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BURKEElt·FORMAqAoOAFILOSOFIAPOLITICA 00 LIBERALISMO"CO/tSERVADOR. Edmund Burke, politico irlandes e representante do Parlamento britanico durante grande parte da sua vida, foi contemporaneo das duas grandes revolUl;Oesdo seculo XVIII) a americana, de 1776, e a francesa, de 1789. Considerado 0 fundador do conservadorismo modemo, Burke foi e ainda e analisado como um politico realista sem qualquer afei~ao pelaS .abs~Oes. . Seu talento politico antecipou os violentos acontecimentos que deram sequencia ao movimento revolucio~o frances dois ou tres anos ap6s a sua eclosao. Como pensador de tendencia humanista, preocupava- se com 0 uso arbitrario do poder, mas cujos excessos praticados na Fran~a do final daquele seculo fizeram com que suas opinioes se chocassem com a visao que possuia, anteriormente, dos direitos do homem nos paises oprimidos-.Alguns raros fil6sofos, ou soci610gosda politica, encontraram uma linha direcional nas posi~oes de Burke, ao analisa-Ias do ponto de vista da coerente articula~ao entre uma ordem tradicional hierarquica e uma economia capitalista a que esta ordem ja se havia integrado. Embora de certa forma correta, esta avalia~ao ignorou a for~a da penetra~ao ideol6gica que interfere no posicionamento dos individuos e nas diversas camadas sociais, como omitiu, tambem - e em decorrencia exatamente disso - as influencias hist6ricas do direito de propriedade que vaG • Fernando Magalhaes e professor do Departamento de Filosofia da UFPE. AtuaJmente, doutorando em Filosofia na USP. Fernando Magalhdes ~r em questAo.E atraves desse enfoque metodol6gico que as ayoes encobertas do pensador sac> ~e~~yadas ~ postas em confronto com 0 sistema de crenyas e IdeIas dommantes, e sua pr6pria concepyao de mundo. A • Em segundo lugar, tomarei, como referencIa, 0 plano empirico-historico do materialismo dialetico para proceder ao exame te6rico da relayao entre os argumentos e os fatos. Naturalmente, 0 estudo dos fatos, que se consubstancia num empirismo hist6rico, se da por via ind~re:a' is~o~,pela ~mili~edas constrm;oes filos6ficas ou das suposWoes histoncas mfendas a partir de elementos dados a verificayoes abstratas. Mas isso nao significa que essas verifica~oes 000 tenham passado pelo testemunho de relatos historicamente documentados e materializados nas mais diversas teorias. Explicando melhor: a aparente contradiyao existente em determinada visao do ~und~ quando esta se manifesta de modo concret~, dev~ ser .avahada a luz da realidade hist6rica e as consequencIas daI denvadas por meio das diversas fontes bibliognificas autorizadas pelo consenso academico e cientifico. diferenciar uma revoluyao politica de uma revoluyao social. Esta re1ayao diaIetica entre 0 politico e 0 social, no pensamento de Burke, mediatizada pelos interesses de classe," onde a ideologia exerce urn papel preponderante, e 0 assunto desta investigayao. o tema escolhido para esta pesquisa merece uma breve explicitayao de natureza metodol6gica, cujo prop6sito e 0 de precisar, mais concretamente, tanto 0 sentido da ideia geral aqui empregada quanto a orientayao epistemol6gica da abordagem. 0 metodo que utilizarei para analisar 0 pensamento de Edmund Burke, - objeto deste trabalho -, e as implicayoes referentes a uma possivel contradiyao entre suas pr6prias ideias, obedeceni ao interrelacionamento 16gico de duas categorias do raciocinio dialetico. Em primeiro lugar, recorrerei a dimensao gnosiologica1 da dialetica, para, num relativo grau de abstrayao, estudar os elementos ocultos que se encontram encobertos pelas ayoes nas formulayoes mentais internas do agente, nos seus compromissos, e no seu comportamento social. Em outras palavras: buscarei 0 componente ideol6gico - no sentido de falsa consciencia2 - que se esconde por tras do pensamento politico do A natureza do processo. Dificuldades, abstra~oes, realidades. As paginas que se seguem podem ser considera~s, resumidamente, uma tentativa de especulayao sobre uma questao a.berta a discussoes, e um esforyo te6rico-hist6rico para•• Estou me referindo exclusivamente as sociedades em que 0 problema das classes possuia urn desenho mais simples. Embora seja possivel estender a questao para aIem dos seculos XVllI e XIX, nao pretendo fazer quaIquer alusao ao periodo atuaI que exige uma discussao mais longa. 1 Esta e uma adapta~ao do metodo utilizado por Carlos Nelson Coutinho no seu estudo sobre A Dualidade de Poderes, Sao Paulo, Brasiliense, 1985, pp.l 0- 14. 2 A compreensao que se tern hoje da ideologia, seguramente nao e a mesma que Marx possuia em sua epoca, ou seja, a de atribui-Ia a uma consciencia social de uma classe inteira, e que nao despertara para as verdadeiras for~as motrizes que se escondiam por t[(ISdos fatos. Mas desde Lenin, que nao chegou a defini-Ia, ou mesmo Gramsci, que Ihe deu uma especie de "passaporte de cidadania", 0 conceito de ideologia tern sofrido as mais variadas ~onota~5e~. !:Ill quem. a considera, como faz Robert Nisbet, "quaIquer conJunto d.e Idelas mora~s, economicas sociais e culturais razoavelmente coerente, possumdo uma rela~ao salida e ab~a com a politica e 0 poder politico; mais especificamente, ~ uma base de poder para possibilitar 0 triunfo de urn conjunto de ideias". Nao dlscuto aqui a validade ou nao desse conceito mais amplo, nem desconhe~~ ~s suas possibilidades. Mas para 0 estudo em pauta atenho-me a no~ao ongm~ de Marx e de Engels. Cf. a cita~ao de Nisbet no seu livro 0 Conservadorzsmo, Lisboa, Estampa, 1987, p.9. Revista Perspectiva Filos6fica compreender detalhes ta~ delicados quanto controvertidos no campo da filosofia e ciencias politicas. Trata-se de tecer alguns comenUiriosacerca da relayao conflituosa das posiyoes politicas de Edmund Burke, se colocadas perante as grandes revoluyOesdo seu tempo. Confesso que meu primeiro impulso foi 0 de escrever urn longo ensaio que permitisse expor minhas ideias mais claramente, e ao mesmo tempo pudesse servir de analise sobre 0 assunto. Mas logo me dei conta da impossibilidade de estender- me sobre urn empreendimento dessa magnitude; em parte pelas limitayoes das informayoes disponiveis a respeito das obras politicas de Burke, em parte pelo espayo que possuo para transmitir as impressOesnecessarias para urna compreensao exata do problema. Como se sabe, existe entre nos - mesmo em lingua estrangeira - urna certa escassez bibliografica sobre BurKe. Embora citado frequentemente, e urn dos autores classicos que tern sobre 0 seu pensamento urn dos menores indices de estudo sistematico e exclusivo. As referencias feitas sobre Burke se nao chegam a ser infimas - ressaltei ha pouco as constantes menyoes feitas as suas ideias - sao, de certo modo, reduzidas quando comparadas aos demais pensadores da tradiyao classica. Creio que a explicayao para 0 caso (ou descaso) tern urna relayao muito proxima da atitude de Burke para com a teoria politica (ou mesmo seus representantes). Romem de habitos praticos, parlamentar, e, precisamente por isso, politico profissional, era notorio - e poucos desconhecem isso - 0 seu desapreyo para com a teoria e a filosofia. Sao frequentes as alusoes de Burke no sentido de que a teoria nao capacita os hornens para a pratica, ou ainda a sua repulsa aqueles que vivem apenas da filosofia.3 Seus principais 3 A obra mais conhecida de Burke esta repleta de preconceitos contra a teona. Devo salientar, porem.,que 0 seu menosprezo deve-se menos ao conjunto de pnncipios cientificos formulados por aqueles que divulgam 0 conhecimento do que as elaborayoes meramente especulativas ou metafisicas. Confirmam isso trabalhos eram produtos de observayoes empiricas de eventos que ocorriam no desenrolar da hist6ria, sem grandes preocupayoes em sistematiza-Ias. A ausencia de sistematizayao muito se devia "ao fato de esposar urna visao hostil as abstrayoes".4 Burke certarnente tinha razao quanto ao entorpecimento da ayao politicapor parte da teoria sem urn contato direto com a pratica. Sua objeyao a Revoluyao Francesa era motivada pela aplicayao abstrata de principios tais como a liberdade, a igualdade.5 Apesar disso, sua visao da realidade francesa estava, ela tambem, infectada de fundamentos abstratos.6 Obviamente, nao se podia exigir de sua estrutura ideologica mais do que urna posiyao metafisica diante de acontecimentos tao marcantes como aqueles proporcionados pela Revoluyao de 1789. Por nao ser urn filosofo, na ace~ao exata da palavra, mas urn politico que nao deixava de ter preocupayoes filosoficas,7 pf>deBurke dispor de urn conjunto de dados fomecidos pela realidade concreta que 0 dotaram de uma visao de longo alcance (ainda que metafisicamente suas investidas contra "as especula~s superjiciais dos janotas da filosofia" ou a "fe cega" que muitos depositam nos "dogmas dos fil6sofos''''. (Os itaIicos sao moos). Cf. Edmund Burke,' Refl.exoessobre a Revoluyao em Franfll, Brasilia, Editora da Universidade de Brasilia, 1982, pp. 83 e 109. Veja-se ainda a critica feita por ele a pouca expenencia pratica dos neg6cios publicos que tinham os membros do Terceiro Estado para a condu~o da politica francesa: "Os melhores eram homens s6 de teona". Ibid. p. 75. Burke, no entanto, como se vera posteriormente, nao escapou a infI.uenciada metafisica. 4 Maria D'Alva Gil Kinzo, "Burke: a continuidade contra a ruptura", in Francisco C. Weffort (org), Os Cltissicos do Politico. Vol. 2, Sao Paulo, Atica,1989, p. 20. 5 Ibid. p.20. 6 Ibid, p. 20. A autora atribui aos "fundamentos metafisicos" de Burke, 0 papel dominante da religiao no seu esquema explicativo do universo. Se hem que nao esteja errada, a explicayaome parece incompleta, como veremos mais adiante. 7 Sabine observa que sena for~ar urn pouco dizer que Burke forrnulou uma filosofia politica, mas reconhece que uma filosofia conservadora sO tornou-se possivel depois que ele liderou a rea~o contra a Revoluyao Francesa. Cf. George Sabine, Historia das Teorias Politicas, Sao Paulo, Editora Fundo de CUltura,1961, pp. 606-607. contomos do seu pensamento, encontram-se na propria conce~ao (ideologica) de sociedade. Na verdade, e um procedimento sutil e complexo que se desdobra em dois cursos paralelos convergindo para a mesma foz politico-filosofica: 0 conservadorismo. A primeira dessas duas variantes tern como finalidade adaptar, aos mecanismos do desenvolvimento politico, a estrutura basica das planifica~Oes utilizadas tanto na engenharia quanto nos modelos arquitetonicos. A segunda visa aplicar mecanicamente ao ordenamento social os instrumentos fomecidos pelos metodos utilizados nas ciencias naturais. A ausencia de urna terminologia apropriada para designar esse processo, poderiamos defini-Io, por aproxima~ao - e ate mesmo com um pouco de abuso de linguagem -como teoria politica da construc;iio civil. Sao os comenUirios de Burke sobre "os primeiros atos revoluciomirios" que nos fomecem os elementos necessarios para fundamentarmos a hip6tese. Para Burke, a Constitui~ao havia abandonado seus verdadeiros principios desde que os franceses deixaram de usufrui-Ia.8 Havia, para ele, condi~oes para restaura-Ia, uma vez que "algumas paredes .de urn veneravel edificio" ainda se mantinham em pe, bem como suas proprias funda~oes. Nesse caso, os franceses "teriam podido reparar estas paredes e construir sobre estas antigas funda~Oes".9Nao se trata de um mero jogo de palavras ou um simples recurso literario em busca de urn estilo mais perfeito. Aqui 0 metodo e 0 conteudo e a metafora reproduz, ao nivel da abstra~ao, 0 que Burke imaginava em termos politicos.(Como sera visto mais tarde, a funda~ao representa a tradi~ao). Urn consideravel predio de apartamentos, por exemplo, pode ser inteiramente destruido, e sobre seus antigos alicerces e possivel erguer, sem grande esfor~o, urn modelo elaborada). Seu talento superava em muito 0 dos homens de sua epoca. Nao e acidental que, ao contrlirio da maioria dos liberais do seu tempo, percebesse 0 perigo que representava a Revolu~ao Francesa para os direitos de propriedade, pelo menos antes de sua fase eminentemente burguesa. Burke possuia urn profundo sentimento de classe, e tinha consciencia disso. Sabia, tambem, que a antiga forma de autoridade, tradi~ao e religiao estava amea~ada pela eClosao de urn movimento de massas sem precedentes na historia dos movimentos sociais. 0 conhecimento que possuia desses fatos visava, acima de tudo, construir urna unidade teorico-pratica capaz de advertir a sua propria classe para os riscos que acarretariam a participa~ao popular nos processos de decisao. Em decorrencia dessas apreensOes, edificou, em volta do seu pensamento, uma estrutura ideologica e metafisica que deixaria transparecer, idealmente, no seu proprio metodo de analise. Existe quase urna impossibilidade genetica de determinar 0 carater metodologico da obra de Burke. Essa dificuldade reside, em parte, na resistencia do autor em oferecer, deliberadamente, urna unidade sistematica aos seus trabalhos, quase sempre configurados em dispersos discursos parlamentares ou em textos politicos circunstanciais. Mas 0 obstaculo tambem se dli face a sua hostilidade frente. as teorias, e por nao querer emprestar, aparentemente, as suas preocupa~oes, urn cunho doutrinlirio. Se a natureza do metodo nos seus trabalhos nao pode ser delimitada de forma visivel e fixada expressamente num corpus teorico, e de outro lugar que deve ser extraida. A falta de uma base procedural relativamente identificada, sobre a qual possamos formar urnjuizo mais precise das proposi~oes de Burke, assumo a hip6tese de que as propostas metodologicas contidas nas suas analises, e que vao fixar os 8 Burke, RejlexOes ..., p. 71. 9 Ibid, p. 71. arquitetonico inteiramente diferente do anterior. A diferen~a, porem, e apenas formal, na medida em que 0 "novo" edificio a ser construido devera obedecer, integralmente, as mesmas caracteristicas de seu antecessor. A estrutura fundacional projetada no ambito especifico da constru~ao civil nao permite ao mais talentoso dos engenheiros fugir aos padroes normais e as regras estabelecidas pelos calculos matematicos. Entende-se que, ao sobrepor ao estudo do arcabou~o politico e social de urna determinada sociedade uma metodologia destinada a ser empregada no terreno das ciencias exatas - ainda que nao tivesse consciencia efetiva do metodo -, a concep~ao de transformaf:{io adquira 0 carater depermanencia. Nao estranha, portanto, que Burke procurasse legitimar as mudan~as politicas por intermedio de urn artificio em que a rigidez "normativa" assegurava, por assim dizer, a conservaf:{io de todos os elementos essenciais a antiga ordem social. Pode-se dizer, que ao inspirar-se na Revolu~ao Inglesa para fixar os limites de toda e qualquer mudanya no interior das sociedades vigentes - inclusive naquelas que por ventura viessem surgir -, Burke apoiou-se, totalmente, no processo analogo ao desenvolvido pela eng,enharia civil. 10 Nao constitui segredo para a maior parte dos que estudaram a hist6ria das grandes revolu~oes do passado, que os eventos ocorridos no final da Inglaterra setecentista deram-se atraves de compromissos de forma a manter os principais fundamentos economicos da sociedade nascente nas mesmas maos dos que os detinham no "antigo regime". A conclusao a que chegara Burke tern sua justifica~ao na segunda variante do metodo - 0 recurso as leis da natureza. Existe para ele, "uma ordem natural das coisas" que nao pode ser pervertida.11Em urn 10 o fato de nao existir uma teoria nesse sentido it epoca nao elimina 0 probIem~. No seculo XVIll, como hoje, as regras de construyao obedecem a ~Impadrao ao qual 0 con strut or nao tern condiyoes de escapar. Ibid, p. 81. trabalho inacabado sobre as leis contra 0 papismo na Irlanda, Burke defende 0 respeito a lei natural insistindo que mesmo uma sociedade inteiranao pode aprovar uma lei que seja capaz de lhe caUW danos. Para ele, nao caberia a qualquer comunidade, nem mesmo a toda raya humana, alterar a vontade de Deus que nos havia concedido urna lei invariavel.12Transpondo as leis que regem a dinfunica natural para 0 campo social, Burke combate 0 principio da igualdade como uma forma especifica de "guerra civil contra a natureza". 13 Se nao pode haver altera~Oes significativas nas disposi~oesbasicas do mundo natural, por que deveria ocorrer no mundo SOcial, que nao e outra coisa que a extensao organizada politicamente dos designios da Providencia? Justificadas a desigualdade e a impossibilidade inata de suceder alterayoes nas fun~Oes economicas das sociedades, nada mais restava que considerar, determinados tipos de revoluyao, fatos antinaturais e indesejaveis. Certas revoluyoes nao s6 causavam embara~os a ordem estabelecida como impediam (ou colocavam obstaculos) a sua continuidade. A indaga~ao que se coloca enmo e a seguinte: que motivos levaram Burke a recusar status de qualidade a revolu~ao francesa quando 0 movimento insurrecional americano contra a coroa britanica obteve sua aprova~ao? Como entender sua condena~ao a uma revolu~ao que "na visao modema abriria os Estados europeus (...) a benefica opera<;aoda ordem capitalista mundial",14 sistema em que Burke tanto depositava suas "12 Cf James Connif, "Edmund Burke on the Comming Revolution in Ireland", JournaJof the History of Ideas, Vol. 47, n. 1, jan-mar, 1986, p. 41. Burke segue aqui a tradiy30 dos te6ricos das leis da natureza que as consideram sempre imutilVeis e etemamente vaIidas. 13 Ibid, p. 81. 14 Cf C. B. Macpherson, Burke, Madrid, Alianza Editorial, 1984, p. 96. Muito ernbora Macpherson tenha feito urn exame minucioso da obra de Burke, nao concordo com uma das conclusOes que ele retira dos textos burkeanos, au seja, de que nao estava nos planas do politico irlandes conceber a hist6ria modema COmoa conquista do poder de uma classe. esperan9as? Creio que apenas atraves da reprodu9ao ideologica do metodo empregado por Burke e possivel compreender 0 sentido exato do seu receio, e mais, do comportamento agressivo e hostil diante de urna situal;ao que acreditava ter todas as condil;oes de por a paz da Gra-Bretanha em risco. Ate certo ponto Burke tinha razao em temer que os reflexos oriundos da Revolul;ao Francesa, particularmente no que diz respeito a revolta das massas parisienses, atingissem a Europa, sobretudo 0 seu proprio pais. Seu talento politico foi capaz de perceber a distin9ao fundamental existente entre uQ'la revolul;ao politica ou urn movimento de independencia (igualmente politico) como a inglesa e 0 americano, e urna revolul;ao social de grandes proporl;oes como a france sa. Pesou a diferen9a entre elas mais do que 0 apego as limita90es ao "poder arbitrario".IS Nao quero afirmar com isso, que 0 respeito as leis constitucionais carel;a de importancia no pensamento de Burke. Ao contrario, temos evidencias muito fortes do seu legalismo materializado nas condena90es feitas a atua9ao britc1nica na America e na India. Mas no momento em que esmo em jogo os interesses de classe, e em perigo os fundamentos basicos de uma classe dominante, a legalidade toma-se urn estorvo ta~ serio quanto 0 perigo que representa a quebra dos pactos, causa geral de muitas das revolul;oes. A legalidade sempre pode ser questionada - senao rompida - quando os privilegios de uma detenninada camada correm graves riscos. As marc as desse condicionamento classista nao escaparam a aguda sensibilidade do "realista" Burke, cuja pressa em defender os interesses de classe 15 "0 que Burke odiava era, em suas pr6p~ palavras, 0 poder arbitrario". Cf Robert Nisbet, Os Filosajos Sociais, Brasilia, Editora da Universidade de Brasilia, 1982, p. 401. transformou os fatos concretos, em que fincavam raizes os preceitos legais, no mais abstrato dos "imperativos categoricos". No Discurso sobre a Conciliar;:Gocom as Col6nias, 0 direito a liberdade deve prevalecer sobre 0 direito legal. "Para rnirn - diz ele - a questao nao e se ten des direito a fazer rniseravel 0 vosso povo; mas se esta em vosso interesse faze-Io feliz. Nao se trata do que posso fazer, mas 0 que a hurnanidade, a razGOe a justir;:a me dizem 0 que devo fazer".16 (as destaques SaDmeus). Pode-se contra-argumentar, que 0 discurso dirigia-se exatamente aqueles responsaveis pela utiliza~ao do poder arbitrario sobre os povos da colonia (America). Certo! Mas quem me diz que os princfpios abstratos ditados pela razao e pela propria consciencia nao poderiam tambem ser aplicados em ocasi5es em que os interesses de classe estivessem amea9ados pelo "poder arbitrario" de govemos revolucionarios? A duvida nao e trivial, e sua relevancia e proporcional a modula9ao do raciocinio liberal, tenha sua genese na mentalidade conservadora ou nao. a sagrado respeito a lei por parte de Burke17 nao e obice ao seu rompimento, desde que a ordem natural - 0 dominio dos grandes proprietarios - esteja na iminencia de ser "coIT(I)mpida": "Como em todas as coisas, urn gozo legitimo e regulado e a melhor preven9ao contra a libertinagem e 0 excesso (...). Mas, assim como a riqueza e poder, tambem todo poder alcanl;a infalivelmente a riqueza, por urn ou outro meio; e quando os homens nao encontram outro meio de assegurar seus beneficios( ...) esses meios aurnentarao ate 0 infinito".18 Burke faz eco as palavras do primeiro e grande filosofo do pensamento burgues ao qual a burguesia deve sua visao de mundo. A aquisil;ao ilirnitada de poder e riquezas e 0 16 C. I Itado por Macpherson, id, p. 47. 7 Burke, "Discurso sobre la Refonna Econ6mica", Apud Macpherson, id, p. 49 18 . Ibid, p. 49. ponto central da filosofia burguesa que teve em Hobbes sua fonte origimiria. Em seu trabalho sobre as leis do papismo, 0 parlamentar irlandes repete 0 que Hobbes escrevera mais de um seculo antes: "0 desejo de aquisi~ao e sempre urna paixao de ampla visao".19 A sintese dessa cita~ao e a conseqiiencia necessaria do ideario burgues; tanto 0 conservador, que tern sua origem na "ordem antiga" e tradicional, quanta 0 liberal. De resto, 0 repudio as abstra~5es filosoficas manifesta-se apenas no "front" visivel das ideias mais imediatas , isto e, urna especie de "trincheira avan~ada" por tras da qual situa-se urn "robusto" espectro ideol6gico envolvendo por completo interesses materiais bem definidos - os privilegios, a propriedade, a ordem estabelecida. Das profundezas do ataque d~ Burke aos intelectuais, vem a superficie urna extrema desconfian~a de todas as influencias que pareciam chocar-se com a tradi~ao social, sobretudo a classe latifundiaria, com 0 gentleman como simbolo.2o Com efeito, a torrente pnitica de Burke tendia a entrar em refluxo quando os interesses de sua classe eram atingidos, ainda que "formalmente", quer dizer, nao na "pratica" imediata (na Inglaterra), mas para alem do "canal". 0 trauma que sentia pelos dramaticos acontecimentos do Continente devia-se exclusivamente as "maquina~5es dos philosophes, em luta pelo d ,,21 . b· d'po er, que com suas teonas a stratas con UZlam as massas a uma aventura para a qual elas nao estavam preparadas. 0 temor excessivo que Burke experimentava, prenunciando 0 carMer 19 Cf Macpherson, p. 40. Hobbes sustentava que nao ter desejos e estar morto, e que 0 poder e instrumento para adquirir mais poder, riquezas, reputayao e amigos. C. Leviathan, Harmondsworth, Penguin Books, 1985, pp. 150, 160 e 185, e Behemoth, in English Works, Vol. VI, Londres, John Bohn,1840, pp. 213 e 256. 20 Nisbet, La formaci6n del pensamiento sociol6gico, Vol. I, Buenos Aires, Amorrotu, 1966, pp. 159-160 21 .Ibid, p.158. Fernando Magalhdes universalista22 daquele movimento singular na hist6ria, obscurecia qualquer outro sentimento, deixando a mostra a ardente paixao pelo direito de urna classe manter sua posi~ao e mesmo suasposses. Indignado com os metodos "barbaros" utilizados pelos revolucionarios franceses, confiscando propriedades sem direitos a indeniza~ao, Burke tomava a causa pelo efeito. Convertia principios estabelecidos para casos particulares - a Revolu~ao Inglesa de 1688 the inspiraria os melhores exemplos- em generaliza~5es abstratas, tais quais as criticava em seus advecsarios "philosophes". Descrevia, no mais legitimo estilo metafisico, as leis imutaveis que 0 passado ingles legara as gera~5es pOsteras: "0 povo da Inglaterra - escrevia ele - recusou, em seculos pass ados mudar sua lei para adapta-la a infalibilidade dos Papas; ele nao a transformara agora em favor de urna fe cega de dogmas dos filosofos".23 Paine e, provavelmente, 0 primeiro pensador a perceber a natureza abstrata dos principios de Burke, principios estes que aprisionam sociedades inteiras as obrigm;oes legais da "gloriosa" Revolu~ao Inglesa.24 Em socorro de Burke poderiamos sustentar que a defesa dos "rudiment~" da secular legisla~ao da Inglaterra levava em considera~ao a prote~ao de suas pr6prias institui~5es. Afinal, 0 povo ingles estabelecera esses principios 22 Nao e casual que Burke escreva urn capitulo de suas Reflexoes dedicado aos "perigos em que outras nayoes incorrem por causa do exemplo frances". Burke, id, pp.153-154. 23 [b'd 1091 , p. . 24 "Na Inglaterra, nenhum pai ou mestre, nem a autoridade do parlamento, com toda a sua auto-proclamada onipotencia, pode vincular ou controlar a liberdade I>essoal do individuo apos os vinte e urn anos de idade; com que direito, entao, poderia 0 parlamento de 1688, ou qualquer outro parlamento, vincular toda Posteridade para sempre?" Cf Thomas Paine, "The rights of man", in Thomas Paine Reader, Londres, Penguin Books, 1987, p. 204. atraves de uma revolu~ao para respeitA-los depois como urna norma constitucional. Contudo, Burke nao se satisfaz com a simples defesa do direito britamco e contesta os pr6prios atos da Revoluc;ao Francesa, ministrando lic;5es a respeito da excelencia e da modera~ao da monarquia absoluta da Franc;a.25Regula as leis da revolu~ao de 1789 pelas "leis universais" da revolu~ao whig de 1688; ve a tirania na pessoa do rei e nao enxerga 0 despotismo das tradi~5es momirquicas em geral; consente, sem relutancia, 0 poder indiscriminado dos reis, sob qua/quer forma, a decisao de uma Assembleia supostamente ilegitima, porque revoluciomiria. Esse comportamento metafisico, que revela a ideia de manutenc;ao do poder a qualquer custo, mereceu urna resposta por parte do mesmo Paine quase tao violenta quanta as exiguas e nao menos agressivas observac;5esde Marx sobre a presurnida e discutida conduta moral de Burke.26 "Dez anos atras - lembra Paine citando 0 parlamentar britanico - eu teria felicitado a Franc;apor ter urn govemante, sem questionar a natureza daquele govemo, ou como ele era administrado. Esta e a linguagem de urn homem racional? (...). Nesse sentido, 0 Sr. Burke deve cumprimentar todos o~ govemos do mundo enquanto as vitimas que sofrem sob ele, submetidas a escravidao ou a ll...maexistencia 25 Seria enfadonho citar as inumeras referencias que Burke faz as qualidades da nobreza francesa e ao pr6prio rei Luis XVI. As citayoes mais expressivas, entretanto, podem ser encontradas nas pp. 105-106,135,144-145 dasReflexoes. 26 Este sincofanta, que, a soldo da oligarquia inglesa, se fez passar por romantico frente a revoluyao francesa, exatamente 0 mesmo que, antes dos disturbios da America do Norte, se havia feito passar por liberal diante da oligarquia inglesa a soldo das colonias norte-americanas, nao era mais do que urn burgues vulgar". A ira de Marx deve-se ao fato de Burke ter afirmado que a expressao "labouring poor' (povo trabalhador) nao era mais que urn fingimento (hipocrisia) politico execnivel (execrable political cant). Cf. Karl Marx, El Capital, Livro I, Mexico, Fondo de Cultura Econ6mica,1973, p. 646. de torturas, saD inteiramente esquecidas. E 0 poder, e nao os . " S B k ,,27pnnclplos, que 0 r. ur e venera. Apenas os principios da Revolu~ao Inglesa parecem integrar 0 "imagiruirio politico" de Burke. A perspectiva do papel da hist6ria e fundamental para sua visao da politica e do pensamento conservador, em geral. "A Hist6ria" e reduzida a experiencia. A legitimidade e obra da hist6ria e das tradic;5es,e a Franc;amutilou seriamente a ordem social tradicional. Recorrer a "contra-revoluc;ao" era urna obrigal;ao imediata dos govemos europeus.28 As "primeiras no~5es" que nao tenham sido estabelecidas no momenta exato da ruptura jamais terao aplicabilidade efetiva. A renimcia vincula, inclusive, as gera~5es futuras.29 Racionalizac;5es como estas, hauridas dos fatos passados e reais, e verdade, mas erigidas a categoria de modelo ideal, anuviam a visao do observador e dao ao agente urna "falsa consciencia" das suas verdadeiras forc;asmotrizes. A repulsa de Burke s6 pode ser entendida como urn profundo sentimento de perda, ainda que esta se de no plano ideal; as possibilidades da revoluc;ao estender-se para alem do horizonte de sua pr6pria materialidade - a universalidade da Revoluc;ao Francesa era capaz de fazer as "abstra¢5es filos6ficas" tomarem corpo real em to<1o0 mundo - foi, no entanto, 0 leitmotiv do receio conservador de Burke; foi a causa da reproduc;aoideol6gica de sua conce~ao da hist6ria e do mundo alc;ada a nivel de principios gerais. A 28 Podemos notar que a tradi~o da qual ele falava era a francesa, mas 0 norte para 0 qual apontava era 0 ingles. Cf. Nisbet, Id. pp. 29 e 48-49. 29 "Se houve urn tempo favonivel ao estabelecimento do principio, segundo 0 qual a legitimidade do rei advem de sua eleiyao pelo povo, este tempo foi, sem d6vida, 0 momenta da Revoluyao. 0 fato de nao ter sido estabelecido nesta epaca, e a prova cabal de que a nayaOinglesa era de opiniao de que ele nunca deveria ser estabelecido(...) A Revolu~o nao nos deu 0 direito de eleger nossos reis(...) [e] renunciou solenemente a ele, por ele e por todos os seus descendentes. (Grifos meus). Cf. Burke, Id, pp. 58 e 59-60. Privilegios, tradi~ao e interesse de classe: as raizes ideol6gicas do dominio. da tradi~ao, que sempre norteou 0 espirito de nossos jurisconsultos (...) levou os habitantes deste reino a considerarem seus direitos e franquias mais sagrados como uma heran~a".31 Segundo Burke, a "Declara~ao de Direitos", do primeiro anDdo reinado de Guilherme e Maria tomava todas as precam;oes para garantir a religiao ha muito existente, mas em certo sentido colocada em perigO.32Da mesma forma que os homens esclarecidos de sua epoca, Burke via a liberdade como urn legado transmitido pelos fundadores da sociedade.33 No computo geral, buscava-se restaurar a trindade romana que havia sido solapada nos seus fundamentos, 0 que representava a causa primordial do "declinio do Ocidente".34 Contudo, se 0 esfor~o para recuperar a Iiberdade perdida no "despotismo ocidental" e restabelecer a autoridade tradicional parece valido para justificar a irru~ao dos movimentos revolucionarios, como explicar a postura aparen1emente contraditoria de Burke, caracterizada por uma "inapropriada" explosao contra a Revolur;aoFrancesa? Como se sabe, Burke havia apoiado quatro processos revolucionarios em diferentes paises de varios continentes.35E inegavel a presenr;'a de trar;os constitucionalistas em Burke, quando se pensa numa possivel "quebra" da legalidade; mas 0 clareza do realismo incompleto de Burke so podeni ser assimilado se conseguirmos compreender 0 fundo politico do sistema de crenr;asao qual ele estava submetido. Burke foi urn liberal conservador, cUJa indina~ao tradicionalista traduzia firmemente seu pendor para a manutenr;ao da autoridade - e nao devemos deixar de acrescentar - legitima. Se admitirmos com Hannah Arendt, que as duas grandes revolur;oes do seculo xvm inspiraram-se no pathos romano da fundar;ao, cuja natureza sagrada da coisafundada permanecia obrigatoria para todas as gerar;oes futuras,30seremos for~ados a reconhecer, igualmente, que 0 nucleo central-da formar;ao ideologica do pensamento de Edmund Burke residia, paradigmaticamente, no logos romano constituido pela trindade: autoridade, tradi~ao e religiao. Esta nao e urna dedu~ao aleatoria (embora tenha por base uma analise pessoal), interpretada sobre vagas referencias, mas uma observar;ao alimentada por indicar;oes precisas e explicitamente determinadas pelas proprias palavras do autor: "Todas as reformas que fizemos ate hoje foram realizadas a partir de referencias ao passado; e espero, ou melhor, estou convencido de que todas as reformas que possamos realizar no futuro estao cuidadosamente construidas sobre pre,cedentes analogos, sobre a autoridade, sobre a experiencia( ...) A poderosa preven~ao a favor 31 "Burke, id, pp. 67-68 32 Ibid, p. 68. 33 Nas palavras de Hannah Arendt: "A liberdade romana era urn legado transmitido pelos fundadores de Roma ao povo romano; sua liberdade ligava-se ao inicio que seus antepassados haviam estabelecido ao fundar a cidade...". Nao era a toa que os revolucionarios americanos eram chamados de "pais fundadores". Cf. Arendt, id, pp. 214-215. Para uma compara~ao entre a heran~ romana e a ideia de "pais fundadores" como testemunhas dos eventos da funda~ao, consultem-se as pp.167-169. A autora, no caso, reporta-se aos Ap6stolos da Igreja Cat6lica. 34 Ibid, p. 185. 35 A Revolu~ao Ingiesa de 1688, quatro decadas antes do seu nascimento; a Revolu~o Americana; a revolta dos Bengalis, na India, contra a British East Company e as esponidicas insurrei¢es dos cat6licos irlandeses contra as for~s ingiesasna Irlanda. Nisbet, Os Filosofos Sociais, pp. 400-401. 30 A ideia de restaura~ao do espirito do passado pelos homens que fizeram a revolu~ao de 1776 e 1779 ocupa amp10espa~o na teoria politica de Hannah Arendt. Ela dedica ao assunto uma longa investiga~ao, em livro ja dassico sobre 0 tema revolufiio, e reserva algumas paginas a questao em outro texto de menor extensao, mas nem por isso menos importante. Cf. Hannah Arendt, Sobre la Revolucion, Madri, Ediciones de la Revista de Occidente, 1967, particularmente as pp. 51-189; e Entre 0 Passado e 0 Futuro, Silo) Paulo, Perspectiva, 1988, pp.162-187. "constitucionalismo ingles" encontrava limites na sua propria tradi<;ao e ate onde pudesse por em risco os fundamentos essenciais desse mesmo tradicionalismo. Em outros termos: enquanto constituisse uma amea<;agrave aos privilegios oriundos do "espirito de nobreza" e os interesses de classe do sistema economico ingles - 0 capitalismo. "Aqueles que na Fran<;aroubaram 0 clero - escreve Burke nas Reflexoes - atacam os fundamentos de nossa cren<;a comurn.,,36Naturalmente, ele acusa os que "nao amam a essencia mesma da religiao", apontando para uma possivel afinidade entre o catolicismo e 0 protestantismo. Todavia, a critica so se tomou viavel em virtude do confisco dos bens sofrido pela Igreja Catolica francesa. 0 capital, a propriedade, 0 sistema representativo (censitario) e a ausencia de participa<;aopopular nas decisoes publicas eram as preocupa<;oesdos liberais cllissicos e conservadores ate fins do seculo XIX - qui<;ado seculo atual. As revolu<;oesinglesa e francesa tinham a seu favor a grande maioria da classe burguesa, porquanto eram realiza<;oes dos setores mais avan<;adosdesse segmento. Mas se ambas foram deflagradas em fun<;aode urn ideal de classe, havia distin<;oes profundas que poucos tiveram oportunidade de captar, e entre estes seguramente encontrava-se Burke. Para ele era demasiadamente facil colocar-se ao lado da revolu<;aoinglesa, ate porque na sua origem, e do ponto de vista economico, "a Guerra Civil nao produziu qualquer transferencia maci<;a de propriedade de terras de urn grupo ou classe para outro".37"Do conflito, diz Barrington Moore Jr., nao resultou a tomada do poder politico pela burguesia. As classes superiores rurais mantiveram 0 comando firme da politica (...) nao so durante 0 seculo XVIll, mas ainda apos a Lei da Reforma em 1832 (...) A ordem aristocratica sobreviveu, mas sob uma nova forma, pois sua base agora e mais 0 dinheiro do que 0 nascimento. E 0 proprio parlamento tomou-se 0 instrumento dos capitalistas proprietarios de terras, tanto whigs como tories".38 Venceu 0 acordo. Burke poderia, assim, dar continuidade a tradi<;ao e a venera-Ia porque essa ordem tradicional ja era uma ordem capitalista.390 capitalismo chegara inserindo-se numa ordem hierarquica sem alterar as formas . 40 _ , politicas nem as diferen<;asde classe fundamentals. Nao e sem razao que Burke sentia-se segura na sua tradi<;ao.Embora em outras condi<;oes, a Revolu<;ao Americana passou por urn processo semelhante de ruptura. Pelo seu come<;otardio nao se defrontou com 0 problema de demolir uma sociedade agraria e complexa. "Desde 0 inicio a agricultura comercial foi importante (por' exemplo, 0 fumo da Virginia). Desse fato nao resultou qualquer modifica<;aofundamental na estrutura da sociedade".41 Vale salientar, que a guerra pela independencia americana foi urn caso tipico em que 0 resgate da tradi<;ao perdida obteve resultados satisfatorios, ainda que em novas bases e com as inova<;Oes introduzidas por sugestOes 38 Ibid, p. 27. Moore, neste trecho, cita 0 historiador Zagorin em English Revolution. Vale a pena cotejar a interpreta~ao de Moore Jf. com a de Poulantzas no seu Pader Politico: "A propriedade ja e uma forma de propriedade capitalista (... ) 0 ana de 1640 e a sua viragem de 1688 marcam precisamente 0 inicio (debut) da transforma~ao de uma parte da nobreza feudal em classe capitalista. Por isso, essa revolu~ao e uma revolu~ao burguesa no sentido proprio do termo". Nicos Poulantzas, Pouvoir Politique et Classes Sociales, Paris, Maspero,1968, pp.171 e 182. 39 Macpherson, Id, pp. 17-18. No penultimo capitulo do seu livro ele real~a a afirma~o de que na epoca de Burke, a ordem tradicional era de fato, a ordem capitalista ha pelo menos urn seculo. Cf. p. 95. 40 ibid, p. 95. 41 Moore Jr., Id, pp.115-116. 36 Burke, Id, p. 152. Ver tambem a p. 153: "Para a Assembleia Nacional Francesa a posse nao e nada" 37. . . Barnngton Moore Jr., As Origens Sociais da Ditadura e da Democracia - Senhores e Camponeses na Construriio do Mundo Modemo Sao Paulo Martins Fontes, 1983, p. 26. " Reuista Perspectiua Filoso.fica montesquiesianas.42 Entende-se, assim, OS motivos pelos quaIs Burke sempre demonstrou simpatias por estas causas. Certamente, nao e 0 bastante para explicar totalmente sua atitude para com as colonias da india. Mas se levarmos em considera<;ao que ele mesmo era origimirio de urn pais oprimido, dificilmente poderia permanecer do lado do opressor. Os problemas mUdam, no entanto, quando se trata de urna ruptura em que estao em jogo nao somente a tradi<;ao, mas tambem os fundamentos blisicos das sociedades divididas em classes, os privilegios, e dentre todos 0 mais importante: a propriedade. A Revolu<;ao Francesa destruia, de inicio, dois principios elementares da tradi<;ao capitalista como Burke concebia. Em primeiro lugar, a nobreza nao havia conseguido expulsar do campo os camponeses e vivia exclusivamente das obriga<;oes impostas a area rural. Tomando-se mero apendice do rei,43 fora despojada do poder. Em segundo lugar, a questao da propriedade nao ficara clara ate a revolu<;ao receber 0 seu "estatuto" efetivamente burgues. Nao obstante a deflagra<;ao do conflito ter sido estimulado pelo ideano da burguesia e da restaura<;ao da tradi<;ao e dignidade politicas, a adesao das massas populares - notadamente os sans-culottes - a causa da revolu<;ao, mudou 0 rumo dos acontecimentos. Desde 1789 "perfilava-se 0 espectro de urn poder popular e da democracia direta".44 A Declara<;fio de Direitos de 1789 nem sequer definia 0 direito de propriedade, 0 que s6 ocorreu na Declara<;ao de 1793.45Burke sabia muito bem 0 que tudo isso representava. A propriedade corria perigo enquanto os privilegios da nobreza ja haviam sido eliminados. A concep<;ao ideo16gica de Burke era uma conce~ao de classe. Percebera que, ao contr3rio das revolu<;oes politicas passadas, esta era uma revolu<;ao social, a mais extraordinaria de todos os tempos e com urn poder de universaliza<;ao sem precedentes na hist6ria, conforme salientou Hobsbawm: "foi a Unica ecumenica (...) Sua influencia direta se espalhou em Bengala, onde Ram Moham Roy foi inspirad~ por ela para fundar 0 primeiro movimento de reforma hindu, precursor do modemo nacionalismo indiano".46 Burke tinha razoes de sobra para temer que a ideologia que dali emanava - e se alastrava - atingisse a vizinha Inglaterra. Essa na<;ao vinha de uma longa tradi<;ao de defesa da propriedade - heran<;a da teoria de Locke - em que 0 povo dela s6 participava na qualidade de trabalhador.47 0 veu da ilusao, entretanto, encobria a outra face da realidade que Burke nao fora capaz de ver. 0 terror nao fora outra coisa que a rea~ao burguesa contra a democracia popular.48 A propriedade capitalista estava salva. 45Soboul, /d, p. 93. 46 Eric. 1. Hobsbawm, A Era das Revo/ufOes, Rio de Janeiro, paz e Terra, 1977, pp.72-73. . . 47 Laski enumera uma serie de autores que fundamentaram 0 direlto de . propriedade Ii custa do trabalho servil, dirigindo-se Ii classe trabalhad~ra.quase sempre de forma pejorativa. Teria sido essa tradi~ao que Burke apOl~a .. Cf Harold Laski, E/ Libera/ismo Europeo, Mexico, Fondo de Cultura Econonnca, 1939, pp. 280-283. Acho que seria inutil e irrelevante, para 0 caso, tentar demonstrar 0 6bvio, ou seja, 0 desprezo de Burke para com a grande massa do povo. Umas poucas paginas, porem, darao ao leitor urn quadro geral da sua grande "generosidade". Cf. Burke, id, pp. 81, 82,159-160. _ 48Autores das mais diversas tendencias convergem para esta conclusao comum. Cf Moore Jr, id, pp. 92-105; Arendt, Revo/uci6n, p.1l7, e Soboul, id, pp. 64- 70 e 80-93. 42Creio que Hannah Arendt equivocou-se ao dizer que os autores da revolu~o partiram para a cria~o de uma empresa inedita quando tomaram consciencia da impossibilidade de restaurar 0 espirito da autoridade romana. E 0 suficiente perceber, ainda hoje, 0 cerimomal politico de Washington, a importancia atribuida ao Congresso - onde se acha 0 Senado americano - a for~a que possui a religiao e, principalmente, a tendencia imperial para ampliar sua funda~ao em todas as partes do mundo, a exemplo da Roma antiga, para se ter uma ideia de como se encontra viva a tradi~ao romana naquele pais. Cf Arendt, Sabre la Revoluci6n, p. 522, e Entre 0 Passado e 0 Futuro, p.162. 43Cf Moore Jr., Id. p. 47. 44 Albert Soboul, A Revolufiio Francesa, Sao Paulo, Difel, 1983, p. 36. Ver tambem Moore Jr., id, p. 83. leis da natureza quando 0 direito de propriedade corria 0 risco de ser violado, e ainda que Burke se tornasse mais conservador a medida em que envelhecia, era talvez menos reaciomirio do que dele faziam seus companheiros alemaes.52 Mas como qualquer liberal, via a liberdade em inevitavel conexao com a propriedade. Nos Pensamentos sobre as causas do atual descontentamento, Burke declarava que 0 homem que antes de chegar ao poder nao tinha influencia em nenhurn grupo de interesses comerciais nao e urna pessoa que 0 parlamento deva tolerar, porque nao tern conexao com os interesses do poVO.53Nao nos deixamos enganar pela terminologia burkeana. 0 povo do qual ele fala e 0 cidadao proprietario, 0 homem de posse e com tempo disponivel para poder se interessar pelos assuntos publicos. "A tinica maneira de garantir a essas assembleias uma conduta sabia e moderada - diz ele - e que elas sejam compostas de homens respeitaveis pela sua posi~ao, propriedade e educa~ao...,,54Para Burke, urn governo composto por trabalhadores era urn fato anti-natural, "urna guerra civil contra a natureza".55 Contudo, a ideologia mascara 0 interesse de classe mais remoto, e ao. se imaginar lutando contra 0 "poder arbitnirio", defende, na verdade, os privilegios e posses legitimados pela autoridade legal da tradi~ao. Os principios gerais do pensamento de Burke 000 poderiam encontrar-se a margem dessa conce~ao. Visto por esse prisma - de continuidade hist6rica linear e permanente - Burke nega a qualidade de "lei organica", isto e, pr6pria, a qualquer revolu~ao Os grandes fatos hist6ricos das decadas finais do seculo XVIII definitivamente exerceram extraordinaria influencia no pensamento de Burke. Suas ideias, porem, haviam sido modeladas pela tradi9ao "conciliat6ria,,49da revolu9aOinglesa, e pela disposi9ao afetiva em rela9ao a ordem moral antiga que lan9ava para 0 passado suas "afmidades eletivas". Mas 0 passado nao era mais tao remoto, uma vez que seus ancestrais politicos mais pr6ximos ja se haviam integrado a nova realidade. A tradi~ao irrompera na vida inglesa sem os traumas das grandes rupturas, se bem que a conce~ao do termo "pacifico" nao deva ser levada muito longe. Estudos, nao raros, apontam para as violencias praticadas pelos regimes politicos sob 0 manto da legalidade, e mesmo urn pensador da epoca, como Paine, ja observa muito bem. A predile9ao de Burke pela continuidade vincula a tradi9ao como concep9ao de mundo ao metoda que preve a permanencia das institui~oes sobre as mesmas fundayoes. Burke assegurava, desse modo, a preservac;ao dos antigos direitos legados pela "historicamente conservadora Revoluc;;aode 1688".50 Isso nao significa que ao conservar 0 passado, a tradic;;aosurja como fenomeno manipulador de consciencias e opinioes. Burke acreditava honestamente nos principios da legalidade e da liberdade.51 Se bem que a liberdade encontrasse obstaculo nas 49 0 termo conciliatorio aqui nao possui 0 rnesrnosentido que habitualmente se atribui as sociedades que ingressaram tardiamente no sistema capitalista (denominado, tambem, de "via prussiana"), a exemplo da A1emanha,da ItaIia, e, na America Latina, do Brasil. Refiro-rne, exclusivamente, ao processo pelo qual passou a Revolu~ao Inglesa, sern que, inicialmente,urna c1assedestituisse outra do poder pela for~a. 50 hTomas I. Cook, History of Political Philosophy - from Plato to Burke, ~ova Iorque, Prentice Hall, 1937, p. 686. Se olio era urn dernocrata, tarnbern nlio nutria sirnpatias pela rnonarquia absoluta. Cf RejlexOes ..., p. 135. 52 Karl Mannheim, "0 pensamento conservador", in Jose de Souza Martins (org), Introdu¢o Critica a Sociologia Rural, Sao Paulo, Hucitec, sid, p. 87. 53 Burke, Textos Politicos, Mexico, Fondo de Cultura Econimica,1942, p. 271. 54 Burke, Rej7exOesc.., p. 175. 55 Id. p. 81. Ver ainda sua defesa de urn govemo cornposto pelas classes proprietarias as pp. 82-83, 172-173. que proceda as mudanyas sociais e politicas por meio de rupturas mais bruscas. Os criterios de transformayao pelo (mico caminho admissivel (concebivel) - 0 das reformas tradicionais sem abalos nas estruturas fundamentais da sociedade56 - tomam-se principios gerais no mais notavel grau de abstrayao; mas nem por isso impedem que a ideologia a eles subjacente adquira a natureza de "filosofia". 0 que faz 0 pensamento de Burke e reproduzir os interesses de classe de urn determinado momenta da hist6ria, mas elevados a condiyao de principios gerais pela mediatizayao das leis universais da natureza. A experiencia da realidade concreta e transposta para 0 modelo imutavel e fundador da tradiyao que nao e puramente imaginado, mas existe nos e para os desejos mais tangiveis de uma dada camada social. A imagina<;fio, se existe, no caso, e 0 reflexo do mundo real na sua forma filos6fico-politica e ideol6gica. o raciocinio metafisico de Burke formulou, dessa maneira, urn nucleo inicial doutrinario, cuja subsmncia municiou o arsenal do conservantismo. Sua concepyao do mundo ou visao ideol6gica (a teoria da construy3.osobre velhos alicerces) tomou forma de conscienciasocial que, absorvida pelo pensamento tradicional subseqiiente, nao demorou em materializar-se como filosofia politica do conservadorismo. 56 Burke, no caso, e fiel ao seu metodo. Indaga se nao era possivel fazer uma reforma sem destruir 0 edificio inteiro, ao inves de por em seu lugar uma constru~o (te6rica) nunca antes experimentada. Cf Rejlexoes ..., p.137. Seus pr6prios antigos aliados refutavam as suas acusavoes alegando que a Inglaterra possuia uma Constituivao da qual poderia fazer usa, enquanto na Franva nao existia nenhuma. Nao poderia essa na~o ser guiada pelo exemplo ingles. Connif, [d., p. 37.
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