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Leitura de Imagem Material Teórico Responsável pelo Conteúdo: Prof. Ms. Miguel Luiz Ambrizzi Revisão Textual: Prof. Ms. Luciano Vieira Francisco Leitura de Imagem • Fenomenologia; • Estruturalismo; • Semiótica. · Conhecer e compreender os princípios teóricos, autores e aspectos metodológicos da Fenomenologia na análise de imagens. · Conhecer e compreender os princípios teóricos, autores e aspectos metodológicos do Estruturalismo na análise de imagens. · Conhecer e compreender os princípios teóricos, autores e aspectos metodológicos da Semiótica na análise de imagens. · Entender que as diferentes metodologias contribuem de formas distintas na compreensão de imagens, complementando-se. · Acessar estratégias metodológicas empíricas para futuras análises de obras de arte. OBJETIVO DE APRENDIZADO Caro(a) aluno(a), Nesta Unidade aprenderemos um pouco mais sobre um importante tema: Signo e significado, mais especificamente estudaremos as abordagens da Fenomenologia, do Estruturalismo e da Semiótica. São abordagens que se destacam pela preocupação peculiar das significações. Veremos que o signo é o eixo central destas metodologias que, em questões artísticas e estéticas, vem rodeado de uma complexidade que devemos decifrar ou desvelar, seja pelos princípios fenomenológicos da percepção, com suas regras de conhecimento, seja pelo descobrimento da estrutura, dentro de uma série de regras e normas eficazes, seja ainda pelas redes de avatares significantes e significativos que cuida a Semiótica. Então, procure ler, com atenção, o conteúdo disponibilizado e o material complementar. Lembre-se que a leitura é um momento oportuno para pontuar suas dúvidas; por isso, não deixe de registrá-las e transmiti-las ao tutor. Além disso, para que a sua aprendizagem ocorra em um ambiente mais interativo, na pasta de atividades você também encontrará a avaliação, uma atividade reflexiva e a videoaula. Cada material disponibilizado é mais um elemento para seu aprendizado; assim, estude todos com atenção! ORIENTAÇÕES Leitura de Imagem UNIDADE Leitura de Imagem Contextualização Nesta Unidade veremos três abordagens metodológicas que estudam/in- vestigam/analisam imagens e obras de arte: Fenomenologia, Estruturalismo e Semiótica. Para compreender de forma mais simples e direta, leia a análise semiótica feita por Julio Plaza da obra Guernica, de Pablo Picasso. Disponível em: https://goo.gl/W1FZLB. Ex pl or Perceba como elementos específicos desta abordagem semiótica nos auxi- liam, pouco a pouco, na identificação das partes da obra para a compreensão do todo, em etapas. Após esta leitura, você poderá ter um outro olhar para seus estudos, buscando uma maior profundidade nas leituras complementares apresentadas. 6 7 Introdução A imagem carrega em si um poder de transmitir ideias e de levar, por meio de sua fruição, a um certo número de entendimentos. Mas o que nos faz irmos de uma imagem de uma pomba voando à ideia de paz? Por que ao vermos um casal de mãos dadas entendemos logo tratar-se de amantes? Como um simples círculo e algumas linhas nos fazem lembrar o movimento hippie da década de 1960 e seu legado de “paz e amor”? Figura 1: Símbolo “paz e amor”. Fonte: Wikimedia/commons. Isso tudo se constrói em nossa mente graças a nossa capacidade de atribuir significado a um punhado de elementos que, ao se relacionarem, indicam um caminho de interpretação. Entender esse complexo processo de atribuir significado, tanto às imagens, quanto às obras de arte, tem fascinado diversos teóricos ao longo da história e levado à criação de um outro número de metodologias que se prestam a isso. Nesta Unidade abordaremos três das quais: Fenomenologia, que funda seus princípios na percepção e suas regras de conhecimento no processo da experiência; Estruturalismo, cujo ponto fundamental está no reconhecimento da estrutura, ou seja, das relações estabelecidas entre os elementos; Semiótica, cujo material de trabalho são os signos e seus significados. Em suma, para abordar o trabalho artístico fazendo uso de uma bagagem metodológica coerente, baseada na descoberta linguística de nosso tempo e, assim, alcançar um julgamento estético que não seja apenas mediado, torna-se necessária uma racionalização interpretativa. Ou seja, busca-se um método científico que, aplicado à arte, forneça-nos o ferramental necessário para identificar suas interpretações possíveis. 7 UNIDADE Leitura de Imagem Fenomenologia O conceito de Fenomenologia que está ligado aos trabalhos contemporâneos é atribuído a Edmund Husserl. Embora filósofos anteriores, como Immanuel Kant, George W. F. Hegel e Franz Brentano tenham flertado com seu uso, a aplicação dada por Charles S. Peirce, Carl Stump e Husserl é significativamente mais precisa. Trata-se de uma abordagem da experiência por uma perspectiva que o autor considerava científica. Husserl foi um filósofo que perseguiu um conceito que afligia a mente de pensadores desde a Antiguidade: a busca pela certeza. Para questões filosóficas não conseguimos chegar facilmente à certeza do que é a beleza, por exemplo. E se não sabemos o que é, de fato, a beleza, como podemos discuti–la? O autor queria desenvolver um método que levasse o exame dessas questões filosóficas a uma base completamente segura, permitindo solucioná-las com o mesmo grau de certeza que temos ao dizer quantas jujubas há em um pote. Como sabemos, a Ciência é empírica, ou seja, depende da experiência. Por sua vez, toda experiência está abarrotada de suposições, predisposições e equívocos. Husserl queria eliminar da experiência todo esse rol de incertezas e, assim, dar à Ciência uma base absolutamente incontestável a partir da experiência. Para tanto, sugeria que, ao abordar a experiência, adotássemos uma atitude científica, deixando de lado toda suposição particular – ou “colocando entre parênteses” , como dizia. Husserl queria explorar a experiência em primeira pessoa de modo sistemático, deixando de lado todas as pressuposições e chamou de “Fenomenologia” uma investigação filosófica sobre os fenômenos da experiência. Esse processo de “colocar entre parênteses” era o que Husserl chamava de redução fenomenológica, onde nos despíamos de todos nossos juízos, teorias e afirmações sobre o mundo natural e examinávamos o fenômeno sem atribuir-lhe status de real ou ilusório. Assim, a consciência não se distraia e se dirigia aos atos puros. Ex pl or O conceito husserliano, apresentado em seu trabalho intitulado Investigações lógicas, abriu o que ficou conhecido como a Escola Fenomenológica propriamente dita e a essa pertencem, partindo de diferentes abordagens, nomes como Heidegger, Hartamn, Scheler, Ricoeur, entre outros. Entre os estudiosos da Fenomenologia, um autor que é caro ao mundo das artes e da apreensão estética é Maurice Merleau-Ponty. Merleau-Ponty se interessava em investigar nossa experiência de mundo e nossas pressuposições cotidianas. Para isso, adotou a abordagem de Husserl, porém, com uma diferença fundamental: a compreensão de que a experiência não se dá apenas pela mente. O fato é que a experiência consiste em um processo no qual o pensamento e a percepção estão incorporados e que mundo, corpo e consciência são todos parte de um mesmo sistema. Esse entendimento ampliado 8 9 permitiu uma abordagem da experiência estética, mesmo sem que o autor tivesse publicado qualquer tratado sobre Filosofia Estética propriamente dita. Ao falar em estética, comumente nos remetemos ao campo da arte. No entanto, estética é algo mais amplo: o termo vem do grego aesthesis = sensível; portanto, comporta uma série de fenômenos ligados à dimensão da sensibilidade. [...] Nessa perspectiva, a experiência estética se configura a partir da percepção sensívelenvolvida na criação ou na contemplação de um objeto estético. Trata-se de uma relação ao mesmo tempo social e individual entre um sujeito e um objeto, pois na percepção estética estão envolvidos tanto significados socialmente compartilhados quanto sentidos que remetem à singularidade do sujeito dessa experiência. [...] Lembremos que para Merleau-Ponty a arte, assim como outros fenômenos expressivos, nasce da percepção sensível do mundo, que não reconhece um sentido dado no objeto (empirismo), nem o busca nos confins do sujeito (intelectualismo), mas instaura um sentido a partir da relação entre ambos (REIS, 2001). Contemporaneamente podemos estender essa relação entre objeto e sujeito para todas as imagens que nos defrontamos cotidianamente. Não só o objeto de arte é capaz de despertar essa percepção sensível. Dufrenne (2008), por exemplo, lembra-nos que para que essa relação exista são necessários o objeto e o sujeito, de modo que o sujeito modifica o “estado” desse objeto. A percepção estética, ao contrário da percepção cotidiana – que se fixa na finalidade prática ou utilitária –, implica em uma “[...] abertura e entrega do sujeito a um mundo sensível que o convida não a decifrá-lo, mas a senti-lo” (REIS, 2001, grifo nosso). “Na percepção estética, o sujeito não visa ao telos (o conceito que defi ne o objeto para o pensamento), mas ao eidos (aquilo que se vê, aparência, forma)” (REIS, 2001). Ex pl or Ou seja, podemos concluir que a abordagem fenomenológica lida com a experiência – sensível ou estética quando no campo das artes – a partir de uma perspectiva centrada no sujeito. Esse sujeito estabelece uma relação com esse objeto e é essa relação que precisamos examinar de forma mais científica, despidos de nossas certezas e pressupostos cotidianos. Embora muito se tenha pesquisado, não há um consenso sobre o caminhar de uma metodologia fenomenológica para a compreensão das imagens visuais. Assim, adotaremos a proposição de Juan Plazaola (apud VIÑUALES, 2010). Plazaola estabelece que analisemos a imagem/obra como uma sobreposição de diversos planos, interdependentes, porém analisados isoladamente. Seria como se tivéssemos dois universos, um terreno, onde a obra se instala no mundo; e um universal, onde a relação sujeito e obra se constrói. De forma esquemática, teríamos a seguinte estrutura metodológica: 9 UNIDADE Leitura de Imagem Figura 2. Vamos a um exemplo da aplicação desse esquema metodológico, ao analisar a obra O pensador (1904), de Auguste Rodin: Figura 3: Análise da obra O pensador (1904), de Auguste Rodin. 10 11 Estruturalismo A Filosofia Contemporânea europeia, por volta das décadas de 1970 e 1980, dedicou-se sobremaneira ao movimento estruturalista, o qual ganhou corpo a partir da Filosofia francesa baseada na literatura. Um ponto marcante para essa tendência era a noção de “desconstruir” textos, evidenciando seu caráter contraditório e mutável, cuja significação poderia oscilar. O termo estrutura significa “[...] conjunto de elementos que formam um sistema, um todo ordenado de acordo com certos princípios fundamentais” (JAPIASSU; MARCONDES, 1993, p. 89). Em sua essência, o estruturalismo privilegiava a construção da ordem e dos sentidos a partir da relação das partes que compõem o todo, ou seja, sua estrutura. A noção de estrutura surgiu anteriormente ao movimento, já no início do século XX, quando a Gestalt afirmara ser o todo mais do que a soma de suas partes, levando-nos a deduzir que toda obra poética conta com uma estrutura que relaciona suas partes entre si e o contexto que a cerca, dando-lhe um significado específico. Não se trata de cada parte isoladamente, mas sim do que guia o todo, relacionando partes e contexto como um conjunto. Gestalt é um ramo da Psicologia que deteve suas atenções sobre a compreensão da forma. É também conhecida como “Psicologia da forma”. Ex pl or Os principais proponentes da teoria – os teóricos franceses Louis Althusser, Jacques Derrida e Michel Foucault – uniram suas análises textuais com a política de esquerda, enquanto o analista Jacques Lacan deu ao estruturalismo uma perspectiva psicanalítica. Suas ideias foram adotadas por uma geração de escritores e artistas que, sob a bandeira do “pós-modernismo” rejeitava toda possibilidade de unidade e objeti- vidade para qualquer verdade, perspectiva ou narrativa (BURNHAM; BUCKINGHAM, 2011, p. 288-289). O método estruturalista surgiu com os estudos do linguista suíço Ferdinand Saussure, quem defendia que o objeto da Linguística não é a descrição empírica das línguas, como sempre fizeram os dicionários e gramáticas, mas a análise da estrutura abstrata que rege essas relações sintáticas e semânticas. De acordo com o Estruturalismo, são tais estruturas que tornam possíveis e compreensíveis as infinitas possibilidades de combinação dos elementos da linguagem, por meio das quais os discursos são realizados. Em poucas palavras, a teoria de Saussure acredita que a linguagem é, acima de tudo, uma estrutura lógica, formal e abstrata. A princípio, o termo “estrutura” possui um sentido literal, dicionarizado e que se refere à forma como os elementos estão organizados entre si. Algo fixo e palpável. Para o Estruturalismo a “estrutura” teria um sentido mais restrito, seria assim todo ordenamento dos signos humanos que produzem significação, não podendo 11 UNIDADE Leitura de Imagem necessariamente ser observado ou explicado senão mediante a uma série de regras, leis etc., os quais o reconstruíssem posteriormente. Ou seja, é preciso desconstruir, examinar as partes e suas relações para depois reconstruir o seu sentido. Assim, ganham importância as investigações estruturalistas do campo da arte, sobretudo a dita arte “pós-moderna” que, assim como o estruturalismo, era altamente conceitual. Esses trabalhos entendiam a obra de arte como signos de comunicação, que possuem uma estrutura não identificável à primeira vista e que só alcançam seu verdadeiro significado depois que reconstruímos as relações entre cada parte constituinte da obra. O estruturalismo encara a obra de arte como uma estrutura que devemos destrinchar mediante a condução de uma análise, regida por regras e funções, capaz de se deter em cada parte. Trata-se do exame minucioso de localizações, formas, graus, números e situações que tomam seu modelo sistêmico emprestado das Ciências Exatas. Para formular um guia prático para a utilização desse método no exame das obras de arte é preciso entender que, sob essa perspectiva, a análise da estrutura não pode ser descoberta ou explicada diretamente, é preciso que a desconstruamos. Há de se ter um cuidado para que, diante de tantos autores que postularam tantas regras, ao utilizar o estruturalismo como fonte, possamos discernir quais regras se aplicam ou não à análise que nos propomos. Para examinarmos tantas regras e possibilidades propostas por diversos autores estruturalistas seria necessário um estudo longo e minucioso – que deve ser aprofundado durante sua formação acadêmica. Em função disso, optamos por elencar uma série de regras que nos parecem fundamentais, tendo sempre em mente que para uma análise mais aprofundada é necessário aprofundar-se também nos estudos estruturalistas publicados ao longo do tempo. As regras que expomos aqui são muito gerais, tendo, assim, sua aplicabilidade limitada. Vejamos então as regras gerais das análises estruturalistas: • Imanência: prevê que a própria obra contém todo o significado que deve ser examinado. Isso significa que devemos nos deter a obra de arte em si mesma, suas formas e seus elementos; • Pertinência: na análise estruturalista a pertinência caracteriza a eleição de traços diferenciais, que por essas mesmas diferenças constituem as relações do sistema – paradigma – e permitemas combinações de sintagma. Esta regra entende como “sistema” um conjunto de opções paradigmáticas e “sintagma” como a parte do discurso em que os signos se combinam entre si; • Comutação: consiste em substituir um signo por outro e verificar se o significado se mantém no sistema; 12 13 Figura 4: L.H.O.O.Q. (1919), Marcel Duchamp. Fonte: Creative/commons • Compatibilidade: consiste em verificar se determinado elemento está, de fato, associado ao significado do sistema. Aplicando à obra de arte, seria como tomarmos a Monalisa, sabendo que não lhe cabem bigodes. Se esses forem colocados em tal obra, evocarão uma clara incompatibilidade, que tem a função de mostrar-se desmistificadora. • Integração: todas as partes de um sistema devem integrar-se em uma unidade mais alta que as assuma. Seria como dizer que no quadro Independência ou morte, de Pedro Américo, cada cavalo, cavaleiro, personagem que ali aparece se submete a uma unidade maior: a Declaração de Independência. São elementos que existem isoladamente, mas que, na obra de arte, sobrepujam-se ao contexto maior. Figura 5: Independência ou morte (1888), Pedro Américo. Fonte: Wikimedia/commons • Sincronia e diacronia: no caso da arte, a sincronia estaria ligada ao eixo sintagmático, ou seja, ao individual, à obra concreta, a aquilo que a torna única, ao estilo pessoal. Já a diacronia estaria ligada ao que a generalize, fazendo com que a reconheçamos como pertencente a algo maior, como um estilo ou movimento, por exemplo. Em toda obra de arte teremos que distinguir o que a torna única e o que lhe garante lugar em um contexto mais geral. Outro ponto importante nas análises estruturalistas é entender as diferentes funções encontradas em uma mesma obra e as relações que essas promovem. Entre as quais, cabe destacar: 13 UNIDADE Leitura de Imagem • Função expressiva: conecta-se ao emissor. É emotiva e expressa a atitude do sujeito sobre aquilo do que trata a obra, por exemplo: O grito, de Munch; Figura 6: O grito (1893), Edvard Munch. Fonte: Wikimedia/commons • Função conotativa: acentua a mensagem para torná-la efetiva junto ao receptor – usa-se o imperativo, a primeira pessoa ou se abre o espaço envolvendo o espectador. Por exemplo, a obra As meninas, de Diego Velázquez, onde o pintor se insere no quadro e parece pintar os espectadores; Figura 7: As meninas (1556), Diego Velázquez. Fonte: Wikimedia/commons 14 15 • Função poética: é, na realidade, qualquer procedimento que transforma a linguagem em arte. É aquele “Q” – aquele detalhe, aspecto – que transforma um girassol em um girassol como o de van Gogh; ou um desenho de anatomia humana de um livro de Medicina pode ser transformado em arte por qualquer artista medianamente bom, a partir de deformações dos músculos, curvas expressivas, proporções menos rigorosas, alargamentos etc.; Figura 8 – Girassóis (1888), Vincent van Gogh. Fonte: Wikimedia/commons • Função empática: é a que mantém contato entre o emissor e o receptor. Por exemplo, o locutor na radioemissora. Na arte, podemos tomar como exemplo a obra O três de maio, de Francisco de Goya, o homem de camisa branca com os braços abertos, o grupo compacto de fuzileiros franceses, o sangue derramado etc.; Figura 9: O três de maio (1814), Francisco de Goya. Fonte: Wikimedia/commons 15 UNIDADE Leitura de Imagem • Função referencial: faz referência a um mundo percebido ou imaginado que atenda tanto ao autor, quanto ao receptor. Um elo de conexão que ambos encontram. Exemplo: a obra A balsa da Medusa, de Theodore Géricault, com as tormentas no mar mediante as ondas agitadas, o horror nos rostos, os cadáveres etc.; Figura 10 – A balsa da Medusa (1818), Theodore Géricault. Fonte: Wikimedia/commons • Função metalinguística: é justamente aquela ponte entre o que, de fato, a obra traz e o significado imanente que carrega, porém, não explícito, o que lhe confere a conexão com o âmbito extraobra. Nas artes visuais são utilizados muitos procedimentos, como símbolos, imagens de duplo significado, intenções ocultas etc. Ao cruzar todo esse percurso metodológico recheado de regras, funções e camadas, fica fácil concluirmos que a obra de arte é um processo de reflexão, tanto para quem a cria, quanto para quem a recebe. Na obra o homem recria as coisas, dota-as de significados que só podem ser entendidos no contexto da própria obra – sistemática e sintagmamente – e no fim, a palavra definitiva cabe ao espectador que captura todo esse contexto e essa estrutura construída. Semiótica Há uma ponte a ser construída pela obra, permitindo dar acesso ao espectador a toda carga semântica e estética que dessa aflora. Fica evidente que para haver uma experiência estética o espectador é primordial e que algo deve chegar ao qual. Para a Semiótica nos referimos a um processo comunicacional onde a mensagem sai do emissor e se desloca até o receptor, sendo transportada, em nosso caso, pelos elementos que compõem a obra de arte. 16 17 A Semiótica se dedica a compreender como entendemos as imagens visuais da maneira como as percebemos. Desenvolvida por princípios muito próximos à Semiologia, a Semiótica tem seu berço nos braços do teórico Charles S. Peirce. Peirce é considerado o fundador da moderna teoria do signo, ou Semiótica, que ele também chamou de “teoria formal do signo”, “semiótica cenoscópica”, “geral”, “normativa”, “especulativa”, “teoria pura dos signos”. A Semiótica foi definida por Peirce como “a doutrina da natureza essencial e fundamental de todas as variedades de possíveis semioses”, isto é, de qualquer forma concebível de semiose, de suas condições de possibilidade e de suas possíveis variações. Seu objeto de investigação é, portanto, de grande generalidade. Em outras palavras, a Semiótica descreve e analisa a estrutura de processos semióticos sem se importar na base de que suporte material tais processos podem acontecer, ou em que escala podem ser observados — no interior de células (citosemiose), entre plantas (fitosemiose), no mundo físico (fisiosemiose), em comunicação animal (zoosemiose), ou em atividades consideradas como tipicamente humanas (produção de notações, retarrepresentações, modelos etc.). É desse tipo de investigação que resulta a natureza “quase necessária” desta Ciência, que, como a Matemática, é concebida por Peirce como uma Ciência formal. Mas seu status de Ciência formal não pode ser comparado à Matemática, e ao modo como esta extrai suas conclusões, porque, diferentemente da Matemática que “constrói na imaginação” os objetos de seus experimentos para extrair deles “relações de necessidade”, a Semiótica não investiga as formas de sua própria construção. Ela encontra prontos os objetos de sua observação — a “experiência humana normal”, ou a “experiência ordinária”. Embora seja uma disciplina essencialmente teórica, seu objeto de investigação é empírico, em um sentido geral em que pode ser confirmado ou refutado indutivamente, e boa parte de seus métodos são formais. Os domínios (alguns dos quais descobertos ou inventados pelo próprio Peirce) onde Peirce testou suas principais hipóteses incluem uma lógica topológica e uma incipiente teoria dos grafos, novos desenvolvimentos em Psicologia experimental, e descobertas da Química, entre outras (QUEIROZ, 2004, p. 20-22). Originalmente Peirce era um lógico e, portanto, buscou em seus estudos organi- zar esquemas e métodos que permitissem “atacar” a atribuição de significado que damos às imagens com as quais nos deparamos. Para isso, construiu boa parte de seu trabalho organizando categorias e relações entre os elementos categorizados, em uma tentativa de sistematizar uma gramática. 17 UNIDADE Leitura de Imagem As categorias demarcam as condições do que é inteligível e devemser pensadas como uma lista exaustiva de concepções ou questões fundamentais impostas, a priori, à cognição. A dimensão a priori das categorias peirceanas não deve ser confundida com uma perspectiva transcendentalista, mas com um “campo de testes” independente de exames de fatos. [...] Na obra de Peirce, as categorias são um princípio metateórico cujo desenvolvimento requereu tanto análises formais como interpretação fenomenológica e especulação metafísica. A construção desse princípio, cujas fundações matemáticas combinam métodos algébricos e diagramáticos (BURCH, 1991, 1997; KETNER, 1995; BRUNNING,1997), associa diversos domínios, formais e empíricos (FREEMAN, 1934, p. 3; ROSENTHAL, 2001). Esta associação pretende justificar: i) completude, porque a lista de categorias deve ser exaustiva; ii) irredutibilidade de seus elementos, pois eles devem ser radicalmente distintos; iii) composicionalidade de seus elementos, porque, embora radicalmente distintos, é possível combiná-los, e porque entre eles há uma ordem de pressuposição necessária; iv) inspecionalidade, pois deve ser possível checar suas propriedades em um “mundo de fatos” (QUEIROZ, 2004, p. 24-26). Peirce construiu em seu trabalho uma teoria geral dos signos, uma enorme variação de categorias que foram aperfeiçoadas em artigos sucessivos, sendo o primeiro intitulado Sobre uma nova lista de categorias (1867). Ao longo de seu trabalho, esse autor foi realizando um raciocínio que se organiza de forma triádica: Figura 11 – A tríade semiótica de Peirce. 18 19 Um signo (ou representamen) para Peirce é aquilo que, sob certo aspecto, representa alguma coisa para alguém. Dirigindo-se a essa pessoa, esse primeiro signo criará na mente (ou semiose) dessa pessoa um signo equivalente a si mesmo ou, eventualmente, um signo mais desenvolvido. Este segundo signo criado na mente do receptor recebe a designação de interpretante (que não é o intérprete!), e a coisa representada recebe o nome de objeto. Signo, interpretante e objeto constituem o que é chamado de representação triádica do signo. [...] Significado é o efeito direto realmente produzido no intérprete pelo signo; é aquilo que é concretamente experimentado em cada ato de interpretação, dependendo, portanto, do intérprete e da condição do ato e sendo diferente de outra interpretação. Significação é o efeito produzido pelo signo sobre o intérprete em condições que permitissem ao signo exercitar seu efeito total: é o resultado interpretativo a que todo e qualquer intérprete está destinado a chegar, se o signo receber a suficiente consideração (SAMPAIO, 2007, grifos nossos). Trata-se de uma tomada de consciência, em que o receptor capta a mensagem que o signo emite. Peirce chegou à conclusão de que tudo que se dá à consciência se processa em uma gradação de três propriedades que correspondem aos três elementos formais de toda e qualquer experiência: qualidade, relação e representação, posteriormente fixadas como primeiridade, secundidade e terceiridade, por serem vocábulos livres de associações já marcadas. A primeiridade é a consciência imediata tal qual é, a qualidade da consciência imediata, uma impressão – sentimento – in totum, indivisível, não analisável, inocente e frágil. A secundidade é a categoria que a concretude e o lidar cotidiano fazem mais familiar. Existir é, pois, experimentar a ação de fatos exteriores em sua resistência à nossa vontade. Já a terceiridade, a óbvia terceira das categorias universais do pensamento e da natureza aproxima um primeiro e um segundo em uma síntese intelectual, que corresponde à camada de inteligibilidade – ou pensamento em signos – através da(o) qual representamos e interpretamos o mundo. Um exemplo dado: o azul, simples e positivo azul, é um primeiro. O céu, como lugar e tempo, aqui e agora, onde se encarna o azul, é um segundo. A síntese intelectual, elaboração cognitiva – o azul no céu, ou o azul do céu – é um terceiro. Ao longo dos anos Peirce foi mudando o “nome” que a categoria recebia. Por fim, chegou à estrutura descrita acima – primeiridade, secundidade, terceiridade –, mas essa não é a única tríade relevante dos estudos semióticos. Temos ainda a relação das três principais categorias aplicáveis aos signos: 19 UNIDADE Leitura de Imagem Nos estudos dos signos, Peirce apresenta relações triádicas que se traduzem em 10 classes sígnicas, a partir de relações complexas entre signo/signo, signo/objeto e signo/interpretante. Ao considerar a relação de signo com o objeto que representa, o autor distinguiu três tipos de categorias principais de signos: símbolos (relação convencional entre o signo e sua significação), ícones (termo não arbitrário para signos em sua relação [de semelhança] com o objeto) e índices (relação de contigüidade com o objeto). O ícone, numa relação de similaridade, de comparação, pode ser exemplificado pelo mapa terrestre, que representa a Terra. Como exemplo de índice, poderíamos citar as impressões digitais, que representam quem as fez. E o símbolo, de caráter lógico, convencional, atrelado à cultura pode ser exemplificado pelas palavras, porque representam a língua. Pela sua forte ligação com a imagem, o nosso interesse aqui está centrado no ícone. Na verdade, segundo Santaella (2000), a imagem é citada como exemplo de ícone, pois a qualidade de sua aparência é semelhante à qualidade da aparência do objeto que representa. Dizendo de outro modo, o ícone é um signo que tem alguma semelhança com o objeto representado. Dessa forma, a convencionalidade ou arbitrariedade dos símbolos, fundada na consciência ou conhecimento da convenção pelo usuário, contrasta com o que poderia ser chamado de naturalismos dos signos icônicos. Os signos, então, podem ser naturais, que procedem da natureza e que aprendemos a interpretar (nuvens escuras no céu são sinais de chuva), ou convencionais, produzidos por um grupo social, com determinantes culturais, que são diferenciados de sociedade para sociedade, e que decorrem de qualquer interferência do homem na natureza: costumes, crença, língua, alimentos, entre outras. Na relação triádica de Peirce (1940), o signo passa por três etapas, até ser definitivamente decodificado por nossa mente ou não: objeto – é a representação do signo; representamen – tem a função de representar o objeto; e interpretante – constitui o efeito mental produzido pelo signo. O interpretante é “ad infinitum”, pois sempre gerará outros e outros signos. Ou, de acordo com a definição do autor, o sentido de um signo seria outro signo pelo qual ele poderia ser traduzido. Como ressalta Eco (1991, p. 60), para Peirce, cada interpretante (expressão que traduz uma expressão anterior) amplia a compreensão do conteúdo do signo: o conteúdo interpretado permite ir além do signo originário e entrever a necessidade da futura ocorrência contextual de um outro signo (SILVEIRA, 2005, grifos nossos). Seriam então estas as três categorias mais recorrentes para um signo: ícone, índice e símbolo; lembrando que essas categorias são aplicáveis a relação signo e objeto representado. Retomando nosso primeiro trinômio – objeto, signo, interpretante –, vemos que a Semiótica trabalha com, pelo menos, três tipos distintos de relação, os quais: 20 21 1. O signo em si mesmo: 1.1 Qualidades = quali-signo; 1.2 Fatos = sin-signo; 1.3 Ter a natureza de leis ou hábitos = legi-signo. 2. O signo em conexão com o objeto: 2.1 Uma conexão de fato, não cognitiva = índice; 2.2 Uma similaridade = ícone; 2.3 Hábitos – de uso = símbolo; 3. O signo como representação para o interpretante 3.1 Sendo qualidades, apresentando-se ao interpretante como mera hipótese ou rema; 3.2 Sendo fatos, apresentando-se ao interpretante como dicentes; 3.3 Sendo leis, apresentando-se ao interpretante como argumentos. A partirdo trabalho de Lúcia Santaella (1995), pesquisadora brasileira que por muitos anos trabalhou em difundir a Semiótica peirceana nas terras de cá, poderíamos construir um quadro-resumo relacionando não apenas às categorias sígnicas – nas três tricotomias que acabamos de mencionar –, mas também os níveis de percepção que Peirce instituiu para a apreensão da imagem: Quadro 1 Categorias sígnicas Níveis de percepção Signo em relação ao objeto Signo em relação ao representamen Signo em relação ao interpretante Primeiridade Ícone Imagem Diagrama Metáfora Objeto imediado Qualisigno Qualidade de signo Rema Sensação O que é? Secundidade Índice Vestígios Objeto dinâmico SinSigno Aspecto de signo Dicente Afirmações imprecisas Terceiridade Convenção OI-OD Legisigno Padrões que se manifestam Argumento Fundamentado em regras coletivas O que diz sobre Fonte: adaptado de Santaella (1995) As tricotomias são formas de observação ou análise das relações dos termos da tríade signo, objeto, interpretante. Ex pl or Examinando o trabalho de Peirce, encontramos, a partir de 1903, três tricotomias, com dez classes; posteriormente, seis tricotomias, com 28 classes e, por fim, dez tricotomias, com 66 classes. Isso nos mostra que houve um enorme detalhamento no exame da relação inicialmente proposta – signo, objeto, interpretante. E autores que o sucederam na investigação semiótica foram ampliando essas tricotomias e ainda vislumbrando correlações que ampliaram sobremaneira a abordagem semiótica. 21 UNIDADE Leitura de Imagem Em uma busca rápida, encontraríamos dezenas de diagramas esquemáticos que indicariam como abordar semioticamente a produção de significado desencadeada por um signo. Enquanto Ciência, a Semiótica encontra no mundo contemporâneo uma infinidade de maneiras de ser aplicada, variando os objetos que examina e até mesmo o entendimento das relações que Peirce nomeou. O campo da arte, inclusive, por vezes é acusado de uma assimetria entre significante e significado, variações que asfixiam qualquer tentativa científica de abordagem. A arte carrega tantos significados periféricos, marginais, que o exame feito pela Semiótica precisa estar atento a esses desdobramentos, a esses apêndices. Assim, a busca por um esquema metodológico único e definitivo inspirado na Semiótica se mostra infrutífera. Moles, Francastel e outros autores tentaram analisar como examinar o signo de forma eficiente. Filtrando algumas dessas contribuições, concluímos que se fazem necessárias análises partindo de marcos teóricos distintos. Recomenda-se, então, a seguinte esquematização: 1. Análise sociológica: verifica-se a obra em relação às categorias sociais como liberdade, independência, submissão, aceitação de valores tradicionais. Relações entre meio e indivíduo, causas, formas, motivos, situações; 2. Análise psicológica: analisa-se as relações entre individual e coletivo, público e privado, subjetivo e senso comum; 3. Análise formal: tipos de realidade, objetos, formas da percepção. Os limites físicos e reais do sujeito, do conhecer, do espectador, do artista, do desenhista, do homem etc.; 4. Análise da informação: O que se pretende comunicar? Qual o sujeito da mensagem? O que é esse objeto? Como se colocam a relações? É natural ou artificial? O que é a beleza no cato concreto e determinado? Qual estética dirige ou centra tal mensagem? 5. Análise interpretativa: é a união das análises anteriores, reunindo valores, inter-relacionando os dados encontrados em cada uma, buscando construir um apanhado, uma unidade dentro do que aparece nessas diversas análises Este esquema, aplicado a uma obra de arte, uma imagem, ou um período, pode chegar a nos aproximar da obra em diferentes níveis, tendo uma ideia de sua realidade, a qual culmina em uma interpretação objetiva da obra em si, inter- relacionada com o meio onde nasceu e ao qual se dirige, produzindo uma verdadeira comunicação. 22 23 Material Complementar Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade: Livros O livro da Filosofia BURNHAM, D.; BUCKINGHAM, W. São Paulo: Globo, 2011. Estética e Filosofia. DUFRENNE, M. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2008. Semiose segundo C. S. Peirce. QUEIROZ, J. São Paulo: Educ; Fapesp, 2004. A teoria geral dos signos: semiose e autogeração. SANTAELLA, L. São Paulo: Ática, 1995. Sites REIS, A. C. A experiência estética sob um olhar fenomenológico. In: Arquivos Brasileiros de Psicologia, Rio De Janeiro, v. 3, n. 1, maio 2001. http://goo.gl/h07DGn SAMPAIO, P. A Semiótica de Peirce. 2007. http://goo.gl/lnRooO SILVEIRA, J. R. C. A imagem: interpretação e comunicação. In: Linguagem em (Dis) curso (LemD), Tubarão, SC, v. 5, n. esp., p. 113-128, 2005. http://goo.gl/rloMRd SIMÃO, J. L. A redução fenomenológica e sua significação fundamental nas ideias. In: Revista Intuitio, Porto Alegre, RS, v. 2, n. 3, p. 149-163, nov. 2009. http://goo.gl/12hSHu 23 UNIDADE Referências ARGAN, G. C.; FAGIOLO, M. Guia de história da arte. Lisboa: Editorial Estampa, 1994. AUMONT, J. A imagem. Campinas, SP: Papirus, 2011. BOSI, A. Reflexões sobre a arte. 7. ed. São Paulo: Ática, 2003. BURNHAM, D.; BUCKINGHAM, W. O livro da Filosofia. São Paulo: Globo, 2011. COSTELLA, A. F. Para apreciar a arte: roteiro didático. 3. ed. São Paulo: Senac, 2002. DUFRENNE, M. Estética e Filosofia. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2008. FARTHING, S. Tudo sobre arte. Rio de Janeiro: Sextante, 2010. GERVEREAU, L. Ver, compreender e analisar as imagens. Portugal: Edições 70, 2007. JAPIASSU, H.; MARCONDES, D. Dicionário básico de filosofia. 2 ed. rev. Rio de Janeiro: Zahar, 1993. JOLY, M. Introdução à análise da imagem. 9. ed. Campinas, SP: Papirus, 2005. JESUS, V. G. El comentario de la obra de arte. España: UND, 1993. SANTAELLA, L. A teoria geral dos signos: semiose e autogeração. São Paulo: Ática, 1995. SILVEIRA, J. R. C. A imagem: interpretação e comunicação. In: Linguagem em (Dis)curso (LemD), Tubarão, SC, v. 5, n. esp., p. 113-128, 2005. Disponível em: http://goo.gl/rloMRd. TREVISAN, A. Como apreciar a arte: do saber ao sabor: uma síntese possível. 3. ed. Porto Alegre, RS: Age, 2002. VIÑUALES, J. El comentario de la obra de arte (metodologías concretas). Madrid: Unes, 2010 24