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Mauricio_Coutinho

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A TAXA DE CÂMBIO EM FORMAÇÃO ECONÔMICA DO BRASIL 
Mauricio C. Coutinho* 
 
 
1. Introdução 
A preocupação com a taxa de câmbio tornou-se um dos traços fortes da 
economia do desenvolvimento de Celso Furtado, por diversas e compreensíveis razões. 
Como se sabe, imediatamente após a conclusão do programa de doutoramento em Paris, 
Furtado integrou-se aos quadros da CEPAL. Um dos pontos fortes dos diagnósticos da 
CEPAL sobre o atraso econômico latinoamericano era a tese de deterioração dos termos 
de troca, elaborada por Raul Prebisch. De modo mais amplo, Prebisch propunha que a 
teoria dominante do comércio internacional não constituía uma boa base para analisar-
se a economia latinoamericana.1 Ao longo de toda a década de 1950 travou-se no 
continente uma controvérsia intensa sobre o comércio internacional, teoria e aplicações, 
centrada nas teses de Prebisch. Furtado, como boa parte do staff técnico da CEPAL, 
envolveu-se nos debates e difundiu seus termos em diversos textos. 
 Além disso, inflação e constrangimentos cambiais foram os dois principais 
temas do cenário econômico brasileiro no pós-guerra. Devido à alternância de políticas 
cambiais nas décadas de 1940 e 1950, o Brasil tornou-se uma espécie de campo de 
experimentação na área.2 A diversidade de mecanismos de controle cambial 
proporcionou aos economistas brasileiros um refinamento na compreensão das questões 
cambiais e de suas implicações para a continuidade da industrialização. 
Vê-se, portanto, que por diversos motivos – influência das idéias de Prebisch, 
debates em política econômica, premência das questões cambiais no pós-guerra – 
Furtado tornara-se um especialista em taxa de câmbio quando veio a redigir Formação 
Econômica do Brasil, em 1958.3 A questão é saber como o tratamento da temática 
cambial foi incorporado a este “...esboço do processo histórico de formação da 
economia brasileira” (FEB,21);4 vale dizer, em que medida e com que nuances a 
questão cambial aparece em uma obra que não é dedicada ao debate de políticas 
econômicas contingentes e que, embora represente uma aplicação do método histórico-
 
* UNICAMP 
1 As teses de Prebisch estão expostas em Prebisch (1949). 
2 A este propósito ver Huddle (1964). 
3 Uma boa evidência da expertise de Furtado à época está no recentemente publicado estudo sobre a 
economia venezuelana, elaborado em 1957 (Furtado, 2008). 
4 As citações de Formação Econômica do Brasil serão designadas por (FEB, número da página), 
conforme a edição de 2008 (Furtado, 2008). 
 2
estrutural de análise da realidade econômica, característico da CEPAL, de todo modo 
constitui um trabalho de interpretação da história. 
De antemão, sabem os leitores de Formação Econômica do Brasil que os 
mecanismos cambiais desempenham um papel decisivo nas teses de Furtado sobre a 
crise da economia cafeeira e a transição do sistema primário-exportador para uma 
economia industrial de mercado interno. Enfim, a temática cambial domina a bem 
conhecida Parte Cinco (Economia de Transição para um Sistema Industrial – Século 
XX) de Formação Econômica. 
O presente trabalho tem por objetivo, além de apresentar os argumentos de 
Furtado a respeito do papel da restrição cambial e das políticas cambiais na crise da 
economia cafeeira e na industrialização por substituição de importações (o que será feito 
nas seções 5 e 6), recuperar as referências à questão cambial nos ciclos primário-
exportadores da economia escravista (seção 4). Entendo que as mudanças na abordagem 
da temática cambial ao longo do processo histórico estão relacionadas à visão de 
Furtado sobre o fluxo de renda nos sistemas escravista e não-escravista (e monetário 
versus não-monetário), nos diversos ciclos econômicos (objeto da seção 3). Finalmente, 
por acreditar que o tratamento da questão cambial nos textos de caráter histórico que 
antecedem Formação Econômica do Brasil facilita o entendimento das soluções 
adotadas nesta última obra, será feita uma menção introdutória a estes textos (seção 2). 
 
 
2. A taxa de câmbio nos textos que antecedem Formação Econômica do 
Brasil 
 Afora a tese doutoral de Furtado (Furtado, 2000), Formação Econômica do 
Brasil foi antecedido por dois trabalhos de natureza eminentemente histórica, que 
podem ser considerados seus precursores. O primeiro é um artigo publicado em 1950 na 
Revista Brasileira de Economia, Características Gerais da Economia Brasileira 
(Furtado, 1950). O segundo é um livro de 1954, A Economia Brasileira: contribuição 
à análise de seu desenvolvimento (Furtado, 1954), que teve apenas uma edição e 
pequena difusão. Furtado refere-se a este livro no prefácio de Formação Econômica do 
Brasil. A rigor, Formação veio a representar a continuidade e a terminação dos 
esquemas de abstração da história já delineados em A Economia Brasileira. 
Vale a pena destacar o caráter peculiar do artigo publicado em 1950, no qual 
Furtado pretende evidenciar a origem dos três principais fatores de desequilíbrio 
 3
presentes na economia brasileira, a saber, a piora nas relações de trocas, a elevação 
persistente da taxa cambial e a inflação crônica. Por atribuir, no espírito das 
contribuições da CEPAL, precedência aos fatores de natureza cambial, Furtado realiza 
uma digressão histórica sobre a atuação de tais fatores na “economia de tipo colonial” e 
na fase de “desenvolvimento de um núcleo industrial”. A economia colonial, baseada na 
exportação de produtos primários e na importação de artigos de consumo de natureza 
industrial, teria preponderado até 1914, enquanto o núcleo industrial, que teve um 
primeiro impulso no início da República e retomou certo dinamismo no período da 
Primeira Guerra Mundial, afirmou-se no início da década de 1930 e durante a Segunda 
Guerra Mundial. 
Em termos resumidos, o argumento de Furtado é de que na “economia de tipo 
colonial” as perdas resultantes da piora das relações de troca, ocorrida tanto 
secularmente quanto de modo agudo nas crises exportadoras, são transferidas (por meio 
da taxa cambial) dos reduzidos grupos exportadores à grande massa consumidora de 
produtos importados. A crise de 1929, por sua extensão e pelo grau de desenvolvimento 
já alcançado pelo país, impediu a solução tradicional de elevação da taxa cambial até o 
restabelecimento do “... equilíbrio entre o poder de compra interno e a disponibilidade 
de divisas” (Furtado, 1950, p. 27). A redução das importações requerida por esta 
modalidade de recuperação do equilíbrio teria levado a uma paralisia econômica, e daí a 
solução de utilização controlada das disponibilidades de divisas e a emergência de um 
resultado econômico decisivo, embora não-intencional: se as classes exportadoras 
conseguiram proteger razoavelmente sua renda, a redução do coeficiente de importações 
proporcionou um forte impulso à indústria local.5 
A explicação de Furtado para o fortalecimento do núcleo industrial após a crise 
de 1929 em Características Gerais da Economia Brasileira representa uma versão 
preliminar e compacta da que viria a ser desenvolvida em Formação Econômica do 
Brasil. No momento, o importante é destacar dois aspectos do artigo de 1950, os quais 
podem ser considerados parte da abordagem geral de Furtado. Em primeiro lugar, os 
problemas econômicos recentes (no caso, depreciação da moeda nacional e inflação) são 
sempre referidos a suas raízes históricas. Em segundo lugar, o funcionamento do 
mecanismo cambial constitui um dos elementos centrais no estabelecimento de 
 
5 Furtado conclui: “Dois fatores ... atuaram em forma convergente: a) a redução do coeficiente de 
importações das classes de médias e altasrendas, e b) a impossibilidade de continuarem no mesmo ritmo 
as inversões no setor de economia colonial. O choque causado pela crise externa deu assim à economia 
brasileira oportunidade de desenvolver seu mercado interno.” (Furtado, 1950, p. 28). 
 4
distinções entre a economia primário-exportadora e a economia em vias de 
industrialização, ou melhor, no estabelecimento de distinções entre as acomodações que 
sucederam as crises exportadoras na “economia de tipo colonial” e a reação 
industrializante que se seguiu à crise de 1929. 
 
Em A Economia Brasileira, Furtado também refere os problemas apresentados 
pela economia brasileira no pós-guerra a suas raízes históricas. Na verdade, esta obra 
contém, além da reconstituição dos mecanismos econômicos básicos da economia 
brasileira nas diversas fases históricas, uma digressão mais extensa e geral sobre o 
crescimento econômico.6 Na próxima seção retomaremos um dos elementos desta 
digressão, a reconstituição do fluxo circular da renda nos diversos ciclos e a idéia de 
“lucro industrial”. No momento, vamos nos concentrar no papel desempenhado pelos 
ajustamentos cambiais na crise da economia colonial e no “deslocamento do centro 
dinâmico”.7 
Após um tratamento sumário do “ciclo da economia colonial exportadora-
escravocrata”, Furtado compara os mecanismos de defesa do setor exportador depois da 
introdução de trabalho assalariado (produção de café) com os que vigoravam na 
economia exportadora-escravista. O argumento principal é de que na economia cafeeira, 
a exemplo do que ocorria na economia escravista, os aumentos de preço do produto 
exportado convertiam-se em elevação de lucros e as baixas cíclicas provocavam 
redução dos lucros. A introdução do trabalho assalariado, contudo, introduziu 
obstáculos adicionais à adaptação aos ciclos do mercado internacional. 
Para começar, a transição para o trabalho assalariado tornou ainda mais 
impraticável o funcionamento do padrão-ouro.8 As economias primário-exportadoras, 
de modo geral, caracterizam-se por uma elevada participação do comércio internacional 
na geração de renda. Isso significa que a contração das reservas metálicas nos 
momentos de crise, o mecanismo clássico de ajustamento do padrão-ouro, teria que ser 
de imensa magnitude em relação ao tamanho da economia e ao tamanho da população. 
Implicaria também a necessidade de preservação de enormes reservas monetárias, pois 
 
6 Nos capítulo I (As categorias fundamentais do processo histórico de crescimento econômico) e V 
(Formulação teórica do problema do crescimento econômico). Este último viria a ser transposto para o 
livro Desenvolvimento e Subdesenvolvimento (Furtado, 1961). 
7 Conforme os Capítulos III (A nova economia colonial e seus mecanismos de defesa) e IV (A crise do 
setor colonial e o deslocamento do centro dinâmico). 
8 Sobre as características do padrão-ouro e as dificuldades de os países periféricos a ele se adaptarem, ver 
Eichengreen (1998). O próprio Prebisch (Prebisch, 199?) tratou extensamente das dificuldades impostas 
pelo padrão-ouro aos países latinoamericanos 
 5
sem elas as economias estariam sujeitas a “... desequilíbrios externos intermitentes que 
se traduziam em flutuações da taxa cambial” (Furtado, 1954, p. 95). 
De acordo com Furtado, na economia exportadora-escravocrata em sua forma 
pura este problema não existiria porque “...Sendo a procura monetária igual às 
exportações, é evidente que toda ela poderia transformar-se em importações sem que 
por essa razão surgisse qualquer desequilíbrio”(Furtado, 1954, p. 95). Em suma, sendo a 
moeda utilizada apenas nas transações internacionais, uma contração dos valores 
exportados provocaria apenas um ajustamento no nível de importações, correspondente 
à retração dos lucros dos produtores. 
O desequilíbrio externo surge exatamente nas situações em que “... a procura 
monetária tende a crescer mais do que as exportações...” (Furtado, 1954, p. 95), 
situações ligadas à formação de um mercado de trabalho assalariado. A razão é simples. 
Na economia assalariada, o pagamento de fatores aciona o multiplicador de renda 
monetária e, em decorrência, amplifica a importação de bens de consumo para os 
assalariados.9 Nos momentos em que a queda de preços dos produtos exportados reduz 
a oferta de divisas, a renda e a demanda por importações reagem com defasagem. 
Nessas condições, a mobilização de reservas internacionais requerida para equilibrar o 
balanço de pagamentos seria elevada, fator agravado ainda pela tendência concomitante 
à saída de capitais e à deterioração dos termos de troca.10 Daí que Furtado conclua: “À 
proporção que a economia escravocrata-exportadora é substituída no Brasil por uma 
nova economia colonial, com base no trabalho assalariado, torna-se impraticável o 
funcionamento do padrão-ouro e, consequentemente, acentuam-se os desequilíbrios 
externos.” (Furtado, 1954, p. 98) 
 Além disso, a correção dos desequilíbrios do balanço de pagamentos por meio 
da desvalorização da moeda nacional protege os exportadores e atenua a contração de 
sua margem de lucro, ou seja, prejudica os consumidores de artigos importados e 
concede uma espécie de prêmio aos exportadores. O ajustamento da taxa cambial 
ocasionou uma transferência de renda dos importadores para os exportadores ou, visto 
de outro ângulo, estabeleceu uma assimetria entre as fases de auge e declínio cíclico: 
enquanto no auge os exportadores concentram os ganhos (elevam seus lucros), no 
 
9 Presume-se que a indústria local seja inexistente ou pouco expressiva. 
10 Nas economias coloniais “... é necessário que passe algum tempo para que a contração do valor das 
exportações exerça seu pleno efeito sobre a procura de importações... Por outro lado, ... tem início uma 
piora na relação dos preços de intercâmbio. A esses dois fatores vêm acumular-se os efeitos da fuga de 
capitais.” (Furtado, 1954, p. 97 e 98) 
 6
declínio os importadores arcam com grande parte das perdas. Ao impedirem a redução 
da oferta e uma baixa ainda maior dos preços do café, as políticas de proteção da 
produção cafeeira através da regulação de estoques, praticadas após 1906, agravaram a 
“socialização das perdas”. 
 A plenitude cambial provocada pela entrada de empréstimos externos destinados 
ao financiamento das compras de café pelo governo levou a que o Brasil se encontrasse 
em plena prática da conversibilidade no advento da crise de 1929. O resultado foi o 
rápido esgotamento das reservas metálicas e a postergação da depreciação da moeda 
nacional, um instrumento automático de proteção da fuga de capitais. De todo modo, a 
desvalorização da moeda nacional, quando sobrevinda, restabeleceu o mecanismo 
habitual de atenuação do impacto da baixa de preços sobre os produtores de café (e 
demais produtos agrícolas de exportação) e retardou a retração da oferta. A 
desvalorização cambial, por si só, retardaria o restabelecimento de equilíbrio entre 
oferta e demanda de café. A política de compra e destruição dos estoques que o governo 
veio a prolongar esse processo de ajustamento. 
 Furtado assinala que a política de aquisição do café teve um importante efeito 
derivado: representou um fator de manutenção, ou até mesmo expansão, do nível de 
renda. Sobrevém uma situação em que a demanda por produtos externos supera 
largamente a disponibilidade de divisas; enfim, o desequilíbrio externo sustenta a 
elevação da taxa de câmbio. A conseqüência é a emergência de uma não planejada 
política de estímulo à produção local, já que o desvio da demanda em direção aos bens 
produzidos localmente leva ao deslocamento do centro dinâmico da economia, do setorexportador para o mercado interno. Em suma, as elevações na taxa de câmbio 
garantiram uma modificação de preços relativos (produtos produzidos localmente 
versus importações) capaz de estimular a produção nacional. 
 Como se vê, em A Economia Brasileira encontra-se já uma plena explicitação 
do papel decisivo do mecanismo cambial na manutenção do equilíbrio entre oferta e 
procura, um processo que acaba por reconfigurar a estrutura produtiva do país. 
 
 
 3. Fluxos de renda e taxa de câmbio 
 Em Formação Econômica do Brasil, Furtado sistematiza a representação 
analítica dos grandes ciclos exportadores brasileiros (cana-de-açúcar, mineração, café), 
bem como da dinâmica de transição para a industrialização. No limite, esta 
 7
representação analítica apóia-se em uma adaptação criativa do fluxo circular de renda 
aos diversos ciclos, a qual se vale de instrumentos de análise e de categorias 
econômicas. As categorias são bem representadas por dicotomias básicas: escravidão 
versus trabalho assalariado; renda monetária versus renda não-monetária; fatores livres 
versus fatores escassos; produção de subsistência versus produção excedentária; setor 
dinâmico (de alta produtividade) versus setor de subsistência. O principal instrumento 
de análise econômica é o multiplicador de gastos, que atua apenas na esfera das 
transações monetárias. A dinâmica de preços relativos (preferencialmente, preços 
internos versus externos) e o equilíbrio entre oferta e demanda completam o quadro de 
instrumentos de análise.11 
 A reconstituição analítica do ciclo canavieiro fornece um bom exemplo do 
emprego de categorias e instrumentos de análise econômica. No modelo de plantation 
canavieira de Furtado, toda a renda monetária concentra-se nas transações 
internacionais. As transações ocorridas no mercado interno são não-monetárias ou 
absolutamente residuais. A mão-de-obra é escrava e, portanto, não paga. A unidade 
produtiva principal, o engenho de açúcar – a planta industrial e as lavouras em torno -, 
constitui o setor de alta produtividade. As atividades econômicas restantes são 
consideradas “de subsistência”. A expansão da produção é extensiva, não há progresso 
técnico na agricultura. A terra é o fator livre, ou quase livre, e o capital (incluindo os 
escravos) o fator escasso. O multiplicador de renda não atua, simplesmente porque não 
há pagamento de fatores no território nacional – os lucros convertem-se em despesas de 
importação.12 
 Cabe observar que o ponto-chave no esquema analítico de Furtado é o 
pagamento (em moeda) de fatores.13 É por essa razão que a plantation de café da 
 
11 Para um apresentação mais desenvolvida do esquema analítico de Furtado, Coutinho (2008). 
12 Os engenhos teriam como única transação expressiva fora da unidade produtiva as aquisições de lenha 
e gado. 
13 A noção de “lucro industrial”, apresentada detalhes no Capítulo I de A Economia Brasileira, é a chave 
para o entendimento da importância do pagamento de fatores no esquema analítico de Furtado (ver 
Coutinho, 2008). Em Formação Econômica do Brasil, Furtado distingue nos mesmos termos – haver ou 
não pagamento de fatores – a economia industrial da economia exportadora escravista. A questão está 
bem estabelecida no capítulo 9 (Fluxo de renda e crescimento): “Numa economia industrial a inversão 
faz crescer diretamente a renda da coletividade em quantidade idêntica a ela mesma. Isto porque a 
inversão se transforma automaticamente em pagamento a fatores da produção.... A inversão feita numa 
economia exportadora-escravista é fenômeno inteiramente diverso. Parte dela transforma-se em 
pagamentos feitos no exterior...; a maior parte, sem embargo, tem como origem a utilização mesma da 
força de trabalho escravo. Ora, a diferença entre o custo de reposição e de manutenção dessa mão-de-
obra e o valor do produto do trabalho da mesma era lucro para o empresário. Sendo assim, a nova 
inversão fazia crescer a renda real apenas no montante correspondente à criação de lucro para o 
 8
segunda metade do século XIX veio a representar um elemento de ruptura na antiga 
dinâmica exportadora: nela criou-se um mercado de trabalho livre e, deste modo, passou 
a haver pagamento de fatores no território. Aciona-se o multiplicador. É exatamente na 
criação de um mercado de trabalho assalariado e na decorrente atuação plena do 
multiplicador de gastos que radica a possibilidade de transição para um sistema 
industrial. 
 Adicionalmente, e como foi visto em A Economia Brasileira, o pagamento de 
fatores altera a dinâmica cambial. O contraste entre os dois primeiros grandes ciclos 
primário-exportadores brasileiros (açúcar e mineração) e o terceiro (café) é decisivo. 
Nos ciclos primário-escravistas, a quase totalidade das transações monetárias dá-se 
entre o país – melhor dito, o território colonial - e o exterior. O valor adicionado é quase 
idêntico aos lucros, diretamente representados na moeda do comércio internacional.14 A 
alta cíclica de preços e produção reflete-se imediatamente em elevação dos lucros, 
assim como a baixa reflete-se em contração. A queda dos preços, seja pelo 
abarrotamento do mercado internacional, seja pela concorrência de outros países, 
diminui o fluxo de renda monetária e, imediatamente, os lucros e o montante de 
importações e/ou o pagamento de serviços no exterior. A circulação monetária no 
mercado interno não se contrai, simplesmente porque era inexistente ou residual. 
 Em suma, nos períodos de baixa cíclica as unidades produtivas exportadoras 
definham e o entorno é pouco afetado porque, na visão de Furtado, resume-se a 
“economia de subsistência”. Havendo terra disponível, uma parte da população liberada 
na atividade principal pode migrar para o “setor de subsistência”, e isso em tese não 
afeta a renda monetária. De todo modo, a queda brusca da capacidade de importar leva a 
uma nova situação de equilíbrio, com menores lucros e menor demanda por produtos 
importados, inclusive escravos. 
Ora, na medida em que a renda monetária na economia exportadora-escravista 
corresponde apenas ao comércio exterior, é como se a existência de uma moeda 
nacional, bem como as relações de troca entre a moeda nacional e o padrão monetário 
utilizado nas transações internacionais, fossem irrelevantes. A atividade econômica – 
exportações – gera, diretamente, divisas. Em princípio, portanto, não haveria 
necessidade de examinar as características e vicissitudes do padrão monetário nacional e 
 
empresário. Esse incremento de renda não tinha, entretanto, expressão monetária, pois não era objeto de 
nenhum pagamento.”(FEB, 85) 
14 Em Formação Econômica do Brasil, Furtado admite que uma parte significativa dos lucros da 
mineração é absorvida por impostos. 
 9
as relações de troca com a moeda de comércio internacional; em outras palavras, a 
questão cambial não se colocaria.15 Veremos adiante, no entanto, que Furtado faz breves 
menções a flutuações cambiais durante o período colonial. 
A transição para o regime de trabalho assalariado acarreta uma mudança radical 
no cenário cambial, porque nele há pagamento de fatores em moeda nacional. Já vimos 
como Furtado examina, em seu livro de 1954, as dificuldades na adaptação de uma 
economia dominantemente primário-exportadora às regras do padrão-ouro, um ponto 
explorado com maiores detalhes em Formação Econômica do Brasil. Adiante 
voltaremos ao tema, porém, assinale-se que o fato de o lucro não mais representar a 
totalidade das rendas monetárias confere um novo significado à questão cambial. De um 
lado, a contraçãoda circulação monetária provocada por déficits no balanço de 
pagamentos afeta a economia de modo muito mais amplo – não apenas os lucros estão 
em jogo. De outro, cresce o grupo dos consumidores de produtos importados e com isso 
a importância das variações da taxa de câmbio, admitindo-se que não se consiga 
sustentar regra de relativa estabilidade cambial prevista pelo padrão-ouro. Se ao quadro 
for adicionada a existência de produtores voltados ao mercado interno e, portanto, a 
concorrência entre produtos importados e nacionais, a incorporação da taxa de câmbio 
ao esquema de análise torna-se decisiva. 
 
 
4. Formação Econômica do Brasil: as referências à questão cambial na 
economia primário-exportadora de base escravista 
Como foi dito, no esquema de Furtado a moeda é um fator quase irrelevante na 
economia exportadora-escravista, seja por não haver circulação monetária no território 
colonial, seja por as exportações proporcionarem acesso imediato à moeda do comércio 
internacional. No entanto, em algumas passagens de Formação Econômica do Brasil 
encontram-se referências a questões monetárias e cambiais durante o período colonial. 
A primeira menção está no capítulo 3 (Razões do monopólio), mais 
precisamente, em um comentário à colonização espanhola. Furtado refere-se ao imenso 
afluxo de metais preciosos para a metrópole e às transformações sofridas pela economia 
espanhola, para concluir que o aumento no fluxo de renda gerado por gastos públicos e 
 
15 O que vale tanto para o período de dominância do padrão-ouro como para o período anterior, em que o 
próprio conteúdo metálico da moeda determinava suas relações de troca com as congêneres 
internacionais. 
 10
privados provocou inflação e déficit no balanço de pagamentos. Embora a inflação 
tenha se espalhado para os demais países do continente europeu, o nível de preços na 
Espanha teria subido mais do que o dos países vizinhos, o que trouxe persistente déficit 
nas transações internacionais e total desestímulo à produção local. A abundância de 
metais preciosos atrofiou a produção na Espanha.16 
Uma segunda menção encontra-se no capítulo 4 (Desarticulação do sistema), no 
qual se discute o declínio da produção açucareira no Brasil, em virtude da concorrência 
caribenha. Furtado assinala os impactos da queda no volume das exportações e no preço 
do açúcar exportado, ao final do século XVII. Os argumentos principais dirigem-se à 
significativa queda da renda real da produção açucareira e à decorrente depreciação da 
moeda portuguesa em relação ao ouro. Sendo Portugal o principal abastecedor da 
colônia, “... essa desvalorização significaria uma importante transferência de renda real 
em benefício do núcleo colonial.” (FEB, 45) No entanto, pondera Furtado, o valor dos 
produtos de exportação portugueses estaria fixado em ouro; as mercadorias de outros 
países, importadas por Portugal e reexportadas ao Brasil, tinham seu preço naturalmente 
vinculado ao ouro. A conclusão é de que a desvalorização da moeda portuguesa reverteu 
em benefício dos exportadores metropolitanos. Em termos precisos, “... a depreciação 
minorava os prejuízos dos comerciantes que tinham capitais empatados nos negócios do 
açúcar...” (FEB, p. 45, rodapé). 
O esquema, portanto, é o seguinte: 1. os portugueses depreciam sua moeda como 
forma de diminuir a perda dos produtores/comerciantes de açúcar com a queda das 
exportações; 2. a colônia não se beneficia da depreciação, porque continua a importar as 
mercadorias que consome a preços do mercado internacional. Ora, com a depreciação 
cambial os portugueses lograram diminuir a perda de poder aquisitivo, em moeda local, 
das exportações; ou seja, cada libra obtida proporciona maior poder de compra no 
mercado local. A decorrência lógica é que, nestas condições, ganhos haveria: i) apenas 
na relação de troca entre os exportadores e os produtores metropolitanos; ii) se os 
importadores no Brasil não tivessem acesso à moeda do comércio internacional e 
fossem obrigados a pagar pelas mercadorias vindas de Portugal (cotadas a preços 
internacionais) na moeda metropolitana. 
 
16 A situação da Espanha no período de abundância de metais preciosos na América espanhola e a fuga de 
metais provocada pelos sucessivos déficits comerciais são temas recorrentes na discussão dos 
economistas monetários, desde o século XVII. 
 11
 Em suma, para sustentar suas conclusões, o texto de Furtado teria que explicitar 
a triangulação entre produtores coloniais, negocistas metropolitanos, mercado 
internacional, bem como discriminar as operações que se faziam em moeda 
internacional e em moeda metropolitana. Note-se que no restante do texto a moeda 
nacional (metropolitana) é pouco mencionada, porque se presume que as transações 
internacionais são inteiramente contabilizadas e liquidadas na moeda de comércio 
internacional; ou, alternativamente, que a relação de troca entre a moeda metropolitana 
e a moeda internacional atenda estritamente a seus conteúdos metálicos. 
 No capítulos 8 (Capitalização e nível de renda na colônia açucareira) as 
estimativas do valor do capital dos engenhos, do valor imobilizado em mão-de-obra 
escrava, do valor do capital fixo e da renda que se gerava na colônia estão representadas 
em libras esterlinas. Contudo, Furtado volta a se referir à relação de troca entre a moeda 
nacional e a libra esterlina nos momentos em que discute a decadência da economia 
canavieira, já que ela se fez acompanhar de forte desvalorização da moeda portuguesa. 
Por exemplo, no capítulo 11 (Formação do complexo econômico nordestino), ao efetuar 
uma estimativa da perda de renda na colônia e salientar as dificuldades de as unidades 
produtivas ao menos reporem o capital depreciado, acrescenta a ressalva: “É provável ... 
que a forte desvalorização da moeda portuguesa haja contribuído para manter o sistema 
em condições de, pelo menos, preservar sua capacidade produtiva”(FEB, p. 103, 
rodapé). 
 Ao tratar novamente das desvalorizações cambiais que sucederam a queda de 
receita de exportação do açúcar, no capítulo 12 (Contração econômica e expansão 
territorial), admite que as desvalorizações protegeram o setor açucareiro e agravaram a 
situação das demais regiões, “... que pouco ou nada tinham para exportar e cuja procura 
de importações era altamente inelástica pelo fato mesmo de que se limitavam a coisas 
imprescindíveis, como o sal.” (FEB, 112) Presume-se, então, que havia circulação de 
moeda nacional e aquisições em moeda nacional – algo que foge à representação 
esquemática do fluxo de renda na economia açucareira. Aliás, no mesmo capítulo 
Furtado assinalara as dificuldades em transferir para a metrópole tributos – pagos em 
moeda nacional – e a “... crescente escassez de numerário na colônia” (FEB, 112). Há 
aqui uma referência à questão cambial e à circulação de moeda nacional no território. 
Vale ressalvar, uma vez mais, que a admissão de que a desvalorização tenha dado 
proteção ao setor açucareiro implica a possibilidade de comprar bens nacionais em 
moeda nacional. 
 12
 
 Uma nova menção à questão cambial, ainda no âmbito da economia escravista-
exportadora, ocorre em contexto totalmente diferente. Furtado trata no capítulo 17 
(Passivo colonial, crise financeira e instabilidade política) das dificuldades econômicas 
do país imediatamente após a independência. Os déficits públicos produzidos pelas 
campanhas militares foram financiados com emissão de papel moeda, o que repercutiu 
na taxa de câmbio (agora, relação mil-réis / libra esterlina). 
 A questão cambial volta à tona nos capítulos seguintes. No capítulo 18 
(Confrontocom o desenvolvimento dos EUA) Furtado discute as conseqüências da 
exclusão da intermediação de Portugal nos negócios internacionais e da preponderância 
da Inglaterra no comércio exterior brasileiro. Conclui que a baixa de preços dos 
produtos importados, produzida pelas facilidades de transporte e pela exclusão da 
intermediação portuguesa, a já referida cobertura de déficits orçamentários com 
emissão, bem como a ausência de fluxos de capital, provocaram forte desvalorização da 
moeda, em uma situação em que o governo não elevara a proteção aduaneira. 
 Finalmente, no capítulo 19 (Declínio a longo prazo do nível de renda: primeira 
metade do século XIX), Furtado volta a discutir o declínio das exportações nacionais. 
Na primeira metade do século XIX as exportações cresceram a taxas baixas e ocorreu 
ainda deterioração dos termos de intercâmbio. Tendo sido o crescimento populacional 
superior ao das exportações, a ausência de desenvolvimento de um setor de produção 
para o mercado interno teria provocado um declínio sensível da renda per cápita. 
 Vale lembrar que, a despeito da permanência do regime exportador-escravista, o 
quadro institucional após a independência é outro. O governo local tem condições de se 
financiar por emissão. As relações comerciais com a Inglaterra, sólidas desde o século 
XVIII, tornaram-se dominantes com a vinda da família real. A Inglaterra, por sua vez, 
era o líder incontroverso do comércio mundial e a libra esterlina a verdadeira moeda 
internacional. 
 
 
 5. A taxa de câmbio na economia cafeeira 
 A dinâmica cambial muda totalmente na segunda metade do século XIX, por 
diversas razões. Em primeiro lugar, por ter ocorrido uma transformação radical no 
mercado de trabalho, com o fim da escravidão. A economia do café do noroeste paulista 
 13
foi o primeiro setor produtivo a empregar grandes contingentes de mão-de-obra não-
escrava. 
 Em segundo lugar, as exportações de café atingiram valores significativos e o 
Brasil exerceu uma posição ímpar, quase monopolista, na oferta do produto no mercado 
internacional. Se adicionarmos a estes dois elementos o peso político dos cafeicultores 
no Segundo Reinado e na Primeira República, estão postas as condições para o 
exercício de fortes pressões dos produtores sobre a política governamental. A taxa de 
câmbio, deste modo, tanto sofreria a influência de fatores “naturais” (volume das 
exportações e preços no mercado internacional) quanto de fatores associados ao manejo 
da política econômica. São estes os elementos contemplados na análise da dinâmica 
cambial nos capítulos 20 (Gestação da economia cafeeira) e, em especial, 25 (Nível de 
renda e ritmo de crescimento na segunda metade do século XX), 26 (O fluxo de renda 
na economia de trabalho assalariado), 27 (A tendência ao desequilíbrio externo) e 28 (A 
defesa do nível de emprego e a concentração da renda).17 
 De acordo com Furtado, o quadro geral da economia brasileira de meados (anos 
1840) ao final do século (1890) indica uma expansão de 214% no quantum das 
exportações e uma melhora de 58% nas relações de troca. À parte os efeitos notáveis 
sobre a renda do setor exportador, o volume de exportações e a melhora dos termos de 
troca provocaram uma forte apreciação da moeda nacional.18 
 Essa elevação da renda do setor exportador foi, no quarto final do século XIX, 
acompanhada por uma decisiva mudança no formato do fluxo de renda, em decorrência 
da massificação do mercado de trabalho livre. Já vimos o núcleo da argumentação de 
Furtado a respeito dos impactos do emprego de mão-de-obra livre na renda e no 
mecanismo cambial: no momento em que se converte uma parte expressiva da renda de 
exportação em despesas efetuadas em moeda nacional, a plena atuação do multiplicador 
fortalece o mercado interno e introduzem-se modificações na acomodação do país às 
variações de renda do exportador. 
O capítulo 27 de Formação Econômica do Brasil retoma a discussão das 
dificuldades de adaptação das economias primário-exportadoras aos princípios do 
padrão-ouro. Os argumentos são semelhantes aos que haviam sido expostos nos 
trabalhos anteriores, mas vale destacar a extensão e o vigor da crítica à visão econômica 
 
17 Furtado dedica quatro capítulos (21,22,23,24) ao “problema da mão-de-obra”, vale dizer, à formação do 
mercado de trabalho assalariado. 
18 A paridade legal teria passado de 67,5 pence na época da Independência a menos de 30 pence na 
segunda metade do século XIX (FEB, 235, rodapé). 
 14
convencional sobre balanço de pagamentos. Nos dois longos parágrafos finais do 
capítulo, após explicar as diferenças nos padrões de ajustamento a crises cambiais nos 
países desenvolvidos e não-desenvolvidos, Furtado chega a se referir à “... inibição 
mental para captar a realidade de um ponto de vista crítico-científico ... particularmente 
óbvia no que diz respeito aos problemas monetários”. (FEB, 230) Pode-se dizer que o 
modelo de análise econômica e abstração da história de Furtado converte-se de modo 
aberto em crítica à ideologia econômica. 
Os políticos e os formuladores de política econômica também são incluídos no 
rol dos que se deixavam levar pela ideologia da estabilidade associada ao padrão-ouro. 
Conforme Furtado, os políticos não percebiam que o que entendiam como “patológico” 
– a inconvertibilidade, as dificuldades de adaptação às regras do padrão-ouro, os déficits 
– expressava a dificuldade, ou impossibilidade, de as economias primário-exportadoras 
adotarem a política de convertibilidade irrestrita.19 
Na verdade, por mais que o horizonte doutrinário dos governantes na República 
Velha fosse o modelo do padrão-ouro, eles não eram cegos às dificuldades e tampouco, 
a despeito da força dos interesses pró-desvalorização, puderam fugir de restrições 
políticas e econômicas, duas dos quais especialmente fortes. Por um lado, o crescimento 
da economia urbana e a inclusão das classes médias urbanas no jogo político-eleitoral, 
criou um grupo político extremamente sensível à desvalorização e à inflação a ela 
associada. Este tema é tratado no capítulo 29 (A descentralização republicana e a 
formação de novos grupos de pressão). 
Além disso, as restrições orçamentárias, presentes ao longo do ciclo cafeeiro e 
intensas na Primeira República, frequentemente colocavam os governos em xeque. 
Como os orçamentos públicos eram onerados pelo serviço da dívida externa, as 
desvalorizações cambiais agravavam as condições orçamentárias e acabavam por 
exercer um impacto expansionista na política monetária, estimulando uma indesejada 
inflação.20 Havia, portanto, restrições de toda ordem – políticas, fiscais, monetárias – à 
manutenção da proteção aos cafeicultores mediante desvalorizações cambiais. No 
capítulo 29, Furtado deixa claro que a política cambial e fiscal executada por Joaquim 
Murtinho no governo Campos Salles (1898-1902) representou uma espécie de término 
 
19 “... não se fez nenhum esforço sério para compreender tal anormalidade, que em última instância era a 
realidade dentro da qual se vivia.” (FEB, 230) 
20 Fritsch (1988) desenvolve extensamente o problema (apontado por Furtado) das restrições à política 
econômica durante a República Velha. 
 15
às práticas irrestritamente pró-cafeicultores da política econômica.21 A rigor, para 
Furtado, foram as dificuldades em manter a tradicional proteção ao setor exportador via 
desvalorização que estimularam a saída alternativa e estruturada dos planos de 
valorização do café, que tiveram início em 1906 – um tema tratado no capítulo 30, que 
já pertence à Parte Cinco de Formação Econômica do Brasil.22 
 
 Em relação aostextos históricos que o antecederam, Formação Econômica do 
Brasil tem como pontos fortes o tratamento detalhado conferido à política econômica 
do café, assim como a ampliação da discussão do significado político das crises 
exportadoras. Ainda na Parte Quatro, Furtado retoma com mais detalhes sua análise dos 
mecanismos de transferência de renda implícitos aos movimentos da taxa de câmbio, 
que redundam em “socialização das perdas”. 
A tese é conhecida. Se a desvalorização cambial representa um prêmio aos 
exportadores, impõe simultaneamente um ônus à população em geral, na medida em que 
os produtos importados adquirem um peso significativo nas cestas de consumo urbanas. 
Como Furtado expõe didaticamente: “ O processo de correção do desequilíbrio externo 
significava, em última instância, uma transferência de renda daqueles que pagavam as 
importações para aqueles que vendiam as exportações”. (FEB, 237) O corolário desta 
tese sobre transferência de renda é a idéia de “socialização de perdas” produzida pela 
desvalorização cambial.23 Ressalte-se que a “socialização de perdas” é considerada, uma 
vez mais, um resultado incontornável e não tão negativo, já que um ajustamento 
“natural” da economia à crise externa - contração brusca da renda, dos lucros e dos 
investimentos dos exportadores - representaria um corte das rendas salariais. A 
desvalorização cambial, deste modo, constitui também um instrumento de defesa do 
nível de emprego e de limitação dos “efeitos secundários da crise”. (FEB, 241) 
 Do mesmo modo, Furtado acentua o ônus para a população representado pelos 
episódios inflacionários provocados pela emissão de papel moeda por governos com 
dificuldades de financiamento. Dois momentos de elevada emissão são especialmente 
mencionados. Ao final do Império, a emissão decorreu da ineficiência do sistema fiscal 
 
21 Após se referir à intranqüilidade social e política provocada pela depreciação cambial do último 
decênio do século XIX, Furtado conclui: “A partir de 1898 a política de Murtinho reflete um novo 
equilíbrio de forças.” (FEB, 247) 
22 Tema detidamente tratado por Delfim Neto (1954). 
23 “Como as importações eram pagas pela coletividade em seu conjunto, os empresários exportadores 
estavam na realidade logrando socializar as perdas que os mecanismos econômicos tendiam a concentrar 
em seus lucros”. (FEB, 238) 
 16
em prover recursos para servir à dívida externa, contraída para a defesa do câmbio, em 
uma insustentável tentativa de garantir a convertibilidade. No início da República, a 
expansão do crédito do período do Encilhamento também redundou em depreciação 
cambial e crise inflacionária. 
 
 6. A crise da economia cafeeira e a industrialização 
 Na visão de Furtado, a ruptura do padrão primário-exportador seria efetivada no 
contexto de uma grande crise, a de 1929. O papel da política econômica, em geral, e da 
política cambial, em particular, na ruptura do padrão primário-exportador e na 
conformação de uma economia de base industrial, talvez represente o ponto culminante 
de Formação Econômica do Brasil. 
Na Parte Cinco de Formação Econômica do Brasil (Economia de Transição 
para um Sistema Industrial – Século XX), Furtado apresenta em sete capítulos suas 
clássicas teses sobre a crise da economia cafeeira e emergência de um sistema 
industrial. Os capítulos 30 (A crise da economia cafeeira), 31 (Os mecanismos de defesa 
e a crise de 1929) e 32 (Deslocamento do centro dinâmico) tratam da política do café e 
da expansão da lavoura nas três primeiras décadas do século XX, dos impasses trazidos 
pela queda dos preços e pela contração do comércio internacional nos anos 1930 e, 
finalmente, dos estímulos dados à indústria local em função da crise propriamente dita e 
das políticas adotadas para a ela se contrapor. Estes capítulos mantêm-se, por assim 
dizer, no espírito da obra: grandes traços de abstração, aplicação da análise econômica à 
reconstituição da história e um olhar acurado à política econômica e ao novo quadro 
social formado pela emergência do assalariamento e de uma economia urbana de certa 
expressão. 
 Os capítulos 33 (O desequilíbrio externo e sua propagação), 34 (Reajustamento 
do coeficiente de exportações), 35 (Os dois lados do processo inflacionário) e 36 
(Perspectiva dos próximos decênios) abordam os desdobramentos do processo de 
industrialização em condições de restrição cambial, os impactos das diversas políticas 
cambiais adotadas a partir dos anos 1930, a conexão entre restrições cambiais e inflação 
e, finalmente, as características e impasses de uma economia cujo centro dinâmico 
deslocou-se para o mercado interno sem extinguir a dualidade estrutural. Estes capítulos 
têm um tom específico, pois nem seguem a norma geral de construção de grandes 
abstrações e nem mergulham no detalhamento das políticas. Furtado efetua uma 
 17
digressão geral sobre as restrições cambiais, seus impactos sobre a indústria e efeitos 
inflacionários. 
 Tanto em uma quanto em outra situação – na reconstrução de abstrações 
históricas ou na apresentação de dilemas contemporâneos – a questão cambial ocupa um 
papel decisivo. Os argumentos dos capítulos 30, 31 e 32 são bem conhecidos e, por 
outro lado, representam uma versão desenvolvida e mais detalhada de idéias 
apresentadas em A Economia Brasileira. Por essa razão, na apresentação sucinta da 
crise de 1929 e seus desdobramentos, a seguir, apenas os elementos mais expressivos ou 
inovadores serão destacados. 
 Furtado considera que a inflação de crédito do último decênio do século XIX 
estimulou os investimentos na cafeicultura, ao mesmo tempo em que a depreciação 
cambial preservou a remuneração dos produtores em moeda nacional, diante da queda 
de preços provocada pela crise mundial de 1893. A resistência dos consumidores 
urbanos impediu que uma nova crise, em 1897, viesse a ser contornada pelo tradicional 
instrumento cambial. A combinação entre queda de preços e elevação da oferta 
impulsionou os debates sobre uma nova solução, a de administração de oferta por 
retenção de estoques, finalmente adotada em 1906 e perseguida com sucesso por duas 
décadas. 
Dois elementos básicos explicam o sucesso da política. Em primeiro lugar, a 
influência da elite cafeeira sobre os governos de São Paulo e da União permitiu a 
mobilização de recursos para a formação de estoques. Em segundo lugar, a condição de 
ofertante quase-monopolista garantiu ao país o sucesso da política, cujos traços básicos 
eram a compra de excedentes com financiamento externo (a dívida seria servida por 
impostos arrecadados na venda do café) e o gerenciamento da oferta no mercado 
internacional. Por não ser acompanhada de medidas complementares de restrição à 
expansão da lavoura, a política de proteção do café levou a uma contínua elevação da 
oferta. A crise mundial de 1929 pega-nos exatamente nesta situação: a retração na 
demanda e nos preços internacionais, assim como a cessação dos financiamentos 
externos, evidenciaram o imenso desequilíbrio entre oferta e demanda que levou a 
produção cafeeira (bem como o país) a uma crise sem precedentes. 
A discussão que se segue é clássica. Diante das alternativas de admitir a 
derrocada da lavoura cafeeira até o restabelecimento de um equilíbrio natural entre 
oferta e demanda, ou garantir a compra da produção para impedir a queda brusca do 
nível de renda na lavoura cafeeira, o governo optou pela última. A alta da taxa de 
 18
câmbio preservou os produtores, apesar da queda de preços, porém, o equilíbrio entre 
oferta e demanda não foi restabelecido de modo natural – retração da oferta em 
decorrência de prejuízos contínuos dos cafeicultores. A destruiçãodos estoques 
excedentes em mãos do governo foi o fator que garantiu a obtenção de um equilíbrio no 
mercado a preços mais elevados do que os que prevaleceriam no caso de um 
ajustamento natural. Uma solução extrema, a evidenciar os limites do mecanismo de 
defesa através da taxa cambial em situações extremas.24 
A preservação da renda do cafeicultor sustentou o nível de emprego na lavoura e 
em toda a economia. O programa governamental de compra do café pode ser vista como 
uma vigorosa política anti-cíclica de grande eficácia, pois a economia brasileira 
recuperou-se já a partir de 1933. O problema principal passa a ser a indisponibilidade de 
divisas, ou melhor, a incompatibilidade entre o coeficiente de importações modelado 
pelas condições pré-crise e a possibilidade de acesso a mercadorias importadas. A 
procura dirige-se aos produtos nacionais, favorecidos pelos preços relativos dispostos 
pela nova taxa de câmbio. A recuperação da renda aprofunda o desequilíbrio externo e é 
nessa situação de relativa proteção produzida por uma moeda muito depreciada que se 
desenvolve a produção local de bens industriais. 
A superação da fase aguda da crise e a reação do mercado internacional para 
diversos produtos primários, ainda nos anos 1930, não chega a por em cheque a 
dinâmica de crescimento baseado no mercado interno, porque as restrições cambiais 
prevaleceram ao longo de quase toda a década. O crescimento da demanda interna torna 
a própria indústria uma demandante de bens de capital produzidos localmente. Enfim, o 
crescimento da renda repõe os desequilíbrios no balanço de pagamentos e assegura os 
mercados para a produção local, a um novo nível de preços. A novidade da situação, de 
acordo com Furtado, reside na criação de concorrência, ou na formação de um só 
mercado, para dois setores que antes não concorriam: produtores internos e 
importadores. Nesse momento desaparece a eficiência da política cambial como 
instrumento de defesa da velha economia primário-exportadora.25 A política cambial 
passará, cada vez mais, a ser condicionada pela defesa da produção local. 
 
24 “... o mecanismo do câmbio não podia constituir um instrumento de defesa efetivo da economia 
cafeeira nas condições excepcionalmente graves criadas pela crise que estamos considerando.” (FEB, 
266) 
25 Nas palavras de Furtado, “Ao começarem a concorrer os dois setores, as modificações na taxa cambial 
passaram a ter repercussões demasiado sérias para que fossem abandonadas às contingências do 
momento”. (FEB, 284/285) 
 19
É este o quadro dominante ao final dos 1930, quando, a despeito de flutuações, a 
taxa de câmbio era a mesma do início da década. Ao início da década de 1940, no 
entanto, a guerra passa a proporcionar um acúmulo de reservas cambiais ao Brasil. A 
reação do governo foi inovadora e atendeu ao interesse dos exportadores e dos 
produtores para o mercado interno: fixar a taxa cambial aos níveis pré-guerra. Cria-se, 
de acordo com Furtado, uma situação inusitada: “... enquanto aumentava o número de 
compradores e diminuía a oferta de mercadorias, o Brasil fixava o valor externo de sua 
moeda em um nível de preços relativos que refletia a situação do decênio anterior...”. 
(FEB, 288) A situação favoreceria as atividades ligadas ao mercado interno, porém, 
como a estrutura da procura externa sofrera modificações, houve deslocamento de 
fatores na economia em favor dos produtos que encontravam mercado no exterior. 
Agravam-se os desequilíbrios internos na economia e produz-se uma situação inusitada 
de sustentação do nível de renda monetária como se a situação fosse a mesma da década 
anterior. Criou-se um fluxo de poder de compra na economia, sem uma contrapartida na 
oferta de bens e serviços, ou um incremento da renda monetária do setor exportador em 
condições de restrição da oferta de produtos importados. Em síntese,: “... o valor dessas 
reservas cambiais era aproximadamente igual ao excesso da renda criada no setor 
exportador sobre a contrapartida de bens e serviços importados. Reduzindo-se o valor 
daquelas reservas, se reduziria em igual montante o excesso de renda monetária sobre a 
oferta de bens importados.” (FEB, 292) A impossibilidade de importar acumula as 
reservas monetárias e o desequilíbrio entre o nível de renda monetária e a oferta de bens 
e serviços provoca elevação de preços. Na impossibilidade de se corrigir o desequilíbrio 
congelando parte da renda monetária excedente (tributos, bônus de guerra), ou por via 
de administração de oferta e demanda, o desequilíbrio entre a oferta e a renda monetária 
redundou em inflação. E como os preços dos produtos exportados superam a inflação 
interna (e a elevação dos custos de produção), os exportadores obtiveram ganhos de 
renda. 
Conforme Furtado, o ocorrido no período de guerra explica as transformações da 
economia brasileira no pós-guerra. Os preços internos elevaram-se bem mais do que os 
dos produtos importados. Houve uma “... subversão do nível relativo de preços que 
havia servido de base para o desenvolvimento industrial desde o começo dos anos 30.” 
(FEB, 299) Ocultou-se a revalorização da moeda brasileira com o controle de câmbio. 
Na ausência de um substancial aumento de produtividade dentro do país, qualquer 
 20
alteração da taxa de câmbio comprometeria a estrutura econômica fundada sobre uma 
moeda desvalorizada. 
Foi o que ocorreu ao término da guerra, quando as importações foram liberadas 
e em conseqüência o coeficiente de importações elevou-se bruscamente. O desequilíbrio 
gerado pelo aumento das importações só poderia ser corrigido por uma nova 
desvalorização cambial ou pela imposição de controles às importações. A adoção da 
segunda alternativa redundou em um controle seletivo de importações. Punia-se a 
importação de bens de consumo e favorecia-se a importação de bens de capital e 
matérias-primas. Este controle, naturalmente, protegeu por dois lados (ausência de 
concorrência e equipamentos e matérias-primas baratas) a indústria de bens de 
consumo. O setor industrial foi beneficiado por uma baixa seletiva dos preços de bens 
importados.26 
O aumento dos investimentos industriais explica a expansão da economia no 
pós-guerra. Diversos instrumentos de controle adotados a partir do final dos anos 1940, 
todos em resposta às restrições cambiais, estimularam a produção para o mercado 
interno. A política cambial converteu-se assim em um instrumento-chave na 
constituição da indústria brasileira e na sustentação de um processo de crescimento 
induzido pelo mercado interno. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
26 “A política cambial, baixando relativamente os preços dos equipamentos e assegurando proteção 
contra concorrentes externos, criou a possibilidade de que esse enorme aumento de produtividade 
econômica fosse em grande parte capitalizado no setor industrial”. (FEB, 309) 
 21
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