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• Maravilhosas Possessões omecemos pelo mais famoso dos começos: U Como sei que ficareis satisfei to com a grande vitória com que Nosso Senhor coroou mi nha viagem, eu vos escrevo esta, pela qual sabereis como, em 33 dias, fiz a travessia das Ilhas Ca nárias às Indias coro a frota que me foi dada pelos ilustríssimos Rei e Rainha, nossos soberanos. E lá encontrei numerosas ilhas, habitadas por incontáveis pessoas, e de todas elas tomei posse para Suas Altezas, por proclamação e com o estandarte real desfraldado, e não fui contradito. À primeira ilha que encontrei dei o nome de San Salvador, em homenagem à Divina Majestade, que maravilho samente me concedeu tudo isto; os Indios a chamam de 'Guanaha ni', À segunda dei o nome de Isla de Santa Maria de Concepci6n; à terceira. de Fernandina; à quarta de Isabel/a; à quinta, de 1sla lua- Stephen Greenblatt na; e, assim, a cada uma dei um novo nome." 1 Assim tem infcic> o célebre relato de Colombo de sua primeira viagem, O momento, certamente, fixou-se na imaginação popular: o grande aven tureiro na praia, desfraldando o estan darte real e tomando posse do Novo Mundo. As palavras de Colombo são completadas pelo que sabemos ter-se seguido: outras viagens, descobertas, a constatação reveladora de que a geografia clássica estava errada e de que todo um hemisfério novo tinha sido descoberto, o violento embate de civilizações, o empreendimento mis sionário, escravidão e morte em mas sa. o imenso projeto de colonização. Afora a determinação de retornar. Colombo não poderia ter sabido ou previsto nada desta história subse qüente - o que surpreende. à dis tância atual. é quão pouco ele perce beu em 1492 de onde se encontrava ou do que lhe estava acontecendo, Suas palavras foram portanto escritas, num certo sentido. como suportes va- Nola: Esta tradução é de Francisco de Castro Azevedo. EstudM HlltdrlC08. Rio de Janeiro, vol. 2. n. 3, 1989. p. 43-62. 44 ESTUI)()S HISTÓRICOS - 1989/3 zios de eventos futuros inimaginá veis, mas ainda assim sua carta pare· ce antecipar e promover o sentido mí· tico com que o tempo investiu seu re lato. Podemos senti-lo construindo o mito já no floreio com que proclama "la gran victoria", frase mais apro priada em 1492 à conquista de Gra nada do que ao desembarque no Ca ribe, ' e no termo usado para descre ver a dádiva feita por Deus das ilhas descobertas: "maravilhosamen te".' Eu diria que Colombo tinha um interesse bastante consciente no mara vilhoso. Por que Colombo, que trazia con sigo um salvo-conduto e cartas reais, pensou em tomar posse de tudo, se l1a verdade acreditava que tinha che- o gado às remotas regiões da (ndia? Afinal de contas, Dão ocorrera a Mar co Polo, no final do século Xlll, rei vindicar para os venezianos quaisquer direitos territoriais no Oriente. Tam pouco. no século XIV, Sir lohn Man deville. que alegava ter-se deparado diretamente com as maravilhas das Indias, desfraldou uma bandeira em nome de uma monarquia européia. De fato, no clímax da narrativa de Man deville, o cavaleiro e seus companhei ros piamente se recusam a recolher o ouro e as pedras preciosas que co briam o vale pelo qual passavam. Co lombo. que muito provavelmente car regava consigo os relatos de viagem de Marco Polo e Mandevi1le, comportou se de maneira surpreendentemente cli ferente. A diferença pode certamente re montar ao fato de que, ao contrário de Marco Polo e Mandevi1le, Colom bo não era nem mercador ncm perc- . . -grmo: encOntrava-se em urr: mlssao patrocinada por uma nação envolvi da com o empreendimento da recon quista. Mas tornou-se notoriamente difícil determinar o objetivo desta missão. O salvo-conduto de Colombo parece sugerir que ele se dirige a um lugar conhecido - as Indias - para tratar de assunto que diz respeito à fé ortodoxa.' O original de seu diário de bordo desapareceu, mas a trans crição de seu contemporâneo las Ca sas indica que Colombo fora incum bido de ir à cidade de Quinsay - isto é, Hangshou - "para entregar cartas de Suas Altezas ao Grande Khan e solicitar sua resposta, que trarei de volta".' Ao mesmo tempo, as credenciais que Colombo recebeu de Fernando e Isabel falam de Co lombo como "indo por nossa ordem, com alguns de nossos navios e nossos súditos, descobrir e ganhar certas ilhas e terras firmes nO Mar Oceano" (Jane, Ixxii). Esta linguagem - "descobrir e ganar" - sugere alguma coisa mais que uma viagem diplomática ou c0- merciai, mas nem os marinheiros nem os navios da primeira expedição eram apropriados para uma campanha mi litar séria, de modo que se toma di fícil visualizar que tipo de "ganho" os monarcas tinham em mente_ Não tenho solução para esses famosos enigmas, mas proponho que examine mos cuidadosamente a ação relatada por Colombo e que consideremos a extraordinária medida em que esta ação é discursiva. A afirmação de uma "grande vitó ria" e o desfraldar do estandarte real sugerem que estamos prestes a ouvir o relato de uma batalha, mas o que temos em vez disso é a narrativa de uma série de atos de fala: uma procla mação (preg6n), pela qual Colombo toma posse das ilhas, seguida da atri buição de nomes. Esses atos de fala - "he tomado posesi6nu, "puse nombre" - são-nos tão familiares que é difícil encontrar neles algo digno de nota. Na realidade, porém, eles são estranhíssimos. O desfraldar do estandarte real marca a formalida de da ocasião; o que estamos teste- M ARA"! L HOSAS POSSESSÔES 45 munhando é um ritual legal, executa do por homens cuja cultura leva extre mamente a sério tanto cerimônias co mo formalidades jurídicas_ As anota ções do diário de Colombo em 12 de outubro fornecem alguns dos detalhes do ritual: "O Almirante chamou os dois capilães e os outros que tinham desembarcado e Rodrigo Escobedo, escrivão da frota, e Rodrigo Sanchez de Segovia, e pediu que eles prestas sem testemunho fiel de que ele toma ra posse da ilha - o que ele fez - para seus soberanos e senhoresl o Rei • a Rainha. Em seguida fez as decla rações exigidas, que estão registradas de maneira mais extensa na prova então feita por escrito." 6 Tomar pos se é evidentemente a realização de um conjunto de atos lingüísticos: decla rar, testemunhar, registrar. Os atos são públicos e oficiais: Colombo f.la c.:omo representante do rei e da rainha. e seu discurso deve ser ouvido e com preendido por testemunhas competen tes e com nome, testemunhas que pos sam posteriormente ser chamadas pa ra atestar o fato de que o desfraldar da bandeira e .s "declarações exigi das" ocorreram conforme se alega. E, como a cultura de Colombo não con fia' inteiramente no testemunho ver bal, ele toma a precaução de reali zar seus atos de fala na presença do escrivão da f rota (pois a f rota que não tinha capelão tinha um escrivão), as segurando-se assim de que tudo será . .. " escrito e consequentemente tera maIOr autoridade. Mas o que são esses atos lingüísticos? Para quem e por qual di reito estão eles sendo realizados? Por que se presume que sejam eficazes? Em parte a resposta pode estar na estranha rrase ';y no me jué contra dicho". Tal frase presumivelmente se refere não aos espanhóis - que foram chamados para testemunhar e que na quele momento dificilmente teriam al go a objetar" -, mas aos nativos. Mas o que pode semelhante frase sig nificar? E possível, suponho, imagi ná-Ia como um sarcasmo cínico ou uma brincadeira cética. No primeiro caso, Colombo estaria se divertindo diante da impossibilidade de os nati vos contradizerem algo que estavam deliberadamente impedidos de enten der ou, alternativamentel diante de sua impotência para contradizer o confisco de suas terras mesmo queti vessem entendido perfeitamente a pro c1amaçao. No último caso, Colombo estaria zombando da ignorância irre mediável dos nativos: "Se o cavalo tivesse algo a dizer, ele diria.H Porém, • raramente em seus escrllOS, ou nun- ca, Colombo parece mostrar-se cínico , . . . . ou cetlco, e mUIto menos o sena aqUI, no momento de narrar O evento cen trai de toda a sua viagem. Devemos pressupor que ele escreve com since ridade e que está levando a sério o fato de não ser contradito. Tal fato seria importante para a Espanha esta belecer a base legal de suas reivindi cações sobre as terras recém-desco bertas, pela "escolha voluntária" dos habitantes originais - ou seja. se esses habitantes desejavam de fato transrerir o título de suas terras e pos sessões para os espanhóis, deveria ser lhes permitido fazê-lo. A base legal para semelhante transação encontra se no direito romano, no qual, de acordo com as lnstilutiones de lusti niano, "não existe nada tão natural quanto o fato de a intenção do pro prietário de transferir sua proprieda de para Oulro dever ter o deito que lhe é dado".' No Digeslo de lustinia no, Ulpiano escreve: "Dizemos que urnél pessoa possui sub-I'epticiamente quando entra na posse sem o conhe cimento daquele que ela suspeita que se oporia à sua tomada l quem sibi cOlllroversiam jacturwH suspicaba tIIr] . . . Ninguém adquire possessão sub-repticiamente quando lama posse 46 ESTUDOS HISTÓRICOS - 1989/3 com o conhecimento ou o consenti� menta [sciente aut uolente] do pro prietário da coisa," 9. E em sua im portante glosa a esta passagem, Acur sio, em meados do século XIII, acres centa a frase Het non conlradicen te". 1. Daí deriva a declaração de Colombo "e não fui contradito" ou, na tradução latina, "contradicente nemine possessionem accep;". 11 Mas como se pôde pensar que se melhante princípio se aplicava a este caso? Por que se deveria pensar que palavras pronunciadas em uma lín gua que os nativos obviamente ja mais tinham ouvido antes constitui riam um alo de fala válido, transfe rindo suas terras para aqueles cujos sinais visuais absolutamente incom preensíveis - uma cruz. duas coroas, as letras F e V - estavam impressos nas bandeiras espanholas? Por que se deveria pensar que os nativos seriam capazes, naquelas circunstâncias, de assentir ou contradizer? 1! Penso que a resposta pode estar no extremo formalismo dos atos lingüís ticos de Colombo. Ou seja, Colombo está observando uma forma - o diá rio, convém lembrá-lo, fala em fazer as "declarações exigidas" -, e essa forma evidentemente prevê a possi bilidade de uma contradição, uma de claração contrária àquela pela qual a possessão é reivindicada. 11 esta oca sião formal que deve ser observada, mais do que a contingência para a qual a ocasião formal deve originaria mente ter sido concebida. Daí que Co- 1ombo não escreveu "os nativos não me contradisseram", mas antes anão fui contradito". Ele não está preocu pado com uma consciência subjetiva particular correspondente à proclama ção, mas com 8 ausência formal de uma objeção às suas palavras. O por quê de não existir objeção não tem maiores conseqüências; tudo o que importa é que não haja objeção. O formalismo da proclamação de Ca lombo deriva não apenas do fato de que ela representa a escrupulosa ob servância de uma forma preconcebida (portanto, não espontânea ou aleató ria), mas também de sua completa in diferença à consciência do outro. As palavras constituem um sistema fe chado, fechado de tal forma que si lencia aqueles cuja objeção poderia desafiar ou negar a proclamação que formalmente, mas apenas formalmen te, prevê a possibilidade de contradi ção. 13 De acordo com os conceitos medie vais de lei natural, territórios desabi tados tornam-se possessão de quem primeiro ns descobre." Poderíamos dizer que o formalismo de Colombo tenta tornar as novas terras desabita das pelo esvaziamento da categoria do outro. O outro ex.iste apenas como um sinal vazio, um zero. Daí. não poder haver contradição à proclamação da parte de ninguém das ilhas, porque somente a competência lingüística, a habilidade de entender e falar, possi bilitaria alguém a preencher o sinal. Existe, naturalmente, toda uma cultu ra multinacional - a Europa de onde Colombo veio - que tem esta compe tência e poderia entender e contestar a possessão reclamada. Só que esta cultura não se encontra no lugar cer to na hora certa. Chegado o momento de contradizer a proclamação, aqueles que poderiam fazê-lo estavam ausen tes, e todas as reclamações subseqüen tes chegariam atrasadas, sendo portan to inválidas. Quando, quase imediata mente após seu regresso, a carta de Colombo é publicada em diversas lín guas por toda a Europa, ela na verda de promulga a reivindicação da Es panha e afirma que o momento da contradição havia irrevogavelmente passado. O ritual da posse, embora aparentemente dirigido aos nativos, alcança assim seu pleno significado • MARAVILHOSAS POSSESSÕES 47 em relação às outras potências euro péias quando estas ouvem falar da des coberta. J; como se, desde o instante do seu desembarque, Colombo imagi nasse que tudo o que ele vê já é pos sessão de uma das monarquias a que se oferecera para servir - portugue sa, inglesa, espanhola -, e procedes se ao estabelecimento da reivindica ção correta pelo ato de fala formal apropriado. O formalismo tem então a virtude de simultaneamente provo car e excluir a contradição, tanto no presente como DO futuro. O formalismo que descrevi é im portante como agente discursivo do poder de Colombo, mas penso que de vemos resistir à noção de que o for malismo tem uma poUtica necessária e inerente, e que esta poUtica é colo ni.lista. De fato, uma geração de pois, um formalismo comparável le vou o grande teólogo Francisco de Vitoria, partindo dos princípios da lei natural, a argumentar que os povos indígenas não tiveram seus direitos respeitados e a desafiar toda a reivin dicação espanhola sobre as Indias, ao mesmo tempo em que. inversamente, uma posição teórica inteiramente oposta ao formalismo pode ser utili zada para sustentar a reivindicação espanhola. Assim, do ponto de vista de um historicismo antiformalista, o cronista oficial das Indias, Oviedo, na verdade despreza a suprema impor tância da reivindicação d� Colombo. A viagem é celebrada por sua ousadia visionária, seu uso sem precedentes de instrumentos de navegação, seu significado geopoUtico, mas neste ponto Oviedo seleciona cuidadosa mente histórias destinadas a demons trar que a pretendida descoberta é na realidade uma redescoberta, que ou tros haviam estado lá antes, que Ca lombo aprendeu sua rota de um piloto moribundo. Acima de tudo, Oviedo prova, ao menos para sua própria sa- tisfação, que as Indias são a mesma coisa que as Hespérides, nome tirado de Hésperos, duodécimo rei da Espa nha em linha direta de Tubalcaim, e que portanto "os reis de Espanha têm sido senhores das Hespérides durante 3.193 anos ao todo", "Observe-se o cuidado de Deus", declara ele, Hem dar as Indias a seus verdadeiros do nos!" 15 Não deveríamos então dizer que as palavras não importam, que as táti cas discursivas são intercambiáveis, que a linguagem não passa de uma simples moldura para a realidade brutal do poder? Penso que existem fortes razões para se adotar este ponto de vista: nas gerações que se seguem à de Colombo, desaba uma inundação de palavras sobre o Novo Mundo, ocorrem debates sérios em Salamanca e em toda parte sobre a legitimidade do domínio espanhol, fazem-se de núncias de atrocidades e defesas apai xonadas da necessidade da severidade militar. Mas que diferença faz tudo isto? Toda a miserávelhistória, histó ria de uma negação absoluta de con sentimento, já não está escrita no pri meiro espirro espanhol, com seus mi lhões de balas invisíveis? O destino dos nativos já não está selado com o primeiro sangue inocentemente der ramado - "Pois, enquanto eu lhes mostrava as espadas, eles as pegaram pelas lâminas, cortando-se por igno rância"? 16 Esta "ignorância" - pri meiro lampejo de 11m desequilíbrio decisivo na tecnologia militar - jun tamente com vulnerabilidade às doen ças européias, iria djzimar os nativos do Caribe e fatalmente enfraquecer os grandes impérios índios que os es panhóis muito em breve encontra riam, Dever-se-ia talvez acrescentar um outro fato físico brutal: a horrível desventura de que a terra do Novo Mundo abrigava ouro e que muitos dos povos nativos trabalhavam este 48 P.STUOOS HISTÓRICOS - 19119/3 ouro transformando-o em ornamentos que traziam sobre o corpo para os �s· panhóis verem. Nâo resla dúvida de que as armas e os micróbios atingi· riam de qualquer forma os povos do Novo Mundo, mas sem o ouro as for ças destrutivas leriam agido mais len lamenle, podendo, porlanlo, haver tempo para a formação de uma de· fesa. Do alto desla superioridade. as pa· lavras parecem meros disfarces para as ações espanholas e as conseqüên cias físicas dessas ações. As teias do discurso deveriam ser rasgadas e des cartadas para se encarar resolutamen le o lerrível significado de 1492 e de suas conseqüências: espadas e balas transpassando carne nua e micróbios matando corpos carentes das imunida des necessárias. Sou professor de li teratura e portanto, por treinamento e impulso, hostil à semelhante argu menlação, mas acho muito difícil des· considerá-Ia. As palavras no Novo Mundo parecem sempre seguir o ras tro dos eventos que por sua vez se guem uma lógica terrível, lolalmenle diferente dos frágeis significados que elas constr6em. No enlanto, se somos assim for�ados a abandonar o sonho da onipotência lingüística. a fantasia de que compreender O discurso é com preender o evento, não somos ao mes mo tempo compelidos a, ou sequer nos é perm:lido. descartar completa mente as palavras. De fato, se os mi cróbios permanecem inteiramente fo ra do alcance do discurso da Renas cença, as outras forças que citamos como faLOS brutais de maneira nenhu ma deveriam ser naturalizadas. A pos se de armas c a vontade de usá·las contra povos indefesos são assuntos cullurais intimamente ligados ao dis curso, e. se o outro é um fenômeno natural, o desejo ardenle de ouro que a ludo consome. seguramente não O é.17 Além disso, se cerlos aspectos cruciais do encontro europeu com o Novo Mundo estão além das palavras (e além da compreensao de qualquer dos participantes), os próprios euro peus se esforçaram para colocar o má· ximo possível de sua experiência sob O conlrole do discurso. Como pode riam eles - ou, no que diz respeito a isto. como poderíamos nós - agir de outra maneira? IK E não é apenas como uma tentativa fútil de compre ender o inimaginável que este discur so pode interessar-nos, mas também como um instrumento e como um fim de império. Voltando à proclamação inicial de Colombo, se não há nenhuma neces sidade teórica para seu formalismo. nenhuma política inerente e nenhum determinante, existem não obstante razões estratégicas para a presença do formalismo como uma força model. dora do discurso. Este discurso, como vimos, capacita Colombo a encenar um ritual legal que depende da possi bilidade formal de contradição sem de fato permitir semelhante contradi-- . . . çao; ou seja, capaclla-o a esvaziar a existência dos na ti vos, recon hecendo ao mesmo tempo oficialmente que eles exjstem. Mas este paradoxo simples mente não acaba por esvaziar o pró prio ritual legal? Nao Iransforma em chacota a base sobre a qual Colombo rundamenta a reivindicação espanho la sobre as [ndias? O ato de fala fun dador de Colombo no Novo Mundo é tremendamente "infeliz" em prati camenle lodos os senlidos delalhados por Austin em How To Do Thi/lgs With Words: é falho na detonação, na invocação. na aplicaçãu e na exe cução. E é difícil acredilar-se que Co lombo não tenha consciência dessas infelicidades, porque ele sabe muilo bem que aqueles não são territórios desabitados; na realidade, ele observa que eles possuem uma imensa popu lação - "gente si" mímero". Ele não M ARA V I LHOSAS POSSESSÕES 49 sabe qual é • sua ordem política. mas acredita ter chegado às .. [ndias" - portanto, deve supor que se encontra nas regiões remotas de um grande imo pério, em última instância sob o con· trole do Grande Khan. " E reconhe· cc quase de imediato que mesmo aqui. nessas pequenas ilhas com seus habi tantes nus vivendo em aldeolas, exis te uma ordem política e social de al gum tipo. Este reconhecimento leva-nos de volta " questão de como é possível "Iomar posse" de um lal lugar na pre sença daqueles que o habilam. A ques lão não surgiria caso as terras rossem desabitadas, C0l110 não surgiria, pelo menos nos mesmos lermos, se se tra lasse da conquista de um inimigo re conhecido. Em 1500, no relato da terceira viagem. Colombo. responden do a alaques à sua conduta, tenla re formular seu papei. .. Em minha ler ratl, escreve ele. "julgam-me como um governador enviado à Sicilia ou a uma ou duas cidades com governu estabelecido, onde as leis podem ser plenamente mantidas. sem medo dI.! que tudo possa ser perdido:' Esle modo de ver a situação. afirma ele, é inteiramente inapropriado: .. Devo ser julgado como um capitão que veio da Espanha às [ndias para conquislar um • povo, guerreiro e numeroso, com cos- tumes e crenças muito direrentes dos • nossos. um povo que vIve em serras c montanhas, sem moradia rixa. e se parado de nós; e onde, pela vontade de Deus, eu trouxe para O domínio do Rei e da Rainha, nossos sobera· nos, um outro mundo, com o que � Espanha, que anles era chamada po· bre. é agora riquíssima.":!II A primeira carta é cuidadosa em indicar que os ritos formais da legali dade foram observados; esta carla, escrita em circunstâncias prorunda mente diferentes. insiste, por contras· te. em que tal observância seria inlei· ramente inapropriada. uma espécie de meliculosidade teórica, que acaba ca locando ludo a perder." Os índios receberam aqui os estigmas de fora da-lei ou rebeldes; são um povo que . ., . vive nas margens - Slerras y mon- les, s)'n pueblo osel/lado, ni /lOSO Iras". Esta existência marginal c nô made, as vidas daqueles que "não são nós", não indicam apenas sua dis tância da civilidade - indicam a di ficuldade de pacificá-los e conlê-Ios. ISlo porque a autoridade européia no início da idade moderna era a autori dade da planície, das cidades mura das que poderiam, se necessário, ser siliadas e levadas à submissão pela fome; as uUloridades centrais temiam e odiavam as montanhas. E nalural menle, para Colombo, os nativos do Novo Mundo nào eram simplesmenle como os indômitos habitantes das in cultas lerras européias: desde o pri meiro dia ele suspeila de algo pior, e a suspeita vai se rirmando na cerleza de que muitas das ilhas são habila· das por canibais. Mas em 1492 Colombo desvia-se deste l:aminho para apresenl3r um quadro muilo diferente de todos os nalivos com quem de rala se encon tra. Esses mltivos. a bem da verdade, não moram em cidades ou povoados . n:as habilam pequenas aldeias Cpe que,ias poblaciones") e são completa· mente inorensivos: "Não têm armas de ferro ou aço. nem estão aptos a usá-Ias, c não por não serem homens bem construídos e de boa estatura. mas por serem muito maravilhosa mente tímidos (muy temerosos á ma ,ovilla)." O que torna sua timidez maravilhosa? Eles fogem à aproximação dos espanhóis, explica Colombo, e "um pai nem mesmo espera por seu filho". O exemplo eSlabelece uma nor ma de coragem natural. a coragem que instintivamente surge em todos os homens para defender sua prole ou. 50 ESTUDOS HISTÓRICOS - 1989/3 • • mais precisamente, sua prole mascu- lina. E este instinto natural está inex plicavelmente ausente nos ttmidos na tivos, inexplicavelmente não apenas em relação ao cuidado natural do pai por seu filho, mas também em relação ao comportamento inteiramente amis toso e generoso dos espanhóis. lÔ estranho: Colombo acabara de tomar posse unilateralmente de tudo o que vira em favor do rei e da rai nha de Espanha; ele declara, além disso, que, "assim que cheguei às In dias, na primeira ilha que encontre.i, peguei alguns deles pela força, para que aprendessem e me dessem infor mação' (1: 10)_ Ainda assim, este in vasor armado que se apossa de terras e pessoas vê suas próprias intenções como impecavelmente generosas: "Em todos os lugares onde estive e pude falar, dei-lhes de tudo que tinha, como roupa e muitas outras coisas, sem re ceber nada por isto" (1 :8). lÔ carac terfstico do discurso de Colombo reu nir ações, atitudes ou percepções que parecem eticamente incompaHveis, to mando. como aqui, tudo com uma mão, e dando tudo com a outra. As duas coisas estão claramente relacio nadas de alguma maneira, mas não se chocam diretamente, da mesma for ma como existe uma relação não-ex pressa e não-reconhecida entre o [ato de que os nativos não entendem sua língua e o fato de que ninguém con tradiz sua proclamação. Suponho que seja possível chamar isto de hipocri sia, mas o termo sugere uma encens ção de atitudes morais que na reali dade não são sentidas nos pro[ undos recessos do coração. uma autocons ciência teatral que me parece comple tamente alheia à fé ardente de Co lombo. Eu pensaria antes que estamos frente a um importante aspecto da economia discursiva de Colombo, um traço retórico caractedstico daquilo que podemos chamar seu imperialis-. -mo cnstao. A economia discursiva coloca opos tos na mais íntima união entre si, e mesmo assim deixa misterioso o' âma go de sua relação. Colombo toma pos se absoluta em favor da coroa espa nhola a fim de fazer uma doação abso luta; busca o ganbo telleno a fim de servir a um propósito divino; os ín dios devem perder tudo para receber tudo; os inocentes nativos se desfarão de seu ouro por quinquilharias, mas receberão um tesouro muito mais pre cioso que o ouro; os nativos maus (os "canibaisH) serão escravizados para serem libertados de sua própria bes tialidade. Permitir esses paradoxos é uma antiga retórica cristã, que tem sua mais famosa expressão inglesa d. Renascença nos Sonetos Sagrados de /ohn Donne: Que eu possa me levantar e ficar de pé, ou jogar-me por terra e do brar Tua força, para quebrar-me, apa gar-me. queimar-me e fazer-me novo ... Toma-me para ti, aprisiona-me, porque eu, A menos que me escravizes, ja mais serei livre, Nem jamais serei casto. a menos que me possuas. A versão de Colombo desta retó rica é ao mesmo tempo menos bistri6- nica e mais paradoxal, uma vez que ela não está moldada numa oração ou num poema, mas em um relato que estabelece a autoridade secular sobre terras e povos recém-descobertos: im perialismo não é de forma alguma o oposto de cristianismo, mas tampou co simplesmente se identifica com ele. Porque, da mesma maneira que o for malismo legal que estivemos vendo, a fé cristã pode compatibilizar, posi- MARAVILHOSAS POSSESSÕES 51 ções radicalmente opostas: se, em no me do cristianismo, a piedosa Rainha Isabel podia decretar o uso da força contra os índios "onde quer que não se fizesse de imediato a conversão à santa Fé Católica e o compromisso de fidelidade à Coroa"," da mesma for ma, em nome do cristianismo, o do minicano Bartolomeu de las Casas po dia condenar amargamente todo o empreendimento espanhol. Desde os primeiros momentos, o encontro com o Novo Mundo mobili za em Colombo anseios de poder, status e riqueza, anseios que se colo cam em uma desconfortável relação com sua religiosidade franciscana, seu desejo de converter e salvar, seus so nhos apocal!ticos. Seria um erro pen sar que se trata simplesmente de de sejos opostos � o lado espiritual de Colombo em guerra com seu lado car nal -, pois toda a realização do dis curso do imperialismo cristão consis te em representar os desejos como • • converslve,s e em constante processo de permuta. Fossem esses desejos real mente idênticos, Colombo não teria necessidade de articular todas as ma neiras em que eles se cruzam dois a dois; fossem eles realmente opostos, ele não seria capaz de trocar um pelo outro. A possibilidade de semelhante permuta, enraizada talvez em sua ex periência de vida mercantil italiana, permeia seus escritos: "Genoveses, ve nezianos e todos os que têm pérolas, pedras preciosas e outras coisas de va lor, todos as transportam para o fim do mundo para trocá-Ias, convertê-Ias em ouro (para las trocar, convertir in oro) . O ouro é o bem excelente. O ou ro constitui tesouro, e quem o possui pode fazer o que quer no mundo, e pode assim levar almas para o Paraí so" (2:102-4). Neste momento rapsó dico, a conversão de bens em OurO desliza liquidamente para a conversão e, daí, para a salvação das almas. A tarefa retórica do imperialismo cristão é então juntar conversão de bens e conversão espiritual." Na maioria das vezes esses valores são simplesmente justapostos por Colom bo, como se as energias de um natu ralmente penetrassem no outro, mas em certas ocasiões seu intercâmbio é articulado de maneira mais direta: "Dizei a Suas Altezas", escreve Ca lombo a seu agente Antonio de Tor res, "que o bem .. star das almas dos chamados canibais [os nativos que os espanhóis escravizaram e embarcaram para a Espanha], e também daqueles daqui, induziu a idéia de que quantos mais forem enviados, melhor será, e nisto Suas Altezas podem ser servidas da seguinte maneira. Que, tendo visto quão necessários são aqui gado e bes tas de carga, para apoio às pessoas que devem ficar aqui, e na verdade para todas essas ilhas, Suas Altezas poderiam dar licença e permissão pa ra um número suficiente de caravelas vir aqui todos os anos e transportar o dito gado e outros suprimentos e coisas para a colonização do pafs e o desenvolvimento da terra, e isto a pre ços razoáveis para cobrir custos da queles que os transportam. O paga mento para essas coisas poderia ser lhes feito em escravos, dentre esses canibais, um povo muito selvagem e apropriado para este propósito, e bem constituído e de muito boa inteligên cia. Acreditamos que eles, tendo aban donado aquela inumanidade, sair-se-ão melhor que quaisquer outros escra vos, e sua inumanidade eles a perde rão imediatamente após safrem de sua terra" ( 1 :90-92). Bestas de carga serão trocadas por bestas de carga: tantos índios por tan tas cabeças de gado. No entanto, Co lombo não pode se sentir satisfeito propondo uma transação puramente mercantil, nem é este seu interesse mais premente. Aqueles índios identi- 52 ESTUDOS HISTÓRICOS - 1989/3 ficados como canibais serão caçados, capturados, arrancados de suas terras e sua cultura, embarcados nos navios ainda fedendo aos animais pelos quais estão sendo trocados e enviados pa ra a escra vidão. Mas a transação eco nômica, como Colombo a concebe, se rá feita para o bem-estar das almas dos escravizados: os índios são tro cados por bestas para se converterem em humanos. Esta transformação não os alforriará; ela apenas fará· deles excelentes escravos. Contudo, eles le· rão conquistado sua liberdade espiri tual. No âmagoda transação não está a riqueza ou a conveniência, embora elas sejam bem-vindas, mas uma me tamorfose da inumanidade em huma nidade.24 A relação oculta entre opostos apa rentes no discurso cristão de John Donne conduz o leitor à contempla ção da natureza misteriosa da Encar nação; a relação oculta entre opostos aparentes no discurso imperialista cristão de Colombo conduz o leitor à contemplação da natureza "maravi lhosa" do Novo Mundo e de seus ha bitantes. O assombro suscitado pelos canibais é duplo; ele está na estranha conjunção de inteligência. e inumani da de dos nalivos, e também no estra nho poder da escravidão. para huma nizar. Mas, como já observamos, não são apenas os belicosos canibais que despertam assombro. Na carta de 1500, Colombo deseja que seus leito· res pensem nos índios como guerrei ros; na carta de 1492, deseja que eles sejam considerados tímidos, na ver dade maravilhosamente Ilmidos. O termo "maravilhoso", que já vimos Colombo usar na primeira sentença da primeira carta, obviamente apela para as expectativas do leitor quanto ao gênero de literatura de viagem. Mas a timidez neste contexto é uma maravilha peculiar, e Colombo refor ça sua peculiaridade enfatizando que os nativos são "homens bem construí dos e de boa estatura". Não estamos lidando aqui com uma estranha raça de criaturas que não carregam armas porque não têm braços, pernas ou feições humanas. Os leitores de Co lombo estariam bem preparados para o monstruoso. O que eles não pode riam esperar encontrar é o maravi lhoso na timidez humana. Insistindo em que eles assim procedam, e por isso deslocando o maravilhoso do gro tesco para o comum, Colombo induz seus leitores a juntarem-se a ele na quiio que podemos chamar de um ato de esquecimento ideológico. Se al guém se lembrasse claramente das ações que Colombo acabou de descre ver - seqüestro e expropriação de terras - seria mui to difícil ver no medo pânico dos nativos todo esse maravilhoso. Colombo não usa o discurso do maravilhoso para criar uma amnésia momentânea sobre suas ações; ele induz uma amnésia momentânea so bre suas ações para criar o djscurso do maravilhoso. Na verdade, a produ ção de um senlido do maravilhoso no Novo Mundo está bem no centro de virtualmente todos os escritos de Co lombo sobre suas descobertas. (IÕ pos sível argumenlar que Colombo tives se um vocabulário tão pobre que não pudesse pensar em outra palavra. para descrever suas experiências.) Esta in sistência no maravilhoso é geralmente tratada como se fosse um simples re gistro do que Colombo e seus compa nheiros sentiram, como se o discurso de Colombo fosse perfeitamente trans parente, e seus sentimentos, aqueles "naturalmente" evocados por suas experiências. Mas a transparência dis cursiva é uma ilusão, e os sentimentos que chamamos naturais são precisa mente aqueles mais intimamente liga dos a complexa. estratégias culturais. Talvez exista algo como O assombro MARAVIL HOSAS POSSESSÕES 53 puro, a emoção que Fitzgerald elo qüentemente evoca ao imaginar os primeiros marinheiros contemplando o "seio fresco e verde do Novo Mun do": "Por um momento transitório e encantado o homem deve ter suspen dido a respiração na presença deste continente, forçado a uma contempla ção estética que ele nem entendia nem desejava, face a face pela última vez na história com algo proporcional à sua capacidade de assombrar-se." As ironias luxuriantes c românticas de The Great Gatsby dependem da evo cação deste arregalar primordial dos olhos, desta respiração ofegante e sem palavras, e, por tudo O que sabemos, este momento de intensidade, a parti· cularidade empregada e silenciosa da visão, deixou sua marca etimológica e experimentalmente na maravilla de Colombo. Mas neste caso trata-se ape nas de uma marca, embutida em um desempenho retórico, legal e narrati vo, um discurso em que compreensão e desejo estão inteiramente implica dos. As implicações estão semi-ocultas na primeira carta, com sua resposta maravilhada à inocência, à beleza e ao frescor, mas sua linguagem já se encontra carregada de significados es tratégicos que subseqüentemente se rão explicitados. Em seu relatório ofi cial a Fernando e Isabel sobre a ter ceira viagem, Colombo escreve que, em resposta à "difamação e menos cabo da empreitada iniciada" no No vo Mundo. porque "não enviara ime· dialamente caravelas carregadas de ouro", decidira Hvir a Vo�sas Alte· zas e fazê-Ias maravilharem·se com tudo, e mostrar-lhes a razão que eu tinha em tudo" - "y maravil/arme de todo, y mostrar/es la raz6n que en todo avia" (2:4)." Existe, portanto, uma razão polftica e retórica especí fica para a produção do assombro: o maravilhoso é precisamente o sentido que confirmará o poder e a vali dez das reivindicações de Colombo COntra aqueles que reclamam sinais mais tanglveis de ganho. Não suscitar as sombro significa sucumbir aos ata· ques que lhe são movidos. Assim, a produção do assombro não é apena, uma expressão do efeito que a via gem tivera sobre ele, mas uma estra tégia retórica calculada, o desdobra mento de uma resposta estética a ser viço de um processo de legitimação. A estética do assombro não legiti ma porém inerentemente a reivindi cação da posse. Na verdade, para Mandeville, a experiência das maravi lhas do Oriente conduz precisamente a um senso de despossessão. a uma renúncia às certezas dogmáticas. a uma tolerância convicta em face da estranheza, da diversidade e da opa cidade do mundo: "Porque não sabe mos a quem Deus ama ou a quem Deus odeia."" Por que Colombo, cujos interesses são diametralmente opostos aos de Mandeville, teria evo cado o assombro? Em parte, porque o maravilhoso está intimamente liga do. na retórica clássica e cristã, ao empreendimento heróico. As viagens de Ulisses, particularmente, durante séculos forneceram ocasião para es peculações estéticas e filosóficas sobre a relação entre o heroísmo e o desper tar do assombro através de uma re presentação de maravilhas. Em parte, porque existe um "maravilhoso" es pecificamente cristão, que identifica a autenticidade espiritual com a evo cação do assombro." E em parte, porque as maravilhas estão insepara velmente ligadas, na tradição retórica e pictórica, às viagens às !ndias. Afir mar a natureza 'fmaravilhosa" das descobertas é, mesmo sem que os lu crativos carregamentos estejam a bor do, sustentar a alegação de haver alcançado os lendários reinos do ouro e das especiarias. Este é o significado, penso eu, da menção de Colombo, na 54 ESTUDOS HISTÓRICOS - 1989/3 . . ; . pnmetra carts, a uma provmC18 em Cuba, que os índios chamam Avan, onde as "pessoas nascem com cau das" (Jane, 1 :12); 28 tais prodígios eram uma verdadeira exigência para os viajantes que iam à India. Contudo, as obse.rvações que ele re gistra para criar O efeito do maravi lhoso são, em sua maioria, bem dife renies das maravilhas convencional mente registradas nas histórias dos viajantes. Certa feita, ao largo da cos ta do Haiti, Colombo avistou "três sereias (serenas) erguendo-se muito alto sobre o mar". Mas a descrição desses prodígios em seu diário de bor do - com toda probabilidade, trata va-se de manatis ou vacas-marinhas do Caribe - sugere fortemente uma resistência à iconografia tradicional : "Elas não eram tão bon.itas como são pintadas, embora até certo ponto apre sentassem uma aparência humana no rosto." 2. Em 4 de novembro de 1492, Colombo anota em seu diário de bor do uma aparente confirmação nativa de maravilhas sobre as quais ele deve ter andado perguntando: "Muito lon ge daqui", contam-lhe supostamente os nativos numa linguagem de sinais, "existiam homens com umsó olho, e outros com cabeça de cão, que ca miam carne humana e que. ao mata rem um homem, decapitavam-no, be biam-lhe o sangue e cortavam-lhe os membros genitais." 3D (E possível ima ginar-se alguém dizendo isto por meio de sinais?) Mas na época em que es creve a primeira carta, ele parece mui to mais cético: "Nestas ilhas até agora não encontrei monstruosidades huma nas, como muitos esperariam, mas. ao contrário, toda a população é mui to bem formada." 0:14) Colombo pa rece estar distinguíndo então entre monstruosidades e maravilhas: as pri meiras são violações vívidas e físicas das normas universais; as últimas são impressões físicas que provocam as- • sombra. Ele não está pretendendo ex cluir a possibilidade do monstruoso, mas mostra-se escrupuloso em limitar suas afirmações a ter pessoalmente testemunhado monstruosidades: o ma ravilhoso, ao contrário, ele nota em primeira mão repetidas vezes. O maravilhoso funciona para Ca lombo como agente de conversão: um mediador fluido entre o exterior e o interior, o espiritual e o ,carnal, o rei no dos objetos e as impressões subje tivas provocadas por esses objetos, a recalcitrante alteridade de um novo mundo e o efeito emocional suscitado por essa alteridade. Mais precisamen te, o maravilhoso registra a presença dos temores e desejos de Colombo nos próprios objetos que ele percebe e, inversamente, a presença em seu dis curso de um mundo de objetos que ex cede sua compreensão do provável e do familiar. Assim, por exemplo, Co lombo escreve que uviu muitas árvo res bem diferentes das nossas, e mui tas delas têm ramos de diferentes ti pos, e todos em um tronco, e um broto é de um tipo e outro de outro, e tão diferentes que isto é a maior maravi lha do mundo" ("Ia mayor maravilla dei mundo")." "Aqui os peixes são tão diferentes dos nossos", anota ele na mesma entrada do diário de bordo, no dia 16 de outubro, "que é mara vilhoso; existem alguns semelhantes aos peixes-galos, nas COres mais bri lhantes do mundo, azul, amarelo, ver melho e de todas as cores, e outros pintados de milhares de maneiras; e as cores são tão brilhantes que ne nhum homem deixaria de se maravi lhar e ter grande prazer em olhá-los" (p. 72). Como essas passagens suge rem, não é simplesmente o reconheci mento do incomum que constitui uma maravilha, mas um certo exagero. uma intensidade hiperbólica, um sentido de deleite estupefato. MARAVILHOSAS POSSESSÕES 55 o maravilhoso para Colombo, por lanto, normalmente envolve um ultra passar das medidas, uma elevação das impressões, até elas alcançarem uma espécie de perfeição_ Espano/a, escre ve ele na primeira carta, lCé infinita mente fértil"; suas enseadas estão ' Iacima de comparação com outras que conheço na cristandade"; ela tem muitos rios bons e grandes, "o que é maravilhoso" (Hque es maravilla"); e suas montanhas estão li acima de com paração com a ilha de Tenerife" (p. 4) . " Essas montanhas, contudo, não são assustadoras; "todas são belíssi mas, com milhares de formas, e todas são acessíveis e cheias de árvores de milhares de tipos e altas, e elas pare cem tocar o céu" (4-6). As árvores, foi dito a Colombo, jamlÚs perdem sua folhagem, e ele acredita no que lhe foi dito, "porque as vi tão verdes e boni tas como são na Espanha em maio . . . E o rouxinol estava cantando, e outros pássaros de mil bares de espécies, no mês de novembro" (6). Números gran des, particularmente HmilharesH, são repetidos como talismãs convencionais do assombro, se bem que númerOs muito menores provoquem o mesmo efeito: "Existem seis ou oito tipos de palmeiras, que é uma admiração vê las (que es admiración verias) em vir tude de sua bela variedade", e e"is tem " maravilhosos bosques de pinhei ros" (pinares á maravilla). O maravi lhoso, como se pode notar aqui, tem pouco ou nada a ver com o grotesco ou o bizarro. Ele denota, a bem da verdade, um certo desvio, um deslo camelito ou um ultrapassar do normal ou do provável, mas na direção de uma deliciosa variedade e encanto. Este encanto estende-se, na primeira carta, aos nativos. Depois que supe raram sua "maravilhosa timidez". os nativos "todos trouxeram algo de ca mer e beber, que eles deram com ex traordinária afeição" (con un amor maravil/oso) (p. 1 0). Este amor, Co lombo infere, é fortalecido pela con vicção de que ele, Colombo, com seus navios e homens, veio dos céus; ou seja, para os índios, que jamais tinham visto grandes navios ou homens vesti dos, os espanhóis também eram uma maravilha. Mas este reconhecimento de um assombro inverso não qualifi ca as próprias percepções de Colom bo nem torna o maravilhoso um fenô meno relativo. Os nativos não come tem seu erro por serem estúpidos; eles possuem, diz ele, uma inteligên cia muito aguda, lide modo que é as· sombroso (es maravilla) como eles têm uma boa noção de tudo" (p. 30)." Todas as suas impressões deliciosas combinam-se para Colombo em uma única e dominante percepção: "La Espanola es maravilla" (p. 7). " Nesta frase, o maravilhoso foi ao mesmo tempo desvinculado da enu meração de particulares bizarros e teve seu escopo alargado para caracte rizar todo um lugar, um lugar de be leza surpreendente e intensa. Olhar (mirar) para um tal lugar é assombrar se (maravillar). Esta caracterização as socia as descobertas ao mesmo tempo com o cativante olhar da poesia eró tica e com os sonhos do paraíso ter restre, e nos anos seguintes essas as sociações passam a interessar a Co lombo com uma intensidade cada vez maior. O mundo não é perfeitamente redondo, escreve ele em seu relatório da terceira viagem, mas tem antes a forma de uma pêra ou uma bola em que foi colocado "algo semelhante ao bico do seio de uma mulher" (2:30). O mamilo do mundo é a terra recém descoberta, e todos os sinais apontam a localização em seu centro do paraí so terrestre. E se esses sinais - s0- bretudo os grandes cursos de água fresca que emanam da terra - não apontam para o Eden, se a água não vem do paraíso, isto parece, escreve 56 ESTUDOS H ISTÓRICOS - 1989/3 Colombo, "ser uma maravilha ainda maior (parece aun maior maralii/la), porque não creio que seja conhecido no mundo um rio tão grande e tão profundo" (2:38). A idéia de uma ma ravilha maior que o paraíso provoca impacto, mas ela surge da única QU tra hipótese que Colombo pode postu lar para suas observações: "E eu digo que, se não é do paraíso terrestre que este rio vem, ele se origina de uma terra vasta, que se estende para o sul, da qual até agora não se teve nenhum conhecimento" (2:42). Diante de um pensamento tão desconcertante - a idéia, com efeito, da América do Sul -, Colombo retira-se para o terreno mais seguro da terra do IÔden: "Po rém eu estou muito mais convencido em minha própria mente de que lá onde eu disse fica o paraíso terrestre," Uma recuperação real do paraíso terrestre teria algo a ver com o mira culoso, mas Colombo pára um pouco antes de semelhante afirmação, como faz na maioria de seus escritos. " Com efeito, o maravilhoso toma o lu gar do miraculoso, absorvendo algo de sua força, mas evitando os problemas teológicos e comprobatórios inerentes à asserção direta de um milagre. Em vez de uma afirmação teológica, o ter mo marallil/a, como é usado por Co lombo, faz uma asserção estética. O maravilhoso havia desempenhado des de a Antigüidade um papel funda mentai na estética européia, papel que se intensificou na Idade Média e foi exaustivamente teorizado na Renas cença. Esta teorização é ao mesmo tempo demasiado complexa e dema siado tardia para ser explorada aqui, mas podemos deter-nos nela durante alguns momentos, como um desdobra mento, em um registro diferente, das implicaçõesdo assombro no discurso de Colombo. "Ninguém poderá ser chamado de poeta", escreve o influente crftico ita- Iiano Minturno na década de 1 550; use não se sobressair no poder de pro vocar assombro_" ·· Para Aristóteles, o assombro está associado ao prazer como fim da poesia, e na Poética ele examina as estratégias pelas quais os poetas trágicos e épicos empregam o maravilhoso para provocar assombro. Também para os platônicos o assom bro é um elemento essencial na arte. pois é um dos principais efeitos da be leza. Nas palavras de Platina, "Este é o efeito que a Beleza deve sempre induzir, assombro e pasmo deleitoso. desejo e amor, e um terror que seja prazeroso." S7 No século XVI . o neo platônico Francesco Patrizi define o poeta como O "criador do maravilho so", e afirma que o maravilhoso está presente quando os homens ficam "es tupefatos, arrebatados em êxtase". Pa trizi chega ao ponto de considerar o maravilhamento uma faculdade espe cial da mente, uma faculdade que na verdade é mediadora entre a capaci dade de pensar e a capacidade de sentir. 38 Na teoria estética da Renascença, o assombro está associado à superação de grandes dificuldades e a uma es tranha mistura de acaso e intenção humana (Castelvetro); ou ao espe táculo do inesperado e do extraordi nário (Robertelli); ou às paixões, re veses e descobertas (Veltori); ou à reconciliação da unidade e da varie dade (Tasso) ; ou a novos e surpreen dentes volteios da narrativa (Denores, Talenlono); ou aos efeitos do lemor reverente e da admiração ligados a sentimentos religiosos e, portanto, à sublimidade e gravidade ( Patrizi). " Virtualmente todas essas calegorias es téticas estão implícitas no insistente uso que Colombo faz Jo maravilhoso, e agora talvez nos encontremos em melhor posição para perguntar como O termo expressa o ritual legal pelo MARAVILHOSAS I}QSSESSÔES 57 qual Colombo reivindica a possessão espanhola das Indias. 40 Aquele ritual tem seu cenlro, como vimos, uma falha, um absurdo. a in vocação tragicômica da possibilidade de uma recusa que não poderia de fato, concebivelmente, acontecer: y no me filé cOlltradic/lO. A declaração le gal poderia ter lugar dentro do espí rilo de um formalismo radical, mas esse formalismo deixa em sua esteira uma vacância emocional e intelectual. um buraco, que ameaça arrastar o lei tor do discurso de Colombo em dire ção ao riso ou às lágrimas e em dire ção ao questionamento da legitimida de da reivindicação espanhola." Co lombo tenta conduzir o leitor ao as sombro, ao senlido do maravilhoso que com efeito preenche o vazio no centro do rito mutilado da posse. Ime diatamente após descrever o rito, re lembremos, Colombo declara: " À pri meira ilha que encontrei dei o nome de Sau Salvador, em homenagem à Divina Majestade que maravilhosa mente me concedeu tudo isto." A ma ravilha do dom divino é aqui ao mes mo tempo uma legitimação e uma transcendência do ato legal. Em uma notável passagem de seu Comentário sobre a metafísica de Aris tóteles, o mestre de Tómas de Aquino, Alberto o Grande, tenta dar uma des crição convincente da dinâmica inter na do assombro: • o assombro é definido como uma constrição e suspensão do coração causada pelo pasmo diante do apa recimento sensível de algo tão por tentoso, grande e incomum que o coração sofre uma sístole. Portan to, o assombro é algo semelhante ao medo em seu efeito sobre o c0- ração. Este efeito do assombro. en tão, esta constrição e sístole do co ração, brotam de um desejo insa- lisfeilo mas senlido de conhecer a causa daquilo que parece porten- o o o • toso e Incomum: assim era no lm- cio, quando os homens, até então incultos, começaram a filosofar . . . Assim sendo, o homem que fica perplexo e se assombra aparente mente não conhece. Portanto, o as sombro é o movimento do homem que não conhece em direção à des coberla, em direção ao fundo da quilo com que ele se assombra para determinar sua causa . . . Tal é a origem da filosofia. " Obviamente, o assombro não con duz Colombo em direção à filosofia, mas o conduz. em resposta à dádiva portentosa e incomum de Deus, em di reção a um alo que, na Idade Média e na Renascença, está intimamente li gado à filosofia: o ato de nomear. Es sa atribuição de nomes certamente tem muito a ver com a manifestação do poder através de títulos eponímicos - daí, Fernandina, Isabella e Isla )ua na <em vez de Príncipe luan, pois as ilhas tradicionalmente levavam desi nências femininas). Mas os dois pri meiros nomes - San Salvador e Isla de Santa Maria de Concepci6n - su-. -gerem uma vez malS que a asserçao de posse, recitada durante décadas na recollquista, está ligada, para o impe rialismo cristão, à concessão de uma dádiva preciosa. E a concessão de uma dádiva está ligada por sua vez ao c0- nhecimento superior, ao conhecimen to da verdade. O ato de Adão dar nomes aos ani mais em Gênesis 2 : 1 9 foi interpre tado pelos comentaristas medievais como sendo um ato de maravilhoso entendimento. Martinho Lutero segue uma longa tradição exegética quando glosa o versículo da seguinte maneira: Aqui mais uma vez somos lembra dos do conhecimento e da sabedo- 58 ESTUDOS H ISTÓRICOS - 1989/3 ria superiores de Adão, que foi criado na inocência e integridade. Sem qualquer outra iluminação e unicamente em razão da excelên cia de sua natureza, ele vê todos os animais e assim chega a um conhecimento de sua natureza que pode dar a cada um um nome apropriado, que se harmoniza com sua natureza. 43 Semelhante entendimento, continua Lutero, está ligado ao poder: " Desta iluminação também decorreu, natural mente, o domínio sobre todos os ani· mais, algo que também está indicado aqui, uma vez que eles receberam seu nome de acordo com a vontade de Adão. Conseqüentemente, com uma única palavra ele estava apto a com pelir leões, ursos, javaHs, tigres e o • • • • • que maiS eXiste entre os ammaIS mais importantes, a fazerem aquilo que es tava de acordo com sua natureza" (p. 1 19-20) . Colombo pode ter pensado que es· tava próximo do paraíso, mas sabia também que era o herdeiro do pecado de Adão, pelo qual, como nota Lute· ro, perdemos o paraíso e o poder de atribuir nomes primordiais e compelir através da nomeação. Além disso, em sua carta Colombo deixa claro que en controu não um mundo que jamais fora nomeado, mas antes um mundo de nomes alienígenas: "Os índios a chamam de "Guanahani". Seu ato, as sim, é o cancelamento de um nome ex.istente. Mas por que pensaria Ca lombo, em contraste com Marco Pala ou Mandeville, em renomear a terra que encontrou? Para, diz ele, come morar a maravilhosa dádiva do Sal vador. O ato de fundação do impe rialismo cristão é um batismo. " Tal batismo obviamente acarreta o cance lamento do nome nativo e, por conse guinte, como que torna novo o que é batizado: trata-se ao mesmo tempo de um apagamento, de uma apropriação e de uma dádiva. No primeiro encontro, Colombo capturou diversos nativos para utilizá los como informantes e intérpretes. Seis deles sobreviveram à viagem de volta à Espanha e, em memorável ce rimônia, com Fernando, Isabel e o In fante atuando como padrinhos, foram batizados. " O mais perspicaz dos na tivos, o mais serviçal para os espa nhóis, recebeu o sobrenome do pró prio Colombo e o prenome de seu pri mogênito: foi batizado como Don Die go Colón. A magia da renome ação estendeu-se ao próprio Colombo: após a Descoberta, em lugar de Cristóbal, ele passou a assinar suas cartas com o nome de Christoferens, o portador de Cristo. E, segundo o cosmógrafo Se bastian Münster, o rei de Espanha disse que Colombo não deveria ser chamado de Almirante, mas de Admirans, aquele que se admira. " Este batismo jocoso ex.prime em pequena escala a trajetória que vimos acompa nhando: do ritual legal, através da ex periência do maravilhoso, ao entendi mento místico e ao poder apropriativo da atribuição de nomes. A reivindica ção da possessão fundamenta-se no p0- der do assombro. Na medida em que a visão de Ca lombo se obscureceu ao longo dos anos, ele parece ter investido cada vez mais suas esperanças de posse no po der maravilhoso do nome. Revendo os anos passados na busca infrutífera de apoio real, ele declara que jamais per deu a esperança, pois Deus "falou de maneira muito clara dessas ilhas pela boca de Isaías, em muitas passagens de seu Livro, afirmando que a partir da Espanha seu santo nome deveria ser-lhes proclamado" (2 :4). O primei ro ato de nomeação de Colombo - San Salvador em lugar de Guanaha- MARAVILHOSAS POSSESSÕES 59 Di - foi assim O cumprimento de uma profecia b(blica. O tomar novo é paradoxalmente a realização do an tigo. Se o ato de nomear faz o mundo conforme à palavra, Colombo acre dita ao mesmo tempo que a palavra está de acordo, em última instância, com o mundo. Nas palavras da Escri tura, Hcomo é seu nome, assim ele é" ( 1 Sam. 25:25). Em sua última viagem ao Novo Mundo, em desespero, rodeado por na tivos hostis, "profundamente só, com febre alta e em um estado de grande exaustão", Colombo adormece e ouve 11mB "VOZ compassiva" que lhe fala sobre seu próprio nome: Ú louco e lento em acreditar e ser vir a teu Deus, o Deus de lodos! Que mais fez Ele por Moisés e por Seu servo Davi! Desde que nas ceste Ele te teve no mais vigilante carinho. Quando Ele te viu em uma idade que Lhe agradou, fez teu nome soar maravilhosamente na terra (lnaravillosalnente hizo sonar tu nOlnbre en la tierra). Agora, não é o nome divino, mas o de Colombo que está no ámago do as sombro. E agora, na mente de Colom bo e em seu texto, a conjunção da lerra, do maravilhoso e do nome pro duz uma possessão absoluta, não para o rei e a rainha de Espanha, mas ape nas para ele próprio. E a voz misteria- • 53 contmua: As lndias, que são uma parte tão rica do mundo. Ele as deu a ti e sa mente a ti; tu as dividiste como te aprouve, e Ele te permitiu fazê-lo. Das barreiras do Mar Oceano, que esta vam fechadas com correntes lão pode rosas, Ele te deu as chaves; e tu foste obedecido em muitas terras e entre os cristãos ganhaste uma fama honrada. O que mais fez Ele pelo povo de Is- • rael quando o tirou do Egito? O u por Davi, a quem de pastor Ele fez rei da Judéia? 47 Por um momento ao menos - um momento ao mesmo tempo de perfeito assombro e de loucura possessiva -, Colombo tornou-se rei da Terra Pro melida. Notas 1 . Se/eel Documenls IIlustrating lhe Four Voyages 01 Columbus. org, e trad. por Cecil fane. Londres, HakJuyl Society, t933, 2.' série, N. 70, 2 vais., 1:2. 2 . Sobre quem Colombo pensa ter obti do uma vitória: sobre os índios? sobre o poder destruidor do mar? sobre seus detra tores na Europa? sobre os geógrafos clás sicos e, no fundo, sobre lodo o mundo clássico? 3 . Poderíamos talvez perceber também um elemento construtor do mito na força simbólica do número de dias - 33 - que o relato diz ter demorado 8 travessia. Exis te, contudo, alguma dúvida sobre esse número, uma vez que a carta in-f6lio erra damente transcreve o intervalo como "vinte" dias. 4 . "Millimus in presenciarum nobilem virum Chrislophorum Coloo cum tribus caravelis arma tis per mada oceania ad partes lndie proaliquibus causis el negotiis seruicium Dei ac fidem ortodoxe coocer oenlibus" (Jane. Ixx). 5 . The Four Voyages 0/ Christopher Columbus, org. e trad. por J . M. Cohen. Bahimore. Penguin Books. 1969, p. 12. 6 . Four Voyages. p. 53. 7 . Não devemos simplesmente desconsi derar a importância para os espectadores espanhóis do ritual do convite à contradi ção. A submissão formal à autoridade real - uma frágil ficção legal - transformava o que poderia parecer um selvagem com bate corpo a corpo na promulgação da ordem. Afinal de contas, desde o princípio havia outros capitães que disputavam com Colombo o controle da expedição, bem como a parte do leão na partilha dos des-• paJOS. 8 . lustin jan's lnstitutes, org. e uad. por Peter 8irks c Grant McLcod, com texto em latim ed. par Paul Krueger. Hhaca Cornell University Press. 1987, 2 . 1 . 40. Esta passagem é citada por Francisco de Vitoria em sua brilhante análise de reivindicações 60 ESTUUOS H ISTÓRICOS - 1<,)89/1 espanholas (e. oe maneira mais &I!ral, euro péias) sobre as (ndias. Ver lames Brown Seott. The Span;sh Origin 01 ",terna/ional Law: Francisco de Vitoria aI.d His LoUl o/ Nations. Oxford. Clarenclon. 1 934, p. xxxiii. 9 . The Digesl 01 Jus/inlarl. org. e Irad. por Ala" Watson do texto em !utim ed. por Theodor Mommsen. Philadelphia, Uni ver· sity af Pennsylvania Press. 1985. 41 .2 .6. l a . Acúrsio. C/ossa ordinária, em Digesl 4 1 . 2 . 6. Agradeço a Laurent Mayali por esta referência. 1 1 . The Leite, 01 Columbus 0" Ilte Ois· c:overy of America. New York. Lenox Library. 1892. p. 19. 12. A ,dutação da reivindicação espa· nhola formulada por Vitoria na década de 1530 merece ser citada: "Este título de posse também é insufi ciente. Isto torna·se visível. em primeiro lugar, porque o medo e a ignorância, que viciam qualquer escolha, deviam estar ausentes. Mas eles foram signifi cativamente operantes nos casos de esco lha e aceitação em consideração. porque os índios não sabiam o que estavam fazendo; mais ainda, eles nào podiam ter entendido o que os espanhóis esta vam pretendendo. Além disso, vemos os espanhóis fazendo exigências com osten tação de armas perante um grupo pacf fico e tímido. Além disso. uma vez que os aborígenes. como foi dito acima, tinham senhores e prfncipes verdadeiros. o populacho não podia procurar novos senhores sem outra causa .razoável, pois isto ofenderia a seus antigos senhores. Além disso, por outro lado. esses pró prios senhores não poderiam designar um novo príncipe sem o consentimento do populacho. Tendo em vista, portan to, que em casos de escolha e aceitação como este não estão presentes todos os elementos exigidos para uma escolha válida. o título sob exame é absoluta mente inadequado e ilegal para a posse lo! a guarda das províncias em questão." 1 3 . Deveríamos considerar este aspecto dos atos de fala de Colombo como seu "for malismo formal", em contraste com O "for malismo aberto" que prevê um preenchi mento subseqüente da palavra? 1 4 . Vitoria considera e rapidamente li quida com este argumento em relação ao Novo Mundo: "Existe um outro título de posse que pode ser estabelecido, sentado, a saber. aquele baseado no direito de des coberta; e nenhum outro tftulo foi antes �prcscntado. e foi em razão apenas deste titulo que o genovês Colombo fez-se à vela. E este pnreçe ser um título adequado, por que aquelas regiões que são desertas tor nam-se. pela lei das nações e pela lei natu ral, propriedade do primeiro ocupante (Inst. 2 . 1 . 12). Portanto. como os espanhóis foram os primeiros a descobrir e ocupar 8S pro vincias em questão. eles estão na posse legal delas. exatamente como se tivessem descoberto alguma região solitária e até então desabitada. Contudo. não é preciso dizer muito sobre este terceiro titulo, porque. como ficou pro vado acima. os bárbaros eram os verdadei ros donos, tanto do ponto de vista público como do privado_ Ora, a regra da lei das nações é que o que não pertence a ninguém seja concedido no primeiro ocupante, como é expressamente afirmado na passagem acima citada das lnstitutioues. E assim. como o objeto emquestão não estava sem dono, não se submete ao título que esta mos discutindo . . . Em si e por si [este título] não fornece qualquer fundamento ao confisco dos aborígenes, niio mais do que se fossem eles que nos tivessem descober· to" ($colt, xx.iv-xxv). 15 . Gonzalo Femandez de Oviedo. Gelfe rol and Natural History 01 lhe Indies, em The Four Voyages 01 Christopher Colum bus. org. e Irad. por J . M. Cohen. Balti more. Penguill Books. 1969, p. 3 1 e 34. 16. Bartolomé de los Casas, Digesl 01 Columbus Log-Book on his First Voyage. terça-feira, 1 1 dt: outubro, em The Four Voyages 01 Columbus, ed. e transer. por J. M. Cohen. Baltimore. Penguin Books. 1969. p. 55. 17. Eu acrescentaria que as mortes por doença tiveram elas próprias que ser inter pretadas. e que por isso foram imediata mente vinculadas a teorias concorrentes. 18. O impulso de colocar a experiência sob o controle do discurso é inseparável da tarefa de justificação ética c legitima ção. As desastrosas doenças epidêmicas que arligiram os índios podem. em última ins tância. ter-se mostrado um falar histórico mais decisivo do que as atrocidades espa nholas, mas a preocupação eticamente constrangedora é uma avaliação interior daquilo que guia as · ações, ou seja, uma avaliação de intenções. Devo acrescentar que os observadores do século XVI tenta ram moralizar as doenças epidêmicas de diversas maneiras: como punição de Deus pela incredulidade pagã, por exemplo, ou como a horrível conseqüência da crueldade MARAVILHOSAS POSSESSÕES 61 espanhola. Essas moralizações podem ser entendidas como tentativas de compreender e. por conseguinte, controlar imaginativ.a· mente o natural. As estratégias pós-i1umi. nistas para obter semelhante controle con· centraram-se na ciência mais do que na polêmica religiosa, e envolveram caract'eris ricamente, de um lado, a busca da cura (ou ao menos das causas médicas) e. de outro, 8 busca de meios para inrJigir a doença no outro. 19 . Não é inteiramente claro quem os espanhóis imaginavam ser o Grande Khan ou como concebiam seu governo. mas é claro que eles imaginavam que havia algum tipo de império com uma eSlrullJra de aUlo ridade central. 20. Jane. 2:66. 21 . Aqui, Colombo lembra Maquiavel. descrevendo o que é necessário fazer para sobreviver_ 22 . Ver 8arlolomé de las Casas, Hislory u/ lhe Jndíes, Irad. por Andrée M . Col lurd. New York. Harper & Row. 197 1 . p. 121. 23. Em relação à paradoxalidade do imperialismo cristão, ver a carta sobre a terceira viagem: "Eu vim com a missão à vossa presença rcal, que sois os mais excd sos príncipes cristãos e tão ardentemente devotados à Fé e à sua expansão . . . Neste afã passei seis ou sele anos de profunda ansiedade. expondo. o melhor que podia. quão grande serviço poderia ser assim pres tado ao Senhor. pela proclamação no estrangeiro de Seu santo nome c de Sua fé a tantos povos. o que era coisa de grande excelência para a impolula fama de grandes príncipes e para seu notável memorial. Era necessário lambém falar do ganho lemporul aí incluído . . . ,. (Jane, 2: I ). 24. Em "The Boat of Romance and Re naissance Epic". em Romance: Getleric' Trorrslormotioll }rom Chrétien de Troyes lo Cervolltes. org. por Kevin e Mariana 8rown· Ice, Hanover e Londres. Uriiversity Press of New En8land. 1985. p. 118·202. David Quint explora as tensões desla relação. Quint argumenta que a tensão central estu· va entre um relato arislocnllico das via· gens de descoberta e um relato " burguês" - o primeiro lllilldo à épica e o úlrimo, ao romance. Colombo parece-me combinar ambos com um desrespeito ousado pelo decoro literário. Devo acrescentar que a Rainha Isabel rejeitou em úhima instância a proposta de Colombo de escravizar os indios e ordenou que aqueles já levados para a Espanha fossem devolvidos às suas terras. 25 _ Pode exislir nesta passagem uma con· junção extremamente cuidadosa de mora· vilha e razão, já que é u m Jugar-comum. cujas origens estão em Aristóteles. existir uma relação entre o assombro e a filoso fia. sendo a primeira, de fala. 8 causa da última. 26. The Travels 01 Sir /ohn Matldeville. Irad. e org_ por C. W. R. D. Mosely. Har· mondsworth. Inglaterra. Penguin. 1983. p. 1 80. 27 . Ver. especialmente. Baxt'er Halho way, Marvels and Commollplaces: Rena;s sance Literary Criticism. New York, Ran· dom House. 1968. p_ 1 33-51. 28. Cf. a observação cética de Andrés Bernáldez, Que acredita que essas histórias sâo contadas por alguns índios zombando de outros que vestem roupas (Jane, 1 : 128)_ 29. Citando em Samuel Eliol Morison. AdmiraI O/ lhe Ocean Sea: A Li/e 01 Chris· lopher Columbus. Boston , Lillle, Brown and Company. 1942. p. 309-iO. 30. loumal and Olher Documeflls 011 lhe Lile und Voyages 01 Chrislopher Colum bus. trad. e org. por Samuel Eliot Morison. New York, Heritage, 1963. p. 88. 3 1 . Tex.to em inglês em Marisan. p. 72; o texto espanhol enconlra·se em Martin Fer nandez de Navarrete, org .. Colecci6n de lus Viages y Descubrimientos. 5 vaIs. ( 1 825). Buenos Aires, Editorial Guarania. 1945. 1 : 1 15. 32 . Na verdade o pico mais elevado de Tenerife é consideravelmente mais alto que o mais elevado pico de Espaiiola. 33 . Colombo não parece muito interes sado em livrar os nativos de suas impres sõcs errôneas sobre os espanhóis, embora lhes diga que vem de outro reino. c não do céu. Quando, na segunda viagem, ele explica ao cacique índio que serve 80S go vernantes daquele reino. o cacique fica sur preso: "E o rndio. muito maravilhado (rnuy muruvil/udo), respondeu ao intél-"rete dizen· do: 'Como? Este almirante tem outro senhor e lhe presta obediênci,,?' E o intér· prete dos índios disse: • Ao rei e à rainha de Castela. que são os maiores soberanos do mundo.' E imediatamente ele contou ao c.ncique e ao velho e 8 todos os ou Iras índios as coisas que vira em Castela e as maravilhas de Espanha. c falou-lhes das grandes cidades e fortalezas t! igrejas. e das pessoas e cavalos e animais. (' da grande nobreza e riqueza dos soberanos e grandes senhores. e dos tipos de alimento. c dos festivais e torneios que "ira, e das toura· 62 ESTUOOS H IST6RICOS - 1989/3 das. e daquilo que aprendera sobre as guerras" (Jane. 1 : 154). 34. Podemos também citar Andrés Ber náldez, com quem Colombo ficou ao retor nar de sua segunda viagem e 8 quem deu informações sobre as descobertas. Bemál dez observa o que os espanh6is viram "mais de um milhão e meio de cormorões" todos juntos no céu e Ficaram assombrados (obie ron por marallilla) (Jane. I : 148). Ver. da mesma forma, 8 "maravilhosa" cena pasto ral da fonle (Jane. 1 : 132). 35. Vitoria considera a possibilidade de um título espanhol de posse sobre as índias baseado em uma "dádiva especial de Deus", Ele conclui que "seria ariscado dar-se cré dito a alguém que aCirma uma profecia contra a lei comum e contra 85 regras da Escritura, a menos que SUB doutrina seja confumada por milagres". Colombo sem dúvida proclama de maneira explícita que a descoberta das fndias fora profetizada por Isaías e outros, mas se mostra caute loso em falar em confinnação milagrosa. Vitoria não acredita que qualquer pessoa tenha afirmado tal coisa. "Assim sendo, nenhum desses [milagres] foi aduzido por profela. desle tipo" (Sca!!. p. xxxiv). Las Casas, contudo, cita Colombo dizendo, sobre a descoberta de Trinidad, que o "poder sublime de Deus me guia, e de tal maneira que Ele recebe muito serviço e Suas AIt"e- zas muito prazer, uma vez que é certo que a descoberta desta terra neste lugar foi um milagre tão grande quanto a descoberta de terra na primeira viagem" (Jane 2: I3n). 36. Citado em J. V. Cunningham. Woear Wonde" Th, Emo/ional Ellec/ o, Sha· kespearean Tragedy (1951). Dcnver. Alan Swallow. 1960. p. 82. 37 . Enéada, 1 .6 . 4, citado em Cunnin gham. p. 67. 38. Halhaway, p. 66-69. A apreciação de Hathaway sobre Patrizi é tirada em grande parte de Bemard Weinberg, A History 01 Literacy Cristicism ;11 the Ilatian Renais· sance. 2 vais. Chicago, University of Chica go Press. 1961. 39. Todas essas posições podem ser encontradas em Hathaway, op. ciL 40 . � importante perceber que este uso do termo "maravilhoso" não é exclusivo de Colombo - é antes a marca de um efeito emocional partilhado e de uma retó rica comum. Assim, por exemplo, Dr. Chan· ca, que acompanhou Colombo na segunda viagem, observa que os nativos " têm muitas ferramentas, como machadinhas e macha· dos. feitos de pedra, tão bonitos e bem feitos que é maravilhoso que eles sejam capazes de fazê-Ios sem ferro" (Jane. 1 :68). Até mesmo quando Chanca expressa repug nância pelos nativos. ele o faz no idioma do maravilhoso. "Esse povo", escreve ele. "é tão degradado (tan bestial) que não tem inteligência suficiente para procurar um lugar apropriado para viver. Quanto àque· les que vivem à beira d ·água. é maravi lhoso o quão barbaramente constroem (es maral/illa cuan bestialmente edificon)" (Jane, 1 :52). Seria fácil citar numerosos outros exemplos. 4 1 . Nos anos seguintes. as duas cOlsas de fato aconteceram: as I'grimas de las Casas, de um lado. e, de outro, o riso da quelas histórias de índios declarando que o Papa era bêbado ou louco para pensar que podia se desfazer daquilo que não era seu. 42. Citado em Cunningham, p. 77-78. 43. Luther's Works, vol. 1 . Lectures on G�nesis. caps. 1-5, org. por laroslav Peli kan. SI. Louis, Concordia Publishing House, 1958. p. 1 19. 44. Ver Rudolf Schnackenburg. Baptisnr in lhe Though/ o, S/. Paul. Irad. por G. R. Beasley-Murray, New York. Herder & Her der, 196�, p. 20: "Dar nome a uma pessoa tinha o significado de ligar o batizado àquela pessoa, de maneira que o batizado lhe pertencesse. Isto é confirmado por exe· gese; porque a conseqüência e o efeito do batismo 'em nome' de Cristo podem ser deduzidos de uma consideração da afirma tiva de Paulo: 'Tu pertences a Cristo' ... (Devo esta referência a Michael Ragussis). 45. Morison, AdmiraI, p. 360. 46. Hildegard Binder Johnson. "New Geographical Horizons: Concepts", em First Images 01 America; The /mpacI 01 lhe New World 011 tire Old, org. por Fredi Chiapelli, 2 vols. Berkeley, University of California Press, 1976, 2:619. 47. Jane, 2:90-92. A referência às chaves é parafraseada da Medéia de Sêneca. St'ephen Greenblau é professor do Depar tamento de Inglês da Universidade de Ber keley, Califórnia e autor, entre outras obras, de Renaissance sell'lashioning (Chicago. University of Chicago Press. 1980) e Alie· gory and representation (Baltimore, lohns Hopkins University Press, 1981).
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