Buscar

Esta é uma pré-visualização de arquivo. Entre para ver o arquivo original

A Romaria dos Incautos 
 
 
 2 
 
 
 
 
 A ROMARIA DOS INCAUTOS 
 
 
 
 
 
 Samuel de Jesus 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
A Romaria dos Incautos 
 
 
 3 
 Copyright by Samuel de Jesus 2013 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Jesus, Samuel de. 
A Romaria dos Incautos./ Samuel de Jesus –. Sorocaba, publicação independente, 2013. 
 
 l. Modernidade. 2. Sertão 4. Luta. 
I. Título. 
A Romaria dos Incautos 
 
 
 4 
 
 
 
 
 
Catar lenha. É o que se faz para poder cozinhar os calangos e acender o 
fumo de corda. O feixe nas costas é tarefa de todo santo dia. Ali, a seca submetia a 
todos, mas os homens e o gado resistem àquela secura? A resposta seria: mão e 
pés rachados, mas copos ainda cheios de fé. Um dia viram pela janelinha duas 
almas lá longe a se aproximar e foram até a varanda esperar, não dava para saber 
quem eram. Os olhos não os perdiam de vista, curiosos, ansiosos e incertos. 
Quando chegaram apresentaram-se como anjos do senhor enviados para 
observarem o tamanho da desolação que há muito tempo afligia o lugar, também 
vieram dizer à Inocência que daria luzes à esperança, pois a graça fora alcançada 
pelo povo, chuva pro sertão. O menino então era anunciação de tempo de pão, 
fartura e a bonança que vem com a chuva. Ela Inocência e seus quinze anos flor da 
Parayba, só entendia de seca e chão, seria apenas mais uma entre tantas outras 
meninas a possuir uma renca de corações e bocas famintas, com perninhas e 
bracinhos, mas avantajadas barriguinhas, mas agora em seu ventre existia uma 
vida cujo destino estava traçado, um iluminado que seria o símbolo vivo de fé e 
esperança, assim todos deveriam cuidar e estar em comunhão com ele. 
Relembraram os anjos que a seiva que nutriria o sertão haveria de ser a fé e nada 
material, nem a água, nem pão. A longa espera havia terminado, pois aquele 
menino iluminado representaria a esperança e a graça coletiva alcançada. Agora, 
teriam chuva e com ela a prosperidade como o sertão há séculos não vivia. 
 No quintal da casa onde nascera, caiu a primeira gota e choveu um mês 
sem parar, sertão quase se afogou em tanta água, caiu tudo de uma só vez e sabe 
como é quando o corpo não está acostumado, causa uma desgraceira danada. Rio 
transbordou, açudes se abancavam feito copo raso, lama e atoleiro. O rio trouxe a 
enchente. Era como se deus estivesse repondo os atrasados de água, mas devia ir 
A Romaria dos Incautos 
 
 
 5 
com calma se não sertanejo afogava. Por outro lado a alegria era tanta que muitos 
diziam que chuva demais não estragava nada não. 
 Com o passar do tempo as chuvas fora se regularizando, tudo foi amainando. 
Às vezes o que havia acontecido era apenas a falta regulagem adequada de águas 
do céu para aquela região, pois fazia tanto tempo que não chovia que lá no céu 
ninguém sabia qual o metro cúbico adequado àquele lugarejo, mas foi se 
regulando, medindo e chegando ao ponto certo. Ninguém há de reclamar por isso. 
Lá no céu ninguém tinha upgrade em prover água pro sertão, na verdade era um 
departamento lá do céu, esquecidinho, onde às vezes o funcionário comparecia e 
ficava lendo o jornal celestial o dia inteiro sem ter muito que fazer. Às vezes vinha 
um e-mail com ordens para liberar a torneira de chuva para uma regiãozinha ou 
outra. 
 Quem não gostou da história foi o Diabo, comerciante de almas, negócio 
muito lucrativo naquelas bandas onde muitos sertanejos se desencaminham. É 
coisa mais fácil onde o sol esquenta a moleira ao ponto de confundir as pessoas 
que perdem a noção das coisas e onde muitos homens se perdiam pelo caminho se 
desventurando e se afundando no doce amargo da pinga ou cometia desatinos 
pela conseqüência da seca, gostava mesmo de condenar aqueles que vendiam as 
filhas por um quinhãozinho, melhor ainda aqueles que violavam as filhas 
colocando-as de barriga. Gostava de atentar aqueles que tinham fé, colocá-los em 
provação, quem resiste nesse lugar? Ainda mais com uma criatura dessas a 
atentar todo santo dia. 
 Lá, era boa freguesia para dona morte que alcançava a meta todos os 
meses, pois era criança, velho, homem maduro, quando chegava o dia não perdia 
tempo. Aquela região, só se comparava às zonas de guerra, ou aos acidentes de 
trânsito. Ela era uma das funcionárias mais elogiadas pelo chefe, Sr. Destino e seu 
cartaz na matriz aumentava a cada dia. Foi designada para lá como uma aposta da 
empresa DEADS AND LIVES COMPANY, uma multinacional, pois a seca havia 
começado e ninguém imaginava o que iria acontecer. É uma norma dos negócios: 
algumas vezes é preciso arriscar. Ela não tem concorrência, pois a empresa tem o 
monopólio do serviço. 
A Romaria dos Incautos 
 
 
 6 
Zé diabo não queria que um rebento estragasse seu negócio, pois com a chuva 
todos os sertanejos teriam esperança e os descaminhos seriam poucos, assim 
como os desvarios, quase não teria almas para colocar em perdição, então foi 
conversar com dona morte para ver quais eram as possibilidades dela levar a vida, 
já dentro do ventre, de alma tão predestinada, mas ela foi logo avisando que não 
podia fazer nada, pois cada um estava com o seu destino traçado e que todos 
tinham uma missão na terra e o daquele feto estava começando, assim não 
poderia ajudá-lo. O empresário de almas não gostou de ouvir aquilo e deixou-a 
falando sozinha. 
 A seca foi-se embora homens, mulheres e crianças começaram a plantar 
e tudo que se plantava dava e todos saciaram sua fome, começaram a ficar felizes 
com a vida. O rio que cortava a cidade e que estava seco há mais de dez anos 
ressurgiu e foi rebatizado de rio da fé, pois como o rio era de vazante muitos até 
esqueceram que aquele rasgo na terra fora um rio num passado bem distante, 
assim não se lembravam do nome antigo, passou ser a artéria da cidade cujas 
águas eram o elemento vital para a vida em Santo livramento. Suas águas eram 
cristalinas e transparentes, podia-se ver o fundo do rio, de um gosto leve e 
purificante, uma benção a um povo tão agraciado. Todos bebiam dela, pois era seu 
reservatório permanente, era usada para todos os fins domésticos. Passou a ser 
um rio sagrado para todo o povo daquela imensa região. 
 O negócio do diabo começou a ruir, eram poucos os negócios, tentações e 
provações não funcionavam como antes, somente os preguiçosos que nada 
queriam eram vítimas do malquisto, assim também ocorreu com os negócios de 
dona morte, a matriz chamou-a de volta e mandou para Israel e Palestina onde 
morre gente quase todo dia, mas o ex-comerciante de almas tinha empresa aberta, 
era dono do negócio e ultimamente não fazia para as dividas, não demorou muito 
a pedir concordata, anos depois se mudou para um subterrâneo de terceira, pediu 
auxilio as forças das trevas, mas solidariedade é coisa que não se pode esperar em 
meio tão energúmeno e por fim acabou se tornando pedinte na rua. É sempre 
visto com
um litro de cachaça comprada com esmolas dadas pelo próspero 
sertanejo. 
A Romaria dos Incautos 
 
 
 7 
 Dona morte quando veio visitar Santo Livramento encontrou o diabo que 
a cobrou. 
 
 - Pois é comadre quando pedi sua intervenção você não me atendeu e olha 
aí a desgraceira. 
 
Afirmativa dona morte respondeu: 
 
 - Sempre fui funcionária exemplar, nunca atentei contra a ética, mas 
ainda tem doce no fundo do tacho aqui, vez ou outra. 
 
 O diabo incompreensivo resmungou: 
 
 - Os humanos não gostam de mim e nem de você, estamos no mesmo nível 
para eles. 
 
 - Os humanos não me compreendem, culpam-me por separá-los de entes 
queridos, tem medo da morte, mas perdem o tempo precioso da sua vida com 
coisas que não valem à pena, tais como ganhar dinheiro a qualquer preço e 
trabalhando sem tempo para aproveitar seu rico dinheirinho, mas 
compreendo-os e não os culpo. Nessa freguesia tenho vindo muito pouco é 
verdade e por você nada posso... 
 
 O diabo nem esperou dona morte terminar, deixou-a falando sozinha 
outra vez. Os tempos mudariam tudo que sobe desce, existe o tempo das vacas 
gordas e das vacas magras, mas uma coisa era certa, ele dependia do livre arbítrio 
do homem e não demoraria muito para as coisas voltarem a ser como eram. 
 
 
O ILUMINADO 
A Romaria dos Incautos 
 
 
 8 
 
 
 Foi registrado como Diego Santo, mas todos se referiam a ele como O 
iluminado, com o tempo ficou só iluminado, embora muitos o chamassem de 
predestinado, outros de enviado, abençoado, entre tantos outros. Filho de Santa 
Inocência e Adão Santo, no nome poderíamos já saber de antemão que aquela 
família estava predestinada a algum tipo de santidade. 
 Embora fosse criança abençoada que representava coisas tão importantes 
que eram a esperança e a fé, não teve criação diferenciada de Dioguinho e 
Dionatas seus dois imãos mais velhos, eles tinham uma predileção pelo irmão. 
Levavam o irmãozinho recém nascido para a roça em um carrinho construído por 
Seu Adão, cuidavam dele enquanto os pais trabalhavam e cuidavam dele 
direitinho. O menino cresceu igual aos demais e de nada foi privado, mas também 
de nada privilegiado, sua mãe se orgulhava e amava igualmente todos os seus 
filhos, não fazia distinção de nenhum, era analfabeta, mas gostava do espírito de 
humildade e igualdade, gostaria de ver na sua família o que ela não conseguia 
enxergar no mundo, união, solidariedade, respeito, igualdade e paz. 
 Queria fazer do seu lar seu universo, lá fora era outra coisa, pelo menos em 
sua casa gostaria de fazer com que as coisas fossem diferentes. Sempre corrigiu 
seus filhos, sempre foi exemplo para eles também. Ela e seu adão eram a 
referência dos três, Diogo, Dionatas e Diego. Inocência teve uma paixão 
arrebatadora na vida, mas era um homem muito cobiçado por todas as mulheres, 
parecia ator de cinema, gostava também muito dela, mas não conseguia ser 
homem de uma só. Seu ego era grande demais, um dia perceberia a realidade do 
mundo, mas ela não estava disposta a esperar. Tinha muitas amigas que se 
entregavam a essas paixões, puras ilusões, o príncipe virava sapo rapidinho, 
muitas vezes, abandonadas com os filhos pequenos ou atraiçoadamente caladas e 
reverentes. Adão era o outro pretendente que não tinha o charme do galã, mas que 
era sincero e a amava realmente, homem distinto e companheiro, capaz de muitas 
delicadezas, até suportar seu gênio difícil e suas inseguranças, mas de lhe dizer 
umas verdades também, pois ninguém está certo todo o tempo. Então se casaram. 
A Romaria dos Incautos 
 
 
 9 
 O menino era somente tratado com distinção na comemoração do dia da 
grande tempestade que era o mesmo de seu nascimento. Deus enviou o menino 
como um sinal do fim da provação do sertanejo e símbolo da fé e da esperança, 
mas deus foi tão generoso que não quis que o sertanejo estivesse ali em romaria 
todos os dias da semana, então o dia de comemoração da grande tempestade era a 
oportunidade que todos tinham para vê-lo e para se nutrirem de fé e esperança, 
então vinha gente de toda a região, até turista estrangeiro. Santo Livramento vivia 
abarrotada de gente, todos se espremendo, aproximadamente umas quinhentas 
mil pessoas, alguns dormem no relento mesmo, pois Deus nesse dia pede para o 
departamento de águas do céu fechar as torneiras. 
 A celebração é ecumênica reúne todos de todas as religiões, é simples, 
todos oram o Pai Nosso com o predestinado e todos podiam jurar que sentiam a 
mão do pai sobre vossas cabeças, todos saiam dali com uma grande alegria e 
desejo de abraçar a vida, muitos sentiam tanta alegria que começavam a chorar, 
revitalizados acreditavam tudo poder enfrentar em vossas vidas, todos passavam a 
acreditar que poderiam lutar resistir e transformar o mundo concertar o que está 
errado, a oração começava pontualmente às onze horas da manhã do terceiro 
domingo do mês de janeiro de cada ano. 
 O sistema não vê com bons olhos essa festa, pois ela representa a subversão 
à ordem democrática, pois as pessoas saem da celebração muito dispostas a 
transformar sua realidade, assim dificulta o controle social, o pior é que as pessoas 
fazem isso de uma forma que não dá nem para criminalizar, mostrar os podres, 
pois não tem o que criticar, pois suas reivindicações e a forma de reivindicar são 
justíssimas. O sistema pensava em uma forma de estender seus tentáculos àquele 
lugarejo, eram especialistas nisso. 
 Nos seus dezesseis anos o iluminado se apaixonou por Maria das Graças e 
ela por ele, tiveram aquele desejo incontrolável, um pelo outro, ao final da aula 
sempre desapareciam, foi a partir daí que o povo começou a se decepcionar um 
pouquinho, pois em seu conceito moral tamanha santidade não pode se perder em 
tamanha vulgaridade, mas ele era um garoto e em sua sabedoria sabia que jamais 
poderia agradar persas e espartanos. Ele era antes de tudo humano e não seria 
A Romaria dos Incautos 
 
 
 10 
perfeito, seu pai celestial aprovava seu ato, pois viu o que fizeram com Jesus 
transformando-lhe em um ser casto, coisa que ele nunca foi. Então bastava, não 
adiantava fazer dele algo que não era, tratava-se apenas de dois jovens se 
descobrindo na idade que seus corpos permitiam e não se culpou por isso. Foi até 
a casa da moça e seu pai fez gosto, então era assunto resolvido, mas o namoro não 
durou tanto, pois é a vida com as decepções e desilusões, coisas que fazem parte, a 
vida é um rio e tudo passa e valeu como grande experiência, cada um no seu 
canto. 
 O povo é assim. Cria uma armadura para as pessoas vestirem e não sabem 
que as imperfeições, assim como o errar, fazem parte das pessoas. Eles sempre 
querem alguém melhor que eles, algo que não é desse mundo e quando alguém 
tido como divino mostra traços de humanidade, ao invés de se sentirem próximos 
deles, afastam-se e consideram uma quebra de santidade, jamais pensam que os 
santos são capazes de cometer atos parecidos com os seus. Se compreendessem 
isso seriam mais humanos. 
 Com os seus dezenove o iluminado se interessava por tudo que envolvia sua 
comunidade, inclusive
política. Esse foi outro ponto em que o povo não gostou. 
Como santidade se envolve na política? Sabia o rapaz que a política é coisa 
fundamental, assim como a fé e que a política estava presente na vida de todos, 
mais do que supunham. Fé e política eram irmãs, o ato de fé é um ato político. A 
política do Iluminado não era aquela feita na Câmara dos Vereadores e na 
Prefeitura, mas trabalhar, namorar, casar, viver eram atos políticos. Outra coisa 
que começou a aborrecer a todos foi o ecumenismo do predestinado, muitos 
diziam que ele ficava em cima do muro, pois cada um considerava a sua religião a 
certa, assim muitos passaram a desaprová-lo, diziam: 
 
 - Isso que disse o iluminado que todos os caminhos levam a deus não é 
verdade. Só a minha religião leva realmente a verdade. 
 
 Sobre isso dizia o iluminado que a divisão entre religiões enfraqueceria o 
espírito, era preciso unidade respeitando as diferenças entre cada religião, mas 
A Romaria dos Incautos 
 
 
 11 
todos unidos no amor, pois deus é amor. A sua missão era unir a todos em torno 
da fé e elevação do espírito, gerando atos positivos baseados na luta do povo e na 
transformação do mundo em um lugar melhor para todos onde o homem esteja 
integrado à natureza, a si mesmo. Embora soubessem que ele sempre fazia à 
vontade de seus pais terrenos e do pai celestial muitos não concordavam, o que 
nos faz pensar que deus é mais uma criação ideal da cabeça do povo. O fato é que 
sua popularidade dia a dia reduzia. 
 
 
A CIDADE 
 
 A cidade ficava na beira do rio da fé. Era pequenina, cercada pela vegetação, 
situada entre as montanhas e o rio e suas casinhas pintadas com cores vivas, um 
verde, um amarelo, um roxo. Há cinco anos foi inaugurada uma praça central. Lá 
a cidade se reúne para as festas, para os comícios. Todo sábado e domingo à tarde 
ou à noite o lazer era dar uma volta na praça, ficar por ali encontrando as pessoas 
e conversando em pequenos grupinhos, alguns no bar outros na lanchonete. Ali 
foi inaugurada recentemente mais uma filial das casas Bahia, já funcionava uma 
agência do Branco do Brasil, construíam um shopping Center e a prefeitura já 
negociava com uma grande rede de hiper-mercados. 
 Suas ruas que antes eram de terra, agora são de paralelepípedos com guia e 
também direito à calcada. O novo padre, Aníbal, diziam ser comunista e não dava 
muita atenção às beatas, mas sim aos pobres por meio de obras assistências da 
paróquia. Já o pastor evangélico, Gerônimo, era casado e tinha três filhos, 
homem que tinha, há muito tempo, livrado-se das drogas e dedicado com fé à 
missão que deus lhe deu: levar a todos à casa do senhor e que ali encontrassem o 
caminho da salvação e preparassem suas almas para o final dos tempos. Na cidade 
tinha cinema e todos ficavam impressionados com os efeitos especiais dos filmes 
hollywoodianos, tinha também farmácia, posto de saúde, biblioteca e escola. Todo 
dia 10 de janeiro comemoravam o aniversário da Grande Tempestade, esse é 
A Romaria dos Incautos 
 
 
 12 
considerado o dia do renascimento, o prefeito há muito tinha declarado esse dia 
como feriado municipal. 
 O sertão cada vez mais prosperava, as cidades recebiam levas de gente, o 
comércio perto do natal abria até as dez da noite, bancos abriam filiais ali. Todos 
tinham empregos e o empresariado local começava a defender a criação de 
indústrias na região. Desde a grande tempestade a sociedade em Santo 
Livramento se articulava. No começo não sentia os velhos vícios, mas agora ela 
estava se organizando segundo os moldes do sistema capitalista, pois a pobreza, a 
injustiça começava a dar sinais visíveis. Aos poucos uma frieza começava a atingir 
a cidade e não era a frieza do inverno. As pessoas estavam muito ocupadas em 
ganhar dinheiro, começava um esboço de miséria, começava até uma favela que 
agregava novos barracos a cada dia. Esses eram os primeiros sinais de que uma 
mudança negativa estava em curso. Receberam até a visita de alguns empresários 
da área química que tinham grandes planos, montariam ali uma fábrica de 
inseticidas, mas o problema era onde despejar seus dejetos, então alguém 
respondeu prontamente. 
 
 - No rio da fé, claro. 
 
 A notícia teve as suas repercussões, o lorde das trevas a recebeu com 
alegria. A veia que nutria a cidade seria poluída, isso causaria doenças. A fábrica 
de inseticidas pagaria baixíssimos salários com uma grande jornada de trabalho 
envolvendo mulheres e crianças, além de tudo, as chaminés poluiriam toda a 
cidade causando doenças respiratórias, os homens competiriam entre si, isso 
causaria a inveja e a discórdia, as matérias-primas do demo. 
Por outro lado, nosso iluminado, já homem feito, encontrava-se preocupado, leu 
Karl Marx, O manifesto do partido comunista e O Capital para entender como 
funcionava a exploração capitalista e pediu a ajuda dos ambientalistas que não o 
levaram muito a sério. Disseram para ele que o correto a fazer era ir aos jornais 
das grandes cidades denunciar tudo aquilo. O isolamento geográfico de Santo 
Livramento e o fato de não constar nem no mapa do Brasil fazia com que 
A Romaria dos Incautos 
 
 
 13 
empresários instalassem suas empresas ali. Fiscalização quase nenhuma e os 
incentivos eram muitos, aliás, era disso que os empresários do ramo de inseticidas 
se aproveitavam, pois um produto altamente tóxico sofreria muitas restrições, 
deveria seguir a legislação ambiental, etc. Em Santo Livramento poderiam correr 
soltos. Como chegar lá? A cidade não se encontra nem no mapa. E como então 
chegaram ali. Sabe como é capitalista, esperto, tem suas fontes e não as divulgam. 
Era difícil para Diego denunciar a fábrica, pois a imprensa não tinha interesse, 
não daria IBOPE, tem que dar IBOPE para vender jornal. Nem sabem como 
chegar a Santo Livramento. Oficialmente a cidade não existia. Como isso? É 
simples e rápido explicar. As pessoas da cidade de São Paulo acham que cidades 
como Piracicaba e Ribeirão Preto no Estado de São Paulo são cidadezinhas 
atrasadas, caipiras do “interiorzinho” e não grandes cidades altamente 
urbanizadas. Imagine então o que pensariam de Santo Livramento. 
Outra notícia importante para o filho do demo veio através de um e-mail enviado 
por dona morte. Dizia ela que seus superiores enviavam uma lista com os 
presuntos dos próximos três meses, a lista cadaveral trimestral, e adivinhem 
quem estava na dita lista? Pois é, o iluminado. Então logo pensou o macomunado 
que haveria de fazê-lo ir dessa para uma melhor. Com o iluminado fora do 
caminho estaria removido o único grande obstáculo à fábrica. 
 O iluminado já de volta da capital, frustrados os pedidos de ajuda, sabia 
que a questão dependia de si. Na quarta-feira fez uma convocação geral a todos os 
cidadãos. Na sexta às 19:00, local: Praça Central. Todos estavam lá no dia e hora 
combinados e querendo saber qual o motivo de chamado tão urgente. Os 
comerciantes que já tinham fechado o comércio foram para lá direto, as aulas 
noturnas da escola foram suspensas, todos deixaram de assistir a novela das sete, 
as pessoas iam chegando de todos os cantos e em alguns minutos a praça já estava 
abarrotada de gente e não esperaram muito não, pontualmente, ele, atravessou a 
multidão que aguardava suas palavras. Subiu
no coreto e disse: 
 
 - Minha gente de Santo Livramento meu nascimento trouxe água pro 
sertão fui uma dádiva de deus ao homem, vejo no mundo cada vez mais 
A Romaria dos Incautos 
 
 
 14 
desenvolvido os computadores, todo tipo de eletrônica e digital, tanta tecnologia, 
inclusive assistência aos enfermos com pesquisas avançadíssimas, cérebros 
eletrônicos, pesquisa genética, mas também bomba atômica, poluição e a 
conseqüência? Aumento da temperatura do planeta, poluição no mar e nos rios, 
se alguma vez no mundo o homem esteve perto da destruição foi nesse século XX 
o homem esteve à beira da destruição total quando inventaram a bomba 
atômica e este mal não está de todo afastado, hoje as cidades cresceram e 
comprimem as pessoas que vivem estressadas, deprimidas, competindo entre si, 
pensam em ganhar, em concorrer e esquecem de si e de todos ao seu redor, todos 
parecem que estão perdendo a fé. Santo Livramento é uma das cidades que mais 
crescem no sertão nordestino e deve ser bom, mas devemos crescer respeitando 
as pessoas. O progresso material tem que ser para todos e não para alguns. A 
fábrica impossibilitaria um futuro para todos. Traria o capitalismo selvagem, 
onde poucos ganham dinheiro a despeito da qualidade da água e do ar. Existe 
uma informação de que o pessoal da fábrica de inseticidas pretende jogar seus 
dejetos no nosso rio da fé e isto é tolerável? Todos aceitariam isso? Quais as 
conseqüências para a cidade? Realmente boas? 
 
 Todos ficaram em silêncio, o que disse o iluminado frustrou as expectativas 
do povão em arrumar um emprego na fábrica. Todos refletiam sobre as 
conseqüências da instalação da fábrica de inseticidas, mas todos queriam na 
verdade mais que barriga cheia, poder ir ao shopping aproveitar as promoções, 
também era verdade que o desemprego aumentava a cada dia, mas os argumentos 
do predestinado eram irrefutáveis e eles não tinham coragem para se opor ou 
dizer sinceramente o que pensavam a respeito, nunca, pois as palavras dele 
expressavam a vontade deus. Agiram até com muita falsidade, pois em cima do 
coreto Diego poderia jurar que o povo estava concordando com ele. 
 Na verdade, o iluminado perdia sua capacidade de influência a cada dia, 
embora fosse ainda, para muitos, uma referência, pois as palavras de deus saíam 
de sua boca e elas nem sempre falavam o que o povo queria ouvir, muitas vezes 
era mais conveniente não escutar ou se alienar sobre o que dizia, fazer-se de 
A Romaria dos Incautos 
 
 
 15 
desentendido, contrariando o dito popular que a voz do povo é a voz de 
deus. Momentaneamente, o discurso do iluminado fez com que o povo se 
posicionasse contra a fábrica. Ninguém tinha coragem de se opor, não tinham 
como refutar aqueles argumentos. 
 Tal posição contrariava interesses como os do prefeito Homero Junqueira. 
Candidato a deputado estadual que enxergava na fábrica uma oportunidade para 
a se eleger deputado estadual quando terminasse o seu segundo mandato, pois a 
cidade já estava sendo uma das mais importantes daquelas bandas e uma fábrica a 
consolidaria como pólo sub-regional, além disso, o mais importante e decisivo, os 
representantes da fábrica no Brasil já tinham confirmado que bancariam sua 
eleição se instalassem uma filial ali. 
 
A BURGUESIA LIVRAMENTENSE 
 
A boa sociedade livramentense começa a despontar. Ela é composta por 
comerciantes, empresários locais, advogados, médicos, profissionais liberais, a 
classe política e membros do judiciário. Começaram a se aglutinar após a 
fundação Country Club de Santo Livramento que tem sua sede urbana com seu 
imenso salão de festas e também campestre onde tem uma pista para corrida de 
cavalos na qual a elite da cidade vai aos domingos à tarde. Ultimamente passou a 
ser tradição a viagem a Nova York das meninas que completam seus quinze 
aninhos. Lá ganham um banho de “civilização”. Elas voltam sempre 
americanizadissimas, encantadas como país do norte, aquilo lá sim que é 
civilização. Coitadinhas!! Ter que conviver ali, naquele lugar entre os bárbaros e a 
barbaridade, mas deixariam claro em seus novos hábitos que até dividiriam o 
mesmo espaço, mas que eram “civilizadas” meninas de relevo naquele fim de 
mundo. 
Lá não tinha televisão a cabo ainda, então o que muitos faziam era pedir para 
alguém, talvez um parente, gravar os principais programas vistos em São Paulo e 
mandar quase diariamente pelo correio. O novo shopping Center era o refúgio 
desses novos senhores. O cinema não trazia todos os filmes, eram filmes que já 
A Romaria dos Incautos 
 
 
 16 
estavam fora de cartaz há três meses aproximadamente, mas lá era só a burguesia 
que ia ao cinema, o pobre nem imaginava. 
Muitos desses, bem depois que cresceram economicamente se distanciaram do 
iluminado passaram a ter outras preocupações, exemplo, onde investir seu 
dinheiro, qual a melhor aplicação e coisas do tipo, mas freqüentavam a igreja 
principalmente nas semanas mais lucrativas. Os calvinistas acreditavam que os 
senhores do lucro são os eleitos de deus. Relacionavam a igreja aos lucros, era 
também para aliviar seus pecados, pois capitalista que é capitalista lucra através 
da exploração alheia. 
Para eles as pessoas valiam por aquilo que tinham de material, a riqueza espiritual 
não preenchia mais suas expectativas, inclusive começaram a ter nojo do povão e 
das sandálias “pobres” do iluminado. Começaram a duvidar também de sua 
santidade, começaram a vê-lo com desdém e até mesmo chegavam a dizer, 
quando se encontravam nos churrascos ou nas festas sociais, depois de muito 
álcool, diziam o seguinte: 
 
 - imaginem alguém tão santificado vivendo de forma tão simples. 
Imaginem! Se eu fosse o iluminado, estaria ainda mais rico. 
 
 
 À BALA 
 
 Aqueles que se revoltam são tidos como loucos. Foi o que aconteceu com 
Calígula, pois queriam interná-lo num sanatório por ler demais e dizer coisas sem 
sentido. Ninguém entendia o que ele falava, muito menos seus alunos, nem sua 
família. O que esperar de uma sociedade onde ninguém lê e nem raciocina, quem 
dera tivessem capacidade de elaborar uma crítica, ou tecer uma opinião. Coisa 
rara! Aconselharam-no, disseram que precisava marcar uma consulta no 
psicólogo e não demorou ao constatarem que seu caso era para psiquiatria. Ele 
chegou a acreditar que era isso mesmo, que estava enlouquecendo, mas 
A Romaria dos Incautos 
 
 
 17 
perguntava o que o psiquiatra entendia de Ciência Políticas e Filosofia, pois só 
ficaria convencido se o doutor o derrotasse pelo menos nesses dois campos. 
 Foi até o psiquiatra, mas antes de conversar com ele observou que o 
consultório parecia uma seção da burocracia. Na frente do psiquiatra disse tudo 
que o afligia. Falou do decesso da profissão e o fato de que quanto mais estudava 
menos as pessoas o entendiam. Contou tudo ao profissional na esperança de ser 
compreendido. O Sr. Dr. Ficou caladíssimo e só escrevia breves notas no 
prontuário e não demorou muito a dispensá-lo, em seguida escreveu: 
 
PACIENTE COM PROPENSÃO À DEPRESSÃO, ALTO NÍVEL DE 
INSSOCIABILIDADE, CONFUSÃO MENTAL, VERBORRAGIA CLÁSSICA, 
TRAÇOS NÍTIDOS
DE PSICOSE. CASO PARA IMEDIATA INTERNAÇÃO. 
 
 Com esse diagnóstico Calígula foi obrigado a se afastar indefinidamente do 
serviço público, seu mundo se decompunha pela força de uma caneta. A família já 
estava planejando um meio de interná-lo. 
 No dia marcado para a sua internação tinha preparado a cama, nas 
primeiras horas lendo Michel Foucault e bebendo o café que tinha preparado. O 
banho que já tinha tomado e vestido a roupa que ele mesmo havia passado, do 
outro lado da mesa estava o revolver carregado. Em breves momentos pensou que 
pudesse ser paranóia dele o fato de entrarem na sua casa, mas sabe como é o 
sistema..., então estava pronto para a reação. Aquele era um momento culminante 
na sua vida, de maneira legal o sistema queria sedá-lo, calá-lo, transformá-lo em 
um girassol. Haveria de lutar por sua vida. Estavam colocando um homem contra 
a parede, imobilizariam sua consciência se não fizesse nada, então a maneira de 
sobreviver seria o underground, o submundo igual ao dos ratos. Que o fosse! 
Estava determinado, sabia muito bem disso, seria clandestino e subversivo. 
 Na poltrona do quarto os esperava. Poderiam chegar a qualquer momento e 
não queria ser pego desprevenido. Havia colocado na porta um sininho para que 
dobrasse quando ela fosse aberta e de repente o sino dobrou, eram eles. Para 
chegar até ele teriam que atravessar a grande sala e um longo corredor que 
A Romaria dos Incautos 
 
 
 18 
acabaria no quarto onde estava Professor Calígula. Ele havia colocado a poltrona 
ao lado do guarda roupa embutido, assim teria uma visão completa do corredor, 
deixou as janelas fechadas para que o quarto permanecesse escuro, a única luz era 
a da tevê ligada. Quem vinha do corredor não podia enxergar quase nada dentro 
do quarto, os homens do sanatório já ficaram desconfiados quando o sininho 
dobrou e começaram a ficar com medo, mas prosseguiram, ao entrar no corredor 
escutaram o som da televisão, mas podiam ver do corredor que alguém estava 
sentado numa poltrona dentro do quarto, desconfiados e assustados com imagem 
tão estranha, os homens perguntaram: 
 
 - Prof. Calígula é o senhor? 
 
 Ele não respondeu, esperou que se aproximassem ainda mais e quando já 
tinham atravessado mais da metade do corredor, de repente, um, dois, três 
estampidos, os dois primeiros homens foram atingidos, o terceiro que estava mais 
atrás correu e quando estava chegando ao final do corredor e ganhando a sala um 
último estampido atingiu um de seus pulmões, seu corpo ficou estendido entre o 
corredor e a sala. Calígula então levantou, pegou a mochila que tinha arrumado há 
mais de dois dias e colocou-a, ainda com o revólver na mão, saiu do quarto 
desviando dos homens caídos no chão, passou pelo último e saiu do apartamento, 
pegou o elevador, na portaria não tinha ninguém, talvez o porteiro tivesse corrido 
Dalí, foi para a garagem, pegou a moto com tanque cheio, passou sem ser notado 
pelo motorista da ambulância e ganhou o mundo. 
 A exclusão fez com que Calígula se sentisse cada dia mais ressentido, sua 
magoa transbordou, envenenou-o. Agora era tudo ou nada. Para sobreviver 
começou a praticar de crimes e seqüestros relâmpagos em caixas eletrônicos e 
assaltos em geral, quando a cerco apertou foi para o nordeste e se embrenhou na 
Caatinga, entrava nas vicinais, roubava toda a propriedade que encontrava pelo 
caminho, aproveitava-se do descaso das autoridades com a segurança. Pelo 
caminho encontrou muitos como ele, assim formou um bando, apropriou-se da 
imagem de lampião e atualizou-a, seriam cangaceiros motorizados com HARLEY 
A Romaria dos Incautos 
 
 
 19 
DAVIDSON todas fora da lei, jamais pagaram IPVA, seu mecânico era o Barba, 
dono de um desmanche. 
 O bando contava com MOONDOG, um ex-caminhoneiro que entrou no 
mundo do crime depois que o frete e o pedágio acabaram com a sua profissão. 
Tinha começado a vida de caminhoneiro desde pequeno quando viajava com seu 
pai, praticamente na indigência, depois de trabalhar uma vida inteira e as 
condições cada vez mais insuportáveis à profissão ameaçavam a jogá-lo na 
indigência, numa situação pior que a do seu pai, mas não foi isso que determinou 
sua vida bandida. Seu pseudônimo se devia ao fato de ser fã da banda de rock 
GOLPE DE ESTADO e sua música preferida era MOONDOG. 
 Precisava rodar muito para ganhar alguma coisa, algumas vezes ficou 
dirigindo 48 horas, ininterruptamente, sempre movido por rebite. Um dia desses 
pegou no sono em pleno volante, o caminhão desgovernado por segundos fatais 
invadiu o outro lado da pista e bateu em cheio num ônibus cheio de jovens 
estudantes que faziam uma excursão. Acusaram-no de assassino cruel quiseram 
linchá-lo, o cara do jornal disse que isso acontece por que não temos pena de 
morte e os direitos humanos que protegiam os monstros como ele. 
 Prenderam-no, quisera comparecer no enterro, pedir perdão, fazer alguma 
coisa pelas famílias, mas estava preso. Tentou explicar os fatores de sua vida que o 
fizeram dormir ao volante, mas não teve perdão, depois de um tempo pensou que 
era preciso esquecer para seguir em frente, pois quase conseguiram fazê-lo se 
sentir culpado, imputando somente a ele toda a culpa, pensava que se sua morte 
restaurasse a vida daqueles jovens, certamente daria a sua em troca, mas era 
impossível. Sua vida legal transformou-se num inferno. Então não teve saída e se 
tornou um foragido, pois sabia que se vivesse legalmente alguém faria dele caveira, 
um dia seria, mas hoje não. 
 No grupo tinha também ZUMBI que entrou para o bando depois que ficou 
preso um ano após roubar uma bolacha de um supermercado para dar a seu filho 
comer, pois estava chorando com fome e aquele homem humilhado não hesitou e 
foi pego. Sua mulher se separou dele e nunca foi visitá-lo na prisão, quando saiu 
A Romaria dos Incautos 
 
 
 20 
vagava indigente, morador de rua e cheirava cola, o bando o livrou das drogas, deu 
roupa, alimento e o mais importante dignidade. 
 O índio TUPINAMBÁ era outro membro que foi espancado por policiais na 
comemoração dos 500 anos do descobrimento do Brasil, outros tentaram 
queimá-lo com álcool e sua sorte é que bem na hora caiu um toró de chuva que 
molhou a caixa de fósforos dos playboys. Pura sorte! Estava cansado de tomar 
cachaça e quando tentou se curar apegando-se a bíblia e freqüentando as reuniões 
da igreja sentia um aperto no peito, estava deslocado, pois não se sentia índio, 
mas também não se sentia homem branco. Pensava em suicídio o tempo todo, 
mas isso era mais difícil que imaginava, estava indo para a terceira tentativa 
quando se voltou para o cangaço. 
 No grupo se sentiu bem, mesmo à margem da lei, coisa que não sentia 
quando não era um homem, mas um índio que tinha que enfrentar a aniquilação 
do seu povo com um sorriso no rosto, o bom selvagem. No grupo tinha um norte 
que era viver, mesmo que à margem da lei, mas seria vida, mesmo que estivesse à 
margem, pois antes não era ser social, mas um morto vivo social, agora não vive 
de fato e está no lucro por que quantos tiveram o que está tendo, a maioria das 
pessoas são mortos vivos sociais e vivem pensando que são livres e não são. Todos 
do grupo pensavam mais ou menos assim. 
 Todos ali tinham histórias parecidas. Pessoas que
entraram à margem da 
sociedade para viver livremente, mesmo que fosse curto, mas o Estado haveria de 
sentir os reflexos de tudo aquilo. Aproximaram-se do mal e se distanciaram do 
que diziam serem as algemas da religião, nem quiseram também parecer bons. 
Com o tempo embruteceram, desumanizaram-se, eram ódio, magoa, rancor e 
colocariam tudo a perder, essa seria sua revolução. Calígula, que já ouvira falar do 
iluminado, o considerava uma figura ingênua e que não conhecia os homens que 
só pensavam no vil metal. A esperança para ele estava apenas insepulta, ele jogava 
pérola aos porcos. Para ele o iluminado turvava as coisas, criava uma alternativa à 
sua tese, não existe democracia, nem liberdade de opinião. 
 O mundo era selvagem, controlado pela indústria petrolífera e bélica, sua 
saída era radical, assim o iluminado representava um grande obstáculo, pois se a 
A Romaria dos Incautos 
 
 
 21 
população tivesse esperança não veria mais o cangaço como uma alternativa. 
Calígula era o fundador, líder e o cérebro dos cangaceiros, tinha lido as principais 
interpretações sobre o Brasil como Revolução burguesa no Brasil de Florestan 
Fernandes, Os donos do poder de Raimundo Faoro, Raízes do Brasil de Sergio 
Buarque de Hollanda, Formação econômica do Brasil de Celso Furtado e outros 
não menos importantes e sabia que no Brasil as questões sociais sempre foram 
solucionadas à bala como Canudos, Contestado, Balaiada, Cabanagem, Malês, 
Araguaia, Eldorado dos Carajás. 
 Sabia que no Brasil o povo de fato nunca assumiu uma posição a favor dos 
movimentos e revoltas populares, muito ao contrário, sempre delataram ou até 
mesmo ficaram observando e seus únicos músculos em movimento eram os dos 
braços que se cruzavam e em outros casos calados ou indiferentes ao que se 
passava e não seria agora que o povo se posicionaria. Eles não confiavam no povo, 
embora o povo tivesse medo do cangaço sabiam que se o grupo ficasse em posição 
vulnerável poderiam até ser linchados por eles. A força dos novos cangaceiros 
vinha das armas, assim como entendia Karl Marx, elas eram o instrumento 
concreto para a revolução. A fé não traria a mudança, assim Calígula reproduzia: 
 
 - “A religião é o ópio do povo”. 
 
Para ele o Brasil não tinha povo no sentido mais verdadeiro e histórico do termo. 
Reproduzia também o dito: 
 
 - No Brasil não temos povo, temos platéia. 
 
 
A TRAIÇÃO 
 
 O gerente designado pela matriz era John MacDonald, jovem recém - 
formado em administração de empresas por conhecida universidade norte 
americana e seu pai era diretor da sede nacional, Santo Livramento representava 
A Romaria dos Incautos 
 
 
 22 
um teste inicial, um trampolim na carreira que se iniciava. Era alcaholic, respirava 
e transpirava trabalho, não era nem casado, nem tinha namorada, tempo para ele 
era dinheiro, então não perderia tempo com esse tipo de coisa, era uma máquina, 
assim trabalhava de segunda a segunda, seus objetivos eram o sucesso e o lucro. A 
sede comprou a maior casa do centro da cidade que era a casa do finado coronel 
Bento Calixto Prata, lá seria o seu quartel-general, vieram consigo dois lobistas 
profissionais, Edward Irving e Justin Turner, que falavam muito bem o português 
como John. Eles faziam festas que tinham entre os convidados a alta cúpula do 
poder do município como vereadores, promotores e juízes, também comerciantes 
e formadores de opinião como professores e jornalistas. Irving e Turner davam 
presentes para todos que freqüentavam o local, todo tipo de adulação, por esse 
motivo eram sempre bem recebidos em todas as esferas do município. 
 Somente se opunham as autoridades religiosas: católicas e evangélicas. Os 
norte-americanos sabiam que na cidade tinha gente que poderia barrar seus 
esforços, no caso o iluminado que era reconhecido pelos bispos católicos e 
evangélicos, tinha até menção do papa e tudo indicava que um dia poderia ser 
santo. Os evangélicos o consideravam um milagre de deus, essa era a façanha do 
iluminado, acabar com as diferenças entre evangélicos e católicos, pois todos eram 
filhos do pai que habita os céus e todos os caminhos levam a deus. Embora 
divergentes, havia respeito e a divisão dos fiéis se baseava, como acontece e 
sempre aconteceu, na convicção de cada um deles. Uns achavam melhor o culto 
evangélico, outros a missa católica, tinha até aqueles que freqüentavam as duas, 
era o caso do iluminado e quando ia gostava de sentar na primeira fileira, não por 
deferência, mas por preferência, pois assim prestava mais atenção. 
 Depois do discurso do iluminado, os responsáveis pela fábrica de 
inseticidas não mais encontravam quem estivesse disposto a trabalhar na fábrica. 
A saída Foi construir uma vila operária e atrair trabalhadores de outras regiões. 
Esse bairro operário iria se tornar uma das primeiras favelas da cidade, na 
verdade sub - empregaram aquela gente que aos poucos se tornava um grupo de 
esfomeados e suas crianças estavam ali, em contato com o esgoto a céu aberto, 
enfermidades infantis, coisa rotineira. 
A Romaria dos Incautos 
 
 
 23 
 O iluminado era um obstáculo que muitos queriam remover, era o elo que 
mantinha a cidade com seus princípios e virtudes, mas se fosse descartado, 
avançariam as forças funestas, todo tipo de desvirtuamento, toda ambição e 
desigualdade, toda miséria disfarçada de progresso. O capeta entrou em contato 
com Incubus, era seu subordinado mais leal, diante de uma vantagem prometida 
pelo ex-chefe poderia ajudar a eliminar o predestinado, não sabia ao certo onde se 
encontrava, mas não demorou muito para achá-lo, vivia no submundo, era 
estuprador procurado e conhecia muito bem os esgotos e muita gente lhe devia 
favor, tinha contatos na polícia, por isto sempre era avisado quando o cerco se 
fechava, mas seus contatos eram vastíssimos e muita gente lhe devia favor. O 
diablo queria dele a indicação de um pistoleiro de perfeita pontaria. Incubus 
indicou aquele a quem chamavam de Chacal, cara sangrento que não era o mais 
famoso, em compensação jamais alguém escapou dele, tinha 100% de 
aproveitamento. 
 
 
 Calígula e o iluminado representavam duas vertentes distintas, duas 
correntes inconciliáveis, duas vidas opostas, tinham em comum a sede pela 
transformação do mundo a começar por aquele infinito sertão que virou mar, 
embora seus métodos fossem radicalmente opostos, o primeiro acreditava que as 
armas eram uma condição concreta para a mudança e desconfiava do povo, o 
segundo acreditava que a fé inundaria o coração dos homens que lutariam e 
mudariam o mundo e acreditava no povo. O líder dos cangaceiros estava perdido 
demais para construir uma bela sociedade, a transformação passou a ser por outro 
lado apenas uma idéia fixa e se parasse para raciocinar veria que não tinha mais 
razão, na verdade queria botar fogo no mundo para ver se curava sua raiva, mas 
curtido nela não podia ver que Santo Livramento estava vivendo um momento 
crucial, de definições, pois havia duas correntes; aqueles que se diziam 
progressistas, defensores da instalação da fábrica de inseticidas, mas na verdade 
desejava aumentar seus lucros e projetarem suas carreiras, a outra corrente 
A Romaria dos Incautos
24 
contrária desejava uma sociedade mais fraterna baseada no desenvolvimento 
social as quais a fábrica representaria uma ameaça. 
Havia um grupo de cidadãos que lá na praça não quiseram mostrar sua cara e 
expor seu ponto de vista, mas que não concordava com o iluminado. Esses 
estavam miseráveis, recusado o trabalho na fábrica pelo discurso do iluminado, 
mas as conseqüências disso não eram boas, a fábrica havia buscado uma solução 
alternativa, buscaram trabalhadores de fora, o bairro deles era miserável, mas 
pelo menos tinham a ração garantida e sobrava até pra uma cachacinha, eles não, 
viviam de incertezas, catavam e vendiam papelão e todo tipo de material reciclável 
e também ferro velho. Esse era o reflexo de uma cidade que já não era boa para 
todos, fazia alguns anos que começou uma brutal concentração de renda, alguns 
ficaram muito ricos e muitos mergulharam na miséria. 
 O líder do sindicato dos trabalhadores da Construção Civil, Comércio e 
recentemente Indústria de Santo Livramento era Joaquim Silvério dos Reis, o 
Joaquinzão, era um ex-pedreiro que liderou os trabalhadores na construção do 
primeiro conjunto habitacional popular da prefeitura que estava pagando um 
salário de fome, por intermédio de Joaquinzão reuniram-se e paralisaram por um 
mês, o então prefeito o convocou para uma reunião na propôs a Joaquinzão que 
poderia bancar a organização de um sindicato no qual ele poderia ser o presidente 
e na qual teria um excelente salário, Joaquinzão topou na hora e saiu do gabinete 
do prefeito com a proposta de 1% de aumento. Era bom nas palavras, sempre teve 
o dom, poderia convencer qualquer um e convenceu os companheiros afirmando 
que tinham avançado com o 1% de aumento, diriam os mais sarcásticos que se 
caminhassem assim demoraria 25 anos para terem um aumento de 25%. 
O sindicato cobrava um dia de trabalho, além do que aparecia descontado todos os 
meses na folha de pagamento dos trabalhadores, Joaquinzão já tinha construído 
uma casa grande com piscina, seu carro era do ano e alguns dias ia para o 
sindicato de helicóptero, não que tivesse congestionamento, mas gostava de 
mostrar o poder da classe trabalhadora a qual representava. Estava na lista de 
pagamentos de MCDONALD, recebia vultosa soma a qual repartia entre os 
A Romaria dos Incautos 
 
 
 25 
diretores mais próximos. Na verdade ficava com 70% e rateava os 30% restantes 
com seus apadrinhados no sindicato. 
 Eles foram acionados pelos capitalistas que queriam admitir a gente de 
Santo Livramento para trabalhar na fábrica, pois seria interessante devido à lei de 
oferta e procura, no caso, se tivesse mais trabalhador que emprego isso 
representaria a redução ainda maior do valor dos salários pagos. Quem não 
quisesse aquele salário poderia se demitir, pois no mesmo instante teria, pelo 
menos, outros cinco para aquela vaga. Obediente, o sindicato fez uma convocação 
geral, dizendo que se trataria de um assunto de vital importância para a classe 
trabalhadora. Montaram um grande palanque na praça, o carro de som do 
sindicato percorreu por dois dias toda a cidade convocando os operários. 
No dia e na hora a praça estava cheia, a missão de Joaquinzão era convencer os 
trabalhadores a não recusarem o trabalho na fábrica. Como era o primeiro a falar 
foi direto. 
 
 - Companheiros! Nós não podemos lutar por melhores salários se nos 
recusamos a trabalhar. Agora, a partir do momento que vocês forem trabalhar 
na fábrica, aí sim. Poderemos mudar a situação, exigiremos da fábrica salários 
decentes e condições de trabalho melhores, etc. Quando nos recusamos a 
trabalhar na fábrica, eles contratam trabalhadores de fora que ficam com o 
emprego que é nosso, dos trabalhadores da nossa cidade. Para mudar é preciso 
estar lá dentro. Inclusive exigir uma solução na questão ecológica, na melhora 
do ar e da água. Os trabalhadores fora da fábrica significa a perda da força do 
sindicato, pois o sindicato não tem ninguém para representar e como 
representar trabalhadores vindos de fora, eles são trabalhadores de Santo 
Livramento? Claro que não. 
 Todos estavam conscientes sobre o que representava para a cidade a 
fábrica, mas na verdade ninguém estava pensando na comunidade, mas no seu 
estomago que doía muitas vezes, o iluminado, todos sabiam, não queria que o 
povo se contentasse com migalhas e se unissem, já que enfrentaram coisa ainda 
mais triste como a seca, sempre dizia que deus ia prover o pão, mas a verdade era 
A Romaria dos Incautos 
 
 
 26 
que o povo só não foi trabalhar na fábrica por que não tinha argumentos contra o 
que disse. 
 
 Uns diziam; 
 
 - Ele está coberto de razão! 
 
 Outros afirmavam: 
 
 - Não tinha o que discutir. 
 
 Muitos conformados profetizavam: 
 
 - Contra o fato não se pode lutar. 
 
 O povo não acreditava nas palavras de Joaquinzão, mas ele oferecia um 
argumento, uma justificativa para trabalharem na fábrica, então era assim, 
Joaquinzão usava o povo e o povo usava Joaquinzão. Começava então uma grande 
divisão na cabeça do povão e na verdade os que não se basearam nesses 
argumentos foram muito poucos, ali naquele momento o povo traiu, não o 
iluminado, mas o povo traiu a si mesmo quando Joaquinzão perguntou: 
 
 - Vou encaminhar a proposta companheiros. Quem concorda com a 
aceitação dos empregos oferecidos pela fábrica levantem as mãos. 
 
 A maioria mesmo sabendo que acabava ali uma oposição à poluição do ar de 
Santo Livramento e do rio da fé e também a oposição a uma nova filosofia de vida 
chamada VALE TUDO! A qual todos estavam tentados a aderir e se a minoria 
barulhenta adepta do iluminismo dissesse alguma coisa responderiam: 
 
A Romaria dos Incautos 
 
 
 27 
 - É a democracia! 
 
 Achavam que a fábrica traria o progresso, empregos, salários, 
desenvolvimento para toda a região. O rio seria o de menos, apenas um preço a 
pagar. Pensavam que se colocassem na balança a situação chegariam à conclusão 
de que a fábrica traria mais vantagens. Outros diziam que era implicância do 
iluminado e que ele estava se desviando de sua missão. Outros ainda diziam que 
iluminado não sabia o que era viver sem salário já que ele vivia de luz divina. Seria 
mais uma desses alinhados aos ecologistas implicantes e inimigos do progresso. 
 
 A TOCAIA 
 
 Toda manhã o iluminado saia de sua casa rezar na igreja, um dia nos 
evangélicos, outro dia nos católicos, a caminhada matinal da fé era uma tradição 
que ia se perdendo aos poucos, chegou a juntar quinhentos crentes seguindo-o, 
mas hoje somente alguns tinham esse hábito, as pessoas estavam ocupadas 
demais trabalhando e cuidando de suas vidas não tinham mais a antiga disposição. 
No dia da tocaia não apareceu ninguém, deu até para pensar que tudo estava 
combinado, mas não era verdade, talvez tenha sido a perda da fé do povo que o 
enfraqueceu, deixando-o assim tão vulnerável. Há tempos perderam a fé no 
iluminado, muitos passaram a denominá-lo de forma pejorativa, chamavam-no de 
curandeiro, místico ou até mesmo feiticeiro, principalmente depois da 
implantação do hospital municipal, além disso, novas igrejas passaram a se 
estabelecer ali, cada uma delas passou a dizer
que era “a correta”, assim passaram 
a achar seu ecumenismo uma coisa do espiritismo, portanto algo muito vago ou 
até demoníaco. 
Na trilha, quando percebeu que ninguém veio, sentiu-se sozinho, uma solidão e 
um apertinho no fundo do coração, mas seguiu em um passo firme e não demorou 
muito para perceber que anjos andavam ao seu lado, não disseram nada, então, 
apenas prosseguiu junto de presença tão abençoada. Um certo momento pararam 
e um deles virou e disse: 
A Romaria dos Incautos 
 
 
 28 
 
 - Nós vamos até aqui. Cumpra sua caminhada. Você está no coração do 
pai, em breve ele o receberá, pois está prestes a cumprir sua missão entre os seus 
irmãos. 
 
 Ele percebeu então que desencarnaria imediatamente, mas questionava: e 
a cidade? Qual é o ponto de ruptura entre ele e aquele povo, por que aquela 
encruzilhada? Sabia que a vida aqui era um sopro e nada temeu. Antes da cidade 
havia um caminho estreito por entre dois morros o ladeavam, diziam os antigos 
que muita gente fora surpreendida por tocaia ali, mas eram os antigos quem 
diziam, passara por ali inúmeras vezes e via a presença da natureza, embora 
naquele dia tudo estava diferente, algo estranho, não ouvia mais os pássaros e a 
natureza parecia que tinha se recolhido. 
 No lugar da tocaia o pistoleiro munido e atento, uma pedra marcava o lugar 
certo onde seria feito seu primeiro disparo, não gostava de render o condenado, 
colocá-lo ajoelhado e atender-lhe um último desejo, pois achava isso dramático 
demais, o melhor era um tiro certeiro, onde não daria nem tempo de raciocinar, a 
não ser em casos que o condenado era safado, nesses gostavam de vê-lo sangrar 
até a última gota e se arrepender dos pecados, esses não tinham nem último 
desejo, menos ainda escolher como iriam morrer, imagine? Cabra safado não 
tinha escolha não. 
 O iluminado levou um disparo certeiro no peito e não caiu, levou outro e 
ainda assim se manteve em pé, o atirador ia apertar outra vez o gatilho, mas 
hesitou e deixou-o seguir cambaleante, quase não se sustentando em pé, mas não 
foi longe, metros depois caiu agonizante. Estranho, mas antes de ir embora o algoz 
chegou perto tirando seu chapéu, talvez em sinal de respeito à vítima, acreditam? 
Pois era acima de tudo um profissional, nada pessoal e também para que pudesse 
ver quem estava matando, gostava de fitar os olhos dos despachados, uma 
curiosidade mórbida. A morte veio em seguida. 
 Os primeiros que viram o corpo sobressaltaram-se chocados, mas breves 
segundos depois tentavam socorrê-lo, recobrar-lhe os sentidos, mas em vão. 
A Romaria dos Incautos 
 
 
 29 
Perguntavam quem fizera aquilo? Jamais podiam acreditar, ficaram aterrorizados, 
todos que passavam por ali paravam e se envolviam, aumentava o fluxo de gente 
sobre o cadáver. Todos indignados, mas também assustados. A multidão carregou 
o cadáver sobre suas cabeças e assim entraram na cidade, alguém colocou uma 
mesa grande em cima do coreto, colocaram seu corpo lá, deveria parecer cristo 
quando o tiraram da cruz. 
 Todos pararam o que estavam fazendo, seja ir ao banco descontar ou 
depositar os cheques, levar os filhos na escola, chegar pontualmente no trabalho, 
pegar o ônibus, abrir seu comércio, ir viajar a negócios, todos pararam e o 
seguiam consternados, muitos choravam inconsolados. Cada vez mais juntava 
gente, uma procissão se fez composta por pessoas de todos os credos e todas as 
crenças, todos envolvidas no mesmo martírio e cantavam, os rostos mostravam a 
piedade e o arrependimento daqueles que há muito não estavam ao seu lado e se 
esqueceram dele. Era o fim de um tempo. 
 
A DECADÊNCIA 
 
 O velório do iluminado foi coisa mais bonita, todas as casas acenderam 
velas coloridas que foram colocadas nas janelas. Quem via a cidade de longe 
observava inúmeros pontinhos luminosos, saíram em romaria pedindo em prece 
que deus recebesse aquela alma tão especial, todos compareceram, até aqueles 
que moravam distantes, todos consternados, afetados, uns choravam, outros para 
descontrair contavam piadas, outros diziam que pessoa como ele não havia, nem 
haverá de ter, os católicos oravam Ave Maria, os evangélicos as mais variadas 
orações. Agora o último obstáculo ao progresso que com certeza devoraria a todos 
sem piedade. 
 
Alguém gritou: 
 
- Morreu a esperança! 
 
A Romaria dos Incautos 
 
 
 30 
 No dia seguinte ainda se perguntavam quem teria feito aquilo? Só poderia 
ser o diablo, pois ali ninguém tinha coragem e espírito para aquilo. Borrados de 
medo, todos se calaram, guardaram seu choro e foram para casa se esconder, 
estavam em pânico. Calígula, disfarçado, viu na primeira hora do horário 
comercial, o povo chegando à fábrica para pedir emprego. Eram tantos na porta 
da fabrica a pedirem a mesma coisa que John Mc Donald resolveu imediatamente 
baixar os salários, pois quem não os quisesse seria demitido e substituído por 
outro que estivesse disposto a conviver com as mesmas migalhas. Ele pensou que 
o povo com medo é povo domesticado e obediente. 
 A partir desse fato tudo mudou em Santo Livramento. A despeito dos 
ecologistas o rio recebia todos os dejetos da fábrica, já não era mais o rio da fé, 
suas águas antes límpidas se tornaram fétidas e venenosas, as águas pretas 
serviam apenas para escoar pelo sertão afora o lixo químico. Antes o cheiro era 
insuportável, mas hoje todos se acostumaram. A água não serve mais para beber, 
os peixes morreram todos, as crianças apareciam com infecções, mulheres 
grávidas e seus fetos também eram vitimados. A fumaça da fábrica formava uma 
neblina tóxica que pairava sobre a cidade, o céu quase sempre não era visto, estava 
sempre encoberto pela fumaça e o pronto socorro, sempre cheio de gente para ser 
atendida, não dava conta. 
 O salário da fábrica não dava para comer, muito menos para vestir, as 
horas de trabalho aumentavam e a hora extra só beneficiava o patrão. Os fiscais do 
ministério do trabalho quando apareciam por lá recebiam um bom suborno ou 
eram mortos. As autoridades, os executivos da fábrica e até o prefeito passaram a 
morar no pequenino distrito de Nova Esperança cujo nome homenageava o dia da 
grande tempestade. Só ficava em Santo Livramento o povo. 
 A cidade morria lentamente, os operários tomavam no bar a pinga marvada, 
muitos se tornaram alcoólatras, aumentou o número de acidentes de trabalho, 
amputados e a desagregação familiar, as igrejas ficavam abarrotadas de gente, 
inclusive do lado de fora, gente pedindo uma intervenção divina sem nada fazer e 
aceitando calados tudo, assim deus não faz nada. Os suicídios eram muitos, os 
pedintes, indigentes eram tantos, drogas e prostituição, inclusive prostituição de 
A Romaria dos Incautos 
 
 
 31 
crianças nos seus dez anos em diante. Os próprios pais as ofereciam aos 
caminhoneiros que paravam no AUTO POSTO TRANSNORDESTINA para 
abastecer, jantar e pernoitar. 
 O diabo que já era novamente o empresário mais rico daquelas bandas 
capturava todas as almas desvalidas e miseráveis de esperança e com a fé 
rala...fininha...associado a John Mac Donald, então, estava poderosíssimo, ele o 
diabo era festejado
nas colunas sociais, não importava seu ramo desde que tivesse 
dinheiro e status. Dona morte tinha voltado depois de um tempo no Iraque, estava 
bem lá, mas quando a empresa: DEADS AND LIVES COMPANY ofereceu-lhe a 
chance de voltar, agarrou-a, pois em Santo Livramento as coisas eram mais 
tranqüilas, No Iraque era um inferno, as bombas a incomodavam. 
 Com a o iluminado morto, os membros do novo Cangaço concluíram que 
chegara sua vez, iria valer o poder da bala, nada desse negócio de esperança 
cruzando seu caminho, os meios são justificados pelo fim que se quer alcançar e 
pronto! Nada dessa coisa santificada e beatificada que o iluminado impunha, para 
eles tudo aquilo era balela, era hora de lançar o seu ódio curtido que se 
transformara em veneno. Calígula preparava a sua investida à fábrica. Penduraria 
todos os executivos de cabeça para baixo e os sangrariam até a morte. 
 Fizeram todos os preparativos, munição, a faca para o sangramento 
afiadíssima! as motos abastecidas, os coletes à prova de bala à disposição. 
Preparavam uma tocaia para John MacDonald que ia trabalhar de limosine, 
fizeram uma barreira na estrada cercaram o carro, correram com o motorista dali 
e tiraram MacDonald à força do carro, arrastaram-no até a árvore mais próxima. 
O executivo implorava por sua vida, mas Calígula insensível amarrou a corda em 
seus pés e jogou-a em um galho forte e puxou-a de modo que o capitalista ficasse 
pendurado de cabeça para baixo. Mac Donald implorava por um julgamento justo, 
mas Calígula respondeu: 
 
 - Aqui não tem nada disso. A lei aqui não é algo que você possa comprar. 
 
A Romaria dos Incautos 
 
 
 32 
 E introduziu a faca entre o pescoço e o ombro, sangrando-o. A vítima urrava 
e chorava sem parar, até perder os sentidos e finalmente fazer a passagem. 
 
 Eles sabiam que a matriz poderia designar outro gerente para a fábrica, 
então foram para lá e fizeram o mesmo com o quadro executivo da empresa que 
estavam sentados à grande mesa de reuniões, esperando seu presidente. Os 
cangaceiros pararam a produção e deram uns tiros para o alto expulsando os 
trabalhadores. Ao invés de pendurar os executivos na árvore como fizeram com o 
chefe deles, penduraram-os nos mastros das bandeiras, tinha cinco mastros para 
cinco altos executivos, o numero exato, no primeiro tinha a bandeira da empresa, 
no segundo a bandeira dos Estados Unidos, terceiro, a bandeira de Santo 
Livramento, no quarto a bandeira do estado, no quinto a bandeira do país. 
 A Polícia foi avisada e sob o argumento de proteger as empresas para 
manter a ordem veio a tropa de choque, cercados os cangaceiros resistiram por 
dias, reforços vieram da capital para manterem a lei, a resistência ganhou 
manchete internacional, pois a imprensa precisava de uma história nova para 
render notícias e vender jornal e se convenceram de que aquela poderia chamar a 
atenção de todos, pois tinha muita violência, embora não tivesse nada envolvendo 
sexo, mas para eles tudo bem, antes isso que nada! Os jornalistas denominavam 
os cangaceiros de terroristas, outros diziam até que eles eram associados ao Al 
Qaeda e as FARC. Cercados e sem alternativa de fugirem fariam uma investida 
final suicida, sairiam dali atirando, derrubariam quantos pudessem antes de 
caírem mortos e assim o fizeram. 
 Quando os policiais e a mídia achavam que iam se entregar para 
humilhá-los publicamente, roncaram os motores de suas motos, anunciando que 
sairiam a qualquer momento e algo dizia para os policiais que não exatamente 
como pensavam. Munidos até os dentes aceleraram suas motos e quando o portão 
se abriu, saíram ganhando alta velocidade e os policiais começaram a atirar, com 
sorte o bando furaria o cerco. Com uma das mãos aceleravam suas motos com a 
outra disparavam suas pequenas metralhadoras automáticas que cuspiam 
milhares de balas por segundo. Calígula foi o primeiro a ser atingido, mas quando 
A Romaria dos Incautos 
 
 
 33 
as balas atingiram o tambor de combustível, sua moto explodiu com ele. Os 
demais foram alvejados e mesmo assim continuaram a atirar, o único a furar a 
cerco foi zumbi, mas não foi longe, ferido de morte agonizou e morreu na beira da 
estrada, no KM 145 da transnordestina. 
 O incidente causou grande discussão sobre a questão ambiental que não 
estava sendo considerada por capitalistas inescrupulosos. Os ambientalistas que, 
no princípio, não tiveram muito interesse no caso, mudaram de idéia, pois a 
imprensa estava cobrindo o ”evento” e correram imediatamente para lá, disseram 
que o finado iluminado tinha-os avisado e já haviam preparado um grande ato 
contra a poluição naquela cidade, preciso fosse acionariam os órgãos federais de 
defesa do meio ambiente. 
 
 Depois de dois mandatos à frente do legislativo estadual o prefeito não foi 
mais reeleito, pois a fábrica não o financiava mais e não queria pedir apoio para o 
diabo, pois até colocaria seu mandato em risco, mas não sua alma. Os vereadores e 
os membros do poder judiciário perderam sua mamata e tiveram que se adaptar 
aos novos tempos, o iluminado estava feliz junto do pai celestial e em paz por ter 
cumprido sua missão, alcançou a plenitude que só é alcançada pelos corajosos e 
nobres de sentimento. Deus cessou a chuva, o sertanejo estaria melhor sem ela, 
pois afinal cada um tem aquilo que bem merecer. Deus ofereceu a liberdade e a 
oportunidade para a felicidade, mas progresso não lhe fez bem, o corrompeu e era 
preciso que esse homem retornasse ao seu centro. A vida estava mal em Santo 
Livramento, estava mais para Santo Condenamento, Cubatão de tempos atrás 
perderia. Um mês depois foi publicado no Diário Oficial do Céu, o seguinte: 
 
 FICA SUSPENSA POR TEMPO INDETERMINADO A CHUVA 
NO SERTÃO. 
 Poluição e seca quem haveria de aguentar? O rio poluído baixava o seu 
nível a cada dia, semana a semana, mês a mês até o dia em que estivesse todo seco 
e quanto mais o nível do rio baixava, mais era revelada a baixeza a que chegaram, 
pois tudo que queriam esconder jogavam no rio, todos acreditavam que suas 
A Romaria dos Incautos 
 
 
 34 
águas envenenadas pudessem dissolver seus pecados. Lá foi encontrado até carro 
com esqueleto dentro, queimaram um arquivo e também armas que eram provas 
de crimes. 
 Aos poucos puderam ver o céu novamente, não tiveram novos casos de 
doenças respiratórias, nem intoxicação pelas águas poluídas do rio, pois não 
tinham rio, estava todo ceco, aos poucos os dejetos que sobraram foram engolidos 
pela areia. Depois de um tempo, tudo virou história contada pelos antepassados, 
não virou nem lenda, apenas uma lembrança que as pessoas querem esquecer e 
que as gerações vão sepultando pelo esquecimento. Todos continuaram a 
reclamar e não tomavam atitudes, jamais as tomariam. Deus atendia um 
pedidinho aqui outro acolá, respondia a uma suplica só para não perder o habito, 
mas não apostaria suas fichas em Santo Livramento e demoraria muito, muito e 
muito para atender algum pedido por água. Estava muito desapontado e esse 
desapontamento sabe lá quanto tempo duraria, pois o tempo dos deuses é muito 
extenso comparado ao tempo dos mortais. Um dia terão sua segunda chance? 
Quem sabe?
A Romaria dos Incautos 
 
 
 35

Teste o Premium para desbloquear

Aproveite todos os benefícios por 3 dias sem pagar! 😉
Já tem cadastro?

Mais conteúdos dessa disciplina