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Governando a alma: A formação do eu privado- Nikolas Rose

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ROSE, Nikolas. (1988) “Governando a alma: a formação do eu privado”. In: Silva, Tomas Tadeu da (org.). 
Liberdades reguladas. Petrópolis: Vozes, p.30-45. 
 
 
3 
 
Governando a alma: a formação do eu privado 
Nikolas Rose 
 
 
Não creio que se deva considerar o "Estado moderno" como uma entidade que se desenvolveu à 
parte dos indivíduos, ignorando o que eles são e até mesmo sua existência, mas, ao contrário, como 
uma estrutura muito elaborada, à qual os indivíduos podem ser integrados, sob uma condição: que 
se dê à sua individualidade uma nova forma e que se a submeta a um conjunto de mecanismos 
específicos (Michel Foucault, 1982). 
 
ossas vidas íntimas, nossos sentimentos, desejos e aspirações, parecem 
quintessencialmente pessoais. Vivendo num tempo em que somos rodeados por 
mensagens sobre problemas públicos que parecem avassaladores (guerra, fome, injustiça, 
pobreza, doença, terrorismo), nossos estados mentais, nossas experiências subjetivas e 
nossas relações íntimas aparecem como, talvez, o único lugar onde podemos localizar 
nossos verdadeiros eus privados. Essa crença parece, sem dúvida, muito confortável. Mas 
ela é profundamente enganadora. 
 Nossas personalidades, subjetividades e "relacionamentos" não são questões 
privadas, se isso significa dizer que elas não são objeto de poder. Ao contrário, elas são 
intensivamente governadas. Talvez elas sempre o tenham sido. Convenções sociais, 
vigilância comunitária, normas legais, obrigações familiares e religiosas exerceram um 
intenso poder sobre a alma humana em épocas passadas e em outras culturas. A conduta, a 
fala e a emoção têm sido examinadas e avaliadas em termos dos estados interiores [p.31] 
que elas expressam. Também têm-se feito tentativas para alterar a pessoa visível através de 
uma ação exercida sobre esse invisível mundo interior. Pode parecer que pensamentos, 
sentimentos e ações constituem o próprio tecido e constituição do mais íntimo eu, mas eles 
são socialmente organizados e administrados nos mínimos detalhes. 
 A administração do eu contemporâneo é diferente, entretanto, ao menos sob três 
aspectos. Em primeiro lugar, as capacidades pessoais e subjetivas dos cidadãos têm sido 
incorporadas aos objetivos e aspirações dos poderes públicos. Isso não constitui apenas um 
N 
nexo ao nível de uma abstrata especulação política. Constitui também um nexo ao nível de 
estratégias sociais e políticas e de instituições e técnicas de administração e regulação. 
Embora seja exagerado argumentar que aqueles que nos governam constroem agora suas 
ações totalmente ou em grande parte em termos das vidas interiores dos cidadãos, a 
subjetividade faz parte dos cálculos das forças políticas no que diz respeito ao estado da 
nação, às possibilidades e aos problemas enfrentados pelo país, às prioridades e às políticas. 
Os governos e os partidos de todos os matizes políticos têm formulado políticas, 
movimentado toda uma maquinaria, estabelecido burocracias e promovido iniciativas para 
regular a conduta dos cidadãos através de uma ação sobre suas capacidades e propensões 
mentais. 
 As manifestações mais óbvias têm sido o complexo dirigido à criança: o sistema de 
bem-estar infantil, a escola, o sistema jurídico juvenil e a educação e vigilância dos pais. 
Mas a regulação das capacidades subjetivas tem-se infiltrado de forma ampla e profunda 
em nossa existência social. Quando ministros, altos funcionários e relatórios oficiais se 
preocupam com a eficiência militar e pensam em ajustar o homem ao posto de trabalho, 
quando constroem a produtividade industrial em termos da motivação e satisfações do 
trabalhador, ou quando definem como um problema o crescimento do divórcio, 
formulando-o em termos das tensões psicológicas do casamento, significa que a "alma" do 
cidadão entrou de forma direta no discurso político e na prática do governo. 
 [p.32] Em segundo lugar, a administração da subjetividade tem-se tornado uma 
tarefa central da organização moderna. As organizações vieram preencher o espaço entre as 
vidas "privadas" dos cidadãos e as preocupações "públicas" dos governantes. Escritórios, 
fábricas, companhias aéreas, faculdades, hospitais, prisões, exércitos e escolas, todos 
envolvem a administração calculada das forças e potências humanas, em busca dos 
objetivos da instituição. Muitos ingredientes entram claramente na administração da vida 
organizacional. Mas, numa maior ou menor medida, chefes, comandantes militares, 
educadores, etc., são agora obrigados a cuidar da subjetividade do empregado, do soldado 
ou do aluno, ao tentar alcançar seus objetivos. Quando, por exemplo, o exército busca 
minimizar a indisciplina e a tensão das tropas e aumentar sua eficácia guerreira, através da 
distribuição racional dos indivíduos pelas diferentes atividades, à luz de um conhecimento 
de sua inteligência, personalidade ou capacidade, é porque a subjetividade humana tornou-
se um elemento-chave do poder militar. Quando os empresários buscam aumentar a 
produtividade e a harmonia, ao adaptar práticas de trabalho à luz de considerações sobre 
dinâmica de grupo, é porque a intersubjetividade se tornou central para a autoridade 
gerencial. Isto é, a vida organizacional adquiriu um matiz psicológico. 
 Em terceiro lugar, temos presenciado o nascimento de uma nova forma de expertise, 
uma expertise da subjetividade. Tem surgido e se multiplicado uma família inteira de novos 
grupos profissionais, cada um afirmando seu virtuosismo no que diz respeito ao eu, ao 
classificar e medir a psique, ao predizer suas vicissitudes, ao diagnosticar as causas de seus 
problemas e ao prescrever remédios. Não apenas psicólogos - psicólogos clínicos, 
ocupacionais, educacionais - mas também trabalhadores do serviço social, gerenciadores 
pessoais, pessoas encarregadas de acompanhar condenados em liberdade condicional, 
conselheiros e terapeutas de diferentes escolas e orientações têm baseado sua reivindicação 
do direito à autoridade e legitimidade social na sua capacidade de compreender os aspectos 
psicológicos da pessoa e de agir sobre eles, ou de aconselhar outros sobre o que fazer. 
[p.33] Os poderes multiplicadores desses "engenheiros da alma humana" parecem expressar 
algo profundamente novo nas relações de autoridade sobre o eu. 
 Essas novas formas de pensar e agir não dizem respeito apenas às autoridades. Elas 
afetam cada um/a de nós, nossas crenças pessoais, desejos e aspirações: em outras palavras, 
nossa ética. As novas linguagens empregadas na construção, compreensão e avaliação de 
nós mesmos e dos outros têm transformado as formas pelas quais interagimos com nossos 
chefes, empregadores, colegas de trabalho, maridos, esposas, amantes, mães, pais, filhos/as 
e amigos/as. Nossos mundos mentais têm sido reconstruídos: nossas formas de pensar e 
falar sobre nossos sentimentos pessoais, nossas esperanças secretas, nossas ambições e 
decepções. Nossas técnicas para administrar nossas emoções têm sido remoldadas. A 
própria idéia que temos de nós mesmos tem sido revolucionada. Nós nos tomamos seres 
intensamente subjetivos. 
 Os estudos contidos no livro (Governing the soul, Routledge) do qual este ensaio 
constitui a introdução tentam descrever algumas das formas pelas quais veio a se atribuir 
um papel central, nas sociedades modernas, a esses aspectos subjetivos das vidas dos 
indivíduos, à medida que eles conduzem suas trocas com o mundo, com outros e consigo 
mesmos. As investigações que fiz tentam descrever as condições no interior das quais redes 
de poder tomaram forma, as esperanças e os medos que estão por detrás delas, as novas 
formas de pensar e agir que elas introduziram em nossa realidade. Minha abordagem difere 
daquelas quese têm tornado mais influentes na literatura sociológica recente.
1
 Essa 
literatura caracteriza-se por seu uso de um conjunto limitado de tropos interpretativos e 
críticos: o empreendimento moral de grupos profissionais; a medicalização dos problemas 
sociais; a ampliação do controle social; a natureza ideológica das asserções 
epistemológicas; os interesses sociais dos cientistas; as ciências psicológicas como 
legitimadoras da dominação. Este paradigma da "sociocrítica", se me perdoam o termo, 
assinala algo importante sobre o surgimento desse novo conhecimento e dessas novas 
técnicas. Mas considero limitada, sob diversos e importantes aspectos, [p.34] essa 
perspectiva sobre as relações entre as ciências psicológicas, as profissões psicológicas e a 
organização do poder político. 
 A sociocrítica dá a entender que esse conhecimento da vida subjetiva é, num 
importante sentido, falso ou deficiente; talvez, precisamente por ser falso é que pode ter um 
papel em sistemas de dominação. Isto é, o conhecimento é avaliado em termos 
epistemológicos. Minha preocupação é diferente. Não é com a verdade em algum sentido 
filosófico, mas com as formas pelas quais sistemas de verdade são estabelecidos, as formas 
pelas quais enunciados verdadeiros são produzidos e avaliados, com o "aparato" de verdade 
- os conceitos, regras, autoridades, procedimentos, métodos e técnicas através dos quais as 
verdades são efetivadas. Minha preocupação é com os novos regimes de verdade instalados 
pelo conhecimento da subjetividade, as novas formas de dizer coisas plausíveis sobre 
outros seres humanos e sobre nós mesmos, o novo licenciamento daqueles que podem falar 
a verdade e daqueles que estão sujeitos a ela, as novas formas de pensar o que pode ser 
feito a eles e a nós. 
 A sociocrítica implica que as ciências psicológicas e seus praticantes são 
socialmente eficazes na medida em que participam do processo de dominação da 
subjetividade dos indivíduos. A subjetividade, aqui, aparece como um datum essencial; as 
sociedades devem ser avaliadas de acordo com a medida na qual a reprimem ou a 
respeitam. Gostaria de colocar a questão de forma inversa. Como a própria subjetividade se 
tornou, sob seus diferentes disfarces e concepções, a medida dos sistemas políticos e das 
relações de poder? As relações entre o poder e a subjetividade não estão, nessa perspectiva, 
confinadas às relações de constrangimento ou de repressão da liberdade do indivíduo. Na 
verdade, as características distintivas do conhecimento e da expertise modernas da psique 
têm a ver com seu papel na estimulação da subjetividade, promovendo a auto-inspeção e a 
autoconsciência, moldando desejos, buscando maximizar as capacidades intelectuais. Elas 
são fundamentais para a produção de indivíduos que estejam "livres para escolher", cujas 
vidas se [p.35] tornam válidas na medida em que estão imbuídos com sentimentos 
subjetivos de significativo prazer (Meyer, 1986).
2
 
 A sociocrítica vê o conhecimento e as técnicas psicológicas como sustentando 
relações de poder. Talvez eles o façam, mas seu papel é mais fundamental do que aquele 
implicado por essa afirmação. Pois essa forma de pensar deixa de capturar os novos efeitos 
que eles produzem, o ineditismo das conexões que estabelecem entre as aspirações das 
autoridades e os projetos das vidas individuais. Eles forjam novos alinhamentos entre os 
sistemas de justificação e as técnicas de poder e os valores e a ética das sociedades 
democráticas. 
 A sociocrítica tende a sugerir que as origens e os êxitos desse conhecimento e 
dessas técnicas podem ser explicados em termos da função que exercem para o estado. Eu 
vejo as coisas de forma diferente. Em vez de falar em termos de estado, preferiria falar em 
termos de "governo". Governo, no sentido no qual eu utilizo o termo, não se refere nem às 
ações de um sujeito político calculador, nem às operações dos mecanismos burocráticos e 
de administração de pessoal. O termo descreve, em vez disso, uma certa forma de buscar a 
realização de fins sociais e políticos através da ação, de uma maneira calculada, sobre as 
forças, atividades e relações dos indivíduos que constituem uma população.
3
 Durante os 
séculos XIX e XX, os territórios nacionais da Europa e da América do Norte se tornaram 
cruzados por programas para a administração e reconstrução da vida social a fim de 
produzir segurança para a propriedade e para a riqueza, rentabilidade e eficiência da 
produção, virtude pública, tranquilidade e até mesmo felicidade. E a subjetividade se tornou 
um recurso na administração dos problemas da nação. 
 A governamentalidade, como a chamou Michel Foucault, se tornou o terreno 
comum de todas as nossas formas modernas de racionalidade política, na medida em que 
elas constroem as tarefas dos governantes em termos de supervisão e maximização 
calculadas das forças da sociedade. A governamentalidade é o "conjunto formado pelas 
instituições, procedimentos, análises e [p.36] reflexões, os cálculos e as táticas, que 
permitem o exercício dessa forma muito específica, embora complexa, de poder e que tem 
como seu alvo a população" (Foucault, 1979a, p. 20). Para todos os sistemas de domínio no 
Ocidente desde, aproximadamente, o século XVIII, a população aparece como o terreno do 
governo par excellence. Não o exercício da soberania - embora ela ainda exerça seu papel. 
Nem a administração da vida de uma nação como se ela fosse uma família, embora a 
própria família seja um instrumento vital de domínio, mas a regulação dos processos 
próprios da população, as leis que modulam sua riqueza, longevidade e sua capacidade para 
iniciar guerras e se engajar no trabalho, e assim por diante. Em vez de ver o estado como 
estendendo seu domínio por toda a sociedade por meio de uma ampliação de seu aparato de 
controle, precisamos, pois, pensar em termos da "governamentalização do estado" - uma 
transformação das racionalidades e das tecnologias para o exercício do domínio político. 
 Com a entrada da população no pensamento político, o governo toma como seu 
objeto fenômenos tais como número de sujeitos, suas idades, sua longevidade, seu estado 
de saúde e tipos de morte, seus hábitos e vícios, suas taxas de reprodução. As ações e 
cálculos das autoridades são dirigidas para novas tarefas: como maximizar as forças da 
população e de cada indivíduo no seu interior, como minimizar seus problemas, como 
organizá-los da forma mais eficaz. O nascimento e a história dos saberes sobre a 
subjetividade e a intersubjetividade estão intrinsecamente ligados a programas que, a fim de 
governar os sujeitos, descobriram que precisam conhecê-los. As questões colocadas pela 
governamentalidade delimitam o território sobre o qual as ciências psicológicas, seus 
sistemas conceituais, suas invenções técnicas, modos de explicação e formas de expertise 
viriam a exercer um papel-chave. 
 Duas características do governo são de importância particular para se compreender 
o papel que essas ciências têm exercido no processo de vinculação entre, de um lado, a vida 
subjetiva e intersubjetiva e, de outro, os sistemas de poder político. Em primeiro lugar, o 
governo depende do conhecimento. Para se governar [p.37] uma população é necessário 
isolá-la como um setor da realidade, identificar certas características e processos próprios 
dela, fazer com que seus traços se tornem observáveis, dizíveis, escrevíveis, explicá-los de 
acordo com certos esquemas explicativos. O governo depende, pois, de verdades que 
encarnam aquilo que deve ser governado, que o tornam pensável, calculável e praticável. 
 Em segundo lugar, governar uma população exige conhecimento de um tipo 
diferente. Para se fazer cálculos sobreuma população é necessário enfatizar certos traços 
daquela população como o material bruto do cálculo, e exige informação sobre eles. O 
conhecimento aqui adquire uma forma bem física; exige a transformação de certos 
fenômenos - tais como um nascimento, uma morte, um casamento, uma doença, o número 
de pessoas que vivem nesta ou naquela casa, seus tipos de trabalho, sua dieta, riqueza ou 
pobreza - em materiais sobre os quais o cálculo político possa trabalhar. Isto é, o cálculo 
depende de processos de "inscrição", que traduzem o mundo em traços materiais: relatórios 
escritos, mapas, gráficos e, de forma proeminente, números.
4
 
 A invenção de programas de governo dependia de - e exigia – uma "avalanche de 
números impressos", que tornavam a população calculável, ao transformá-la em inscrições 
que eram duráveis e transportáveis, que podiam ser acumuladas nos escritórios dos 
funcionários, que podiam ser somadas, subtraídas, comparadas e contrastadas. O termo 
dado a essas práticas de inscrição era "estatística". Do século XVII em diante, passando 
pelos séculos XVIII e XIX, a estatística - a ciência do estado - começou a transcrever os 
atributos da população de uma forma tal que se tornava possível que eles entrassem nos 
cálculos dos governantes. As pessoas na terra, suas idades, seus locais e formas de 
habitação, seu emprego, seus nascimentos, doenças e mortes - tudo isso era anotado e 
transcrito. Essas informações eram transformadas em números e reunidas em pontos 
centrais; uma população ingovernável adquiria uma forma que podia ser utilizada em 
argumentos políticos e em decisões administrativas. 
 [p.38] A transformação da população em números que podiam ser utilizados nos 
debates e cálculos políticos e administrativos se estenderia, no século XIX, para novos 
campos. As sociedades estatísticas, na Grã-Bretanha, iriam compilar gráficos e tabelas de 
arranjos domésticos, tipos de emprego, dieta e graus de pobreza e necessidade.
5
 Seriam 
construídas topografias morais da população, mapeando o pauperismo, a delinqüência, o 
crime e a insanidade, ao longo do espaço e do tempo, e extraindo todo o tipo de conclusões 
sobre as cambiantes taxas de patologia, suas causas e as medidas necessárias para remediá-
las. As capacidades dos sujeitos estavam, sob uma nova forma, se tornando pertinentes e 
disponíveis para o governo. 
 A situação de dependência do governo relativamente ao conhecimento, nesses dois 
sentidos, possibilita-nos apreciar o papel que a Psicologia, a Psiquiatria e as ciências "psi" 
têm exercido no interior de sistemas de poder nos quais os sujeitos humanos têm-se tomado 
enredados. Os sistemas conceituais criados nas ciências "humanas", as linguagens de 
análise e explicação que elas constituíram, forneceram os meios pelos quais a subjetividade 
e a intersubjetividade humanas puderam começar a fazer parte dos cálculos das autoridades. 
Por um lado, as características subjetivas da vida humana podem se tomar elementos no 
interior de compreensões da economia, da organização, da prisão, da escola, da fábrica e do 
mercado de trabalho. Por outro, a própria psique humana se tomou um domínio possível 
para o governo sistemático, em busca de fins sócio-políticos. Educar, curar, reformar, punir 
- são, sem dúvida, velhos imperativos. Mas os novos vocabulários fornecidos pelas ciências 
da psique possibilitaram que as aspirações do governo fossem articuladas em termos de 
uma administração das profundezas da alma humana que estivesse baseada em seu 
conhecimento. 
 As ciências psicológicas exerceram outro papel-chave, pois elas forneceram os 
meios para a inscrição das propriedades, energias e capacidades da alma humana. Elas 
possibilitaram que as forças humanas fossem transformadas em materiais que podiam 
fornecer a base para o cálculo. O exame formou o modelo para [p.39] todos os dispositivos 
psicológicos de inscrição (Foucault, 1977, pp. 184-92). O exame combinou o exercício da 
vigilância, a aplicação do julgamento normalizador e a técnica da inscrição material, a fim 
de produzir traços calculáveis de individualidade. Os mecanismos examinadores das 
ciências psicológicas - dos quais o diagnóstico psiquiátrico e o teste de inteligência são dois 
paradigmas - forneceram, cada um deles, um mecanismo para transformar a subjetividade 
num pensamento que tivesse uma força calculadora. O exame não apenas torna a 
individualidade humana visível, ele a localiza numa rede de escrita, transcrevendo os 
atributos e suas variações em formas codificadas, possibilitando que eles sejam 
acumulados, somados, normalizados, que se tire sua média e que sejam normalizados - em 
suma, documentados. Essa documentação da psique humana possibilitou que os elementos 
de qualquer vida individual que fossem pertinentes para as autoridades fossem reunidos 
num dossiê, guardados num arquivo ou transmitidos para um lugar central, onde os traços 
dos indivíduos pudessem ser comparados, avaliados e julgados. Os traços podem ser 
amalgamados num conhecimento das características psicológicas da população como um 
todo, o qual pode, por sua vez, ser utilizado para calibrar o indivíduo relativamente àquela 
população. As inscrições psicológicas da individualidade permitem que o governo opere 
sobre a subjetividade. A avaliação psicológica não é meramente um momento de um 
projeto epistemológico, um episódio na história do conhecimento: ao tornar a subjetividade 
calculável, elas tornam as pessoas sujeitas a que se façam coisas com elas - e que façam 
coisas a elas próprias - em nome de suas capacidades subjetivas. 
 As inovações no conhecimento têm, pois, sido fundamentais para os processos pelos 
quais o sujeito humano tem sido introduzido em redes de governo. Novas linguagens têm 
sido inventadas para falar sobre a subjetividade humana e sua pertinência política, novos 
sistemas conceituais têm sido formulados para calcular as capacidades e a conduta humanas 
e novos dispositivos têm sido construídos para inscrever e calibrar a psique humana e 
identificar suas patologias e normalidades. Essas formas de conhecer [p.40] têm tornado 
possível reunir "tecnologias humanas": conjuntos de forças, mecanismos e relações que 
possibilitam a ação a partir de um centro de cálculo - um departamento governamental, um 
escritório gerencial, um centro de operação do exército - sobre as vidas subjetivas de 
homens, mulheres e crianças.
6
 
 As tecnologias humanas envolvem a organização calculada de forças e capacidades 
humanas, juntamente com outras forças (naturais, biológicas, mecânicas) e artefatos 
(máquinas, armas) em redes operacionais de poder. Numa tal composição, reúnem-se 
elementos que podem parecer, à primeira vista, pertencer a diferentes ordens de realidade: 
planejamentos arquitetônicos, equipamentos e dispositivos técnicos, profissionais, 
burocracias, métodos de cálculo, inscrições, procedimentos de recuperação, etc. Assim, o 
conhecimento teórico torna a alma pensável em termos de uma Psicologia, uma 
inteligência, uma personalidade e, portanto, possibilita que certos tipos de ação sejam 
vinculados a certos tipos de efeito. As técnicas, do layout de edifícios à estrutura de 
cronogramas, organizam os humanos no espaço e no tempo a fim de alcançar certos 
resultados. Relações de hierarquia, desde a idade até certificados e diplomas educacionais, 
localizam os indivíduos em cadeias de lealdade e dependência, capacitando alguns para 
dirigir outros e obrigando outros a obedecer. Procedimentos de motivação, desde 
obrigações morais até sistemas de pagamento, dirigem a conduta das crianças, 
trabalhadores e soldados para certos fins. Mecanismos de recuperação e terapia fornecem 
os meios pelos quais as técnicasauto-regulatórias podem ser remoldadas de acordo com os 
princípios da teoria psicológica. À medida que as redes se formam, que os mecanismos de 
transmissão, as traduções e as conexões conectam as aspirações políticas com modos de 
ação sobre as pessoas, estabelecem-se tecnologias da subjetividade que permitem que as 
estratégias do poder se infiltrem nos interstícios da alma humana. 
Essas tecnologias ramificantes da subjetividade têm tido conseqüências radicais para a vida 
econômica, para a existência social e para a cultura política. Mas isto não exige que nós 
localizemos sua origem ou princípios de explicação no estado ou que [p.41] vejamos esses 
eventos como implementação de um programa coerente e racionalmente inventado para 
assegurar a dominação de classe. Como sugeriu Michel Foucault, precisamos instalar o 
acaso em seu lugar correto na história. Têm-se, freqüentemente, feito inovações para lidar 
não com grandes ameaças à ordem política, mas com problemas que são locais, "menores" 
ou até mesmo marginais. Programas para reforçar ou mudar as formas pelas quais as 
autoridades devem pensar sobre (ou lidar com) este ou aquele problema têm às vezes 
partido do aparato político central, mas, mais caracteristicamente, eles têm sido formulados 
por outras forças e alianças: membros do clero, filantropos, médicos, policiais, advogados, 
juízes, psiquiatras, criminologistas, feministas, servidores sociais, acadêmicos, 
pesquisadores, chefes, trabalhadores, pais. A efetivação desses programas tem envolvido, 
às vezes, legislação e tem, algumas vezes, implicado a instalação de novos ramos do 
aparato político, mas tem sido também o trabalho de instituições de caridade, fundações, 
fundos, organizações de empregadores, sindicatos, igrejas e associações profissionais. As 
inovações feitas têm surgido, às vezes, de invenções radicalmente novas, mas, outras vezes, 
têm envolvido a utilização ad hoc, a combinação e a ampliação de quadros explicatórios e 
de técnicas existentes. Inovações esporádicas como essas têm, com freqüência, dado em 
nada, têm fracassado ou têm sido abandonadas ou superadas por outras. Outras têm 
florescido, têm-se espalhado para outros locais e problemas e se estabelecido como redes 
duráveis e estáveis de pensamento e ação. E a partir dessas pequenas histórias adquiriu 
forma um padrão mais amplo em cuja rede nós todos, homens e mulheres modernos, nos 
tornamos enredados. 
 Assim, as ciências psicológicas estão intimamente envolvidas com programas, 
cálculos e técnicas para o governo da alma. O desenvolvimento, no século XX, das ciências 
psicológicas abriu novas dimensões para nosso pensamento. Simultaneamente, ele tornou 
possível novas técnicas de estruturar nossa realidade, para produzir os fenômenos e os 
efeitos que podem agora ser imaginados. A tradução da psique humana à esfera do 
conhecimento [p.41] e ao âmbito da tecnologia torna possível governar a subjetividade de 
acordo com normas e critérios que baseiam sua autoridade num conhecimento esotérico 
mas objetivo. 
 Os conhecimentos psicológicos certamente atacaram problemas que surgiram em 
circunstâncias sociais específicas, mas essas circunstâncias não predestinam ou 
determinam, sozinhas, os tipos de solução que propõem. Sistemas conceituais, filosofias 
explicatórias e convenções sobre prova e evidência exerceram seus próprios efeitos, 
interagindo com (e transformando) os problemas e questões iniciais, alimentando o debate 
social, com suas linguagens de classificação, discussão e avaliação. Obviamente, como 
muitos analistas têm reconhecido, a disciplina da Psicologia está longe de ser homogênea: 
ela está dividida por escolas rivais e alimentada por conflitos entre modelos explicatórios 
incompatíveis, tácita ou explicitamente assentados em bases filosóficas opostas. Essa 
diversidade e heterogeneidade da Psicologia têm sido uma das chaves para sua contínua 
inventividade conceitual e sua aplicabilidade social generalizada. Longe de solapar suas 
asserções de verdade, ela tem permitido uma frutífera diferenciação em seus pontos de 
aplicação, possibilitando que ela opere com uma diversidade de contextos e de estratégias 
para o governo da subjetividade - diferentes formas de articular o poder social com a alma 
humana. 
 A expertise da subjetividade tem-se tornado fundamental para nossas formas 
contemporâneas de sermos governados e de governarmos a nós próprios. Mas não porque 
os experts conspiram com o estado para iludir, controlar e condicionar os sujeitos. A 
política democrática liberal coloca limites às intervenções coercivas diretas sobre as vidas 
individuais através do poder do estado; o governo da subjetividade exige, pois, que as 
autoridades ajam sobre as escolhas, os desejos e a conduta dos indivíduos de uma forma 
indireta. A expertise fornece essa distância essencial entre o aparato formal da lei, das 
cortes e da polícia e a moldagem das atividades dos cidadãos. Ela obtém seu efeito não 
através da ameaça da violência ou do constrangimento físico, mas através da persuasão 
inerente às suas verdades, das ansiedades estimuladas [p.43] por suas normas e das atrações 
exercidas pelas imagens da vida e do eu que ela nos oferece. 
 Os cidadãos de uma democracia liberal devem se regular a si próprios; os 
mecanismos de governo constróem-nos como participantes ativos em suas vidas. Não se 
pensa mais que o sujeito político seja motivado meramente por um cálculo de prazeres e de 
dores. O indivíduo não é mais, naquilo que concerne às autoridades, meramente o possuidor 
de capacidades físicas a serem organizadas e dominadas através da inculcação de padrões 
morais e hábitos comportamentais. Seja na casa, no exército, ou na fábrica, o cidadão está 
ativamente pensando, desejando, sentindo e fazendo, relacionando-se com outros em 
termos dessas forças psicológicas e afetado pelas relações que os outros têm com ele. Esse 
sujeito cidadão não deve ser dominado no interesse do poder, mas deve ser educado e 
persuadido a entrar numa espécie de aliança entre objetivos e ambições pessoais e objetivos 
ou atividades institucionalmente ou socialmente valorizadas. Os cidadãos moldam suas 
vidas através das escolhas que fazem sobre a vida familiar, o trabalho, o lazer, o estilo de 
vida, bem como sobre a personalidade e sua expressão. O governo age através de uma 
"ação à distância" sobre essas escolhas, forjando uma simetria entre as tentativas dos 
indivíduos para fazer com que a vida valha a pena para eles e os valores políticos de 
consumo, rentabilidade, eficiência e ordem social. Isto é, o governo contemporâneo opera 
infiltrando, sutil e minuciosamente, as ambições do processo de regulação no interior 
mesmo de nossa existência e experiência como sujeitos. 
 As tecnologias da subjetividade existem, pois, numa espécie de relação simbiótica 
com aquilo que poderíamos chamar de "técnicas do eu": as formas pelas quais nós somos 
capacitados, através das linguagens, dos critérios e técnicas que nos são oferecidos, para 
agir sobre nossos corpos, almas, pensamentos e conduta a fim de obter felicidade, 
sabedoria, riqueza e realização.
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 Através da auto-inspeção, da autoproblematização, do 
automonitoramento e da confissão, avaliamos a nós mesmos de acordo com critérios que 
nos são fornecidos por outros. Através da auto-recuperação, [p.44] da terapia, de técnicas 
de alteração do corpo e da remoldagem calculada da fala e da emoção, ajustamo-nos por 
meio das técnicas propostas pelos experts da alma. O governo da alma depende de nos 
reconhecermos como, ideal e potencialmente, certo tipo de pessoa, do desconforto gerado 
por um julgamento normativo sobre a distância entre aquilo que somos e aquilo que 
podemos nos tornare do incitamento oferecido para superar essa discrepância, desde que 
sigamos o conselho dos experts na administração do eu. 
 A ironia é que nós acreditamos, ao transformar nossa subjetividade no princípio de 
nossas vidas pessoais, de nossos sistemas éticos e de nossas avaliações políticas, que 
estamos, livremente, escolhendo nossa liberdade. Um possível objetivo subjacente a uma 
análise dessas tecnologias da subjetividade é o de contribuir para escrever a genealogia 
dessa liberdade. 
Notas 
1. Como argumentei em outro local: Rose, 1988. Utilizo argumentos desse trabalho naquilo que se 
segue. 
2. Baseei-me nas idéias de Meyer naquilo que se segue. 
3. Michel Foucault nos deu as idéias mais iluminadoras a respeito dessa questão. Veja, em 
particular, Foucault, 1979, especialmente Parte 5; também seus ensaios "On governmentality" 
(1979) e "Omnes et singulatim: towards a criticism of political reason" (1981). Para uma discussão 
da noção relacionada de "polícia", ver Schumpeter, 1954, e Pasquino, 1978. 
4. Sobre estatística, veja Pasquino (1978) e Hacking (1982). Sobre inscrição e cálculo, veja Latour, 
1987. 
5. Sobre a história das sociedades estatísticas na Grã-Bretanha, veja Abrams, 1968 e Cullen, 1975. 
6. Minha discussão de "tecnologias" baseia-se no trabalho de Bruno Latour, Michael Callon, e John 
Law. Veja suas contribuições em Law, 1986. 
7. Veja, especialmente, Foucault, 1988; 1982. 
 
 
Referências bibliográficas 
ABRAMS, P. The Origins of British Society, 1834-1914. Chicago: University of Chicago Press, 
1968. 
CULLEN, M. J. The Statistical Movement in Early Victorian Britain. Hassocks: Harvester, 1975. 
[p.45] 
FOUCAULT, M. Discipline and Punish: The Birth of the Prison. Londres: Allen Lane, 1977. 
FOUCAULT, M. "On governmentality". Ideology and Consciousness, 6, 1979a: 5-22. 
FOUCAULT, M. The History of Sexuality, Vol. 1: An Introduction. Londres: Allen Lane, 1979b. 
FOUCAULT, M. "Omnes et singulatim: towards a criticism of political reason". In S. McMurrin 
(org.). The Tanner Lectures on Human Values, vol. 2. Utah: University of Utah Press, 1981. 
FOUCAULT, M. "The subject and power". In H. Dreyfus e P. Rabinow. Michel Foucault: Beyond 
Structuralism and Hermeneutics. Brighton: Harvester, 1982. (A epígrafe que N. Rose retirou desse 
texto de Foucault foi traduzida diretamente do francês: FOUCAULT, M. Dits et écrits.1954-1988. 
V. IV. Paris: Gallimard, 1994, p. 230. Nota do tradutor). 
FOUCAULT, M. "Technologies of the Self". In L. Martin, H. Gutman e P. Hutton (orgs.). 
Technologies of the Self. Londres: Tavistock, 1988. 
HACKING, I. "Biopower and the avalanche of printed numbers". Humanities in Society, 5, 1982: 
279-95. 
LATOUR, B. "Visualization and cognition: thinking with hands and eyes". In H. Kushlick (org.). 
Knowledge and Society, v.6. Greenwich: JAI Press, 1987. 
LAW, J. Power, Action and Belief. Londres: Routledge and Kegan Paul, 1986. 
MEYER, J. "The Self and the Life Course: Institutionalization and its Effects". In A. Sorensen, F. 
Weinert e L. Sherrod (orgs.). Human Development and the Life Course. Hillsdale: L. Erlbaum, 
1986. 
PASQUINO, P. "Theatrum politicum. The genealogy of capital - police and the state of prosperity". 
Ideology and Consciousness, 4, 1978: 41-54. 
ROSE, N. "Calculable minds and manageable individuals". History of the Human Sciences, 1, 1988: 
179-200. 
SCHUMPETER, J. History of Economic Analysis. Nova York: Oxford University Press, 1954. 
 
 
ᴥ 
 
Este ensaio constitui o capítulo introdutório do livro de Nikolas Rose, Governing the soul. The 
shaping of the private self. Londres: Routledge, 1989: pp. 1-11. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva. 
 
ᴥ 
 
Nikolas Rose é professor de Sociologia do Goldsmiths College, Universidade de Londres. 
 
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