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Elizete Passos ÉTICA E PSICOLOGIA teoria e prática VETOR EDITORA PSICO-PEDAGÓGICA LTDA. Rua Cubatão, 48 - CEP 04013-000 - SP Tel. (11) 3146-0333 - Fax. (11) 3146-0340 ÉTICA E PSICOLOGIA Após tomarmos conhecimento sobre o que se entende por ética e sua fundamentação teórica, firmar um conceito da ética aplicada à vida, ou seja, a bioética, e indicar como a Psicologia se incluiu nessa especificidade, continuaremos nossa trajetória de forma mais focalizada na ética e psicologia. O presente capítulo tem como meta analisar o que se entende por ética no campo da psicologia, identificar os principais problemas de ordem ética enfrentados pelos profissionais da área, o que vem sendo considerado como ético por eles e pelos estudiosos do assunto e qual deve ser o compromisso ético da profissão e dos profissionais, sem restringir a sua aplicação, pois este é o propósito do capítulo seguinte. O OUTRO E A SAÚDE MENTAL As questões psicológicas sempre foram objeto de interesse de filósofos e estudiosos, na busca por conhecer e definir o ser humano. As diferentes formas de compreensão da realidade e as emergências de cada momento histórico fizeram com que não se tivesse, nem se tenha, uma única forma de compreensão desses problemas. Até mesmo o objeto de estudo da psicologia tem-se modificado ao longo dos tempos. E l i zete P ass os A primeira tentativa mais consistente de tratar o assunto surgiu no ano de 1879, na Universidade de Leipzig, quando Wundt organizou um laboratório de pesquisa psicológica. A ideia de laboratório demonstra a orientação mecanicista com que esta era tratada. Como afirma Laia (1991, p. 17): Wundt vai buscar em ciências já constituídas de seu tempo - a física, a Fisiologia, por exemplo - o rigor e o método para fundamentar a Psicologia - de William James aos modernos skinnerianos e à psicologia da “Nova Era” preconizada pelo transpessoal - acaba por repetir, com mais ou menos sucesso, o procedimento wundtiano. A posição do autor é evidenciada na prática, a partir do con- ceito que se tem da loucura, do portador de transtornos mentais e do modelo de hospitais psiquiátricos ainda hoje em voga em nossa sociedade. O louco é considerado uma pessoa alienada, sem posse da sua razão, sem controle sobre os seus impulsos, sem consciência e adequação às normas sociais. Por ser diferente das pessoas consideradas “normais”, é tomado como desigual e destituído de sua liberdade e cidadania. A falta desses direitos, que definem a posição de sujeito, coloca-o em posição oposta, na situação de objeto e de coisa. O ponto crucial para desencadear esse processo é sua não- aceitação das normas socialmente impostas, apesar de oficialmente argumentarem que eles não têm discernimento sobre o que é verdadeiro ou não e que estão desajustados e impossibilitados para a convivência social, de modo que precisam ser “tratados”, a fim de voltarem a ter uma vida normal. Esses argumentos escondem os reais motivos do incômodo que o “louco”/diferente/liberto provoca, com sua atitude transgressora da ordem estabelecida. Como conseqüência, afirma Wickert (1999, p. 39): “[...] a exclusão se torna necessária socialmente quando a diferença e o insano que escapam à domesticação dos valores e símbolos humanos não são suportáveis.” 5 6 Ét ic a e Ps ic o l og i a : te or ia e pr át i c a Nesse aspecto, muito contribuiu a medicina que, a partir da sua suposta neutralidade, possuía, e até certo ponto ainda possui, o poder de definir a normalidade e a anormalidade e, assim, quem está apto para a convivência social e quem não está e precisa ser segregado até que esteja ajustado/conformado. Os hospitais psiquiátricos e os manicômios foram criados a partir da ideologia da massificação, da igualização das pessoas, ou seja, da supressão da diferença. Neles eram segregados os indivíduos que não apresentarem um comportamento aceitável e previsível socialmente, sob a “bondosa” alegação do Estado em protegê-los e ajudá-los a se restabelecer; quando, de fato, o que pretendem é silenciá-lo, não dar visibilidade à sua diferença e livrar-se dos incômodos que seu comportamento acarreta à “ordem” pública. Isso porque, como diz Foucault (1989 apud WICKERT, 1999, p. 25): “a loucura não diz tanto respeito à verdade e ao mundo quanto ao homem e à verdade de si mesmo que ele acredita distinguir”. Do mesmo modo, a saúde não significa acomodação, aceitação, uniformidade de ação, mas autonomia e poder de escolha. Uma pessoa saudável é aquela que pode e sabe escolher o que lhe traz felicidade e bem-estar em todos os sentidos. O que não lhe é permitido fazer quando ela é aprisionada em uma instituição manicomial, pois lá a proposta é inversa à liberdade, tanto no sentido físico quanto psíquico. Seu objetivo consiste em normatizar, adequar, silenciar as revoltas e atitudes que subvertam a ordem dos valores socialmente estabelecida. Wickert (1999) não tem dúvidas quanto à incapacidade do sistema manicomial na promoção da saúde do indivíduo. Afirma que ele: “[...] não promove a saúde do paciente, visto que não permite a alteridade do indivíduo.” (WICKERT, 1999, p. 41). A autora desdobra e aprofunda esse entendimento, dizendo que essas instituições padronizam o comportamento das pessoas ali aprisionadas, não permite que elas vivam suas E l i zete P ass os limitações, sonhos e frustrações, o que além de não diminuir o seu sofrimento ainda o aumenta. As instituições oficiais responsáveis pela promoção da saúde mental dos indivíduos em nosso país, por meio de seus profissionais e das teorias e técnicas utilizadas, em sua maioria, vêm destituindo o indivíduo da sua subjetividade, dos seus gostos e hábitos e, mais sério ainda, da sua dignidade. Diante da gravidade da situação, faz-se necessário que a sociedade, especialmente os profissionais da saúde, reveja seus conceitos do ponto de vista teórico, prático e moral, e o ser humano seja colocado como o centro, e sua individualidade e dignidade sejam preservadas. Os profissionais da psicologia podem contribuir bastante nesse processo, o que deve ser iniciado por sua própria transformação ideológica e utilização de novas orientações teóricas, diferentes daquelas de base positivista e mais histórica e cultural. Até porque, cada vez mais, atribuições que no passado eram da competência de médicos, estão sendo transferidas para os psicólogos, a exemplo de laudos e diagnósticos. Nesses momentos, sua atitude ética é fundamental, a fim de evitarem seguir os caminhos anteriormente descritos e se colocarem a serviço do outro, de sua saúde e dignidade. O que é possível e, até certo ponto, já vem sendo uma prática de muitos profissionais, pois, diferentemente do caráter me- canicista e técnico com que a Psicologia foi criada, hoje ela se coloca como uma ciência, que visa a estudar o comportamento humano. Do mesmo modo, já se pode falar de uma psicologia que possui diferentes formas de tratar a subjetividade, a fim de dar conta da diversidade dos indivíduos. A assunção dessa direção pluralista caracteriza-se como uma atitude ética, uma vez que o sujeito não será destituído de sua individualidade e historicidade, ao contrário, elas serão incluídas assim como suas circunstancialidades histórico-sociais. 5 8 Ét ic a e Ps ic o l og i a : te or ia e pr át i c a ALGUNS PROBLEMAS ÉTICOS QUE ENVOLVEM A PSICOLOGIA Os profissionais da Psicologia1 vivem no seu dia-a-dia de trabalho inúmeras situações que os coloca diante da problemática da moral. Inicialmente, porqueseu foco de atuação é o ser humano, o que apriori já o coloca na seara das relações e da necessidade de agir com consciência e respeito à especificidade do outro. Nessa relação, em especial do psicólogo com o cliente, problemas como os relacionados ao sigilo, aos riscos da sua violação por parte de participantes de grupos terapêuticos, ao atendimento de pessoas portadoras de doenças contagiosas, o valor a ser cobrado pelo serviço prestado, até o conhecimento da prática antiética de um colega de profissão o coloca diante de dilemas éticos. A esses problemas vão sendo agregados outros, decorrentes da ampliação do âmbito de atuação da Psicologia, com a abertura de novas áreas a exemplo da Psicologia Jurídica e da Hospitalar. Quanto a esta, o psicólogo passou a conviver com situações de nascimento, doenças graves, morte, inconformismos das famílias; também estão diante de grandes e preocupantes questões relacionadas à biotecnologia: experiências com embriões, transplante, eutanásia, engenharia genética, como vimos em capítulo anterior. Todos eles geram medo e insegurança e exigem reflexão e orientação moral sólida. O que não se dá de forma fácil e segura, porque vivemos em uma sociedade sem definição moral, em que existe, por um lado, os paladinos da moral, que não conseguem traduzir suas sofisticadas teorias em prática e, por outro, indivíduos comuns que vivem em busca da satisfação das suas necessidades e interesses, orientando-se pela “Lei do Gerson”. Isso deságua em uma situação difícil e 1 Utilizaremos esse termo como sinônimo de psicólogo. Então, em alguns momentos, usaremos a palavra psicólogo e, em outros, profissionais da Psicologia. E l i zete P ass os constrangedora para quem quer e procura agir eticamente. Elas não encontram eco para o seu desejo nem explicações convincentes sobre o que significa uma-atitude ética e porque devem agir de determinada forma evitando outras. Segundo Drawin (1991), as pessoas estão desamparadas e sem modelos éticos a serem seguidos. Como os psicólogos devem se posicionar diante dos inúmeros problemas éticos vivenciados por eles enquanto cidadãos e enquanto profissionais? Nossa resposta é clara e taxativa: ele não pode nem deve compactuar, silenciar ou repetir atitudes que violem a liberdade, a dignidade e os direitos da pessoa humana. Nada deve impedi-lo de agir eticamente e de procurar parcerias na sociedade capazes de fortalecer sua prática ética e estimular atitudes socialmente dignas. Agindo assim, ele estará contribuindo para o advento de uma sociedade mais ética, em que as pessoas tenham exemplos a serem seguidos e encontrem apoio para colocar em prática seu desejo de agir moralmente. Os profissionais da psicologia precisam tomar consciência da sua importância nesse processo, considerando-se que ela é uma prática social que deve se fazer de forma politicamente engajada e comprometida com os direitos humanos. Do mesmo modo, eles são fazedores de opinião porque, querendo ou não, influenciam as pessoas com quem trabalham e são vistos por elas e por grande parte da sociedade como pessoas que possuem um conhecimento poderoso sobre a “alma” humana. No plano mais estrito à sua prática profissional, ele não pode se omitir, por exemplo, diante de situações em que a doença mental torna-se instrumento para a manipulação dos indivíduos, suprimindo seus direitos civis, a convivência social e sua identidade. O psicólogo precisa agir a fim de estancar esses procedimentos, investindo em novas práticas, analisando a doença dentro do seu contexto histórico social e desencastelando-se do consultório para viver, sentir e trabalhar as grandes questões sociais que motivam o sofrimento humano. 6 0 Ét ic a e Ps ic o l og i a : te or ia e pr át i c a Em síntese, ele precisa atuar em escolas, creches, abrigos, associações, ou seja, em todos os lugares em que a existência humana se faz. COMPROMISSO ÉTICO DA PSICOLOGIA Mesmo sabendo-se que a ética se dá na prática, é preciso reconhecer que a teoria também traz embutida uma dimensão ética e sua escolha passa pelo compromisso ético que o profissional, o estudioso, o indivíduo possui. Assim, “[...] as teorias psicológicas têm não apenas consequências éticas, mas implicam em pressupostos éticos.” (DRAWIN, 1985, p. 16). Com isso, infere- se que não existe prática psicológica neutra, pois todas são perpassadas por valores e intencionalidades. O destino das teorias é de se articular com a prática, o que significa dizer que escolher uma é optar por uma forma de agir. O psicólogo por algum tempo foi preparado tecnicamente para agir, na ingênua compreensão de que a teoria não tinha uma base axiológica, entretanto a formação atual desse profissional vem investindo no repasse e na produção de teorias psicológicas, por entender que elas fundamentam a prática e orientam as ações. Diante disso, os profissionais vêm recebendo uma formação que contempla teorias, técnicas, métodos, enfim, ferramentas a serem usadas no seu dia-a-dia. No entanto, mais do que se conformar a ela de maneira mecânica e sem reflexão, eles devem analisar seus alcances e sua adequação aos ideais sociais que o profissional possui. Conscientes disso, precisam incluir nessa “bagagem” um número maior de itens, de visões, de direções, a fim de dar conta da pluralidade e da diversidade social e individual. Ao escolher as “ferramentas” teóricas e metodológicas, os psicólogos definem seu compromisso ético e social. No nosso ponto de vista, eles serão eticamente positivos quando as E l i zete P ass os escolhas recaírem em teoria, métodos e técnicas que contribuam para a autonomia do sujeito e para a sua emancipação. O isso significa? Para Marilena Chauí (1995), é autônomo o indivíduo que não se submete ao desejo do outro, aquele que tem condições de escolher o caminho que considera mais adequado ao seu bem- estar e a sua felicidade, pois autonomia do grego, autos, significa “eu mesmo”, “si mesmo” e nomos quer dizer lei, norma, regra. E autônomo quem não se conforma às normas impostas por outros, mas pode escolher aquelas que lhes sejam mais convincentes. Do mesmo modo, aquele que tem possibilidades de escolher o que é melhor para si, para a sua vida e não quem é obrigado a seguir um caminho determinado. Como dissemos no primeiro capítulo, não pretendemos com isso afirmar que o sujeito moral seja livre de condicionamentos, mas que eles não inviabilizam a escolha, apenas coloca algumas dificuldades. O compromisso ético do psicólogo já se encontra explicitado nos objetivos da Psicologia que, em síntese, consistem em ajudar o indivíduo a ser livre. Especificamente, das suas angústias, suas ansiedades e seus medos e, no plano maior, em fortalecer e defender os direitos humanos, sem preconceitos nem sectarismos. Diante disso, na sua prática profissional, mesmo sabendo que quando uma pessoa o procura está dizendo que confia no seu saber e na sua competência, ele não pode usar isso como forma de estabelecer com ela uma relação vertical, pois estaria indo de encontro ao escopo da sua profissão e tendo uma atitude antiética. A relação ética, que deve firmar com o outro (o atendido), deve ser de sujeito para sujeito, reconhecendo que ele também é portador de saberes e mais, de emoções e sentimentos. Assim, sua ação deve ser respeitosa, cuidadosa e amorosa. O psicólogo e psicoterapeuta Marcos Alberto da Silva Pinto, em entrevista concedida no ano de 1994, a estudantes de psicologia de uma universidade de São Paulo, assim se referiu 6 2 Ét ic a e Ps ic o log i a : te or ia e pr át i c a ao assunto: “O respeito ao cliente, o respeito consigo próprio, a atenção e o respeito aos próprios limites. Saber olhar o outro e respeitar a sua direção, sendo apenas um facilitador do processo do outro.” (D’AMARAL; PERA, 2005, p. 1). Também afirma que não é ético o profissional que se impõe sobre o atendido, pois assim retira dele o poder de escolher o seu caminho, o seu destino. E evidente que existem situações em que a pessoa atendida precisa de maior atuação por parte do profissional, por não ser capaz de se responsabilizar pelos atos praticados. Essas situações não podem ser enfrentadas da mesma maneira, pois cada caso é um caso e necessita de uma análise específica. Mesmo nesses quadros, o profissional não deve se abster de perseguir o objetivo de auxiliar o indivíduo a encontrar e poder fazer uso da sua liberdade, o que não acontecerá se ele for tomado como um alienado que deve ser submetido ao poder do “curador”. Esse caminho difere totalmente daquele, em alguns momentos, percorrido pela Psicologia, quando ao profissional competia fornecer laudos, quase sempre descontextualizados e focados na subjetividade individual, os quais serviam apenas para classificar, rotular e controlar as pessoas, visando a manter a ordem socialmente estabelecida. O chamado para participarem de perícias e elaborarem laudos, por exemplo, continua existindo; porém, com outra orientação ética em muitos casos. Também o psicólogo passou a fazer parte de comissões técnicas e de equipes de saúde, assim como vem sendo demandada sua atuação na área familiar, entre outros. Em todas essas situações, ele precisa se questionar acerca do seu fazer, do papel das instituições públicas, entre outros, conscientes de que não podem transformar sua função em burocrática e legalista. A ele compete oferecer oportunidades para o crescimento do indivíduo, ajudá-lo a reorientar sua vida e estabelecer Et i zete P as s os novos vínculos sociais. Confirmando esse compromisso ético, Miranda Júnior (1985, p. 31) nos diz: “Alguns profissionais, entre eles o psicólogo, têm hoje a árdua missão de fazer ouvir o que querem calar. E para calar, inclusive já crucificaram.” Mesmo sendo possível identificar o avanço dessa tendência, há2 quem acredite que os psicólogos não estão totalmente comprometidos com essa nova postura ética, reduzindo sua atuação em reafirmar a identidade do indivíduo. Tem razão quem assim pensa se considerarmos que o modelo ético hegemônico na sociedade e para muitos profissionais continua sendo o de base metafísica, centrado em princípios a- históricos, ou de inspiração naturalista e ainda biológica e tecnológica. Todavia elas vêm sendo rechaçadas em virtude de não darem conta do sentido e do significado das ações humanas, como: por que o casamento homossexual não é aceito em nossa sociedade? E a eutanásia? No caso de fertilização e inseminação artificial, como fica a questão da paternidade? Essas são questões também do campo de atuação do psicólogo, porque ele passou a fazer parte de equipes de saúde e porque elas influenciam no conceito de vida, morte entre outros, interferindo na subjetividade dos sujeitos. Assim sendo, a ética tradicional baseada em conceitos universais quase sempre desconexos da realidade, não é capaz de satisfazer as necessidades dos profissionais da área; reivindica-se uma ética de inspiração sócio- histórica. O novo modelo de ética, como já dissemos em momento anterior, não autoriza o profissional a ver o diferente como desigual; não permite que ele faça generalizações acerca da saúde mental, mas que a analise separadamente e de forma 2 O assunto é discutido por alguns autores, entre eles Célio José Freire (2003), em artigo intitulado A Psicologia a serviço do outro: ética e cidadania na prática psicológica. 6 4 Ét i c a e P s i c o l og i a : t e or i a e pr át i c a contextualizada; não reforça a tendência da sociedade de silenciar os inconformados com a ordem estabelecida. Ele conduz os profissionais de saúde mental, entre eles os psicólogos a discutirem o sofrimento do outro de forma séria e amorosa, visando a encontrar soluções. Sem dúvida, esse caminho não reforçará as atitudes de exclusão, a segregação, nem o desrespeito pelas diferenças e será um reforço para o estabelecimento dos direitos humanos. O que muito tem para ser feito, pois, como entende Miranda Júnior (1998, p. 37): “Trabalhar pelos direitos do homem é tarefa que a humanidade mal começou a compreender. E neste começo deveríamos evitar o erro de reduzir estes direitos ao reconhecimento do estado de vítima.” A ÉTICA NA PSICOLOGIA COMO CAMINHO PARA O RESPEITO AOS DIREITOS HUMANOS O debate sobre os Direitos Humanos, infelizmente, só teve início após a vivência da violação total de qualquer respeito à vida e à dignidade da pessoa, especialmente após a Segunda Guerra Mundial. A partir daí, diante das barbaridades praticadas, a sociedade deixou de responsabilizar os indivíduos pelos sofrimentos a que eram submetidos e os assumiram como “crimes contra a humanidade” e de responsabilidade dos poderes constituídos. Nas palavras de Tidball-Binz (2000, p. 12): A consciência internacional despertada pelo horror dos campos de extermínio e elas atrocidades cometidas nos mesmos constituiu, sem dúvida, um catalisador para a emergência e consolidação de uma nova sensibilidade e de um compromisso global contra a violação dos D.H. e seus efeitos. 6 5 E l i zete P ass os Diante da consciência de que os crimes praticados contra os indivíduos eram da responsabilidade dos governos, muitos instrumentos legais foram elaborados, a fim de barrá-las e punir seus autores. O mais significativo entre eles possui mais de 50 anos, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada no dia 10 de dezembro de 1948, pela Assembléia Geral das Nações Unidas (ONU), com a presença do nosso país. O seu preâmbulo evidencia os objetivos que pretendia atingir, exteriorizados no elenco dos seus considerandos. Neles fica claro o compromisso com a liberdade da pessoa, o respeito à sua dignidade, a igualdade de direitos e a defesa da justiça e da paz mundial. Além disso, destacam: “A liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade, foi proclamado como a mais alta aspiração humana” (ONU, 1998, p. 2). Essa exigência é justificável, considerando-se que os seres humanos sempre foram hierarquizados e, a partir disso, seus direitos foram estabelecidos. No Brasil, do final do século XIX e início do XX, o discurso médico, reforçado pelo dos psiquiatras, depois dos sociólogos, antropólogos entre outros, legitimava as desigualdades a partir de argumentos considerados científicos, mas que, de fato, eram de origem moralista e ideológica. Por exemplo, os negros eram vistos como degenerados, inferiores e anormais, o que justificava seu tratamento desigual e autorizava as autoridades científicas da época a investirem na sua domesticação e, mais ainda, na luta por conseguir chegar a uma “raça pura”, entre outras formas, por meio da proibição de uma “procriação defeituosa”. Outras iniciativas consideradas cautelares ou reparadoras eram defendidas: esterilização de loucos, mendigos e pobres, tidos como parasitas, pois improdutivos. Chegou-se ao grande poder que os médicos passaram a ter sobre a forma de vida das famílias e a tutela da classe trabalhadora, no caso, tendo em vista ajustá-la aos modelos de produção vigentes e aos princípios morais estabelecidos (COIMBRA, 2000). Ét ic a e Ps ic o l og i a : te oria e pr át i c a No fundo, o que se pretendia era adequar as pessoas à ordem social, visando à estabilidade da governabilidade e ao impedimen- to de qualquer reação que significasse perigo à sua continuidade. Nisso, além dos profissionais já mencionados, foi de grande valia a contribuição da Psiquiatria e mais tarde da Psicologia. Hoje, nem o Brasil nem o mundo se ressentem de normas e leis explícitas que se proponham a barrar e orientar a humanidade em prol do respeito aos direitos da pessoa, contudo continuamos presenciando cotidianamente sua violação. Diante do que algumas perguntas se colocam: o que continua reforçando tal descaso? Por que as leis não são cumpridas? O que a sociedade pode fazer diante da violação dos Direitos Humanos e, especialmente, o que os profissionais da Psicologia vêm fazendo e o que ainda precisam fazer? Como o nosso interesse não consiste em alargar a discussão em direção ao macrossocial, e sim focalizar no micro, ou seja, na ação de uma categoria profissional, mesmo sabendo que isso não pode ser feito de forma descontextualizada, faremos algumas reflexões ampliadas, antes de focalizar no que interessa à discussão específica. A primeira referência que fazemos, remete-nos aos capítulos anteriores, principalmente ao primeiro, quando dissemos que a lei não é uma garantia para sua concretização na prática. Muito mais do que imposição, a mudança de comportamento ou a assunção de uma nova forma de ser implica consciência e convencimento da sua importância. Assim, a motivação não pode vir de fora, mas do íntimo dos indivíduos. Também a defesa de que a impunidade é o principal motivo da violação das normas não deixa de ser um estímulo, entretanto ela assim o será se vivermos em uma sociedade em que as bases morais não estiverem bem definidas e os exemplos contribuírem para a repetição de tais práticas. Concordando com Arantes (2000, p. 65): “Não há como conceder direitos humanos sem a obrigação de garanti-los. Senão, fica-se meramente no plano teórico, formal, abstrato.” E l i zete P ass os Quanto aos psicólogos, na visão de Cecília Coimbra (2000), profissionais da subjetividade humana, não lhes é permitido acomodar-se diante da violência contra os Direitos Humanos e, muito menos, usar seu saber e suas ferramentas profissionais para levar os indivíduos a se acomodarem diante do seu so- frimento físico e mental. Físico, porque os direitos Humanos devem incluir os direitos de ordem social e econômica, caracte- rizados pela fome, pela violência a que as pessoas encarceradas normalmente são vítimas, por torturas, violência contra mulheres e crianças. Contudo, ainda mais sérios são os de ordem mental, mais profundos, difíceis de serem superados e quase sempre invisíveis. Os problemas referentes ao desrespeito aos direitos da pessoa são graves e se avolumam a cada dia. Como dissemos anteriormente, existem novas vítimas: homens, mulheres, crianças, negros, homossexuais, índios, enfim, os desprotegidos. Seu clamor se faz ouvir e exige ações enérgicas e imediatas, não só dos governantes, mas de toda a sociedade e das categorias profissionais. Inicialmente, porque o exercício da solidariedade e da responsabilidade faz parte do ser humano e são elementos que o definem; do mesmo modo, porque se continuarmos fazendo de conta que o assunto não nos pertence, estaremos decretando o fim da convivência social e, quiçá, da vida humana. Com isso, o que estamos afirmando é que a violação dos direitos humanos não afeta apenas o violado e seus familiares, mas a sociedade como um todo. O compromisso ético da Psicologia com o respeito e for- talecimento dos Direitos Humanos, como vimos, é inerente ao seu próprio objeto. O que não foi suficiente para que ela, durante a sua história, tivesse atitudes coerentes com esse propósito. Alguns fatores contribuíram para isso, a iniciar por sua herança positivista, que exigia dos profissionais atitudes neutras, a fim de manterem a coerência com os princípios da ciência positivista; no Brasil, a situação é agravada por ter seu desenvolvimento coincidido com um período de repressão. 6 8 Ét ic a e Ps ic o l og i a : te or ia e pr át i c a Esses são fatores que impediram ou dificultaram que ela crescesse de forma socialmente engajada, todavia, hoje, esse engajamento é um imperativo. Ela busca se redimir da omissão anterior, ser coerente com seu propósito básico e, principalmente, cumprir o seu papel ético, contribuindo para que as pessoas possam ser livres, cidadãs e fraternas. Logicamente, isso não poderá se dar se os profissionais em sua prática fizerem coro com algumas pseudo-ações éticas que defendem que o ser humano precisa ser alegre e feliz, por exemplo, como mais uma obrigação, uma conquista individual que deve ser buscada no seu íntimo, deixando de lado seu aspecto social e suas condições concretas de vida. Isso porque, como querem alguns estudiosos, a exemplo de Sawaia (2004), a afetividade é importante, mas não de forma mecânica e obrigatória. Outro cuidado que se deve ter é quanto à solidariedade e tolerância que a sociedade exalta a respeito das minorias, pois se não praticada de forma ética e politicamente comprometida pode resvalar em seu oposto, ou seja, além de não contribuir para a sua emancipação, será uma forma de legitimar a exclusão e manter os excluídos na condição de vítimas e coitados. Diante de tal ameaça Sawaia (2000, p. 72) adverte: Essa perspectiva ético política aumenta a responsabilidade do psicólogo, no debate atual sobre os direitos humanos, visto que sua ciência é o lugar legitimado de construção de sentidos de sujeito e subjetividade. Precisamos refletir sobre as repercussões sociais de nossas teorias e práticas. Será que elas não estão criando semânticos apartheids e conduzindo a novas formas de subordinação. Essa preocupação, que traz embutida uma recomendação, com a qual concordamos, delineia um ponto de vista atual da Psicologia quanto ao entendimento de que os Direitos Humanos devem ter por base a dignidade da pessoa, de modo que 6 9 E l i zete P ass os eles não devem ser cindidos entre os sociais, econômicos ou políticos, mas que sejam respeitados e garantidos todos os direitos fundamentais a uma vida humanamente digna. Vale lembrar, ainda que essa vertente esteja sendo firmada no momento presente, que a Psicologia já possui uma história nesse campo, por meio da postura de muitos dos seus profissionais de hoje, estudantes na década de 1970, quando o País vivia um momento de repressão, e estes tiveram uma participação ativa nos movimentos de reação ao regime e seus desmandos. A experiência serviu para que eles pudessem demonstrar e fortalecer sua consciência cidadã e seu compromisso com a emancipação individual e social. Também vale registro a atitude pioneira do Conselho Federal de Psicologia (CFP) à época, ao não se intimidar diante dos profissionais que colocavam sua competência técnica a serviço dos aparelhos repressores. Mais recentemente, em agosto do ano de 1997, essa vin- culação estrutural da Psicologia com os Direitos Humanos, ensaiada em muitos momentos, ganhou forma e consistência com a criação da Comissão Nacional de Direitos Humanos, do CFP Seu objetivo principal é abrir a discussão entre os profissionais sobre os direitos fundamentais dos seres humanos, incluindo aí os clássicos presentes do documento de 1948 (Declaração Universal dos Direitos Humanos), como: direito à vida, à segurança, à plena igualdade, a se locomover e a ter liberdade, entre outros. A esses foramacrescidos outros direitos, a partir das peculiaridades de cada nação. No caso dos países da América Latina, os direitos econômicos e sociais se impuseram e continuam se impondo, pois, além da desigualdade e da exclusão visível cotidianamente, estudos atuais confirmam que existem 220 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha de pobreza. Em nosso país, as cifras são alarmantes e exigem que toda a sociedade se mobilize para reverter o quadro: são 7 0 Ét ic a e Ps ic o l og i a : te or ia e pr át i c a 32 milhões de pessoas sem condições para se alimentar, óbitos de 300 mil crianças por ano, decorrentes da desnutrição. Agravam o quadro a violência urbana, a situação desumana em que vivem os nossos indígenas e os trabalhadores sem terra (MENDONÇA, 2004). Como dissemos, a luta deve ser de todos, pois apesar de sermos indivíduos, somos também seres sociais e só nos realizamos nas relações e na dialogicidade. Isso não ocorre praticando uma inclusão técnica, mecânica, vendo o outro como menor e carente de proteção. O outro precisa ser reconhecido, como formaliza a Declaração Universal, como ser de razão, de sentimentos e de liberdade. Quanto a essa última, somos levados a acreditar que ela depende apenas da vontade e da ação de cada indivíduo, sem levar em conta que sua condição original de ser livre, depende de condições satisfatórias para concretizá-la. Por exemplo, poderá ser livre um ser humano destituído de toda e qualquer condição material? Maria Rita Kehl (2004), em um artigo intitulado Subjetividade e Direitos Humanos, traz uma argumentação extremamente coerente com o que pensamos, ao afirmar que a necessidade priva o indivíduo da sua condição de sujeito e, assim, ele não terá condições de ser livre. Conclui o raciocínio dizendo que ela é, portanto, uma forma de exclusão do indivíduo de sua condição humana. Apesar disso, a exclusão não se caracteriza apenas pela falta de emprego, mas pela qualidade do emprego, pelas condições de trabalho, pelo lugar em que o indivíduo é colocado nele. Também não se concretiza apenas por não se ter direito à educação, mas por ter uma educação de péssima qualidade, que não possibilita que o indivíduo cresça como pessoa, desenvolva suas potencialidades criativas e seus talentos. Com isso, queremos afirmar que o compromisso dos go- vernantes, da sociedade e dos profissionais, destacando-se os psicólogos com o fortalecimento e o respeito com os Direitos Humanos, deve ultrapassar a ações caritativas ou filantró 7 1 E l i zete P ass os picas e atingir os valores, o compromisso filosófico e a ética, voltados para a emancipação, para a cidadania e para a inclusão social. Infelizmente, ainda estamos longe de alcançar esses objetivos, pois, por mais que se tenha falado e se fale em direitos humanos, eles são continuamente desrespeitados, como vimos em passagem anterior. A situação torna-se mais grave porque, além de não ser en- frentada, ainda se busca mascará-la por meio de argumentos e práticas supostamente éticas. Diante disso e para sustentar nossa argumentação, relembramos o Artigo XXIX da Declaração Universal: “Todo homem tem deveres para com a comunidade, na qual é possível o livre e pleno desenvolvimento de sua personalidade [...]” (1978, p. 26). Há, no texto, de forma explícita, a responsabilidade da sociedade e, assim, de cada cidadão e cidadã com as condições do planeta em que vivemos, da comunidade a que pertencemos, de cada ser humano com os quais nos relacionamos; com isso, estaremos também nos preocupando conosco. Porque, como já referimos e já havia sido preconizado remotamente por Aristóteles, somos animais políticos, ou seja, vivemos na polis, na cidade, em relação. Assim, não basta cuidarmos dos nossos interesses, de nós mesmos, para sermos felizes e conseguirmos crescer como pessoas, é necessário que possamos conviver com pessoas que também sejam sujeitos de direitos na teoria e na prática. No que se refere ao papel da Psicologia nesse processo, muito já dissemos, contudo, uma síntese pode ser feita a partir da posição Kehl (2004), ao afirmar que os cidadãos deveriam ter vergonha de conviver com a de falta de ética, de desrespeito aos seres humanos. Nisso, ela inclui os psicólogos, alegando que, ain- da que não sejam responsáveis pelo que ocorre, devem trabalhar com essa idéia de vergonha. Vejamos em suas palavras: Tenho a impressão, então, que a psicologia deveria começar a trabalhar um pouco com essa idéia de vergonha, a vergonha que tem a ver com a nossa participação no espaço 7 2 Ét ic a e Ps ic o l og i a : te or ia e pr át i ca público, com nossa imagem pública e com os nossos ideais, para que possamos construir uma sociedade da inclusão. (KEHL, 2004, p. 40). Após delinearmos o caminho da ética no campo da Psicologia de maneira geral, destacando que ela deve levar à defesa dos direitos fundamentais da pessoa, ainda demonstrado que esse deve ser um compromisso de toda a sociedade, especialmente das categoriais profissionais organizadas, como a dos psicólogos, no capítulo seguinte focalizaremos nossas reflexões sobre a ética nas práticas dos profissionais da Psicologia. 7 3
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