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(para ler) Da rejeição do pedido de arquivamento do inquérito policial garantias processuais contra um juiz promotor (IBCCRIM)

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	Da rejeição do pedido de arquivamento do inquérito policial: garantias processuais contra um juiz-promotor
	
	
		As opiniões expressas nos artigos publicados responsabilizam apenas seus autores e não representam, necessariamente, a opinião deste Instituto
	
	
	Rodrigo de Paula Garcia Caixeta
	Graduando do curso de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Estagiário e Acadêmico da Defensoria Pública da União em Minas Gerais.
	
	
		Resumo: Compreendida a força normativa da Constituição, é etapa indispensável da interpretação jurídica a sujeição das normas infraconstitucionais à fiscalidade da Lei Maior, erigida à referência formal e material do ordenamento jurídico. À oxigenação constitucional não está imune o Código de Processo Penal, impregnado de dispositivos legais (texto) absolutamente defasados e incompatíveis com o sistema processual-penal acusatório instituído. A compreensão da mera vigência do art. 28 do CPP importa em desconsiderá-lo na aplicação jurídica constitucionalizada, que, como verdadeira filtragem, marca e descarta o direito que em validade seja deficitário. Assim é que, em face da Constituição Federal, a rejeição judicial do ‘pedido’ de arquivamento do inquérito policial configura afronta direta aos princípios – que são normas – da imparcialidade do juiz e do promotor natural, afigurados como direitos constitutivos do devido processo constitucional, cuja inobservância subtrai da atividade jurisdicional sua legitimidade democrática. Da sonegação dos direitos pela rejeição ao arquivo, decorre o interesse processual do investigado/réu de lançar mão de garantias jurídicas tencionadas a infirmar a decisão judicial, na pretensão de, quiçá, pôr imediato fim à persecução penal maculada, ou de, ao menos, afastar do processo este juiz, que, ao rejeitar o arquivo, se fez promotor. 
 
 1. Introdução
 
 Na atual quadra paradigmática da Ciência Jurídica, identificada como Neoconstitucionalismo, tem-se por assentado que os Estados regem-se por Constituições supremas, nas quais as leis ordinárias buscam seus padrões de validade. Assim é que a partir do conteúdo de suas regras e princípios, superada a concepção kelseniana de Constituição como referencial de validade meramente formal, o intérprete do Direito deve promover uma constante filtragem das demais normas jurídicas, válidas desde que compatíveis com a Lei Maior em sua substancialidade linguística.
 
 Com efeito, é pressuposto da força normativa da Constituição, segundo Alexandre Morais da Rosa, que “a aplicação de qualquer norma jurídica precisa sofrer a preliminar oxigenação constitucional de viés garantista, para aferição da constitucionalidade material e formal da norma jurídica” (2004, p. 98). 
 
 A esse respeito, aponta Rosa que o garantismo de Ferrajoli tratou de acertar a linguagem:
 
“(...) as normas são vigentes (ou de validade meramente formal) quando editadas na conformidade do processo legislativo, isto é, com o devido fundamento de vigência, aferido em face da norma superior, reservando ao termo validade o atributo da pertinência subjetiva material com as normas situadas no nível superior, transbordando a filiação meramente formal, típica do paradigma kelseniano. A eficácia, por sua vez, ficaria vinculada à observância. 
 
 (...) uma norma ou outros atos normativos são vigentes quando decorrentes de um processo legislativo previsto na Constituição da República. Por outro lado, a norma somente é válida se, argumentada no contexto Constitucional, for compatível materialmente, isto é, não afrontar qualquer garantia ou direito reconhecido” (Rosa, 2004, p. 114-115).
 
A despeito do reconhecimento teórico de uma constitucionalidade superlativa, é patente a desenvoltura de intérpretes, confundindo-se vigência com validade, na aplicação automática das leis infraconstitucionais, sem sujeitá-las a uma fiscalidade constitucional, deixando antever que para estes a Constituição não passa de um livreto de boas intenções destinadas ao legislador, como se o conteúdo da Lei Constitutiva do Estado reclamasse sua índole injuntiva da redentora confirmação de um dos “poderes” constituídos, a partir da qual, aí sim, um ditado constitucional seria investido na ordem jurídica como norma de observância obrigatória. Ledo engano.
 
 Em decorrência dessa disseminada prática de autômatos do Direito, estimulada estrategicamente pelos beneficiários de uma legislação distintiva e excludente, normas de flagrante incompatibilidade com a Constituição da República de 1988 reinam soberanas no (in)consciente coletivo do senso comum teórico de juristas, os fiéis consumidores dos produtos prontos e imperecíveis da dogmática jurídico-mercadológica. Estes consumidores do “direito-dito” acreditam que ser jurista é ser espectador do discurso jurídico autorizado, aquele anunciado com os cobiçados rótulos de “jurisprudência sedimentada” ou de “boa doutrina”, pelos quais se acessa o sentido “verdadeiro das leis”, soprado pelo espírito do legislador. Rosa aduz que, por esta postura, 
 
“(...) compete ao ator jurídico aderir aos limites de sentido anteriormente estabelecidos pelos intérpretes autorizados ou pelo senso comum teórico. O trabalho deixa de ser hermenêutico para se circunscrever à escolha das significações mostradas, como que numa vitrine, no melhor modelo da sociedade de consumo” (Rosa, 2004, p. 204).
 
Nesse contexto, destaca-se o Código de Processo Penal, promulgado em 1941 pelo Estado Varguista, impregnado de normas vigentes absolutamente incompatíveis com a Constituição Federal, inválidas, portanto, mas manejadas sem qualquer constrangimento por operadores jurídicos que não sabem o que fazem, diria Zizek, ao aplicarem uma legislação, como destaca Rodrigo Bello, “(...) extremamente autoritária e em diversos pontos defasada, agravando-se ainda com a incompatibilidade constitucional da Carta cidadã de 1988, tendo em vista ferimentos sensíveis a princípios constitucionais e até mesmo a direitos fundamentais” (Bello, 2012).
 
 Ao contrário, o que constrange(ria) boa parte dos estudantes e operadores do Direito, por ousado demais, é, na aplicação, construir a norma mediante o teste de constitucionalidade do texto legal, assumindo, assim, que é função do jurista pugnar pela inobservância de um dispositivo legal que não assuma, diante do Texto Constitucional, contornos de uma imagem compatível; é dizer: o texto legal só oferece norma jurídica se for extraível dele um sentido (ao menos) com afinidade constitucional. Para o senso comum teórico, ao contrário, faz-se hermenêutica pela reprodução do “sentido sentido por quem pode sentir”, lá de dentro de um Monastério de Sábios, seja lá qual for o teor deste sentido já configurado.
 
 Ranço fascista do Código de Processo Penal é o seu art. 28, no qual a Ciência Jurídico-Constitucional de viés garantista não encontra validade. O citado artigo assim estabelece: 
 
“Art. 28. Se o órgão do Ministério Público, ao invés de apresentar a denúncia, requerer o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer peças de informação, o juiz, no caso de considerar improcedentes as razões invocadas, fará remessa do inquérito ou peças de informação ao procurador-geral, e este oferecerá a denúncia, designará outro órgão do Ministério Público para oferecê-la, ou insistirá no pedido de arquivamento, ao qual só então estará o juiz obrigado a atender”.
 
Para os fins deste escrito acadêmico, tensionado a explicitar
que, em face da Constituição Federal, o art. 28 do CPP não vale mais como norma jurídica, proceder-se-á a análise dos diversos institutos componentes deste enunciado penal (disso ele não passa), alheio ao Processo Penal constitucionalizado a partir das bases do sistema acusatório. 
 
 2. Constituição ou juiz-promotor 
 
 Conforme Ferrajoli (2002), acusatório é todo sistema processual que tem o juiz como um sujeito passivo rigidamente separado das partes e o julgamento como um debate paritário, iniciado pela acusação, à qual compete o ônus da prova, desenvolvida com a defesa mediante um contraditório público e oral e solucionado pelo juiz. Nesta esteira, Rosa destaca: 
 
“A separação das funções do juiz em relação às partes se mostra como exigida pelo ‘princípio da acusação’, não podendo se confundir as figuras, sob pena de violação da garantia da igualdade de partes e armas. Deve haver paridade entre defesa e acusação, violentada flagrantemente pela aceitação dessa confusão entre acusação e órgão jurisdicional” (Rosa, 2004, p. 143).
 
Por sua vez, em um mundo diverso e distante, o sistema inquisitivo atribui as competências para acusar e julgar a um único sujeito, o Juiz-promotor, responsável por proceder de ofício à procura, à colheita e à avaliação das provas, na qual são excluídos ou limitados o contraditório e os direitos da defesa. Em síntese histórica, segundo Luiz Gustavo Gonçalves Ribeiro, o modelo inquisitório
 
“(...) apresentava a figura do juiz, delegado do Imperador ou do Monarca, como órgão julgador e ao mesmo tempo investigador e acusador. O procedimento era secreto, descontínuo, baseado em atas que continham elementos de prova e eram anexadas aos autos sem conhecimento da defesa. A prisão preventiva era a regra e a confissão, a rainha das provas, buscada em nome da verdade real.
 
 (...) o sistema baseava-se no princípio da máxima acusação, já que o denunciante não precisava prová-la, havendo, pois, inversão do ônus da prova” (Ribeiro, 2010, p. 59).
 
Com efeito, a Constituição de 1988 cravou explícita opção pelo sistema acusatório, ao estabelecer completa cisão orgânica entre as atividades de acusar e julgar e, entre outros princípios, o juízo natural, o contraditório e a ampla defesa como garantias processuais do acusado. A esse respeito, incumbiu exclusivamente ao Ministério Público a promoção da ação penal pública (129, I, CR), ao passo que, como corolário do devido processo legal (art. 5.º, LIV, CR), conferiu à função judicante a marca da imparcialidade, cuja observância impõe ao juiz ausentar-se do contraditório, como instância instrutória na qual só cabem as partes – acusação e defesa. 
 
 Assim é que, nas palavras de Aroldo Plínio Gonçalves: “O juiz, perante os interesses em jogo, é terceiro, e deve ter essa posição para poder comparecer como sujeito de atos de um determinado processo e como autor do provimento. Essa é uma garantia das partes, que se expressa tanto pelo princípio do juízo natural, e não pós-constituído, tanto pelas normas que controlam a competência do juiz. Investido dos deveres da jurisdição, o juiz não entra no jogo do dizer-e-contra-dizer, não se faz contraditor” (Gonçalves, 2001, p. 121).
 
Não obstante, Ribeiro (2010, p. 152) assevera que “a legislação processual brasileira traz marcas inquisitórias evidentes e confere ao juiz, em diversos artigos, os poderes de iniciativa investigatória e da persecução penal”. A essa lógica responde a conjugação do citado art. 28 com dispositivos do CPP referentes à competência do juízo, o que, sem qualquer crivo de constitucionalidade – como sói acontecer – implica afronta às garantias processuais legitimadoras das funções estatais no Estado Democrático de Direito, pois permite que um réu seja julgado pelo mesmo juiz que outrora tenha negado ao Ministério Público, titular da ação penal, pedido de arquivamento do inquérito policial. 
 
 Isso porque, segundo a atual sistemática processual-penal, entre juízos igualmente competentes, considera-se prevento aquele que tiver antecedido aos outros na prática de algum ato do processo ou de medida a este relativa (art. 83, CPP). Desse modo, salvo em caso de remoção ou promoção, o juiz que rejeita o pedido de arquivamento do inquérito policial fatalmente julgará a respectiva ação, se o arquivamento não for reiterado pelo procurador-geral (art. 28, CPP). 
 
 Aliás, o resultado provável deste procedimento é mesmo a condenação, como lamenta Rodrigo Bello (2012), pois “o juiz muito claramente está externando a ‘vontade’ que ele tem de que a ação seja proposta”. Com efeito, há risco de que essa “vontade” decorra da pronta certeza de culpa do investigado, formada – independentemente de Processo – pela admirável capacidade sobre-humana de que gozam alguns juízes de ver (ou ouvir) a “verdade”, velada a profanos mortais. Essa crença, é cediço, é compartilhada por grande parte da magistratura brasileira, que sente ser a ponte privilegiada de comunicação entre os homens e a “verdade”, ora divina, ora racional. 
 
 Os partidários da vertente divinatória, disseminados, varam os foros com autoestima de predestinação, querendo, assim, com ternura, acalmar as partes com a garantia de uma decisão justa, pois que prolatada por um juiz/sacerdote escolhido por Deus para desvelá-lo. Carnelutti, pelo alerta de André Cordeiro Leal: 
 
“(...) já destacava a indissociabilidade entre a atividade jurisdicional e a atividade sacerdotal, assim também como já havia destacado Bülow, antes, ressaltando que o termo alemão para designar sentença judicial – Urtheil (Bülow, 2003, p. 12-13) deriva de ordália (teste ou juízo divinatório)” (Leal, 2012, p. 343). 
 
De fato, imerso nesse paradigma, o juiz que rejeita o pedido de arquivamento teria “sinceros motivos para isso”, porque o faz fundado na prova infalível: a voz do Oniciente. Portanto, sabe que o investigado é mesmo culpado pelo crime, ainda que o delegado e o promotor nada “ouçam”. 
 
 Por outro lado, ao juiz calhado na Filosofia da Consciência, o “hermeneuta autêntico” (Rosa, 2004, p. 176), basta a “verdade racional” encontrada pelo seu aguçado talento e sensibilidade; é a “verdade” farejada pela sua consciência, que ambienta o conhecimento das essências fundantes. A buscar a “verdade racional” ou “real”, o juiz está autorizado a manejar o processo penal (“mero procedimento”) de acordo com sua reta convicção – certeira, por natureza. 
 
 Rosemiro Pereira Leal adverte, contudo, que a prova não se vincula mais à sensibilidade do julgador, pois:
 
“(...) ao se falar numa hermenêutica constitucional no Estado democrático de direito, não há de ser por balizamentos metodológicos da tradição ou autoridade formados na filosofia do sujeito, porque a regência operacional da democracia não ocorre no plano solipsista do intérprete iluminado por uma inteligência genial, mas pela auto-ilustração teórica do princípio do discurso juridicamente (processualmente) institucionalizado e direcionado à concreção dos direitos à fundamentalidade constitucional democrática” (Leal, 2010, p. 32).
 
 3. Ao juiz, o que se quer indisponível: a ação penal ou a sua imparcialidade?
 
 Desse modo, superada a concepção segundo a qual a consciência do julgador é o ambiente privilegiado de apreensão da verdade, Geraldo Prado assevera que: 
 
“(...) não há razão, dentro do sistema acusatório ou sob a égide do princípio acusatório, que justifique a imersão do juiz nos autos das investigações penais, para avaliar a qualidade do material pesquisado, indicar diligências, dar-se por satisfeito com aquelas já realizadas ou, ainda, interferir na atuação do Ministério Público, em busca da formação da opinio delicti” (Prado apud Bello, 2012).
 
Assim é que, como corolário da privativa competência do MP para a promoção da ação penal, cabe exclusivamente ao órgão ministerial deliberar se as peças de informação produzidas no inquérito constituem justa causa para a pretensão punitiva, entendida a “justa causa” como o conteúdo
informativo mínimo – de indícios mínimos – sem o qual não se admite a denúncia (art. 395, IV, CPP) e cuja presença, de que se enuncia o princípio da indisponibilidade da ação penal pública, impõe ao MP a propositura da ação. 
 
 Com efeito, a indisponibilidade da ação penal constitui garantia social contra eventuais omissões deliberadas de membros do Ministério Público que, movidos por influências políticas ou econômicas, esquivem-se do dever jurídico (129, I, CR) a eles exclusivamente confiado pela Carta da República. Inegável, ademais, que o combate a crimes é ordem posta pelo Estado Democrático a ele próprio, sobretudo àqueles que importem severa sonegação aos fundamentos da República (art. 1.º, CF) ou que obedeçam a orientações flagrantemente avessas aos objetivos (art. 3.º) vincados desde 5 de outubro de 1988. 
 
 De fato, é em respeito e vigilância a este dever público que por bem se deve assegurar – art. 5.º, LIX, CR c/c art. 29, CPP – o exercício subsidiário da ação penal pública por qualquer do povo, mesmo que o querelante não seja o ofendido pelo delito ou seus sucessores. 
 
 Todavia, ao juiz – provável julgador – é vedado zelar pela indisponibilidade da ação penal, pois sua imparcialidade, nas palavras de Geraldo Prado: 
 
“(...) exige dele justamente que se afaste das atividades preparatórias, para que mantenha seu espírito imune aos preconceitos que a formulação antecipada de uma tese produz, alheia ao mecanismo do contraditório. Neste plano, a manutenção do controle, pelo juiz, das diligências realizadas no inquérito ou peças de informação, e do atendimento, pelo Promotor de Justiça, ao princípio da obrigatoriedade da ação penal pública, naquelas hipóteses em que, em vez de oferecer denúncia, o membro do Ministério Público requer o arquivamento dos autos da investigação, constitui inequívoca afronta ao princípio acusatório” (Prado apud Bello, 2012).
 
No Processo Penal constitucionalizado, portanto, outra coisa não é indisponível ao juiz senão a sua imparcialidade. Nesse sentido, Ribeiro (2010) assevera que é preciso que se garanta a mais completa independência institucional do julgador com a acusação pública, de modo que qualquer atividade que venha a fazer sucumbir a imparcialidade do julgador deve ser coibida. 
 
4. A rejeição do ‘pedido’ como desacato à imparcialidade e ao promotor natural
 
Com efeito, a decisão que rejeita o pedido de arquivamento do inquérito é absolutamente destituída de validade substancial (a garantista), pois demonstra que o órgão prolator (o juízo) tenciona substituir-se em função dada ao Ministério Público. É que, com a rejeição, o juiz pretende engendrar, no procedimento, o mesmo efeito resultante da decisão ministerial – que não veio – de oferecer a denúncia, qual seja: a instauração do processo penal. Ao negar o arquivo, por decisão que o art. 93, IX, da CF impõe seja fundamentada – sob pena de nulidade! – visa o juiz, na esteira do art. 28 do CPP, provocar o procurador-geral a decidir, mediante a apreciação das razões do promotor original e de suas próprias (razões judiciais), por ratificar o arquivamento ou promover a denúncia. 
 
 Dessa forma, o juiz participa, por meio de seu provimento (por elementar, fundamentado), da decisão de promover a ação penal pública, decisão constitucionalmente reservada ao Ministério Público (art. 129, I), a partir da valoração da justa causa. Nesse particular, é tamanha a evidência de que decidir sobre a justa causa denuncial é atribuição exclusiva do MP; tanto que integra o rol de funções institucionais do Parquet requisitar diligências investigatórias (art. 29, VIII) com vistas, não se negue, a concluir autonomamente sobre a presença do conjunto informativo mínimo suficiente ao exercício da denúncia. 
 
 Não se constata, ademais, que tenha a Constituição Federal dado ao juiz função parecida – uma função de provocador. Portanto, opor-se ao arquivamento do inquérito, a pretexto de perceber a presença de justa causa despercebida pelo MP, que abraça a atribuição de manifestar-se sobre ela sem deixar sobras, configura exercício indevido de função ministerial. Trata-se, como diz Ribeiro (2010, p. 150), “de uma transposição da figura de órgão provocado para a de órgão provocador, a transformar o juiz equidistante em órgão parcial, que se imiscui na tarefa de uma das partes num verdadeiro retrocesso ao sistema inquisitório”.
 
 Ademais, deve-se sublinhar que a possível troca (estratégica) de promotores prevista no art. 28 do CPP é absolutamente rechaçada pela Constituição Federal. Sem escrúpulos, pelo enunciado penal, se o juiz não se convencer das razões pelas quais o promotor requer o arquivamento, opera-se o descarte deste membro do Parquet, embora fosse ele o competente, que será substituído pelo procurador-geral ou por outro promotor designado, caso o chefe do MP considere a denúncia devida. 
 
 Ocorre que o art. 5.º, LIII, da CF, declara que ninguém será processado senão por autoridade competente (o promotor natural), de maneira que, com Ribeiro (2010, p. 134), “toda pessoa envolvida em uma demanda não seja surpreendida por um Ministério Público especialmente designado para a causa; a acusação não pode, jamais, ser manobrada ou de qualquer forma condicionada por órgãos estranhos ao Processo”.
 
 O direito fundamental ao promotor natural impõe, tanto ao juiz, quanto ao procurador-geral, observância vinculada à conclusão do promotor da causa a respeito de dar ou não prosseguimento à persecução penal, porque nada na Constituição Federal sugere como atributo do promotor de justiça uma “competência volátil”, alienável deliberadamente a outro promotor por força de casuísmos.
 
 Ao contrário, como percebe Hugo Nigro Mazzili (2008, p. 92), ao promotor foi assegurada a “inamovibilidade do exercício de suas funções” como elemento garantidor de sua independência funcional. Fica, portanto, expurgada a possibilidade de se proceder a uma segunda apreciação da justa causa denuncial, em detrimento da conclusão do promotor competente, como se inexistente fosse, pois “o promotor do caso deve ser o natural, aquele que, segundo a ordem jurídica, atuará conforme regras de atribuição previamente definidas em lei, sendo vedada a escolha post factum de atuação”, conclui Ribeiro (2010, p. 135). 
 
 Desse modo, ao convencer-se da inexistência da justa causa, o promotor natural tem a alta competência para requisitar o arquivamento do inquérito, porque o direito ao promotor natural (art. 5.º, LIII, CF) confere ao seu ato o teor de requisição conferido pela lei à “insistência” do procurador-geral (art. 28, ao final, CPP), pelo que fica o juiz obrigado a fazê-lo. Tudo porque, como diz Ribeiro (2010, p.135): “O Estado de Direito não mais compactua com avocações, designações, delegações ou mesmo qualquer outro ato do chefe do Ministério Público que, no passado, atendia, deliberadamente, às chamadas conveniências político-governamentais”.
 
 5. Direitos e garantias
 
 Visto isso, deve-se pensar nas possibilidades normativas aptas a infirmar a decisão judicial baseada no art. 28 do CPP e, por consequência, a dar novo rumo ao processo penal por ela maculado. É que, compreendida a força normativa da Constituição, da nulificação desse ato judicial ofensivo a direitos fundamentais, tanto o fim imediato da persecução penal, quanto, ao menos, o afastamento do juiz, passam a constituir pretensões possíveis. 
 
 Passa-se, pois, a refletir sobre qual modelo procedimental é adequado ao intuito de “levar os direitos fundamentais a sério”, para, quiçá, obter definitivamente o arquivamento do inquérito policial ou, ao menos, afastar da causa o juiz que o rejeitou, caso sobrevenha a promoção da denúncia pelo procurador-geral. 
 
 A propósito, há de se ressaltar que, para tanto, a legitimidade ativa não deve ser considerada exclusividade do investigado/réu, mas sim comum ao Ministério Público. É que a Constituição de 1988 injetou no MP vocação para a defesa do regime democrático, incumbindo-lhe
o art. 129, II do dever de zelar pelo respeito dos Poderes Públicos aos direitos assegurados na Carta. E, de fato, diante da Lei Constitucional, não há como negar a existência do direito fundamental a ser processado por autoridade competente, bem como o de ser julgado por juiz imparcial! 
 
 Com precisão, ademais, Ribeiro (2010) diz que a Constituição também incumbiu o Ministério Público da tarefa de zelar pela lisura do procedimento persecutório conforme as regras do devido processo penal. Pelo preceito do art. 127, caput, da Lei Maior, pelo qual o MP é essencial à função jurisdicional do Estado, cabendo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos direitos sociais e individuais indisponíveis, faz observar que o Parquet “(...) ficou responsável pela defesa da legalidade democrática. Não obstante seja ele o promotor da ação penal pública (art. 129, I), foi incumbido de zelar pelos interesses indisponíveis (arts. 127 e 129, II), dentre os quais os do investigado e acusado” (Ribeiro, 2010, p. 115). 
 
Pertinente elaboração faz Anderson Oliveira: “A função de órgão acusador não é uma função isolada de todas as demais. O disposto do art. 129, I, está subordinado ao título IV do capítulo IV da Constituição Federal, e, principalmente, ao art. 127. A função acusatória é, portanto, uma função de garantia dos direitos fundamentais, principalmente a vida, a liberdade, a dignidade humana, a segurança e, pra fins processuais, o direito de ser ouvido, de desdizer, de apresentar sua versão e de recorrer (art. 5.º, LV, CF), ou seja, o devido processo legal” (Oliveira apud Ribeiro, 2010, p. 115).
 
 E por falar em acusação, voltemos à atuação do juiz. (Como soa estranho...).
 
 Pois bem, sobre os modelos procedimentais, a linguagem trabalhada por Rosa (2004, p. 109), em sua tese de doutoramento, envolve a temática dos instrumentos legais com o significante “garantias”. Nesse sentido, as garantias são “técnicas de tutela dos direitos, exercitáveis em face do Estado”; mecanismos hábeis sem os quais “os Direitos Fundamentais são promessas de amor”, diz Luiz Alberto Warat (Warat apud Rosa, 2004, p. 107), “aquelas que os amantes formulam quando sabem que não poderão as cumprir”.
 
 Portanto, são as garantias, em Cademartori (1999, p. 87), “(...) defesas e tutelas de caráter jurídico; são pois os instrumentos com os quais o direito assegura um certo número de liberdades e direitos, que são precisados, definidos ou instituídos pelo próprio direito”. 
 
 Desta feita, quais são os modelos procedimentais que comportariam a pretensão de invalidar a decisão negatória do Juiz promotor (aquele que aplica o art. 28)? A partir daí, quais (ou qual) instrumentos jurídicos assumiriam, pois, a função de garantia aos direitos fundamentais sonegados, quais sejam: o do investigado ao promotor natural e o direito do acusado de ser julgado por um juiz imparcial (um Juiz-juiz)? 
 
 5.1   Mandado de segurança no processo penal
 
 A Lei 12.016/2009 preceitua: “Art. 1.º Conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeasdata, sempre que, ilegalmente ou com abuso de poder, qualquer pessoa física ou jurídica sofrer violação ou houver justo receio de sofrê-la por parte de autoridade, seja de que categoria for e sejam quais forem as funções que exerça”.
 
 Pelo art. 28, CPP, a rejeição do arquivamento enseja a substituição do promotor originariamente competente, em flagrante violação ao ‘primeiro direito do acusado’, na percepção de Mazzilli: “Nos crimes de ação pública, o primeiro direito do acusado, antes de ser julgado por um órgão independente do Estado, consiste em ser acusado por um órgão estatal dotado de igual independência, escolhido por critérios legais abstratos, fixados anteriormente à prática do crime” (Mazzilli, 2008, p. 93).
 
Assim é que o descarte do promotor original, pelo simples fato de que ele, no exercício funcional, entendeu não haver motivos para a denúncia, constitui afastamento arbitrário e estratégico do promotor do caso, algo explicitamente rechaçado pela Lei Maior (art. 5.º, LIII, primeira parte, CF) porquanto ofenda o direito do investigado de ser processado pela autoridade competente – até para definir se deve processar. 
 
 Por outro lado, como visto, o ato pelo qual o juiz nega o arquivamento do inquérito consolida, por prevenção (art. 83, CPP), a competência do Juízo (órgão judicante) por ele presidido para o julgamento da ação penal. De fato, ao se negar o arquivo – por considerar improcedentes as razões invocadas pelo promotor (art. 28, médio, CPP) – o juiz, naquele ato pré-processual, assume estar convencido da existência de justa causa para a denúncia, o que desvela sua tendência psíquica à condenação. 
 
 Ademais, ao recusar, movido pelos preconceitos de sua tese já formada, objetiva forçar o MP à denúncia. Este juiz, em verdade, não consegue disfarçar seu desejo de promover a ação, por si, sem ter que submeter seu ímpeto de “justiceiro” a um Ministério Público complacente. Deste modo, caso a ação penal seja posteriormente intentada, o juiz, “que cobrou o escanteio e agora quer cabecear”, julgará pleonasticamente a ação, já que a condenação é o fim provável. 
 
 É patente que, desta feita, o juiz viola (ou, ao menos, tenciona violar) o direito fundamental do acusado a um devido processo legal-constitucional (art. 5.º, LIII, LIV, LV, CF), do qual a imparcialidade do julgador é elemento vital. 
 
 Com efeito, a essa altura, é possível cogitar do cabimento de mandado de segurança contra a referida decisão, violadora de direitos fundamentais, que portam, por idiossincrasia, os atributos liquidez e certeza desde o processo político-jurídico de acertamento constituinte. 
 
 Assim postula Rosemiro Leal: “Nessa quadra jurídica, em que o direito democrático se enuncia por uma autopermissão de fiscalidade processual como traço diferenciador de um direito liberal de aplicação heterônoma (produtor-consumidor) ou ofertado a uma razão eficaz (instrumental ou estratégica) do pragmatismo social extra-sistêmico de uma jurisprudência de valores, acolhe-se como matéria inafastável de apreciação judicial, lesão ou ameaça a direitos fundamentais. Entretanto, é de se esclarecer que, para que haja lesão ou ameaça, o pressuposto é o da pré-existência de direitos fundamentais já acertados por uma liquidez e certeza processualmente decididos nas bases constituintes a legitimares executividade incondicionada” (Leal, 2010, p. 128-129).
 
O mandado de segurança, segundo Frederico Ivens Miná (2009), consiste “em uma ação civil impugnativa, de caráter de garantia constitucional, utilizável para a proteção de um direito líquido e certo, perante uma lesão ou ameaça proveniente de ato de autoridade pública ou pessoa jurídica investida no poder público”. É dizer, valendo-se de Júlio Fabrini Mirabete, líquido e certo é o “direito que não desperta dúvidas, que está isento de obscuridade, que não precisa ser aclarado com o exame de provas em dilações, que é em si mesmo, concludente e inconcusso” (Mirabete apud Miná, 2009). 
 
 Em que pese tratar-se de instituto de natureza eminentemente civil, pode perfeitamente ser utilizado em outras áreas do direito, diz Miná, (2009) “pois o que enseja a demanda (lesão a direito líquido e certo por pessoa investida direta ou indiretamente no Poder Público) pode ocorrer em qualquer matéria”. Concorde, Mirabete aponta: “Tendo o mandado de segurança fundamento constitucional, tanto pode ser impetrado contra ato da autoridade civil como criminal desde que implique violação de direito líquido e certo” (Mirabete apud Miná, 2009). 
 
 Assim é que, a princípio, pode-se pensar cabível o mandado de segurança contra a decisão do juiz criminal que recusa o arquivamento do inquérito. É que, a um só tempo, esse ato pré-processual (e a-processual!) viola o direito ao promotor natural, e é, em si, a ameaça ao direito fundamental do acusado a um Juiz-juiz, sendo desnecessário
aguardar a efetiva lesão, consubstanciada no recebimento da denúncia (do procurador-geral) pelo juiz pr(o)evento. 
 
 No entanto, em sede de processo penal, o manejo do mandado de segurança é deveras restrito, tendo em vista a subsidiariedade característica dessa garantia em face do habeas corpus. É que, como visto no art. 1.º da Lei 12.016/2009 , estabeleceu-se que “conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus”, que, por sua vez, recebe o seguinte intuito da Lei Fundamental:
 
“Art. 5.º (...) LXVIII: Conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”.
 
Sendo assim, o habitat jurídico do mandado de segurança em matéria penal são as questões marginais à persecução penal, nas quais se vise à tutela de direito líquido e certo de cuja violação não decorra ameaça à liberdade ambulatorial.
 
 Miná (2009) oferece como exemplos práticos de aplicação da referida ação constitucional: a possibilidade de o ofendido impetrar o MS em face de um indeferimento do pedido de instauração de Inquérito Policial em um crime de ação penal de iniciativa privada; ou quando o civilmente identificado é obrigado a ser identificado criminalmente, mediante impressão digital e fotografia, não estando incurso nas hipóteses da Lei 10.054/2000. 
 
 Em tais hipóteses, com efeito, embora baseadas na violação a direito líquido e certo, não se observa um avanço indevido da pretensão punitiva do Estado que ao menos assinalasse, como consequência da violação, um iminente risco à liberdade individual.
 
5.2   Uma questão de habeas corpus 
 
 No ambiente do art. 28, contudo, a questão é outra: a rejeição judicial do pedido de arquivamento do inquérito, por tender à privação de liberdade de locomoção do investigado, desafia, em verdade, o habeas corpus. 
 
 Segundo Alexandre de Moraes, “Habeas corpus é uma garantia individual ao direito de locomoção, consubstanciada em uma ordem dada pelo Juiz ou Tribunal ao coator, fazendo cessar a ameaça ou coação à liberdade de locomoção em sentido amplo – o direito do indivíduo de ir, vir e ficar” (Moraes, 1997, p. 112).
 
Em complemento ao notável constitucionalista, Beatriz Trentin assevera que o chamado “remédio heroico” “assegura a liberdade contra a aplicação errônea da lei penal, contra a prisão ilegal e em todos os casos em que ilegalidade atinge a integridade física do indivíduo como direito inerente à sua personalidade” (Trentin, 2012, p. 7).
 
 De fato, é disso que se trata: a rejeição pautada no art. 28, embora conte com previsão legal persistente, padece de invalidade perante a Constituição Federal de 1988: ao apropriar-se da apreciação da justa causa para a denúncia, função ministerial privativa, o juiz lançou mão de ato abusivo, pois que exorbitante de sua competência, com a óbvia finalidade de prosseguir com a persecução penal, oferecendo ameaça direta à liberdade de locomoção do investigado, pelo que fica demonstrado o cabimento do habeas corpus com vistas a nulificar a decisão negatória de arquivo do IP.
 
 A par disso, declarada a nulidade da rejeição pela via do habeas corpus, implica-se o pronto arquivamento do inquérito policial como consequência lógico-jurídica, pois que de uma decisão nula não se pode admitir qualquer efeito, tampouco o prosseguimento da persecução penal. Portanto, tendo em vista o princípio do promotor natural (art. 5.º, LIII, 1.ª parte, CF), o ato pelo qual o promotor competente “requereu” o arquivamento do IP é o limiar de validade constitucional desta persecução penal, de maneira que não mais compete (desde 1988) ao procurador-geral (provocado pelo juiz!) dar a última palavra sobre a justa causa denuncial.
 
 A genuína conclusão ministerial (fundamentada, claro) de ausência de justa causa para a denúncia contém caráter vinculante, a levar o inquérito a arquivamento inexorável. Eventual prevaricação do promotor de justiça desperta meios procedimentais diversos, alheios à persecução penal primeira, não cabendo ao juiz e nem mesmo ao procurador-geral, a pretexto de velarem pela indisponibilidade da ação, alijar do juízo da justa causa o promotor natural. 
 
 Noutro sentido, a despeito do promotor natural, caso venha o procurador-geral promover a denúncia, a regra de prevenção de competência (art. 83, CPP) torna provável que o réu venha a ser julgado pelo juiz “pr(o)evento”, aquele que, pela rejeição do arquivo, mostrou querer a ação penal. Além de demonstrar sua tendência psíquica para a condenação (por estar convencido da presença da justa causa), com sua decisão negatória e motivada, deu causa à promoção da denúncia, sendo, pois, partícipe da ação penal, restando maculada sua imparcialidade objetiva. Desta feita, o mesmo habeas corpus comporta o afastamento processual do Juiz-promotor, pois que do direito fundamental a um juiz competente e imparcial não prescinde o devido processo. 
 
 5.3   Do cabimento da exceção de impedimento e sua subsidiariedade
 
 De fato, o texto constitucional não oferece qualquer elemento normativo que possa sustentar de validade a decisão judicial que nega ao promotor de justiça o ‘pedido’ de arquivo do IP. É que, ao fazê-lo, o juiz, confundindo-se vigência e validade, estima-se legítimo apreciador da justa causa denuncial, a despeito de não ter recebido da Lei Maior tal atribuição. Desta forma, o que faz o magistrado é se apropriar de função ministerial privativa, a desvelar atuação abusiva que desafia habeas corpus, tendo em vista a potencial ofensa à liberdade de locomoção que engendra. 
 
 Conquanto se entenda suficientemente demonstrado que o habeas corpus é a via procedimental adequada à infirmar a decisão judicial negatória do arquivamento do inquérito, é preciso cogitar que, perante o senso comum teórico dominante, possa sucumbir o fundamento aqui levantado como causa de pedir suficiente à concessão da ordem, qual seja, a invalidade da rejeição do arquivo. 
 
 Assim sendo, isto é, caso o Tribunal julgador do habeas corpus denegue a ordem, considerando válida a rejeição judicial ao arquivo, há de se pensar se, sobrevindo a denúncia, ainda resta possibilidade jurídico-processual para afastar do processo o juiz-promotor, que, aculturado (“sem saber o que faz”) na aplicação do art. 28, a pretexto de velar pela indisponibilidade da ação penal, deixa escoar a sua imparcialidade. Para tanto, a exceção de impedimento socorre o réu.
 
 O caráter da imparcialidade é inseparável do órgão de jurisdição. É por isso que, nas polidas palavras do reverenciável Prof. Rosemiro Leal, “(...) não sendo a imparcialidade princípio de direito processual, mas dever constitucional do Estado-Juiz, como direito-garantia das partes, as leis processuais cuidam da suspeição e impedimento dos juízes como vícios insuperáveis e causadores da nulidade de atos jurisdicionais” (Leal, 2010, p. 123). 
 
E conclui o eminente processualista mineiro, a quem sou grato pelas lições esclarecidas de Direito Processual Democrático, que a imparcialidade exigida pela lei, enquanto pressuposto legal de validade dos atos jurisdicionais, obriga o juiz “a desligar-se das causas quando não reúne, em face de circunstâncias objetivamente aferíveis, isenção para assegurar às partes o direito fundamental da isonomia que é princípio institutivo do processo” (Leal, 2010).
 
 A chamada doutrina costuma dizer – sem muito explicar – que a suspeição do juiz se configura a partir de situações “mais subjetivas”, enquanto que o impedimento depende da comprovação de outras “mais objetivas”. Da análise dos dispositivos legais do CPP que lançam as hipóteses de suspeição (art. 254) e impedimento (art. 252), observa-se que as hipóteses de impedimento são intrínsecas à persecução penal e, por isso, são circunstâncias aferíveis dos próprios autos procedimentais, daí por que dizê-las “objetivas”. Assim é que o juiz cujo filho, por exemplo,
tiver funcionado como perito na ação (art. 252, I) deve ser afastado do processo em razão de impedimento haurido dos próprios autos, pela presença do laudo pericial da lavra de seu filho. É que a relação de presumido afeto entre os dois – como sujeitos processuais – imputa vício à necessária isenção do magistrado para o julgamento. 
 
 Por outro lado, impõe-se a suspeição do juiz por circunstâncias alheias à persecução penal em voga, de maneira que sobre elas não versem os autos do procedimento, como o fato de ser o juiz credor ou devedor de qualquer das partes (art. 254, V), ou de estar ele ou parente próximo respondendo a processo por fato análogo, sobre cujo caráter criminoso haja controvérsia (art. 254, II).
 
 De fato, é a partir de “circunstâncias objetivamente aferíveis”, como diz o velho Leal, que se pretende, aqui, pugnar pela adequação da exceção de impedimento do juiz (e não de suspeição) para afastá-lo da ação penal que, porventura, sobrevenha do indeferimento do pedido de arquivo, caso a promova o procurador-geral. 
 
 Eis a possibilidade jurídica: 
 
“Art. 252. O juiz não poderá exercer jurisdição no processo em que:
 
 I – tiver funcionado seu cônjuge ou parente, consangüíneo ou afim, em linha reta ou colateral até o terceiro grau, inclusive, como defensor ou advogado, órgão do Ministério Público, autoridade policial, auxiliar da justiça ou perito;
 
 II – ele próprio houver desempenhado qualquer dessas funções ou servido como testemunha” (Código de Processo Penal).
 
O referido dispositivo estabelece que “o juiz não poderá exercer jurisdição no processo em que ele próprio houver desempenhado função de Ministério Público”. E, de fato, é disso que tratamos: com a decisão negatória, o juiz manifesta – nos autos procedimentais – uma conclusão a respeito da existência de justa causa denuncial. 
 
 Ordinariamente, contudo, a referida conclusão é o resultado de um juízo típico do órgão acusador que, baseando-se nas informações colhidas, define qual seja o dever funcional que exige o caso concreto: a promoção da denúncia (art. 24, CPP), a requisição de novas diligências (art. 129, VIII, CF) ou o pedido/determinação de arquivamento do inquérito (sem a intromissão de juiz ou procurador-geral, como vimos). No entanto, ao negar o arquivo, o juiz exibe a sua conclusão – positiva – a respeito da justa causa para a denúncia, pondo-se a agir, na persecução penal, como o faz o órgão acusador.
 
 É este, portanto, o fundamento jurídico para a exceção de impedimento: o exercício pelo juiz de função típica do Ministério Público. Em sede de exceção de impedimento, não se está mais a falar de invalidade desse exercício pelo juiz, porquanto tenha sido a tese rechaçada pela denegação do habeas corpus nela baseado. O que importa, a esta altura, é sublinhar que a decisão negatória de arquivo, porque motivada por uma conclusão positiva sobre a justa causa denuncial, desvela, ao menos, que o juiz comunga de função dada ao Ministério Público; é dizer: assiste-se a um compartilhamento de função (decidir sobre a denúncia) entre o MP e o juiz criminal, de maneira que o juiz, ao rejeitar o arquivo, está funcionando como Ministério Público; atuando como se fosse o Ministério Público, pelo que fica configurada a hipótese legal de impedimento do julgador.
 
 Dirá o senso comum teórico que, a respeito dessa causa de impedimento, “o que o legislador quis dizer” é que o promotor de justiça de ontem não pode julgar, hoje, como juiz, a ação por ele proposta, quando então era membro do Parquet. Dirá, ademais, que o “espírito da norma” trata, em verdade, de um impedimento do tipo cargo-cargo, pelo qual aquele que um dia ocupara o cargo de promotor não pode, adiante, no cargo de juiz, julgar ação proposta por ele mesmo. Entretanto, as possibilidades semânticas sugeridas pelo texto legal (art. 252, I e II, CPP) extrapolam o sentido normativo predeterminado por uma “melhor doutrina”, que diz o-que-é-e-pronto. 
 
 Ao revés, igualmente impedido deve ser considerado o juiz que desempenhe função típica de promotor de justiça, admitindo-se, portanto, o impedimento do tipo função-função, de maneira que o juiz não possa exercer jurisdição no mesmo processo em que se fez promotor, ao agir como tal (e não, necessariamente, enquanto tal) quando praticar determinado ato representativo de um suposto “consórcio funcional” (função compartilhada). 
 
 Assim é que, com a denúncia do procurador-geral ou de designado, a exceção de impedimento se apresenta como modelo procedimental viável para afastar o juiz que indefere o pedido de arquivamento do inquérito. Admitindo-se válida a rejeição do pedido de arquivo, pela (estranha) noção de que a apreciação da justa causa é função compartilhada entre juiz e promotor, deve-se, por outro lado, acolher a exceção de impedimento do juiz, que renunciou da imparcialidade essencial para o exercício da jurisdição ao desempenhar, no processo, função do promotor de justiça. 
 
 6. Conclusão
 
 Mediante a compreensão de que a Constituição oferece os referenciais de validade jurídica dos textos de lei vigentes, resta patente que é dever do jurista pugnar pela inobservância de enunciados legais incompatíveis com os direitos constitucionais, notadamente ascendidos à categoria de direitos fundamentais. Nesse sentido, como se buscou demonstrar, a decisão judicial lastrada no art. 28 do CPP carece de validade em face da Lei Maior, pois que representa atuação estranha ao princípio acusatório, a violar direitos fundamentais do investigado/acusado. 
 
 A decisão que nega o arquivo do inquérito policial consubstancia ato abusivo (exorbitante) e gerador de ameaça à liberdade ambulatorial, a que se apresenta o habeas corpus como principal garantia apta a infirmar a negatória. Fundando-se na invalidade substancial da manifestação do juiz sobre a justa causa denuncial, comporta o writ desde a pretensão de pôr imediato fim à persecução penal, até, ao menos, a de afastar o juiz do processo. 
 
 A uma eventual denegação do habeas corpus, pode o réu opor exceção de impedimento em face do magistrado, não pela tese – já rechaçada com a denegação do writ – de invalidade do ato judicial apreciativo da justa causa, mas pelo fundamento de que o juiz (que se vê consorciado ao promotor) exerceu função dada ao Ministério Público na mesma ação que pretende julgar. 
 
 Ao negar o arquivo do IP, o juiz manifesta – ali mesmo, nos autos – o resultado da apreciação que fez sobre a justa causa para a denúncia, ato que (se não privativo) é típico do órgão acusador, porque elementar à decisão de propor – ou não – a ação penal, cujo exercício é absolutamente reservado ao Parquet. 
 
 Desse modo, no exercício de função supostamente “compartilhada” com o promotor, o juiz se mete a funcionar como órgão do Ministério Público, o que macula sua imparcialidade objetiva a partir de hipótese de impedimento do tipo função-função. Assim é que resta perfeitamente cabível seu afastamento do processo via exceção de impedimento (art. 252, I e II, CPP), para a qual réu e Ministério Público afiguram-se igualmente legítimos. Aí sim se apresenta um litisconsórcio constitucional.
 
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		CAIXETA, Rodrigo de Paula Garcia. "Da rejeição do pedido de arquivamento do inquérito policial: garantias processuais contra um juiz-promotor". Disponível em: (http://www.ibccrim.org.br)
	
		
	
	
				
				
		
		
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