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O Juiz e a Democracia

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O Juiz e a Democracia - Garapon
Hoje, os grandes debates sociais são frequentemente realizados por ocasião de processos de grande repercussão (ex: caso do O.J Simpson)
O controle crescente da justiça sobre a vida coletiva é “um dos maiores fatos políticos deste final do século XX”, nada mais pode escapar o controle do juiz
Os juízes são chamados a se manifestar em um numero de setores da vida social cada dia mais extenso – “ativismo judicial” na vida internacional, vida econômica, vida moral, vida social, vida privada 
Os departamentos jurídicos de grandes empresas, como os grandes escritórios de advocacia comercial, cresceram de maneira considerável nos últimos anos 
Tudo e todos devem dai para a frente ser julgados: a lei
A maioria dessas jurisdições não existia há algumas décadas 
A instituição judiciaria parece ancorar-se num sentimento de justiça que as décadas de marxismo e de bem-estar previdenciário acabaram por adormecer – demanda moral
A mesma justiça deve ser aplicada não apenas a qualquer relação, mas igualmente a todos os homens, sejam quais forem sua cultura e o Estado que os abrigou
Esta progressão da justiça não é homogênea: se alguns contenciosos explodiram, outros caem em desuso, novos delitos surgem e outros desaparecem; esse movimento é paradoxal: ao mesmo tempo em que se celebram os méritos de uma redução de regras, proliferam regulamentações de toda espécie 
De um lado o enfraquecimento do Estado, sob pressão do mercado; e, de outro, o desmoronamento simbólico do homem e da sociedade democráticos 
O enfraquecimento do Estado é apenas a consequência da globalização da economia 
O juiz surge como um recurso contra a implosão das sociedades democráticas que não conseguem administrar de outra forma a complexidade e a diversificação que elas mesmas geraram 
A mutação do Estado provedor e a fragilidade do homem democrático dão ao direito o papel de protagonista, mas por motivos diferentes – a primeira procura um paliativo ao desaparecimento do poder tutelar do Estado na organização do comercio entre iguais; a segunda, um substituto para a religião 
Não se sabe ao certo por que na França é difícil levar-se a justiça a serio – apesar da rapidez com que se apaixona por alguns casos, o pais é lento no que concerne as suas próprias jurisdições 
Juiz permanece como uma questão politicamente incorreta, sem jamais ter adquirido a plena dignidade democrática – na opinião de muitos, seu papel é juridicamente inconsistente: nunca lhe é reconhecida a possibilidade de ser, em certos casos, o porta-voz do direito
Na Itália: o ativismo é fruto da ação combinada de alguns membros do Ministério Público de Milão contra um alvo determinado, a corrupção politica 
De um dia para o outro, os chefes de empresas, os pesquisadores, os médicos, os historiadores, os professores de direito, se dão conta de que não estão mais acima da lei
Isso acontece na França porque os juízes, assim procedendo, combatem as imunidades de que, tradicionalmente, gozavam os servidores 
Todo mundo denuncia todo mundo, o que faz pensar, em nível mais amplo, numa guerra de todos contra todos – os juízes recebem diariamente indicações exaustivas sobre praticas desonestas 
Certos políticos se servem então da justiça para enfraquecer seus adversários 
A corrupção provavelmente sempre existiu, mas passava despercebida enquanto todo o mundo dela se aproveitava 
Essa estranha responsabilidade parece obedecer a uma lei não escrita: “Aquele que detém o poder é também aquele que pode fugir à sua responsabilidade em caso de problema”, o que contraria a própria ideia de responsabilidade
O estado jacobino não era julgado: segundo a tradição monárquica, ainda perceptível em inúmeras instituições da França, o Estado, assim como o rei, não apela em “corte de súditos” e é por isso que ele continua a se beneficiar do privilegio de só poder ser julgado por uma jurisdição especial, muito próxima a administração: O Conselho de Estado
Esse direito do Estado não goza mais do mesmo prestigio, pelo que pode ser constatado na própria tendência geral do nosso direito em submeter todo serviço publico, seja qual for seu objeto, as regras do direito privado – o fim do monopólio da verdade obriga doravante a republica a realizar seus debates em foro publico 
Cada corporação tem seu tribunal: os funcionários, os médicos, os farmacêuticos, os advogados, os procuradores, os dentistas, beneficiam-se assim de instancias pouco transparentes, nas quais a deontologia desempenha um papel no mínimo ambíguo – um advogado, por exemplo, deve pedir permissão ao presidente de sua Ordem antes de criticar um colega
O progresso da autonomia da justiça marca o fim das regulamentações internas e de um funcionamento corporativista do Estado, ela ameaça os privilégios, as regras do jogo truncadas e os círculos fechados, os conchavos que, todos eles, dissolvem-se ao contato com a luz, como uma chapa fotográfica
A origem desse movimento se encontra mais no investimento do direito no imaginário democrático do que no próprio direito
Para a teoria clássica da democracia, especialmente ilustrada pelo sistema francês, a lei é a expressão da soberania popular, o juiz não tem qualquer influencia sobre ela, limitando-se a aplica-la 
A inflação de textos mal redigidos com conteúdo fraco, de um lado, e a integração numa comunidade politica supranacional, de outro
A lei constituía o elo principal do positivismo – assegurar a ligação entre o oficio do juiz e a soberania popular, o juiz deveria ser apenas a “boca da lei” – ele deve apelar para fontes externas antes de proferir suas sentenças 
Esse descredito da lei deve-se principalmente a sua forma: a lei parece anacrônica no limiar do “mundo tecnológico”: não se pode mais dela admitir um espirito abstrato, rígido, uniforme, que condena a um direito doutrinal, afastado da realidade
Ele só reencontrará no momento em que passar a ser concebido não apenas como um conjunto de regras mas também como um conjunto de princípios 
A lei torna-se um produto semiacabado que deve ser terminado pelo juiz
O enfraquecimento da lei foi acelerado pela importância que as fontes supranacionais assumiram nos sistemas jurídicos nacionais
Esses textos, a exemplo da Constituição, enunciam alguns princípios fundamentais que uma jurisdição devera garantir – esses princípios se distinguem do direito natural por estarem consignados em textos nos quais é reconhecida uma força jurídica positiva, superior a lei
Esse texto é, por definição, incompleto: cabe ao juiz dar-lhe a palavra – o juiz não deve mais se contentar em aplicar as leis, mas em certos casos, deve ainda verificar sua conformidade a um direito superior que esses princípios encerram
O juiz atualiza a obra do constituinte e torna-se um co-legislador permanente
É importante lembrar que a construção europeia foi jurídica antes de ser politica 
O soberano, que ainda ontem era o ultimo recurso, viu-se subordinado a uma instancia superior, diante da qual todos os seus atos são passiveis de serem revistos
A justiça que era um órgão do Estado, passa subitamente a encarnar o foro de legitimidade do qual procede o Estado – a vontade geral não pode mais pretender ter o monopólio da produção de direito, mas deve tornar-se compatível com os princípios contidos nos textos básicos, que são a Constituição
O direito não esta mais, portanto, a disposição da vontade popular – a soberania de representantes do povo ve-se freada por princípios encontrados nesses diferentes textos de enunciado claro e conciso e de forte densidade moral
Esses princípios comuns são a base de um novo pacto entre as nações 
Melhor ainda, o direito comunitário e a jurisprudência da Corte de justiça das comunidades europeias lançam as bases de uma cultura comum que permite as diferentes culturas comunicarem-se entre si e ate mesmo emanciparem-se de um grande domínio estatal
Transferir o poder politico para o juiz
A justiça tem fornecido a democracia seu novo vocabulário: imparcialidade, processo, transparência,contraditório, argumentação etc.
A justiça passa a encarnar o espaço publico neutro, o direito, a referencia da ação politica, e o juiz, o espirito publico desinteressado
O direito, tanto o direito humano como o processual, tornou-se a referencia maior da ação politica; não só para traduzir as reivindicações mas também para organizar a ação administrativa 
É sob a forma do direito e do processo que o cidadão das democracias realiza sua ação politica 
O aumento do poder da justiça não deve ser entendido como uma transferência da soberania do povo para o juiz, porém como uma transformação do sentimento de justiça 
A transformação do papel do juiz corresponde a transformação da própria democracia
O direito era apenas a moral das relações frias, comerciais ou politicas; ele tende agora a tornar-se o principio de toda relação social – nossos contemporâneos o invocam para arbitro de seus conflitos mais íntimos 
A justiça não oferece uma representação da paz, não inspira a ideia de uma ordem harmoniosa, mas ao contrario a do conflito, da dialética, da disputa, da discórdia
Esse panorama democrático pressupõe ainda novos perigos; o excesso de direito pode desnaturalizar a democracia; o excesso de defesa, paralisar qualquer tomada de decisão; o excesso de garantia pode mergulhar a justiça numa espécie de adiamento ilimitado
De tanto ver tudo através do prisma deformador do direito, corre-se o risco de criminalizar os laços sociais e de reativar o velho mecanismo sacrificial 
De tanto se multiplicarem os direitos, perde-se a noção do direito

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