weber, o Estado como organização que possui o monopólio da violência legítima dispõe de instituições que lhe conferem autoridade e poder assim como funções de governança. Já na propositura de Marx, é justamente por essas características que o Estado moderno detém o poder necessário para a manutenção dos interesses da classe dominante. 3.1 Organização Política do Estado Moderno Para que se estruture e exerça suas funções e prerrogativas, o Estado Moderno se apresenta na forma laica - livre da influência religiosa - e constitucional, isto é, o Estado torna-se o “ente soberano”, não mais na perspectiva do poder divino dos reis, mas sim em função da soberania popular e do estabelecimento do conjunto de regras maiores da nação, isto é, a Carta 21 Magna ou Constituição do país. Em geral, é através da constituição que se estabelecem os elementos e instâncias para o exercício do poder. Sobre este tema, vale lembrar a importância de compreendê-lo como resultado do longo processo de desenvolvimento das ideias de pensadores como o iluminista francês Montesquieu (1689 – 1755) que em sua principal obra, O Espírito das Leis já demonstrava, como crítica a organização política absolutista, grande preocupação em se definirem limites e equilíbrio ao poder. Sua proposta de divisão tripartite (Executivo, Legislativo e Judiciário) está presente no próprio cerne do Estado moderno. A partir deste princípio e de valores como o republicanismo e a democracia, ao longo do tempo foram se definindo diversos conceitos e elementos que constituem as formas e os sistemas de governo. FIGURA 10 – Executivo, Legislativo e Judiciário Fonte: Ilya Zlatyev/shutterstock ID: 10084354 A seguir, de forma sucinta, apresentaremos os principais pares de oposição acerca da estruturação e organização do poder político do Estado presentes na sociedade contemporânea: 4.1.1 Forma de Estado - federativo ou unitário No Estado Federativo, adotado em países como o Brasil e os Estados Unidos, cada unidade da federação (Estados, províncias, departamentos) tem peso de ente federativo e dispõe de certa autonomia, assim, nessa forma, além da Constituição Federal observa-se uma sua Constituição local (no caso do Brasil, estadual ou municipal), o que confere certo grau de autonomia a essas unidades da federação. Já no caso do Estado Unitário ou Centralizado, observa-se a validade da lei (única) para todo o Estado. Este modelo, evidentemente, somente pode ser viável em países de territorialidade exígua, como é o caso da Dinamarca, e Colômbia, por exemplo. 22 SAIBA MAIS Todos já ouvimos dizer que nos Estados Unidos existem leis acerca de temas polêmicos, como a pena de morte, que são vigentes em algumas unidades federativas e em outras não. A razão para tal situação relaciona-se, exatamente com a forma de Estado Federativa, que ao garantir maior autonomia política às unidades federativas, permite que leis específicas vigorem em determinados estados em detrimento de outros. 4.1.2 Forma de governo- monarquia ou república Em uma monarquia, observa-se o princípio da tradição como elemento central a legitimar a organização do Estado, namaioria dos casos, o chefe de Estado é o monarca e a efetiva condução do governo fica a cargo do líder do parlamento, em geral, denominado Primeiro Ministro. Na forma republicana, a função de guardião do país pertence ao Estado, organização pública, que tem seu poder legitimado na soberania popular. Para que o Estado exerça esta função é necessário que alguém assuma sua direção. Em geral, neste caso, temos a figura política do presidente da república, como é o caso de países como Argentina e Uruguai. 4.1.3 Sistema de governo - parlamentarista ou presidencialista O sistema de governo parlamentarista organiza-se tendo por base o princípio da separação entre a chefia de Estado (Presidente ou Monarca) e chefia de governo (primeiro-ministro ou premier). Considerando-se a ideia de soberania popular, a população elege seus representantes (deputados) e os partidos que obtiverem a maioria irão constituir o governo e indicar o primeiro ministro. Já no presidencialismo, não existe a separação das duas esferas. Assim, a chefia de Estado e de Governo são exercidas pela mesma pessoa, o presidente13, que é escolhido diretamente pelo eleitorado, através do sufrágio universal. 4.1.4 Sistemas partidários - bipartidarismo ou pluripartidarismo Embora exista uma complexidade de formas organizacionais de processos eleitorais, cabe lembrar que a maneira pela qual efetivamente 23 ocorrerá a representação, isto é, como os representantes eleitos para o exercício do Poder Legislativo se organizarão para estabelecer a governabilidade do Estado, tem fundamental importância. Nesta direção, os dois modelos ou formas, principais são o bipartidarismo e o pluripartidarismo. No caso brasileiro, como estabelece o Código Eleitoral, em seu artigo segundo, temos a adoção do pluripartidarismo considerado, do ponto de vista ideal, aquele que propicia o mais amplo exercício do direito democrático. Retomaremos a discussão acerca destes sistemas ao longo do desenvolvimento do capítulo 9, quando aprofundaremos o caso brasileiro. Curiosidade No Brasil, temos a adoção do presidencialismo pluripartidário, e o sistema proporcional de eleição, o que possibilita, em termos ideais, o exercício pleno da democracia. Porém, segundo alguns analistas (entre eles, Mainwaring), é justamente essa formatação política que mais contribui para as negociatas, em torno de ministérios, cargos de alto escalão, em geral e “mensalões” em busca de apoio político e governabilidade. Assim, como discutiremos capítulo 9, para muitos especialistas a Reforma Política é mais que urgente em nosso país. FIGURA 11 – Pluripartidarismo Fonte: julie deshaies/shutterstock ID: 372211900 4.1.5 Regimes políticos - democrático ou totalitário Embora existam diversas variantes, vejamos os aspectos principais das duas mais diametralmente opostas: no mundo atual, a democracia tem sido um dos regimes mais exigidos pelo povo. Regime Democrático onde vigora o princípio de que o governo deve ser exercido em nome da vontade popular. Este sistema presente na maior parte das modernas democracias ocorre em sistemas de governos presidencialistas ou parlamentaristas e sob a forma de governo republicano ou monárquico constitucional. O Regime Totalitário se estabelece quando observa-se que o Estado passa a ser comandado em nome de interesses de uma classe social, 24 partido único ou mesmo uma única pessoa. Em geral, a perseguição de opositores e cerceamentos a liberdades democráticas são recorrentes. (trecho modificado). Em geral, observa-se também, o culto ao dirigente máximo (personalismo), e a propaganda abrangente divulgada através dos meios de comunicação controlados pelo Estado, fortemente marcada pelo discurso nacionalista/militarista. 4 O Sufrágio Universal De origem latina (suffragari), o vocábulo sufrágio pode ser traduzido como ‘apoio ou suporte’. Nesse caso específico, ‘apoio pelo voto’. O sufrágio universal representa a forma de participação dos indivíduos na vida pública, pois segundo o conceito maior expresso na ideia democrática, o poder emana do povo, e o sufrágio é a maneira pela qual o povo exerce o poder. Cabe ressaltar que a definição e aceitação atual desse conceito representou um longo processo histórico marcado por importantes debates políticos e intensos conflitos sociais/classistas. Nas páginas a seguir busca-se, muito mais do que simplesmente definir o conceito, compreender minimamente, esses eventos rumo à conquista do sufrágio universal. No século XIX, como vimos, as várias conquistas na área do direito político marcaram profundamente o período. Em um contexto de grandes mudanças, devido aos desdobramentos da Revolução Industrial e das Revoluções liberal/burguesas, sobretudo a partir de 1848 (Primavera dos Povos), uma grande questão se coloca de forma mais evidente: qual era a profundidade das mudanças? Isto é, qual o grau de compromisso dos novos governos (burgueses) que se formavam, com o estabelecimento de uma nova ordem social? Dentre os vários elementos que permeavam esta discussão, talvez o mais relevante deles seja o real estabelecimento de uma das mais importantes bandeiras da burguesia em sua luta contra os governos absolutistas e pela abolição de privilégios feudais, como a desigualdade por origem. Nas revoluções do século XVIII, alicerçadas em ideias liberal/iluministas de liberdade e igualdade, predominaram as lutas pelos direitos civis14, assim, o conceito revolucionário de igualdade jurídica, deveria, para muitos, nortear o desenvolvimento de uma nova forma de participação nos processos políticos. 25 Curiosidade Uma das primeiras vozes a contestar a sociedade capitalista e propor princípios socialistas, foi o inglês Gerrard Winstanley (1609-1652), comerciante falido, responsabilizava a “arte fraudulenta de comprar e vender” pelas mazelas sociais. Escreveu um livro no qual associava a existência da propriedade privada com o não cumprimento de um dos dez mandamentos “Não Roubarás”. FIGURA 12 – Direitos Políticos Fonte: Nowik Sylwia/shutterstock ID: 302974709 Nesse contexto, já sob a influência dos movimentos de crítica ao “novo regime” burguês, representado pelos ideólogos da construção de uma sociedade assentada também na igualdade econômica e social que, no conjunto, vão desenvolver a proposta socialista de sociedade, que a luta pelos direitos políticos vão se intensificar e terão com desdobramento o surgimento dos chamados direitos de segunda geração, É facilmente perceptível que os chamados direitos políticos, que foram sendo lentamente conquistados nos séculos XIX e XX, a despeito de terem uma configuração muito distinta das liberdades públicas [direitos civis], podem também ser inseridos na ideia de direitos de liberdade. [...] Liberdade, nesse sentido, é sinônimo de participação na tomada de decisões, o que os direitos políticos, ainda que indiretamente, propiciam... Esses novos direitos, chamados de direitos sociais e econômicos, e que são considerados como a segunda geração dos direitos fundamentais, surgem, contudo, não só em decorrência de uma maior participação dos cidadãos nas decisões políticas, mas, sobretudo, por causa da pressão dos movimentos sociais (e socialistas) [...] Não é o caso aqui de narrar as lutas socialistas do 26 século XIX, de resto conhecidas por todos, e que foram em grande parte responsáveis pela consagração dos direitos sociais e econômicos... Importante aqui é ressaltar que, ao contrário do que afirmava Schmitt, os direitos sociais não podem ser consideradoscomo direitos "socialistas", pois são, na verdade, uma forma de garantir a estabilidade e a manutenção do capitalismo, se não liberal, pelo menos daquele de cunho social... (SILVA, 2005 p. 547- 549 grifos nossos). A articulação entre o movimento socialista e a conquista dos direitos fundamentais explicitadas pelo artigo de Virgílio Afonso da Silva pode ser mais bem compreendida quando observamos o desenvolvimento do movimento operário na Inglaterra do século XIX. O desenvolvimento de novas técnicas produtivas, possíveis graças à Revolução Industrial, permitiu a expansão e generalização da mecanização da produção. Enfim a humanidade, através da produção cada vez mais eficaz de gêneros industriais alcançaria a emancipação, essa era a expectativa dos mais otimistas. Porém, sob o “novo regime burguês”, o que se viu foi o aprofundamento da exploração aos trabalhadores. Uma verdadeira superexploração tem início. As condições de vida e trabalho da minoria sofrem melhora sensível, porém, as horas excessivas de trabalho (chegava-se a trabalhar 18 horas diárias), as condições subumanas de moradia, as condições insalubres das fábricas, a exploração do trabalho infantil e feminino, entre tantos outros problemas, colocam a necessidade urgente de melhora das condições de vida da maioria, ou seja, dos trabalhadores.15 Por volta de 1813, operários mais instruídos começaram a propor um novo método de luta, pois destruir as máquinas não eliminava a exploração, visto que, em semanas estavam novamente aptas ao trabalho, além do que, este tipo de ação acabava por agravar a situação dos trabalhadores na medida em que gerava desemprego, pois provocava interrupções no processo produtivo e eliminava, através da lei, suas lideranças mais importantes. 27 Este novo método de luta partia do princípio de que a mais eficaz arma dos trabalhadores era ferir a “espinha dorsal” do processo de produção, como se sabe, o lucro. Assim, em 1815 surge a mais importante forma de pressão dos trabalhadores: a greve. Podemos considerar este momento como o início do moderno sindicalismo. FIGURA 13 – Greve de servidores públicos no Rio de Janeiro Fonte: CP DC Press/shutterstock ID: 452793016 As lutas, a partir daí se intensificam e extrapolam a esfera de reivindicações meramente econômicas. Em 1832, sob pressão popular, o Parlamento concedeu o direito de voto às camadas médias urbanas e aos pequenos proprietários, no entanto aos trabalhadores, não foi estendido este direito. Assim, em 1838, foi criada a Associação dos Operários, organização que reivindicava direitos políticos aos trabalhadores. O documento inaugural da Associação dos Operários, a Carta ao povo, assinado por mais de 1 milhão de pessoas, deu origem ao chamado cartismo, que apresentava como principais reivindicações: sufrágio universal masculino; representação igualitária para todos os distritos eleitorais; direito de trabalhadores candidatarem-se ao poder legislativo; eleições anuais para o parlamento. Entre 1838 e 1848, o cartismo teve grande força na vida política inglesa, porém foi sufocado pela repressão governamental. Somente em 1865 é que algumas de suas propostas foram incorporadas à legislação, como o direito de voto aos trabalhadores urbanos e rurais. (cf. CUNHA; HOLANDA; CAIRO [s.d]). Curiosidade: a Carta FIGURA 14 – Fonte: vishug.org. 28 Segundo González (1989), em outros países centrais do Capitalismo Industrial em formação, como França e Alemanha, a situação não era muito diferente, sobretudo na França, o século XIX foi marcado por grande instabilidade política, o que resultou no ano de 1871, na primeira grande vitória, embora efêmera, dos ideais socialistas. A capacidade crescente de organização dos trabalhadores foi demonstrada quando trabalhadores parisienses tomaram o poder e instituíram um governo popular que durou dois meses: a Comuna de Paris. Em 1870, iniciou-se a guerra entre a França e a Prússia. Com a derrota e consequente rendição do imperador francês, Napoleão III ao exército da Prússia, Paris ficou cercada pelas tropas inimigas. Debaixo de um clima tenso foi constituído um governo provisório e na eleição para a Assembleia Constituinte, em abril de 1871, os monarquistas saíram vitoriosos. Toda essa situação acabou por aprofundar as tensões políticas. Já em 18 de março de 1871 o proletariado, incluindo mulheres e crianças, reagiu à tentativa do governo de desarmar a Guarda Nacional, que na prática era o povo armado (300 a 350 mil homens, desde que o alistamento geral fora convocado em 1870, após as derrotas francesas na guerra contra a Prússia). Tinha início a Comuna de Paris, que duraria até maio. Segundo Chassin (1992), a proclamação do Comitê Central da Guarda Nacional de 18 de março era clara quanto ao caráter de classe e os objetivos do poder que nascia: Os proletários da capital, em meio aos desfalecimentos e as traições das classes governantes, compreenderam que para eles tinha chegado a hora de salvar a situação tomando em mãos a direção dos negócios públicos ... compreenderam que era seu dever imperioso e seu direito absoluto tomar em mãos os seus destinos e assegurar- lhes o triunfo conquistando o poder. De acordo com o mesmo autor, as principais ações da Comuna foram: Em 26 de março foi eleita a Comuna; 29 A Comuna aboliu o recrutamento e o exército permanente e proclamou a Guarda Nacional, à qual deviam pertencer todos os cidadãos capazes de pegar em armas; Isentou todos os pagamentos de rendas de casa de Outubro de 1870 até Abril, pôs em conta para o prazo de pagamento seguinte as quantias de arrendamento já pagas e suspendeu todas as vendas de penhores no montepio municipal; Os estrangeiros eleitos para a Comuna foram confirmados nas suas funções, confirmando o caráter internacionalista do movimento; Foi decidido que o vencimento mais elevado de um empregado da Comuna, portanto, dos seus próprios membros também, não poderia exceder 6000 francos; Foi decretada a separação da Igreja e do Estado e a abolição de todos os pagamentos do Estado para fins religiosos; Os bens da Igreja foram confiscados e proibiu-se nas escolas, todos os símbolos religiosos, imagens, dogmas, orações; A guilhotina, símbolo maior do poder burguês foi queimada publicamente; Foram derrubados os símbolos referentes ao poder burguês, sobretudo, os referentes a Napoleão; Determinou-se um levantamento estatístico das fábricas paralisadas pelos fabricantes e elaborou-se planos para o funcionamento destas fábricas com operários nelas ocupados até então, através da organização de cooperativas; Ordenou-se a supressão das casas de penhores, que eram uma exploração privada dos operários; Nas eleições de 26 de março, a abstenção nos bairros burgueses foi superior a 60%, o que demonstrava o caráter realmente popular da Comuna; Os membros eleitos formavam um único coletivo sem presidente (colegiado) e eram revogáveis a qualquer momento. Organizava-se a Comuna em nove comissões (militar, trabalho, ensino, etc), de cada uma saía um delegado que formavam uma comissão executiva. Ao contrário do Estado centralizado, como é o Estado burguês, repressivo e voltado para o controle social, a Comuna era, como Marx observou, uma forma totalmente expansiva, que permitia a liberação das energias e criatividade da sociedade. 30 Conforme González (1989), apesar do caráter socialista e revolucionário das medidas da Comuna, ela não se consolidou. A burguesia francesa, desde o primeiro momento,ocupou-se em preparar-se para reagir e esmagar a experiência revolucionária. A alta burguesia, com o alto clero, insatisfeitos com a Comuna, através de suas forças policiais e militares mais bem organizadas e armadas e com apoio, veja só, de forças prussianas (alemãs), iniciaram a “contrarrevolução”. Em 20 de maio, após mais de um mês de confrontos e bombardeios à cidade, cerca de 130 mil soldados de Versalhes começam a entrar em Paris. Em 28 de maio caía a última barricada dos revolucionários. ACONTECEU A repressão à Comuna FIGURA 15 – Fonte: FIGURA 16 – Fonte: Mesmo para os padrões de violência atuais, os números impressionam: - 4 mil comuneiros morreram na batalha; mais de 30 mil foram fuzilados em Paris e cerca de 1.900 em La Roquette; -36.309 foram presos, destes, 93 condenados à morte; -251 condenações a trabalhos forçados; -1.169 deportações em fortificações; -3.417 deportações simples; -1.247 reclusões e; -3.113 penas de prisão. Fonte: DEBONIS, 2004 31 A busca do controle do movimento cartista, assim como a sangrenta repressão aos comuneiros em Paris, demonstram claramente que a burguesia, apesar do discurso libertário e da defesa da igualdade, não estava disposta em abrir mão do poder político, assim observa-se uma incoerência em sua conduta. Na verdade, essa posição em relação a evitar maior participação popular, através do direito de representação, no “novo regime burguês”, não era novidade; A chegada da alta burguesia ao poder estabeleceu a plena igualdade fiscal para todas as classes, mas a igualdade civil e social ficou restrita ao novo grupo dominante. Além das desigualdades na distribuição de renda, havia o fato de as camadas mais baixas da sociedade não terem acesso aos órgãos de decisão política, já que o voto censitário impedia sua participação (PAZZINATO, 2002, p.129). A confirmação desta “limitação democrática”, na sequência de eventos da revolução, pode ser identificada na fase mais conturbada da Revolução Francesa, a Convenção Nacional (1792-1794/95), pois, durante a chamada República Jacobina (1793), os princípios estabelecidos atendiam aos interesses da população, mas, conforme afirma o historiador Eric Hobsbawm (2015), “depois de 1794, ficaria claro para os moderados [sobretudo os girondinos] que o regime jacobino tinha levado a revolução longe demais para os objetivos e comodidades burgueses [...]”, pois a Constituição de 1792 garantia ao povo seus direitos e o poder de decisão, pregava uma ampla liberdade política e o sufrágio universal aos homens maiores de 21 anos. Essa Carta, inspirada nas ideias de Rousseau, era uma das mais democráticas da história até então. Entretanto, em nome da defesa de seus interesses, negando a própria ideia de Direitos do Homem e do Cidadão e contrários a extensão de direitos civis e políticos ao conjunto da população, os girondinos retomaram o poder através de Reação Termidoriana de 1795. Tais eventos se repetiram ao longo de todo o século XIX e parte do século XX. Qual seria a razão? A esta indagação, para início de resolução, deve-se levar em conta que no modelo eleitoral da nascente sociedade burguesa o direito a “votar e ser 32 votado”, era parametrado por diversas restrições. Segundo Paes (2013), as mais comuns relacionavam-se à exigência de certo rendimento ou propriedade, portanto, um sufrágio censitário. Havia ainda outras modalidades que, na prática, impediam a participação política da maior parte da população, como, por exemplo, a exigência da capacidade de ler ou escrever, era o chamado sufrágio capacitário, ou ainda formas de exclusão baseadas em gênero, profissão e etnia. FIGURA 17 – Exclusão pelo voto Fonte: nullplus/shutterstock ID: 551328904 Pode-se perceber então que o ideal democrático, na plenitude do termo “governo do povo”, nunca esteve entre as prioridades burguesas, mesmo assim, as lutas operárias, os movimentos libertários e a pressão popular, foram ao longo do século XIX16, impondo a ampliação da participação eleitoral e o sufrágio universal foi sendo instaurado, paulatinamente, nas democracias europeias e, posteriormente, no mundo ocidental. Por outro lado, a própria burguesia se via diante de uma grande contradição, pois os próprios princípios defendidos por ela, isto é, “a liberdade individual e a igualdade legal de todos os indivíduos”, exigiam um sistema representativo mais abrangente, como nos aponta Matos, Esse avanço dos governos representativos na maior parte da Europa e na América do Norte (Estados Unidos) deveu-se, portanto, à forma de hegemonia da burguesia na sociedade ocidental; pois, ao contrário da aristocracia feudal ou do monarca absoluto, a burguesia necessitava angariar o apoio das massas à medida em que seu poder não se fundava em instituições que poderiam, como coloca o autor, "salvaguardá-la" do voto; ao contrário da anteriormente citada aristocracia feudal, cujo poder era baseado em uma rígida hierarquia estamental. O próprio ideário burguês (embasado na 33 doutrina liberal) tornava essa salvaguarda impraticável, pois defendia a liberdade individual e a igualdade legal de todos os indivíduos e, portanto, era incompatível com o total afastamento das massas do processo político (1999, p. 44) (grifos nossos) Nesta direção, a partir da segunda metade do século XIX, essa contradição tornou-se cada vez mais evidente e a burguesia liberal, focada nas relações de mercado, viu-se obrigada, ante o temor de insurreições das massas que a alijasse do poder, a ceder em suas pretensões “monocráticas” rumo à construção de mecanismos que possibilitassem certa estabilidade e consequente continuidade de sua supremacia no comando do Estado. O elemento que a legitimou nessas condições: o Sufrágio Universal. Por paradoxal que pareça, a adoção do Sufrágio Universal masculino, longe de ameaçar a burguesia em seu propósito de manter-se como classe dominante, possibilitou, ao atender a anseios tão arduamente defendidos pelos movimentos sociais, um arranjo político que permitiu a sua legitimação enquanto classe dirigente. Segundo Schumpeter, um dos mais importantes economistas do século XX, este arranjo democrático permitiu criar um método, “acordo institucional, para se chegar a decisões políticas em que os indivíduos adquirem o poder de decisão através de uma luta competitiva pelos votos da população” (1984, p. 336). Portanto, na prática, segundo Vitullo & Scavo (2013), “a democracia [e o mecanismo do sufrágio universal] fica reduzida a uma simples técnica de autorreprodução das relações de poder e de separação entre representantes e representados via mecanismos de representação e assim, segundo os mesmos autores, isto dá lugar a uma teoria democrática profundamente pautada pelas noções de governabilidade e estabilidade, em oposição a qualquer proposta que venha a desafiar o status quo”. Portanto, pode-se observar que a própria concepção de democracia, desta forma modificada, demonstra, na visão dos autores, “um claro caráter elitista, que transforma o conceito originário de democracia em uma técnica constituída por normas que visam garantir a eleição rotativa das lideranças políticas”. 34 Nesta mesma direção, Giovanni Sartori (1965) compreende de forma crítica, que os ideais democráticos, expressos no sufrágio universal e na democracia indireta ou representativa, baseada no princípio da soberania popular, representam a fórmula que possibilitou, com segurança à burguesia, construir um sistema político onde a participação popular, em uma perspectivapositivista que vê no Estado a busca do “bem comum”, fica restrita ao processo de escolha de representantes, em geral, do próprio seio da burguesia. Ao restringir-se somente ao processo eleitoral, o processo de individualização representado pelo voto, promove o enfraquecimento de mecanismos de solidariedade de classe (lutas político/sindicais), o que, na prática, põe abaixo a própria mobilização política, pois, alimenta a esperança de transformação sistêmica via parlamento. Em outras palavras, o sufrágio universal, posto em prática de forma pioneira pela República Jacobina em 1792 e tão duramente combatido pela alta burguesia de então, tornou-se, ao longo dos séculos XIX e XX, o elemento central, como ideologia da participação política ativa, para a estabilização, ao menos em parte, das tensões relativas ao controle de classe no Estado burguês. ACONTECEU FIGURA 18 – Protesto das Sufragistas, 1915, São Francisco Fonte: Everett Historical/shutterstock ID: 252135172 De início, o conceito sufrágio universal era restrito aos homens. Somente no século XX é que, mesmo nas democracias mais avançadas, após grandes pressões e lutas memoráveis é que o conceito de sufrágio estendeu-se também às mulheres. No caso brasileiro, após grandes abalos políticos no início da Era Vargas, com o código eleitoral de 1932 e depois com a Constituição de 1934, embora ainda com várias restrições, ficou estabelecido o direito das mulheres ao voto. 4.1 O Sufrágio Universal no Brasil Demorou muito para que o conceito, em seu princípio maior, ou seja, a universalidade, realmente se consolidasse em nosso país. Segundo Ferreira 35 (2001), a História do Brasil é periodizada em três momentos: Colônia (1500- 1822), Império (1822-1889) e República (a partir de 15 de novembro de 1889). Não se objetiva nesse momento realizar a retomada sobre todo o processo de desenvolvimento da organização política do país. Nosso foco, mesmo que breve, será sobre o período republicano, onde o interesse é estabelecer a discussão mínima sobre o desenvolvimento e consolidação sufrágio universal. A primeira Constituição da República Federativa dos Estados Unidos do Brasil, promulgada em 24 de fevereiro de 1891, estabeleceu, balizando-se pelo conceito de que a sociedade política deve ser dirigida e eleita pelos mais capazes, os critérios para o estabelecimento do sufrágio universal. Assim, pelo art. 70, §§ 1º e 2º, institui-se, Art. 70 - São eleitores os cidadãos maiores de 21 anos que se alistarem na forma da lei. § 1º - Não podem alistar-se eleitores para as eleições federais ou para as dos Estados: 1º) os mendigos; [maioria absoluta dos ex-escravos] 2º) os analfabetos; [cerca de 90% da população] 3º) as praças de pré, excetuados os alunos das escolas militares de ensino superior; 4º) os religiosos de ordens monásticas, companhias, congregações ou comunidades de qualquer denominação, sujeitas a voto de obediência, regra ou estatuto que importe a renúncia da liberdade Individual. § 2º - São inelegíveis os cidadãos não alistáveis. [entre eles, todas as mulheres] (Extraído de: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ constituicao/constituicao91.htm>) (comentários e grifos nossos) Como se pode perceber, a ideia de sufrágio do início da república brasileira era de que dele poderiam participar todos os cidadãos do sexo masculino, alfabetizados, maiores de 21 anos e que possuíssem certa renda (censitário).17 36 Deve-se lembrar que, na ocasião, a Abolição da Escravatura tinha ocorrido havia pouco mais de um ano e meio; que no país não existia um sistema universalizante e que a renda exigida para poder participar do processo eleitoral (como votante ou votado) não era factível para, pelo menos, 96% da população. O resultado, é óbvio, só poderia ser a instituição de um sufrágio excludente. Entre 1894, eleição de Prudente de Morais até 1930, eleição de Júlio Prestes, durante a chamada República do Café com Leite, a porcentagem de votantes sobre a população, nunca foi maior que 5,6%, e a média ao longo do período, em foram eleitos 11 presidentes, ficou em torno de 3% da população (cf. RAMOS, 1961). FIGURA 19 – Votantes na população Fonte: Photobank gallery/shutterstock ID: 422003836 Na direção do sufrágio efetivamente universal, o passo inicial será dado com a criação do primeiro código eleitoral brasileiro em 1932, quando houve o surgimento da Justiça Eleitoral e esta deveria organizar os mecanismos eleitorais. O Código também estabeleceu o voto secreto e o voto feminino.18 Entretanto, os analfabetos permaneceram excluídos de processos eleitorais no Brasil até o ano de 1985. SAIBA MAIS A inclusão dos analfabetos nos processos eleitorais no Brasil somente ocorreu com o fim da ditadura (1964-1985) e a redemocratização do país. Os analfabetos estavam proibidos de ir às urnas até 1985, quando foi promulgada emenda constitucional, no dia 15 de maio, assegurando o direito. Pela Constituição Federal de 1988, o alistamento eleitoral e o voto passaram a ser facultativos para os cidadãos analfabetos, que, no entanto, permanecem inelegíveis. Extraído de: Agência O GLOBO, Gustavo Villela, 03/10/2014 Todas as prerrogativas do Código Eleitoral de 1932 foram corroboradas na Constituição de 1934. Infelizmente, como sabemos, em 1937, valendo-se da força e da “política anticomunista” Getúlio Vargas, através da outorga da 37 Constituição de 1937, “rasgou” a Constituição de 1934 e mergulhou o país em oito anos de Ditadura. Todos os avanços estabelecidos anteriormente retrocederam, principalmente porque a Justiça Eleitoral deixou de existir e ao país foi imposto o um governo totalitário. Somente com a renúncia de Vargas, em 1946, a Justiça Eleitoral foi restituída e uma tímida democracia foi reinstalada no país. Em 1955, com a promulgação da Lei no 2.250, novos avanços, como folha individual de votação que garantia a liberdade e o sigilo do voto, foram introduzidos, mas, como é de conhecimento de todos, no dia 31 de março de 1964, o então presidente João Goulart foi deposto e a Ditadura Militar, que vigoraria até 1985, foi instaurada. Com o Golpe e sua consolidação, foi imposto o fim do voto direto para presidente e representantes de outros cargos majoritários. O conceito de pluripartidarismo foi extinto e, para atenuar o caráter totalitário do governo, instituiu-se a oposição consentida através do bipartidarismo. A eleição do comandante da nação era realizada pela Junta Militar. A partir de 1984, o grande desgaste dos governos militares, somado aos efeitos da recessão econômica do início dos anos 1980, levaram milhões de brasileiros às ruas em busca do retorno da democracia. O movimento Diretas Já, composto por diversas forças políticas, tornou-se o carro-chefe do movimento e, em 1985, o Brasil se redemocratizava. Instalada no início de 1987, a Assembleia Nacional Constituinte apresentou no ano de 1988, a nova Constituição do Brasil. Finalmente, na essência de sua proposição, o sufrágio universal foi instituído no Brasil. No art. 14, § 1º, da CF/88, fica estabelecido: Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante: I - plebiscito; II - referendo; III - iniciativa popular. § 1º - O alistamento eleitoral e o voto são: I - obrigatórios para os maiores de dezoito anos; II - facultativos para: 38 a) os analfabetos; b) os maiores de setenta anos; c) os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos. Oreferido artigo trata ainda de diversos outros aspectos como grupos inelegíveis, idade mínima para cargos políticos, entre outros Mas o trecho da Constituição apresentado anteriormente é mais do que suficiente para que se caracterize, de fato, a instituição do Sufrágio Universal no país. 5 Os partidos políticos FIGURA 20 – Partidos Políticos Fonte: Photographee.eu/shutterstock ID: 481813018 Segundo diversos autores, em especial Bonavides (2000), partidos políticos representam as organizações burocráticas que se organizam visando organizar, coordenar e instrumentalizar a vontade popular objetivando o exercício da influência sobre a orientação política do país e, através da ascensão ao poder do Estado, colocar em prática o seu programa de governo. Portanto, não podem ser somente considerados “partes da sociedade”19 que se organizam tendo em vista suas demandas específicas. Trata-se de uma definição mais complexa que, segundo o sociólogo Nildo Viana (2003), pode ser mais bem compreendida, considerando-se quatro elementos essenciais Os partidos políticos são organizações burocráticas que visam à conquista do Estado e buscam legitimar esta luta pelo poder através da ideologia da representação e expressam os interesses de uma ou outra classe ou fração de classe existentes. Assim, os quatro elementos principais que caracterizam os partidos políticos são: a) organização burocrática; b) objetivo de conquistar o poder do Estado; 39 c) ideologia da representação como base de sua busca de legitimação; e d) expressão dos interesses de classe ou fração de classe. Pelo senso comum, a palavra burocracia tem sentido pejorativo, isto porque ela é comumente utilizada para se referir à ineficácia de órgãos públicos, em geral que, pelo excesso de exigências de documentos e “papeladas”, trava todo o processo de prestação de serviços ao contribuinte. Não é este o significado que se quer empregar ao este elemento do qual prescinde um partido político. Em sentido weberiano, o conceito é completamente diverso e mesmo oposto. A burocracia deve notabilizar-se pela busca da máxima eficiência das organizações, no caso, os partidos políticos. Visando alcançá-la, os partidos devem, portanto, primar pelos critérios de eficiência, planejamento e eficácia em suas instâncias administrativas e diretivas. Imbuídos do objetivo estratégico de conquista do poder do Estado, os partidos, necessariamente, como dito anteriormente, têm que apresentar uma rígida estrutura burocrática, pois esta se constitui na relação entre dirigentes e dirigidos. Nesse sentido, só é possível ousar a conquista do poder estatal se elementos políticos como programa partidário, coerência para com o mesmo e fidelidade aos ideais ali estabelecidos forem compromissos de todos os integrantes. Cabe lembrar, que para que a “máquina” partidária funcione, os partidos políticos precisam de enormes quantias de dinheiro para o financiamento das campanhas eleitorais. Por último, mas não menos importante, o elemento disciplina interna também deve ser considerado e dessa forma, a burocracia, enquanto controle das ações, torna-se novamente fundamental. Em sistemas democráticos, onde os eleitores são “convidados” a escolher seus representantes (democracia representativa), é fundamental que os partidos políticos possuam uma boa “base popular”, afinal será ela que garantirá os votos necessários ao projeto partidário e é neste contexto, que a ideologia partidária tem papel essencial. Se tomarmos o conceito ideologia em seu sentido “menor”, trata-se do discurso que articula as propostas dos 40 partidos, contudo, se tomarmos ideologia em seu sentido “forte”, na definição marxista de que a ideologia integra a superestrutura e visa “maquiar” as contradições sociais, veremos que a desconstrução do discurso levará, inevitavelmente à conclusão de que a maioria dos partidos, visando somente a chegada ao poder, produz discursos ideologizados, isto é, os constroem dando a entender que atendem às demandas de suas respectivas bases, mas, entretanto, na prática política posterior à eleição, ocupam-se, por exemplo, em atender aos interesses de seus financiadores de campanha (cf. SAMUELS, 2003, apud BENEVIDES; VANUCCHI; KERCHE, 2003). Depreende-se então acerca do teor ideológico (em “sentido forte”), que os partidos mostram-se muito mais preocupados em, a partir da capacidade maior ou menor de influenciar suas bases, e a sociedade, em geral, garantir a legitimidade de sua existência, de seu governo e de suas opções políticas; afinal, como sabemos, o “poder emana do povo”... Nesta direção, o último item apontado por Viana, parece corroborar a discussão anterior: os partidos, embora de forma difusa, sobretudo em um cenário político marcado pelo fisiologismo como o brasileiro, representam interesses de classe. FIGURA 21 – Interesses de classe Fonte: Arthimedes/shutterstock ID: 352409408 Cabe ressaltar que o conceito classe social, assim como o de ideologia, deve ser considerado também em sua concepção “forte”. Em nosso dia a dia é comum ouvirmos expressões como “classe média”, “classes menos favorecidas”, “classe A”, “classe dos médicos”, entre outras. É preciso esclarecer que esta denominação (classe), do ponto de vista sociológico, é inadequada para definirmos padrão socioeconômico ou de consumo. A denominação correta para esta situação “é camada ou estrato social”. Quando nos referimos ao conceito classe social estamos trabalhando com uma categoria sociológica muito mais ampla. Vale citar que o que define a classe social de um indivíduo é a situação que este ocupa em relação aos meios de produção; assim, só há duas classes sociais: os detentores e os não detentores dos meios de produção. Em uma linguagem marxista: a classe 41 dominante e a classe dominada. Na sociedade em que vivemos: capitalistas e trabalhadores. Ao considerarmos sob este prisma, pode-se concluir que a existência dos partidos políticos reflete a disputa entre os interesses de classe na condução do Estado. 6 O sistema político eleitoral De acordo com Tavares (1994), um sistema eleitoral pode ser entendido como: Construtos técnico-institucional-legais instrumentalmente subordinados, de um lado, à realização de uma concepção particular da representação política e, de outro, à consecução de propósitos estratégicos específicos, concernentes ao sistema partidário, à competição partidária pela representação parlamentar e pelo governo, à constituição, ao funcionamento, à coerência, à coesão, à estabilidade, à continuidade e à alternância dos governos, ao consenso público e à integração do sistema político. Em outros termos, segundo o mesmo autor, visando o estabelecimento de uma regulação à “competição partidária [...], à coerência, à coesão, à estabilidade, à continuidade e à alternância dos governos...”, um sistema político eleitoral é o conjunto de regras que define a maneira pela qual o eleitor poderá realizar a escolha de seus governantes. Conforme Nicolau (2004), estabelece também “[...] o conjunto de regras que define como em uma determinada eleição o eleitor pode fazer suas escolhas e como os votos são contabilizados para serem transformados em mandatos (cadeiras no Legislativo ou chefia do Executivo)”. Vale destacar que há ainda diversos outros aspectos que são importantes em um sistema eleitoral. Assim, temas como: tipos de sistemas eleitorais, voto obrigatório ou facultativo, critérios para a elegibilidade, tipos de financiamento de campanhas, entre outros, são de fundamental
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