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Nicolai Hartmann A Filosofia do Idealismo Alemão Calouste Gulbenkian (1983)

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NICOLAI HARTMANN 
A FILOSOFIA 
... 
DO IDEALISMO ALEMAO 
Tradução de 
José Gonçaives Belo 
2.ª edição 
FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN J LISBOA 
Primeira Parte 
FICHTE, SCHELLING 
E O ROMANTJSMO 
PREFÁC I O 
O livro que temos diante de nós distingue-se das outras 
exposições sobre a mesma matéria em dois aspectos diferentes. 
Considera que o significado dos grandes sistemas idealistas 
não se esgota no que têm de sistemático ; vê neles o desenvolvi­
mento dum património filosófico que, como tal , não é de modo 
algum idealista, mas, antes, é, ou devia ser, peculiar a toda a 
filosofia. O interesse principal não reside nas grandiosas dou­
trinas segundo o ponto de vista dos grandes mestres, mas sim 
na vastidão do horizonte dos problemas e na força da sua pene­
tração , quer em toda a linha, quer em pontos isolados. 
O idealismo é uma forma especial da própria penetração · 
do pensamento, e esta forma é a predominante no período que 
vai de Kant a Hegel . O conteúdo de toda a problemática toma, 
em maior ou menor grau, um cunho idealista nestes pensadores. 
Mas esse conteúdo por si não é de modo algum idealista, e o 
tratamento que sofre neste caso é, como tal, algo completamente 
diferente do desenvolvimento ulterior das teorias em que está 
inserido. Quem tiver ainda hoje um modo de pensar puramente 
idealista , encontrará, sem dúvida, um acesso mais fácil a estas 
teorias; o seu pensamento comparticipa da mesma forma de 
pensar daqueles pensadores. Mas, em si mesmo, a matéria dos 
problemas que eles elaboraram pertence, tanto históricà como 
sistemàticamente, a um contexto mais vasto. Este livro tem em 
mira a segunda: é a matéria ou conteúdo que há-de tornar fértil 
e visível o panorama filosófico para quem quer que seja, inclusive 
para quem tenha pontos de vista adversos. 
Nos sistemas idealísticos, os problemas filosóficos funda­
mentais estão submetidos quase todos a um aprofundamento 
radical e, em parte, a um;;i redescoberta. O valor duma· tal redes­
coberta é imperecível , pois é independente do grau em que a 
satisfazem as tentativas de solução daqueles sistemas. Ora, se 
a construção dos sistemas consiste unicamente nas conclusões, 
6 
se permanece e cai com elas a concepção do universo esboçada, 
creio não ir longe de mais quando ouso afirmar que a análise 
dos problemas no pensamento de Fichte e de Schelling é um 
empreendimento muito maior, e que perdura com mais vigor 
num sentido muito diferente do que os imponentes edifícios dos 
seus respectivos sistemas. A análise dos problemas é o que per­
manece, ontem como há cem anos, o que vive na sua filosofia -
no meio da obra humana transitória da especulação de altos 
vo9s. Que sucede o mesmo, e ainda em sentido reforçado, pode 
dizer-se de Hegel , como o provaremos na segunda parte deste 
l ivro . 
Naturalmente , não se diz com isto que se possa evidenciar 
historicamente o conteúdo dos problemas sem ir no encalço 
destes mesmos problemas. Escolhi este caminho seguindo o rasto 
dos meus antecessores, na medida em que os encontrei . E aqui 
reside o segundo ponto, com o qual , em relação a outras expo­
sições, procuro oferecer ao leitor qualquer coisa de novo. 
No nosso tempo, inclinado à especulação, não é tão necessária 
a interpretação, quer dizer, a opinião do expositor, como o 
contacto directo do leitor com o pensador exposto . Dar a conhecer 
pensamentos sobre Fichte, por mais engenhosos que sej am, é 
diferente de fazer ouvir os pensamentos de Fichte. Sem dúvida, 
o traçado da linha dialéctica das suas ideias j ustifica, em parte, 
o processo usual de estabelecer formulações seguras, em vez de 
as pôr em movimento vivo . Mas acontece facilmente que o 
expositor, na sua aspiração de ser compreensível, apresenta ao 
leitor unicamente a fórmula fixa, escamoteando assim a vida 
ondulante do pensamento . Que uma interpretação do idealismo 
alemão num sentido completamente diferente é p,�rfeitamente 
possível, provou-o de modo exempla·r a obra bela, metódica e 
.inovadora de Richard Kroner « Von Kant bis Hegel » [ «De Kant 
a Hegel »], cuj o primeiro volume (Tübingen, 1 921 ) contém pela 
primeira vez valiosa análise dialéctica da problemática do Fichte 
da j uventude e de Schelling. A exposição presente não pretende 
concorrer com essa obra, que assenta inteiramente sobre uma 
nova penetração no assunto . O objectivo desta exposição é mais 
limitado, .a sua finalidade é puramente introdutória, tanto mais 
razão para eu vivamente remeter quem estej a interessado por 
este assunto para aquela obra fundamental. 
NICOLAI HARTMANN 
INTRODUÇÃO 
A.. série de filósofos que designamos por « idealistas alemães » , 
a avalancha d e sistemas originais sobrepondo-se e m catadupas,
o encadeamento rico e imenso das controvérsias literárias , cujo
conjunto representa para a posteridade a época do « idealismo 
alemão » , tudo isto constitui um movimento espiritual que difi­
cilmente se pode equiparar, no que toca a concentração e ele­
vação especulativa, a qualquer outro na História. Começa na 
década de oitenta do século XVIII e prolonga-se, nas suas últimas 
ramificações, até à metade do século XIX. O seu apogeu recai 
no primeiro decénio do século XIX, no qual Fichte, infatigável 
crijidor, atinge a maturidade ser.ena do seu desenvolvimento 
espiritual , o Schelling precocemente amadurecido publica os 
seus escritos mais s ignificativos e eficientes, e Hegel, avançando 
vagarosamente, elabora a concepção fundamental do seu sistema 
gigantesco . A capital deste mundo espiritual , fechado em s i 
mesmo, é durante mais de duas décadas a Universidade de lena, 
na qual , desde o primeiro aparecimento de Reinhold (1787) até 
à partida de Hegel de lena ( 1 808) , trabalham, ensinam e permu­
tam animados pontos de vista pessoais os cérebros dirigentes 
do movimento . Mais tarde, encontra�se um segundo berço do 
movimento na Universidade de Berlim, recentemente fundada, 
onde Fichte, Schleiermacher e Hegel desenvolvem a sua actividade. 
O que reúne os pensadores do idealismo alemão num grupo 
homogéneo , a despeito das oposições e pontos de discussão cons­
cientes , é, em primeiro lugar, a posição do problema comum. 
O ponto de partida para todos eles é a filosofia kantiana, cuj a 
riqueza inesgotável produz sempre novas tentativas de solução 
para os problemas propostos . Cada um destes pensadores em 
particular estuda-a intensamente, em profundidade, procura 
suprir as suas carências reais· ou presumíveis , solucionar os 
problemas que se levantavam, levar a cabo as tarefas por ela 
iniciadas . A meta comum a todos é a criação dum vasto sistema 
10 
de filosofia, rigorosamente homogéneo, baseado em fundamentos 
últimos e irrefutá'l'eis . Paira distintamente diante de todos o 
ideal daquela «metafísica futura» («künftige Metaphysik») para 
a qual o pensamento portentoso de Kant tinha só fornecido os 
prolegómenos . Em verdade, não lhes escapava inteiramente que 
Kant, nas últimas Críticas, já construíra os alicerces desta meta­
física. Mas as bases não lhes bastam. O sistema deve surgir 
duma só peça, numa certeza inequívoca, que realize a sua con­
cepção de filosofia. A direcção em que procu,r.avam este sistema 
ideal diferia de uns para os outros, e cada novo estudo torna-se 
de facto um novo sistema, embora nos possa parecer que sobre 
qualquer oposição prevaleça 'ª íntima afinidade de concepção 
fi losófica que descobrimos naquelas criações , vistas como os 
planos duma posição histórica �fastada. A crença, porém, de 
que um tal sistema ideal é possível , de que sej a. acessível à 
razão humana, é, de facto, comum a todos eles . Todo o movi­
mento vive sob o signo dum optimismo filosófico j uvenil no 
seu vigor e propenso à criação. Todo o cepticismo tem sempre 
para estes pensadores o significado duma fase
de transição , 
duma instância de exame e reflexão , dum caminho que leva a 
uma interiorização mais profunda e ao esgotamento dos pro­
blemas . 
Pode por isso indicar-se, em geral, como o elemento carac­
terístico das grandes doutrinas idealistas , a marcha unitária 
em direcção a um sistema. Não que pensadores anteriores não 
se tivessem já esforçado também por alcançar um quadro uni­
tário de conju.nto ; mas eles não partem do aspecto fechado da 
unidade do todo, como também não expõem este formalmente -
ou só lhe dão expressão incompleta. Procuram, em primeiro 
lugar, problemas particulares ou grupos de problemas ; uma 
construção metodicamente unitária e fundamentalmente cerrada 
como a « Ética» de Spinoza constitui uma absoluta excepção . 
Os idealistas, pelo contrário, tanto uns como outros , dirigem-se 
desde o começo para .a ideia eia totalidade e quase todas as 
suas obras contêm um novo es.boço de sistema; e mais do que
um:· iio decurso --ulterior do seu desenv�lvimento illtelectual, 
transforma o sistema já anteri�rmente -�sboçado . A época pós­
-kantiana -coloca-se com isso em manife-�ta oposição a Kant ,
para quem, a despeito da base profundamente metafísica do seu 
modo de pensar, a primeira exigência era não tanto o sistema 
como, em última análise, a Crítica, enquanto pressuposto do 
sistema. Para o espírito da metafísica especulativa, que desper­
tava de novo com o idealismo alemão, havia na simples tarefa 
da Crítica, por menos céptica que ela possa ser considerada, 
1 1 
qualquer coisa de negativo, quer dizer, d e meramente prepara­
tório . A série precipitada dos grandes sistemas que se seguem 
a Kant não é um acaso . :t a reacção histórica da sistemática 
construtiva contra a crítica destrutiva . Ou, se quisermos assinalar 
mais agudamente os contrastes, como os seus próprios represen­
tantes os podiam sentir, é a reacção do sistematismo contra o 
criticismo . 
Os primeiros pensadores pós-kantianos não se propõem 
ainda tanto a transformar como a compreender a verdadeira 
teoria kantiana. Que, no princípio, houvesse falta duma tal 
compreensão, não é de admirar, por causa da dificuldade que 
apresentam as invest igações da Crít ica da Razão Pura. A filosofia 
popular que predomina na época do racionalismo, que pouco 
a pouco se extinguira, não estava à altura desta tarefa. O que 
o bom "senso não podia compreender, tinha de ser considerado
como paradoxo , como ameaça à sua própria autoridade. Quanto 
menos se compreendia Kant, tanto mais absurdo devia parecer 
o empreendimento da Crítica. A sátira de Fr. Nicolais chegara
a considerá-la como um caminho errado que j á nem a si mesmo 
se entendia, e até pensadores mais sérios da escola wolfiana, 
como Moses Mendelssohn, souberam extrair dela sàmente o 
aspecto negativo , quer dizer, o cepticismo metafísico . Semelhan­
temente a julgou Herder na sua Metakritik [ «Metacrítica» ] (1799) , 
e até nos escritos positeriores de Jakobi , que se esforçava s�ria­
mente por compreender Kant, encontramos traços de igua1l es­
pírito . 
O mérito de Reinhold é ter dado o impulso mais decisivo 
para promover uma forma diferente de apreciação de valor. 
As suas B riefe über die Kantische Philosophie [« Cartas sobre 
a filosofia kantiana» ] , publicadas em 1786/87, no Deutscher 
Merku.r [ «Mercúrio Alemão »] de Wieland, lançaram a questão . 
Com decisão acertada, tomou como ponto de partida aqueles 
aspectos da teoria kantiana que iam na generalidade mais ao 
encontro da compreensão de ·esferas mais amplas, os problemas 
morais e religiosos , indicando depois o caminho natural que 
ele próprio tinha aberto para a Crítica da Razão Pura. Relatava 
na sua exposição a impressão do que sentia espontâneamente 
e do que intimamente vivia, como j amais poderia havê-lo feito 
Kant com a sua linguagem obj ectiva , cautelosa e ponderada. 
Com a divulgação da doutrina kantiana introduz-se, no 
entanto , não só a interpretação do seu significado específico, 
mas também a tendência de retirar dela certos pontos insatis­
fatórios . O próprio Reinhold faz a primeira tentativa desta 
interpretação e torna-se o primeiro continuador da nova teoria. 
1 2 
Mas o impulso que dele parte era já duplo : por um lado em 
dkecção a Kant, por outro lado, para além dele; quer dizer, 
acusara a ,tendência para se afastar daquilo mesmo sobre que 
se debruçara. 
Ambas as direcções se reflectem distintamente no desenvol­
vimento subsequente, e são, em parte, os mesmos cérebros 
filosóficos que continuam a trabalhar tanto numa como noutra 
direcção . Todavia, ambos os movimentos descrevem círculos 
muito diferentes que necessitam de considerações separadas . 
Direct�mente ligada a Reinhold, surge na última década do 
século xvrrr uma série de defensores e adversários da filosofia 
crítica, para os quais ainda se trata, em primeiro lugar, de 
interpretar Kant e de tomar uma posição cm relação a ele . 
Desta série fazem parte Schulze , Maimon, Beck, bem como num 
contexto um pouco mais vasto, Jakobi e Bardil i . Só poucos anos 
mais tarde , mas ainda na mesma década, com o aparecimento 
de Fichte, se inicia um movimento novo e mais amplo, cujos 
condutores se propõem, com uma atitude independente, os mais 
altos objectivos especulativos . Bardili pertence j á em parte a 
um movimento, em parte ao outro . À nova corrente , que abrange, 
além de Fichte, Schell ing e Hegel, também Schleiermacher e 
Krause (bem como uma série mais numerosa de adeptos dos 
mesmos), vem desembocar em período mais avançado o êxito 
literário de Schopenhauer. 
A escola dos poetas pré-românticos desempenha um papel 
integrador especial neste desenvolvimento filosófico. A sua 
influência exerce-se quase ao mesmo tempo que os primeiros 
trabalhos de Schelling e em estreita relação recíproca com os 
progressos deste filósofo . São principalmente Friedrich Schlegel 
e Novalis que se aventuram no campo filosófico e cujo espírito 
leva parq a especulação idealista a sua nostalgia voltada para 
o infinito' e para o irracional . O mesmo se pode dizer de Hol­
derlin, dentro de certos limites. Na mais íntima conexão com 
esta nova corrente espiritual encontra-se a influência, que domi­
nara também uma sénie de pensadores anteriores : Pllotino, 
Bruno, - Spinoza, Jakob Bõhme. Na estrutura do pensamento 
crítico e sistemático age o elemento romântico, panteísta e 
místico, a princípio ainda como um corpo estranho, que só 
lentamente o impregna e o desvia do seu caminho recto. O Fichte 
do período final , o Schelling da fase média, e a elevação filosófica 
de Hegel não podem conceber-se sem este factor. Ainda mais 
profundamente penetrado por ele é o labor intelectual de 
Schleiermacher, que conserva também formalmente uma estreita 
conexão com aquele elemento . A viragem que o idealismo sofreu 
13 
a partir daqui , determinada de um modo racional por Kant, 
mostra-se da maneira mais positiva no campo da ética, da 
estética e da filosofia da religião . Mas o irracionalismo propria­
mente dito penetra só tarde na última fase de Schopenhauer 
e Schelling, ao passo que Hegel , que deve à poesia e à vida 
românticas uma grande quantidade de motivos intelectuais , 
nunca desconfia da omnipotência da razão. A evolução de cada 
um dos filósofos particulares mostra no conjunto uma série 
variada de fases , que se cruzam frequentemente urnas com as 
outras , e se condicionam entre si dê maneira diversa. A actividade 
dos filósofos considerados isoladamente não se pode separar 
cronolàgicamente da actividade dos outros . O aparecimento dum 
pensadqr segue· o dum outro tão de perto, que a sua evolução 
pessoal não está condicionada unilateralmente pelos antecessores 
ou sucessores , mas , pelo contrário, decorre paralelamente por 
meio de influências e oposições recíprocas . Para demonstração 
deste facto junta-se, em apêndice a este
volume, um quadro 
cronológico das principais obras filosóficas de toda a época 
idealista que começa com a Crítica da Razão Pura e termina 
com as últimas publicações de Schelling e Schopenhauer. As obras 
editadas mais tarde para a posteridade, ainda que. st!j am de 
decisiva importância para o quadro total dum filósofo , como 
sucede com Fichte e Hegel , não fazem parte deste quadro, 
porque nele só se tomam em consideração as obras realmente 
publicadas; só estas obras desempenham um papel na trama 
dos fios que se entretecem variadamente das influências vivas 
recíprocas . Em contrapartida, fazem também parte do quadro, 
para não se omitir nada na visão de conjunto , as obras principais 
de alguns pensadores que não contam porventura directamente 
para o idealismo, como Fries e Herbart, porque o seu ordena­
mento no tempo, entre as criações do idealismo, é indirectamente 
também característico delas. Esta situação histórica representa 
para a compreensão do período no seu conjunto uma dificuldade 
que não é menos importante . Não é possível compreender a 
evolução dum filósofo sem a referir à dum outro . A evolução 
do desenvolvimento dum pressupõe já em parte o que pode 
seguir-se na exposição do seguinte. Isso tem importância especial 
em Schelling , que no início segue muito de perto Fichte e, inclu­
sive, em parte o repete, embora nas suas últimas publicações 
ultrapasse temporalmente Hegel, mas que no decurso do seu 
labor de quase 50 anos percorre nada menos do que cinco 
sistemas claramente diferentes. O mesmo é válido dizer-se de 
Fichte, que deixou uma enorme quantidade de esboços de sis­
temas diferentes, reiniciados por ele continuamente. O Fichte 
14 
da fase final não se compreende histàricamente sem Schelling; 
. o Schelling da fase média sem os românticos, e o Schelling da 
fase final sem Hegel . 
Um método que consistisse na exposição histórica de pro­
blemas que renunciasse a uma apresentação uniforme dos filó­
sofos particulares, dominaria imediatamente esta dificuldade. 
Todavia, com este método teriam de passar a um plano secun­
dário os traços característicos que continuamente acompanham 
o desenvolvimento individual dos diferentes filósofos . E destes
traços depende precisamente o que, em certa medida, interessa 
e é capaz de atrair os epígonos actuais, que partem de perspec­
tivas totalmente diferentes no meio da heterogeneidade da 
estrutura intelectual dos idealistas. A exposição presente renun­
ciou, por isso, à sucessiva apresentação histórica dos problemas 
da evolução sistemática, quando o quadro homogéneo dos grandes 
vultos de pensadores individuais o tornava necessário . Notas 
relativas ao que antecede e ao que se segue, procuram compensar 
esta falta, evitando a falsa aparência de autonomia do particular, 
e lembrando constantemente as múltiplas ramificações dos fac­
tores que o acondicionam. A imagem de conjunto do desenvol­
vimento individual dos problemas é ocasionalmente acrescentada 
como complemento . 
Capítulo 1 
Kantia nos e Antika ntia nos 
1 .º Rein hold
Que uma ideia grande, uma vez apreendida e formada, cai 
como um raio abrasador, se propaga, agita de novo milhares 
de problemas adormecidos , e incita os espíritos mais dotados 
duma época à continuação dum trabalho que desconhece a 
fadiga , é um facto que talvez não tenha sido nunca tão evidente 
e sensível na história da filosofia como o foi no caso das ideias 
críticas de Kant e do movimento imediato e subsequente do 
idealismo alemão . É, todavia, compreensível que num movimento 
deste tipo ideias assim não desempenhem um papel junto dos 
espíritos verdadeiramente criadores e geniais , mas justamente 
naqueles que necessitam dum apoio e sej am capazes de as 
compreender; os espíritos independentes seguem-nos a uma certa 
distância. Os adeptos imediatos de Kant, como Reinhold, Maimon 
e Beck, e não menos os seus adversários , como Schulze e Jakobi, 
ainda representam mais ou menos todos eles o tipo do adepto 
que disputa sobre a doutrina do mestre e duma ou outra forma 
está completamente sob a sua influência . Reinhold, o primeiro 
intérprete de Kant, é quem representa na sua forma mais pura 
este tipo. Recebe as novas ideias , sabe dar-lhes uma forma 
luminosa e compreensível, e tenta pela primeira vez a sua siste­
matização . Pela posição que tomam em relação a ele e à sua 
interpretação de Kant, distinguem�se os primeiros partidários e 
adversários da filosofia crítica. 
Todavia, esta concepção não é em si de modo algum exaus­
t iva. Ela parte das necessidades metafísicas da fé moral e 
religosa e mostra como a crítica mantém abertas as suas portas 
na forma de três ideias: Deus , libe_rdade, imortalidade, e torna 
claras as pesadas investigações teóricas de Kant como condições 
para assegurar estas necessidades mais íntimas do espírito . 
Se Reinhold denuncia j á distintamente a atitude da filosofia 
1 6
popular do racionalismo, que Kant tinha combatido conscien­
temente, a parcialidade mostra-se sobretudo no campo teórico . 
A ideia da Crítica da Razão resolve-se para ele em dois pares 
de noções : . forma e matéria, por um lado, fenómeno e coisa-em-si , 
por outro lado . Por mais importantes que estas noções pareçam 
ser· na estrutura da Crítica, a sua essência não se esgota de 
modo algum. Todavia, Reinhold, com a escolha de ambas estas 
linhas de pensamento, tocou pontos que tinham de provocar 
a luta das opiniões . A coisa-em-si tornou-se o obj ecto central 
da discussão filosófica nos anos mais próximos . As próprias 
formulações de Kant, que neste ponto não são de modo algum 
claras, favoreceram o crescimento do problema debatido . Schulze, 
Maimon, J akobi e Beck vêem na coisa-em-si o problema central 
e decisivo da Crítica, e tanto Fichte como Schelling iniciam os 
seus primeiros esboços de sistemas com investigações perfeita­
mente análogas . Se se abstraírem certos pontos especulativos 
culminantes da Lógica Hegeliana, pode afirmar-se que em forma 
potenoial e mu1tiplamente variada se conserva a mesma linha 
problemática através de toda a época do idealismo alemão ; 
encontramos Schopenhauer navegando ainda nas mesmas águas , 
com a dualidade de vontade e representação. Não podemos 
resistir, na verdade, à impressão de que, ,apesar da grande pre­
ponderância que outra série de problemas adquire posterior­
mente, a energia impulsara e a agudeza de visão com que todos 
estes pensadores sabem sustentar o seu idea!lisimo teór:ico se 
mantêm o mais estreitamente ligadas ao conflito em redor da 
coisa-em-si , que a interpretação kantiana de Reinhold provocou. 
Sej a como for que se compreenda o ser-em-si neste grande 
conceito enigmático , esse ser-em-si foi e continua a ser um ele­
mento anti-idealista, de facto o elemento propriamente anti-idea­
lista que permaneceu no limiar do idealismo, sendo impossível 
desconhecê-lo sem o fazer desaparecer. E porque Kant não tinha 
desaprovado totalmente a coisa-em-si , a filosofia crítica na sua 
interpretação dual parecia, por assim dizer, partida em dois 
fragmentos que os filósofos de agora em diante competirão 
entre si . 
Karl Leonard Reinlmld nasceu em Viena em" 1785, ingressou 
aos 14 anos no Colégio dos Jesuítas de Santana e, como este 
fosse em breve extinto, entrou para um Colégio dos Barnabitas , 
no qual permaneceu durante nove anos , primeiro como noviço 
e mais tarde como professor de Filosofia. Pelos fins desta época, 
cai sob a influência dum círculo de racionalistas, e em 1783, 
impelido pelo desej o de liberdade, viaj a secretamente para 
Leipzig. :E descoberto al i e parte para Weimar, visto que o 
1 7
regresso se lhe tornou impossível . Uma recomendação a Wieland 
abre-lhe a porta deste. Torna-se genro de Wieland e seu cola­
borador no Deutscher Merkur [ «Mercúrio Alemão »]. Aqui 
conhece, em 1785, a Crítica da Razão Pura e
torna-se seu par­
tidário e�tusiasta, depois de uma luta exaustiva com a nova 
problemática. Já no ano seguinte, escreve as suas Briefe iiber 
die Kantische Philosophie [« Cartas sobre a filosofia kantiana»]. 
Esta primeira obra, que foi para os contemporâneos o primeiro 
guia de Kant, "torna-o de repente conhecido, traz-lhe o aplauso 
de Kant e a chamada para pro.fessor de Filosofia na Universidade 
de lena. Os sete anos da sua actividade docente em lena assi­
nalam o apogeu da sua obra. Durante sete anos produz a Ele­
mentarphilosophie [ « Filosofia Elementar» ] . Encontramo-la ex­
posta nas suas três obras principais , o Versuch einer neuen 
Theorie des menschlichen Vorstellungsvennogen [ « Ensaio duma 
nova teoria da faculdade humana de representação» ] (1789) , as 
B eitriigen zur Berichtigung bisherigen Missvers tiindnisse der 
Philosophie [ « Contribuições para a rectificação dos erros até 
hoje cometidos pela Filosofia» ] ( 1790) e o Fundament des 
philosophischen Wissens [ « Fundamento do saber filosófico» ] . 
N o ano d e 1794 Reinhold aceitou u m convite para Kiel , onde 
exerceu a actividade docente até à sua morte, em 1 823. O seu 
espírito extraordinàriamente vivo, capaz de transformações, não 
podia parar naquilo que ele próprio produzia. Adapta-se fir­
memente a novos métodos . Por volta de 1797 torna-se partidário 
da Teoria da Ciência de Fichte que ele mesmo defende e ensina; 
alguns anos mais tarde, J akobi convence-o da sua filosofia da 
fé, depois duma troca de pontos de vista pessoais ; e desde 1 800 
torna-se discípulo de Bardili em cuj a Erste Logik [ « Primeira 
Lógica» ] intui , com verdadeiro- sentido filosófico, os germes de 
novos desenvolvimentos intelectuais - intuição a que grandes 
sistemas mais tarde deram uma razão que ele talvez nem sequer 
pudesse então pressentir. Finalmente, tenta uma sinonímia filo­
sófica que passa despercebida. Por mais instrutivo que sej a o 
exemplo do seu espírito inquiridor, infatigável e j amais estático, 
todavia só a sua Filosofia Elem.entar adquiriu significação autó­
noma e deu estímulo a Fichte e a Schelling nos seus primeiros 
trabalhos. E. só da sua Filosofia Elementar que nós aqui vamos 
tratar. 
Reinhold é o primeiro que surge com a pretensão de trans­
formar a Crítica num sistema. A Crítica, na sua parte teórica, 
tem como ponto de partida a experiência; · na sua parte prática, 
a lei moral, isto é, um princípio . Falta-lhe portanto um pressu­
posto uniforme, um princípio amplo de que tudo sej a derivado . 
2 
18 
Ora, Reinhold crê reconhecer semelhante princípio no que ele 
chama. a « tese da consciência»: na consciência, a representação 
é diferente do representado e, do representante e refere-se a 
ambos. Nem o sujeito nem o obj ecto coincideµi, portanto, com 
a representação, mas estão ambos, sem dúvida, contidos nela 
como factores . A consciência representativa, todavia , conhece 
imediatamente tanto esta diferença como esta correspondência 
mútua, o que s ignifica que a tese da consciência é autónoma, 
quer dizer, evidente em si mesma. É dada no simples facto da 
consciência, portanto, certa . Por conseguinte , é também certo 
tudo o que se pode deduzir dela. Mas a dedução realiza-se na 
medida em que se �presentam as condições, sem as quais não 
é possível uma representação no sentido indicado . A série das 
condições dessa tese básica ao princípio tem de participar da 
certeza que o próprio princípio possui. 
Quais são estas condições ? Na tese da consciência, o sujeito 
e o objecto do representar são diferenciados da própria repre­
sentação ; o objecto , todavia, refere-se essencialmente a ambos . 
Ela deve, portanto, conter um elemento, com o qual se enraíza 
no sujeito, e um elemento com o qual �e enraíza no obj ecto. 
Eis como se apresentam as duas primeiras condições da repre­
sentação. Aqui Reinhold recorre agora à distinção kantiana de 
forma e de matéria. Toda a representação cónsiste na reunião 
de ambas, portanto, supõe-nas já como seus elementos. E numa 
interpretação sumária do pensamento kantiano, Reinhold dis­
tingue: o elemento formal pertence ao sujeito, o elemento mate­
rial ao objecto . A forma é produzida pela consciência, a matéria 
é-lhe dada; aquela faz parte duma faculdade, esta da recepti­
vidade. ConsequenteIJJente, a faculdade representativa tem de 
ser, ao" mesmo tempo, espontânea e receptiva . O sujeito produz 
a forma na matéria recebida; desta maneira a representação 
nasce de ambos. A representação é, portanto, produzida na 
consciência, mas não é totalmente criada por ela. 
A representação também não é por isso uma cópia do objecto , 
tal como existe, independente da consciência, nem é decalque 
duma « coisa-em-si » . Basta só a subj ectividade da forma para 
.a elevar a um original autónomo . É impossív,:el representar um 
obj ecto na forma que tem independentemente da faculdade de 
representação. A forma objectiva da coisa-em-si é , segundo a 
sua essência, irrepresentável . · 
Mas como chega então a teoria filosófica ao conceito de 
coisa-em-si ? Evidentemente, pela receptividade da faculdade de 
representação . O elemento material da representação enraíza-se 
na coisa-em-si; pois, senão, deveria ser espontâneamente pro-
19 
<luzido como a forma e . não poderia ter nenhum carácter de 
coisa dada, como o mostra efectivamente o conteúdo da per­
cepção sensível . A afecção do sujeito pressupõe um afectante. 
Daqui não resulta, naturalmente, que a coisa-em-si, ao ser afec­
tada pelo sujeito, se tornasse cognoscível , mas que . o sujeito 
tem, em geral , que poder formar um conceito de�a, isto é , um 
conceito do !ncognoscível como tal . Reinhold não descobre 
contradição alguma no conceito duma coisa-em-si que existente 
condiciona materialmente a representação . 
Kant tinha atribuído a receptividade aos sentidos , mas a 
espontaneidade ao entendimento . Segundo Reinhold, isso não 
.é assim: não basta, como a Crítica prova, deixar à percepção 
sensível a sua forma particular; pelo contrário, esta, como toda 
a forma, tem que ser reconhecida como espontânea. Recepti­
vidade é, por sua vez, toda a faculdade que recebe a matéria. 
Mas não são só os sentidos que têm tal poder, pois a matéria 
pode ser diferente conforme o afectante. Nem toda a matéria 
provém da coisa-em-si, pode vir também do sujeito . Assim se 
pode distinguir a matéria subjectiva da matéria objectiva. Tanto 
a receptividade como a espontaneidade têm as suas formas 
que precedem a ideia na qualidade de condições e que , por 
conseguinte, são dadas a priori. Mas as formas da receptividade, 
como todas as formas, são subjectivas . Ora, uma vez que toda 
a matéria não é apreendida senão pela receptividade, necessà­
riamente toda a matéria das apresentações é ao mesmo tempo 
« subjectivamente determinada» . Isso é considerado evidente, 
tanto para a matéria subjectiva, como para a objectiva. Deste 
modo, da mesma maneira que na determinação _subjectiva, o 
sujeito recebe também a matéria objectiva mediante as formas 
particulares da receptividade . 
Uma segunda diferença segue paralela a esta. A mesma 
faculdade de representação pode ser também o afectante. Neste 
caso, as formas da representação são a matéria. Mas visto que 
estas têm carácter a priori, trata-se aqui de matéria a priori 
ou «pura». O contrário desta é a matéria «empírica» , que é 
« subjectiva» na afecção interna e « objectiva» na afecção externa, 
e só no último caso deriva da coisa-em-si . 
Dispostos assim os elementos da representação, deriva-se 
da condicionalidade da forma de todas as representações a 
aprioridade das formas de conhecimento ; da condicionalidade 
material da representação empírica da coisa, a existência neces­
sária da coisa-em-si , mas da determinação .formal subjectiva 
da receptividade, a impossibilidade duma representação da 
coisa-em-si
. 
20 
Reinhold insere agora estes primeiros resul tados da sua 
« dedução » no esque�a da Crítica da Razão Pura de Kant. 
O conhecimento é a consciencial ização do obj ecto representado , 
a autoconsciência o conhecimento do suj eito representante. 
Conhecimento -é mais do que representação . Neste devem ser 
preenchidas du:as condições : primeira , um objecto tem que ser 
apresentado ; s�gunda, esta representação tem que ser consciente. 
Correspondem-!he duas diferentes qualidades de conheeimento: 
sensibilidade e entendimento . Na primeira, a representação pela 
sua matéria relaciona-se directamente com o objecto que lhe 
é dado « intuitivamente» . A esta « representação de primeiro 
grau» , o entendimento fornece uma representação de « segundo 
grau » , quer dizer, uma representação mediata do objecto através 
da relação da faculdade formativa com a intuição . A forma é 
unidade, a matéria que a intuição lhe oferece é multiplicidade. 
A síntese da multiplicidade representada e elevada a unidade 
é obra do entendimento . E a forma da síhtese é o conceito 
que é a unidade objectiva do múltiplo. Intuição e conceito só 
em conjunto dão lugar ao cqnhecimento, assim como a matéria 
e a forma apenas j untas dão lugar à representação . A relação 
da sensibilidade e do entendimento constituem na faculdade do 
conhecimento a mesma correlação que a relação da receptividade 
e espontaneidade na faculdade representativa. Assim chega 
Reinhold ao princípio kantiano de que as intuições sem conceito 
são cegas e de que os conceitos sem intuição são vazios . 
A dedução posterior d e Reinhold pouco mais · traz: essen­
cialmente de novo relativamente à exposição da crítica kantiana. 
A « teoria da sensibilidade» deriva da distinção entre o «sentido 
interno » e o « sentido externo» da diferença estabelecida entre 
a matéria subj ectiva e a matéria objectiva. Ambas mostram 
urna multiplicidade de natureza diferente; portanto, a sua forma 
a priori também tem que ser .diferente. A multiplicidade externa 
mostra uma « justaposição » contínua, a interna urna « sucessão» 
contínua. A unidade da primeira é o espaço simples, a unidade 
da segunda o tempo simples . A aprioridade de ambas resulta 
imediatamente do seu carácter formal; mas , ao mesmo tempo, 
com a aprioridade, resulta daqui a tese kantiana de que ambas 
não valem como coisas-em-si, mas sim exclusivamente corno 
fenómenos, pois só este é obj ecto da intuição empírica. 
Na teoria do entendimento, Reinhold parte da função do 
juízo . Esta é sempre originalmente urna função integradora, 
sintética. O seu resultado é o conceito . O j uízo analítico, que 
se limita a decompor o conceito, supõe sempre o « sintético» . 
A s formas originais d a síntese são a s categorias . Neste sentido 
2 1 
a s doze categorias d e Kant são derivadas das diferentes formas 
das relações possíveis entre o sujeito e ô predicado . Da mesma 
maneira se processa também a « teoria da razão » , no capítulo 
de dedução das ideias . Em relação a este, os conceitos assumem 
o papel de matéria, enquanto a « unidade absoluta» constitui
a forma buscada. 
Quanto ·mais Reinhold se afasta do seu ponto de partida, 
tanto mais formal e esquemática se torna a dedução e tanto 
menos sabe adaptar-se ao esquema kantiano, isto é, tanto menos 
faz justiça às suas profundas intenções . Sàmente na transição 
para a « teoria da razão prática» consegue mais uma vez um 
lance audacioso que se revelou fértil nas suas consequências . 
A razão prática não é deduzível da faculdade de represen­
tação como tal , porque esta é absolutamente teórica. A prática 
refere-se à faculdade apetitiva . À primeira vista, pareceria que 
aqui toda a dedução teria que fracassar e a faculdade apetitiva, 
como uma novidade introduzida de fora, teria de pôr-se em 
contradição com o método usado até agora. E, efectivamente, 
Reinhold tem sido frequentemente mal compreendido neste 
sentido pelos seus expositores . Mas uma observação mais pene­
trante revela justamente o contrário . O que em Kant existe 
como consequência última da teoria ética da liberdade, quer 
dizer, a ideia do primado da razão prática, Reinhold toma-a 
como ponto de partida ao ocupar-se do problema do conheci­
mento, transcendendo a vinculação sistemática e natural da 
filosofia prática . · 
Segundo Reinhold, dedução não significa demonstração 
duma situação objectiva a partir das suas condições superiores, 
mas sim, inversamente, a apresentação das próprias condições , 
partindo da · situação real dàda. Segue nisso o método kantiano 
que ascende do « facto da experiência» para as « condições da 
sua possibilidade» . Mas, no sentido duma tal ascensão, é bem 
possível « deduzir» a faculdade apetit iva da faculdade de repre­
sentação, e tornar compreensível e inteligível a razão prática, 
partindo da teórica. Pois não se trata aqui de obter, à força 
de subtilezas , o desej o partindo da representação - como intér­
pretes anteriores frequentemente atribuíram à sua incapacidade 
especulativa - mas sim, pelo contrário, prová-lo como pressu­
posto, que deve ser satisfeito onde a representação tem lugar. 
Não é que o desej o estej a condicionado pela representação, 
mas o problema e a teoria filosófica do desejo estão condicionados 
pelo problema e teoria da representação. A dedução progride 
simplesmente do dependente para o independente e superior. 
A dedução de Reinhold fica, portanto, rigorosamente nas suas 
22 
águas navegáveis, mostrando que a razão prática é já condição 
da teórica, e , por conseguinte, deve subsistir de direito onde 
se verifica o conhecimento . 
A análise da faculdade de representação só permite des­
cobrir as condições da possibilidade de representação. Mas com 
a possibilidade da representação não se explica de modo algum 
a sua realidade. Para esse fim há ainda que mostrar o que ela 
realmente faz . Só pode tratar-se duma força impulsora, original . 
Nós encontramos semelhante força impuisora na faculdade ape­
titiva . A esta pertence o impulso que põe em actividade a 
representação e, com ela, o conhecimento. O desej o não é , 
portanto, consequência, mas sim o pressuposto da representação . 
A faculdade é só por si potência. A força fá-la actuar . 
Da faculdade e da força surge o « impulso » . A faculdade de 
representação é constituída pela matéria e pela forma na qua­
lidade de elementos. O impulso que a põe em actividade tem 
portanto de ser duplo : um impulso que recebe a matéria e 
um que lhe dá forma, « impulso material » e « impulso formal » . 
Sobre estes dois se constrói também a consciência prática. 
Correspondem aqui à. antiga dualidade da faculdade inferior e 
superior do desej o . O impulso material é uma necessidade de 
receber, o impulso formal aspira a dar, quer dizer, a manifestar 
a própria espontaneidade . O primeiro está vinculado ao empí­
rico e ao sensorial , o segundo é « puro » e intelectual . O primeiro 
é interessado e materialmente condicionado, o segundo desin­
teressado, formal e livre . O impulso intelectual aspira apenas 
à valorização do seu princípio formal supremo, a lei moral . 
A sua satisfação é a acção moral. Reconhecem-se fàcilmente 
nestas determinações os traços fundamentais da ética kantiana. 
Não se pode na verdade afirmar que eles tivessem apreciado 
com justiça esta última na sua profundidade peculiar. Reinhold 
dedica-se daqui em diante muito mais à dedução e ao sistema, 
e muito menos às dificuldades das questões particulares . A força 
de Kant tinha consistido na atitude contrária. C�ntudo , a solu­
ção da teoria elementar da filosofia crítica conserva a sua 
significação como uma tentativa de vincular estreitamente entre 
si a razão teórica e a- prática, ao mesmo tempo que com isso 
percorre pela primeira vez um caminho que leva· na sua sequência 
às maiores revoluções intelectuais
. 
Os contemporâneos viram a filosofia de Kant à luz da de 
Reinhold ; assim, no primeiro momento, parecia que havia desa­
parecido a diferença entre ambas as doutrinas . ,Se isso foi com 
o andar dos tempos um impedimento para a compreensão de
Kant , foi também uma razão para o desconhecimento de 
23 
Reinhold. Todavia, quanto mais estreitamente este se ateve às 
intenções da filosofia de Kant, tanto mais permanecé -histàri­
camente verdadeiro que uma série de traços peculiares da 
«filosofia elementar» continuou da maneira mais frutuosa a 
fazer sentir os seus efeitos . Estes traços característicos são : 
l .º Levar a cabo a teoria da forma e da matéria; 
2.º A tese da necessidade e incognoscibilidade da coisa-em-si ; 
3.º A unidade de princípio básico como ponto de partida
do sistema; 
4 .º O método da dedução como apresentação contínua de 
condições ; 
5 .º O condicionamento da capacidade teórica pela capacidade 
da prática . 
Destes motivos da teoria elementar, os dois primeiros são 
o objecto predominante das controvérsias posteriores . Princi­
palmente as formulações de Reinhold a respeito da coisa-em-si 
evidenciam-se, sob este aspecto, como sendo inesgotáveis . Com 
os três restantes princípios, opera ele de modo puramente 
positivo . Os espíritos mais esclarecidos da época aproveitam-se 
deles e por esse modo se tornam seus discípulos. Sem dúvida, 
que bem depressa o superam, sendo Fichte o primeiro que 
percorre o caminho por ele traçado . 
2.0 Schulze 
A aspiração da Filosofia Elementar era uniformizar a teoria 
kantiana dotando-a da forma rigorosa dum sistema. Com a 
unificação resulta ao mesmo tempo uma simplificação arriscada. 
A filosofia crítica ficou mais clara na sua disposição e mais 
compreensível, mas não se tornou indubitàvelmente mais crítica, 
e a profundidade do problema (esclarecer o que constituía para 
Kant a preocupação mais ardente) foi sacrificada pelo sistema 
à especulação superficial. A falta de reflexão com que Reinhold 
mede pela mesma medida tudo , a saber, o dualismo da forma 
e da matéria, e , principalmente, a certeza surpreendente com' 
que ele considera a coisa-em-si corno o afectante - em flagrante 
..:ontraste com a circunspecção crítica com que Kant o deixa 
24 
pairar em toda a sua ambiguidade -, não podia deixar de pro­
duzir o desacordo daqueles que encaravam a sério os problemas 
da Crítica. 
O contra-ataque é desferido de início pelo lado céptico por 
intermédio de G. E. Schulze, que considera a teoria de Kant 
à luz da de Reinhold, de maneira que esta já não aparece como 
Crítica, mas sim, apenas, como nova forma do dogmatismo 
filosófico . A perspicácia deste adversário que enfrenta a Crítica 
com as armas do velho e novo cepticismo (Enesidemo-Hume) 
tem o grande mérito de ter preservado os pensamentos críticos 
de obstruções posteriores, a despeito da sua tendência puramente 
negativa e estéril em si . 
Gottlob Ernst Schulze nasceu em 1761, em Heldrungen, na 
Turíngia, estudou em Wittenberg e doutorou-se pouco depois 
por essa Universidade . Em 1 788 , foi nomeado professor em 
Helmstadt . Publicou aqui o livro que _o tornou conhecido com 
o título iinesidenws, oder über die Fundamente der _ von dem 
Herrn Professor Reinhold in lena gelieferten Elementarphilo­
sophie, nebst e iner Verteidigung des Skeptizismus gegen die 
Anma�ungen der Vernunftkritik [ « Enesidemo, ou os Fuqdamen­
tos da Filosofia Elementar apresentados pelo senhor Profes­
sor Reinhold em lena, acompanhados duma defesa do cepti�jsmo 
contra as pretensões da Crítica da Razão » ] . O livrb apareceu 
anónimo e sem a indicação do lugar de impressão; na contro­
vérsia que provocou, também o título do livro « Enesidemo» , em 
conformidade com o programa traçado, _não contém o nome do 
al,ltor . Uma segunda obra de maiores dimensões , concebiçla com 
o mesmo espírito, que Schulze publicoq em 1801, já não despertou 
qualquer atenção; o desenvolvimento dos grandes filosofemas 
tinha há muito tempo passado por ciÍna do seu cepticismo. 
O novo « Enesidemo » procura mostrar que o cepticismo de 
Hume não foi refutado no mais pequeno pormenor pela filosofia 
crític�. Esta raciocina da maneira seguinte : o conhecimento 
universal e necessário só é _possível como j uízo sintético a priori, 
portanto tem que haver j uízos sintéticos a priori. Por. seu turno, 
os últimos só são concebíveis por meio de uma faculdade pura, 
por conseguinte, esta faculdade deve « existir» também. Reinhold 
generalizou esta maneira de raciocinar, conduin.do, a partir do 
facto da representação , pela existência daquelas condições sem 
as quais a representação não pode ser pensada. E tal conclusão 
conduz-nos sempre a uma faculdade que constitui então a última 
ratio da fundamentação . 
Antes de tudo, está aqui inserido um erro ontológico . Porque 
qualquer coisa deva ser « pensada de certa forma», não é mister 
25 
que também « seja dessa forma» . O que está precisamente em 
questão é saber se o pensamento é competente para revelar o 
ser. Demonstrar a validade objectiva do juízo é precisamente 
a tarefa da Crítica. Ela não pode, portanto, ser já pressuposta 
por esta mesma demonstração, porque nesse caso a demonstração 
move-se num círculo vicioso . A necessidade do pensamento é 
subjectiva e por si mesmo não implica necessidade ontológica. 
f. Kant justamente quem refuta da maneira mais clara o pre­
conceito ontológico que induz aqui a erro, e com isso fez saltar 
dos gonzos as velhas provas de Deus e toda a metafísica dogmá­
tica. Ele deve, portanto, apoiar-se nisso o menos possível . 
Ao primeiro erro sobrevém um segundo . Partindo da hipótese 
de que fora exacto concluir por uma faculdade, pode esta 
explicar ou fundamentar · qualquer coisa? Que se obtém qualquer 
coisa quando a hipótese da matéria do conhecimento reconduz 
a uma faculdade receptiva da matéria, a síntese espontânea a 
uma faculdade sintética espontânea? Reinhold trabalha cons­
tantemente com tais reconduções à « faculdade» ; nada se modifica 
nela, tão-pouco, se em vez da faculdade aparece uma « força» 
ou, por exemplo, uma dignidade do «espírito » . Todos estes con­
ceitos indicam qualquer coisa que, em si mesma, não é cognos­
cível a que só pode chegar-se por inferência. E nesta inferência 
é mister explicar-se o conhecido pelo desconhecido . Na realidade, 
nada se explica e fica-se perante um vazio idem per idem. 
Mas o principal argumento céptico enuncia-se, todavia, de 
um modo mais radical . Supondo que fosse ontolàgicamente certo 
o raciocínio que leva do pensar ao ser, e que o espírito e a
faculdade não fossem tautologias vazias, insere-se aqui no pro­
cesso crítico um pressuposto ainda mais desastroso. O raciocínio 
que infere as condições é, em geral , um raciocínio causal e supõe 
já a categoria da causalidade . Se concebe as condições do conhe­
cimento como causas reais do conhecimento, concebe-as como 
causas « que são-em-si» . Isto é de especial importância para a 
receptividade reinholdiana que, além das suas causas interiores 
formais, supõe, todavia, a causa externa, isto é, o afectante . 
Como a Filosofia Elementar provou, uma coisa-em-si só pode 
existir na matéria empírico-objectiva. Aqui, portanto, a categoria 
da causalidade é aplicada inadvertidamente à coisa-em-si, quando 
a dedução dos conceitos da razão pura ensina expressamente 
que as categorias só são aplicáveis aos obj ectos de experiência 
possível , isto é , aos fenómenos . Aqui é fácil ao céptico opor 
Kant a Kant . A tese de Reinhold de que as coisas-em-si não são 
cognoscíveis , mas são concebíveis , é falsa; pois esta possibilidade 
de pensá-las implica na verdade a hipótese da coisa-em-si como 
26 
causa do conhecimento, e deste modo se supõe como conhecido 
um aspecto essencial da coisa-em-si. Ora bem: ou a coisa-em-si 
não é a causa
da afocção ou ela não é incognoscível . Estas teses 
não podem coexistir. A contradição nelas é evidente : a mesma 
teoria que impede que o conhecimento infira a coisa-em-si 
constrói-se precisamente sobre esta inferência. Se as coisas-em-si 
são incognoscíveis , nem se pode saber se elas são ou não causas 
do conhecimento . Mas se são cognoscíveis , desmorona-se no 
nada o resultado da Crítica e estão abertos de novo os portões 
da velha metafísica. 
Mas o mesmo argumento paradoxalmente dirige-se também 
contra o elemento formal do conhecimenfo . Este elemento deve 
ter a sua causa na constituição da faculdade do conhecimento, 
na razão pura, no « espírito» . Mas , que sabemos nós acerca do 
«espírito» ? Nada mais do que nos revela o raciocínio causal 
que parte do facto do conhecimento. Portanto, também aqui 
achamos um raciocínio que encontra uma « causa» existente 
em si. O espírito , a razão , o suj eito transcendental significam, 
no fundo, uma coisa-em-si tão desconhecida como o afectante 
dos sentidos . O que não é fenómeno, é coisa-em-si , ou, de outro 
modo, é nada. Mas o sujeito transcendental não é fenómeno. 
Portanto, apresenta-se aqui o mesmo deslocamento de limites 
no emprego da categoria da causalidade que se encontra quando 
se inferiu a existência da coisa-erri-si exterior. Todo o edifício 
da Crítica assenta sobre este modo de inferir as condições 
internas do conhecimento . Portanto, a Crítica assenta sobre uma 
série de conclusões que ela mesmo tem por impossíveis . Se as 
coisas-em-si são incognoscíveis , não se pode representar o espírito 
como fundamento real do conhecimento. Portanto, as formas 
do conhecimento não podem nascer no espírito, portanto também 
não podem ser de origem subjectiva. 
Se este argumento subsiste de maneira justa, a Crítzca da 
Razão Pura é estruturada sobre uma impossibilidade. O seu 
princípio CQIIltradiz o seu resulta:do . E visto que a exigência da 
Crítica é a j ustificação da experiência científica, esta ter-se-ia 
verificado agora como absurda, e Hume teria razão com a sua 
tese de que nós temos na verdade experiência, mas que não 
temos de modo algum um princípio seguro da ciência empírica. 
Que resta da Crítica da Razão Pura se se retira dela a coisa-em-si 
externa e se se lhe deixa , na sua base, a interna, isto é, a própria 
razão pura? Justamente o que Berkeley já tinha ensinado : o 
idealismo empírico - isto é, justamente aquele que Kant recusa 
mais decididamente . Berkeley também era da opinião que os 
27 
obj ectos são apenas representações . Kant só podia justificar que 
eles eram mais do que representações, isto é, que eram fenó­
menos objectivamente válidos , referindo-os ao Sujeito transcen­
dental . Mas se este tiver de ser abandonado, cai-se novamente 
nas simples representações stibjectivas . E é esta j ustamente a 
tese céptica de Schulze, que afirma não conhecer a consciência 
mais do que as· suas representações e não poder, de nenhum 
modo, obter a certeza de que as mesmas são, em. algum sentido, 
mais do que simples representações . 
Ao crítico da actualidade dificilmente pode escapar que este 
cepticismo não acerta no verdadeiro sentido da crítica kantiana; 
pois nem as « condições da possibilidade» do conhecimento de 
Kant deviam ser entendidas como « causas » do conhecimento, 
nem a coisa�em-s·i e o « sujeito em geral » como fundamentos 
reais da experiência. É indubitável que este ataque céptico abre 
caminho à interpretação reinholdiana da crítica kantiana e em 
especial à sua con<;epção da coisa-em-si . Apanhou aqui a Filosofia 
Elementar no seu ponto mais fraco e fê-la saltar dos gonzos 
à primeira arrancada. 
Reside na descoberta do erro de Reinhold a importância 
de Schulze para a elaboração e desenvolvimento posteriores do 
idealismo kantiano . Não se podia de modo algum ficar parado 
na Filosofia Elementar. O próprio Reinhold abandonou-a sem 
hesitação ao primeiro lampej o dum novo pensamento positivo . 
Tinha de ir-se para diante ou para trás. E , na realidade, o 
avanço positerior da especulação idealís1tica não se faz esperar. 
Este avanço j á começara com Maimon antes do aparecimento 
do « Novo Enesidemo » , mas com Fichte aplicou-se justamente 
e de modo característico à crítica deste livro. 
Todavia, não se pode deixar de reconhecer que o significado 
do « Novo Enesidemo » não foi esgotado de modo algum. Só nos 
seus últimos escritos e, sem dúvida, sob um aspecto totalmente 
diferente, Fichte consegue a superação do suj eito-em-si . Herbart 
foi o primeiro a aproveitar-se da análise destrutiva do conceito 
de faculdade, por detrás do qual se podiam ocultar tantos erros 
sistemáticos . A decomposição da coisa-em-si agiu dum modo 
tão directo e decisivo que os esforços especulativos de amigos 
e inimigos tiveram por algum tempo o cunho de « conflito em 
torno da coisa-em-si » . Mas não se encontrou nenhum que tivesse 
ampliado o cepticismo puramente como tal e tivesse seguido 
seriamente o apelo do « regresso a Hume » . Todos procuram 
realmente uma saída positiva. E encontram-na em direcções tão 
diferentes que a unidade do ponto de partida de Kant empalidece 
nelas cada vez mais . 
28 
3 .0 Ma i mon
A biografia de Salomon Maimon, escrita por ele próprio 
(editada por Moritz em 1792) , é um testemunho cultural de 
espécie única, com interesse independentemente da importância 
filosófica do autor. Mostra a luta dum espírito dotado do mais 
alto talento que, vivendo nas condições mais penosas , a despeito 
de todos os obs_táculos , abre caminho à ciência. Nasceu em 1754,
em Sukowiborg, Lituânia, cresceu na mais extrema miséria e 
desamparo, recebeu a educação talmúdica dos rabinos e casou-se 
aos 1 1 anos de idade. A sua sede de saber procura matéria de 
educação . Na solidão do seu mundo, cai-lhe pela primeira vez 
nas mãos um livro cabalístico e depois alguns l ivros científicos 
alemães. Finalmente, o desej o ardente de saber impele-o a 
emigrar para a Alemanha. Aqui começa uma vida errante que 
o torna por algum tempo um pedinte na verdadeira acepção
da palavra. Encontra um lugar de preceptor por alguns anos , 
em Posen. Em Berlim, Moses Mendelssohn interessa-se por ele, 
mas não o pode ajudar por muito tempo . Vai a pé para Ham­
burgo e para a Holanda e depois outra vez para Breslau. Em parte 
alguma se sente em casa. Morreu em 1 800 numa propriedade 
do Con�e Kalkreuth, onde ünha obtido guarida. 
Os seus estudos filosóficos começam com Wolf, Locke e 
Spinoza. Era dotado de virtuosidade de compreensão ; no caso 
dele, a escola talmúdica comprova a sua utilidade : não pode 
ler qualquer obra sem ao mesmo tempo a comentar . Ê o que 
acontece também com a Crítica da Razão Pura. Durante a · leitura, 
surge-lhe uma série de anotações com as quais com·põe depois 
a sua Versuch über die Tranzenden.talphilosophie [ « Ensaio sobre 
a filosofia transcendental » ] (publicado em 1790) . Maimon nunca 
conseguiu apresentar uma exposição rigorosamente sistemática 
dos seus pensamentos; qualquer coisa sem plâno, em forma de 
comentário, aderindo também aos escritos mais amadurecidos 
qualquer coisa de dissonante, com tom qe polémica. Destes 
escritos , os mais importantes são : Vber die Progressen. der 
Philosophie [ « Sobre os Progressos da Filosofia» ] ( 1793) , Die 
Kategorien der Aristoteles, mit Anmerkungen erliiutert und als 
Propiideutik zu einer neuen Theorie des Denkens d(lrgestellt 
[ « AS categorias de Aristóteles, apresentadf).S com anotações 
explicativas e como propedêutica duma nova teoria do pensa­
mento» ] ( 1 794) , Streifereien auf dem Gebiet der Philosophie 
[ « Incursões no domínio da Filosofia» ] ( 1793) , Kritische Unter­
suchungen über den menschlichen Geis t oder das hohere Er­
kenntnis- und Willensvermogen [ « Investigações críticas sobre o 
29 
espírito humano ou a faculdade superior do Conhecimento
e 
da Verdade »] (1797) e Versuch einer neuen Logik oder Theorie 
des Denkens, nebst angefügten Brief en des Philaletes an Anesi­
dem.us [ « Ensaio duma nova Lógica ou Teoria do pensamento 
com cartas anexas de Filaletes a Enesidemo » ] ( 1798) . As duas 
úl timas obras contêm a melhor exposição do seu pensamento, 
duma maneira mais compendiosa. O deslindar do cepticismo 
de Schulze é particularmente lúcido . O ensaio sqbre a Filosofia 
Transcendental contém já todos os essenciais quanto à questão. 
Por isso, esta primeira obra é a mais importante quanto à sua 
influência histórica . 
Para Maimon a coisa-em-si é também e antes de mais o 
principal ponto de controvérsia; também ele pensa na dissolução 
deste conceito. Mas não o procura de antemão à maneira céptica, 
em oposição à Crí tica , mas antes criticamente, isto é , trata de 
obtê-la justamente a partir das formulações da própria Crítica, 
as quais toma menos à letra do que os seus antecessores, mas 
de cujo verdadeiro sentido se aproxima mais por esse meio . 
É o primeiro que se ocupa seriamente com o ponto de vista 
idealista. Uma coisa real em si é , no sentido de Reinhold, não 
só incognoscível mas também inconcebível . Qualquer sinal carac­
terístico que lhe atribuamos - ainda que fora da causa da 
afecção - é colocado na consciência, portanto não corresponde 
à coisa, mas sim a um produto da consciência . A coisa-em-si , 
que em rigor fica fora da consciência, seria um objecto sem 
sinal característico, portanto, também não seria objecto do 
pensamento , porque todo o pensamento se move no âmbito da 
definição através de sinais característicos ; seria, portanto, um 
« absurdo » . Maimon compara a coisa-em-si à grandeza imaginária 
da Matemática. Criticamente entendida, deve ela comparar-se à 
grandeza irracional , que é tão real como a racional , formando 
o valor limite duma série infinita de valores aproximativos . 
Este conceito limite do cognoscível está para o não-conceito 
do incognoscível como a ..;2 está para a 7-a. Os limirtes irra­
cionais do conhecimento racional comportam também um sig­
nificado incontestável no idealismo em sentido restrito . 
Mas, então , a coisa-em-si não pode ser convertida na coisa 
dada da matéria do conhecimento. Esta deve, por mais impossível 
que possa parecer, ser explicada imediatamente como forma da 
própria consciência. Ora bem, há a ilusão de que a matéria é 
dada, ilusão que é inerente a toda a consciência dos objectos 
reais . Convém por isso explicar esta ilusão. 
De modo algum é possível produzir conscientemente o que 
se torna consciente como dado . Pois nesse caso a consciência 
30 
não o poderia conservar como um dado . O dado não pode resol­
ver-se nos elementos que estão sob a luz da consciência. Não 
se podem procurar as condições do dado nos elementos cons­
cientes do conhecimento, ainda que estas condições residam no 
sujeito. Só podem, portanto, encontrar-se numa « consciência 
imperfeita» . O dado é então aquilo cuj o modo de originar-se 
no sujeito nos fica desconhecido . Se se desce desta imperfeição, 
o grau de consciência pode diminuir até ao desaparecimento
completo, até ao nada. O dado absoluto não é nada mais do 
que o conceito limite desta série. A matéria, portanto , pertence 
ao sujeito precisamente tanto quanto pertence à forma; s im­
plesmente, a sua génese no sujeito não deve ser colocada no 
campo da consciência. Ora, toda a experiência contém um factor 
do dado . Por consequência, toda a experiência permanece sendo 
um conhecimento imperfeito. A conhecida tese de que a expe­
riência não conduz a nenhuma generalidade nem necessidade, 
aparece a partir deste ponto de vista como evidente em si mesma; 
é uma proposição tautológica, enuncia apenas que o conheci­
mento imperfeito não alcança a perfeição . Por conseguinte, a 
própria experiência tem o carácter da série infinita; o seu 
conceito limite seria o conhecimento perfeito ou racional. 
Esta concepção do dado da coisa e da experiência não é 
uma simples imitação exterior da teoria do conhecimento de 
Leibniz, segundo a qual a consciência nada recebe do exterior, 
produzindo-se, pelo contrário, todo e qualquer conteúdo na 
gradação infinita da própria representação . Maimon segue cons­
cientemente as marcas de Leibniz : o conceito da petite perception 
tem para ele o significado da dissolução idealista do dado, o 
qual, n.a sua multiplicidade empírica, constitui o « diferencial 
da consciência» . O obj ecto da intuição empírica é, no fundo, 
produto do pensamento ; a receptividade apoia-se sempre na 
espontaneidade. O obj ecto nasce na consciência unicamente 
segundo as regras da mesma, mas estas regras não precisam, 
pela sua parte, de ser conscientes. A intL.tição, não menos do 
que o pensamento, está de acordo com as regras, mas não é 
conhecedora delas . Só o pensamento o está, e . uma consciência 
perfeita seria a visão perfeita das próprias regras . 
A particularidade individual dum obj ecto reside na regra 
especial da sua origem. Esta constitui o «modo do seu diferen­
cial » . A intuição apreende como um produto acabado o objecto 
surgido, mas a consciência pensante resolve-o pelo modo como 
se gerou. A intuição duma linha é a linha traçada, mas o seu 
conceito é o próprio traçar, quer dizer, o movimento do ponto . 
A intuição é sempre secundária: perante o conceito ; mas se o 
3 1 
consciente apreende o conceito primano que está por detrás 
dela, é outra questão . A teoria kantiana do espaço e do tempo 
é verdadeira, mas é somente a metade da verdade . Ambos · são 
de facto formas da intuição e, eles mesmos, intuições . Mas a 
sua essência não se esgota com isto. No sentido de pensamento 
perfeito ciue intui as suas próprias leis de formação, ambos são, 
antes, conceitos. São aquelas formas de diversidade e multipli­
cidade que estão na base do « pensamento real» , o qual supõe 
já a multiplicidade . O pensamento real não é o observável , o 
consciente, mas sim o que se estende para além de toda a 
imperfeição e deficiência da consciência. É sempre conectivo, 
é sempre síntese dum múltiplo , determinação dum determinável . 
Nisto consiste o « princípio da determinabilidade » que domina 
o sujeito cognoscitivo em todas as suas actividades . O espaço
e o tempo j amais se tornam conscientes como determinações 
dum determinável, mas sempre como determináveis , isto é , como 
substratos de outras determinações . Por isso, a nossa consciência 
não pode decompô-los mais e, por isso também, lhes é aderente 
aquele carácter peculiar de serem dados que os distingue de 
outras formas da consciência . Ou seja, o carácter do conceptual 
que Kant desconhece neles e o faz renunciar a uma dedução 
propriamente transcendental da sua validade objectiva. Pois é . 
impossível intuir o modo como se originam no sujeito . Desta 
maneira, Maimon elimina sistemàticamente o dualismo do pen­
samento e intuição que Kant tinha oposto à teoria de Leibniz 
da actividade absoluta das mónadas . 
Mas esta eliminação também só é compreensível no campo 
do fundamental : ela só é dotada de valor no que respeita ao 
pensamento fundamellltal , ou « reaJ » ·e não para o conhecimento 
empírico da consciência imperfeita. Esta última admite os dados 
como não resolvidos ; para as suas operações subsiste a ilusão 
do dado e com ela o dualismo kantiano. No mesmo sentido 
subsiste a distinção do conhecimento a priori e do conhecimento 
a posteriori. Uma multiplicidade que é dada sem a consciência 
da síntese em que se origina, apresenta o carácter do dado 
a posteriori. Por isso só há juízos sintéticos a priori na ·Mate­
mática, que não contém nenhum dado empírico . Só a Matemática 
é conhecimento perfeito ; mas toda a experiência fica imperfeita. 
O ceptidsmo de Schulze no tocante à causa extraconsciente 
é assim refutado, pois, pelo contrário , o consciente
traz em si 
mesmo esta causa . Mas aquele cepticismo dirige-se também 
contra os fundamentos internos do conhecimento, uma vez que 
os admite como forças ou faculdades da consciência. E neste 
sentido interessa também à filosofia transcendental de Maiillon. 
32 
Por isso, nas suas «Cartas a Enesidemo » dedicou uma análise 
especial às objecções deste líltimo, na qual defende o ponto de 
vista da Crít ica kantiana contra a interpretação de Reinhold e 
contra os ataques de Schulze. 
Hume tem toda a razão em opor-se ao s ilogismo causal que 
conclui na coisa-em-si mas no processo da Crí t ica da •Razão, a 
qual , partindo do facto do conhecimento, reflecte sobre as con­
dições do mesmo, não existe semelhante silogismo. Declarar as 
forças ou faculdades como fundamentos reais do conhecimento 
é , sem dúvida, um ponto de partida que nada explic.a. Mas este 
não é o ponto de partida da Crítica . Tão-pouco se torna esta 
culpada da inferência ontológica que vai do pensamento ao ser. 
Ela não fala de modo algum do fundamento real do conheci­
mento e das causas que de facto diferem dele, mas simplesmente 
dos modos do conhecimento realmente ' diferentes . . . A Crítica 
define tão pouco o espírito como a causa dós j uízos sintéticos 
necessários, como Newton define é!- força da atracção como 
algo exterio·r aos corpos que se atraem entr� · si , e causa dessa 
atracção; mas sim, que para ele a força da atracção é simples­
mente o modo de actividade universal da atracção determinado 
por leis . Da mesma forma Kant compreende por formas do 
conhecimento baseadas no espírito simplesmente os modos de 
actividade universais ou leis do conhecimento e não se importa 
de modo algum com as causas das mesmas . . . «A Crítica da 
Razão Pura não define nenhum ser como sujeito e causa do 
conhecimento, mas investiga simplesmente o que está contido 
no próprio conhecimento . » Não define o espírito nem como 
coisa-em-si ou r.túmero, nem como ideia. Nela, o espírito não 
é mais do que o sujeito totalmente indeterminado das represen­
tações ao qual elas se referem . . : O espírito é simplesmente pen­
sado como sujeito lógico, mas Iião sob a categoria que lhe 
corresponde, isto é, nem uma só vez como número (3 .ª carta) . 
P0rtanto, não se fala aqui duma hipóstase do sujeito , geral­
mente convertido em sujeito-em-si . Tão-pouco se fala daquele 
uso transcendental da categoria da causalidade que interdita a 
dedução dos conceitos puros do entendimento .. Maimon é o 
primeiro a perscrutar estes factos e a pôr em relevo por esta 
via o carácter « transcendental » do idealismo kantiano. Mas é 
significativo que justamente este motivo, talvez o mais impor­
tante da sua rica. ideologia, tenha ficado por mais tempo des­
percebido. Nem Fichte, nem Schelling, souberam fazer-lhe justiça; 
a hipóstase do sujeito continua a operar neles serenamente. 
Neste ponto Maimon excede os contemporâneos em larga escala 
33 
e está muito mais prox1mo do que eles do autêntico espírito 
da Crít ica. Mas só pouco a pouco se eleva a este . acume da 
sua visão . Ainda na Ve rsuch über die Tranzendentalphilosophie 
[ « Ensaios sobre a Filosofia Transcendental » ] e nas Kategorien 
eles Aristo teles [ « Categorias de Aristóteles » ] tem uma opinião 
completamente diferente do problema. Nessas obras classifica 
de círculo vicioso o processo da Crít ica : ela começa por demons­
trar, partindo da possibil idade da experiência, as condições da 
mesma , ' para , por ·sua vez, partindo desta tendência, demons­
trar a possibi l idade da experiência. Só no V ersuch einer neuen 
Logik [ « Ensaios sobre uma nova Lógica» ] viu bem o grosseiro 
mal-entendido. Os exageros do cepticismo de Schulze haviam-lhe 
aberto os olhos e na polémica contra ele concebe a ideia da 
« Filosofia Transcendental » que o eleva a um idealismo rigoroso, 
de orientação lógica . No apogeu do seu desenvolvimento , Maimon 
figura como o precursor mais importante do idealismo lógico, 
que histàricamente aparece, primeiro, no neokantismo de quase 
um século mais tarde , porque também Hegel segue um caminho 
diferente. 
Todavia, Maimon sabe distinguir o seu próprio ponto de 
vista da maneira mais exacta da Crítica da Razão Pura. A dife­
rença reside no ponto de partida, na quaestio facti . Como Kant, 
reconhece o facto da experiência, mas refuta a universalidade 
e a necessidade dos seus j uízos científicos . Nisto coincide com 
Rume. Só a Matemática tem juízos sintéticos a priori. Por isso 
chama ao seu ponto de vista « Cepticismo empírico » . Este não 
é anticrítico como o cepticismo de Schulze ; supõe, pelo contrá­
rio, a Crít ica e apoia-se nela. Pois só o método da crítica pode 
ensinar que _toda a experiência é conhecimento imperfeito . 
O « Cepticismo empírico » de Maimon não é, por isso, de modo 
algum empirístico, e distingue-se nisso do cepticismo de Rume 
e do «Novo Enesidemo » . Este baseia-se num empirismo dogmá­
tico ; o dado sensorial dos "factos particulares tem para ele a 
validade da realidade obj ectiva e a sua dúvida dirige-se simples­
mente contra o a priori do conhecimento� A dúvida de Maimon, 
pelo contrário, dirige-se justamente contra a realidade objectiva 
do conhecimento empírico dos factos . Este conhecimento não 
é « Consciência perfeita » ; a tal consciência pertenceria o conhe­
cimento perfeito das formas a priori que produziram os factos . 
Um apriorismo puro das formas , tal como teria de nele se revelar, 
realiza-se no «pensamento real» que está na base de toda a 
experiência; mas, justamente, dentre;> do campo da experiência 
falta ao pensamento real a « Consciência perfeita » . 
34 
O cepticismo empírico de Maimon é, portanto, no fundo, 
puro apriorismo . Constitui o contraste histórico mp.is extremo 
com o cepticismo empírico de Hume e poderia ser designado, 
com justa razão, de cepticismo racional, a priori, ou transcen­
dental , no que respeita aos seus fundamentos leibnizio-kantianos . 
4 .º J . S. Bec k
A Filosofia Elementar de Reinhold foi analisada à maneira 
céptica por Schulze e Maimon. Maimon reconstituiu ao mesmo 
tempo o sentido original do pensamento crítico-transcendental 
de Kant nos seus pontos centrais ; contudo, não acompanha 
completamente o ponto de vista deste : a sua filosofia transcen­
dental permanece céptica. Falta, todavia, uma explicação de 
conjunto do sistema kantiano que parta dum ponto de vista 
unitário, como Reinhold havia aspirado, se bem que não o tenha 
realizado efectivamente. Ora, quando já tinham começado as 
grandes e novas criações sistemáticas de Fichte e Schelling e se 
havia desviado de Kant o interesse filosófico central, Jakob 
Sigismund Beck ( 176 1 - 1 840) , discípulo pessoal de Kant, entrega-se 
a essa espinhosa tarefa. Na qualidade · de assistente livre em. 
Halle, escreve, durante os anos 1793-1796 , a sua principal · obra 
de comentários Erlii.uternder Auszug aus dem kritischen Schriften 
des Herrn Professor Kant, auf Anraten desselben [ « Extracto 
explicativo dos escritos críticos do senhor Professor Kant, a 
conselho do mesmo » ] . Dos três volumes desta obra, o último, 
com o título particular de Einzig moglicher Standpunkt, aus 
welchem die kritische Philosophie beurteilt werden mu� [ « Ü único 
ponto de vista possível pelo qual a Filosofia crítica pode ser 
apreciada» ] , adquiriu a maior importância. No mesmo ano, 
apareceu também o seu Grundri� der kritischen Philosophie 
[ « Compêndio da Filosofia Crítica» ] e , dois anos mais tarde, o 
Kommentar über Kants Metaphysik der Sitten [ « Comentário 
sobre a Metafísica dos Costumes de Kant» ] . 
A «Teoria do Ponto d e Vista» de Beck, éomo é designada 
em abreviatura, não se limita de modo algum a uma reprodução 
fácil das críticas kantianas , se bem que estej a muito mais pró­
xima da concatenação das ideias dela do que a própria Filosofia 
Elementar. A
sua ideia basilar é a de que a condição decisiva 
do entendimento não é a apreensão dos problemas particulares , 
mas sim, unicamente, a perspectiva central a partir da qual 
estes devem ser tratados . E neste sentido procura substituir a 
35 
generosa multiplicidade de significações das formulações de 
Kant por um esquema uniforme de orientação basilar. 
É uma concessão à maneira ingénua de pensar o facto de 
'a Cdtica da Razão Pura falar de coisas-em-si . Tem significação 
puramente didáctica, e · não sistemática. E é neste sentido que 
se deve entender «afectar» em Kant . A ilusão da afecção .externa 
existe e não se pode demonstrar o contrári� . Mas fazer desta 
ilusão uma teoria, como Reinhold fez, é renunciar a toda a 
explicação . Pelo contrário, só aqui começa a tarefa própria da 
filosofia teórica. A tese da consciência· de Reinhold afirma a 
diferença entre o representado e . a representação e, não obstante, 
a relação recíproca entre arrnbos . Mas é possível a relação se o 
apresentado existe em s� fora dª consciência e a representação 
na consciência ? O que é que os vincula entre s'i ? O realismo
dogmático aventurou-se a forIIJ.ular estas perguntas sem ser 
capaz de as -solucionar. Ora se · a Crít ica se apoia neste mesmo 
problema insolúvel, desaparece dela toda a diferença caracte­
rística com respeito à metafísica dogmática, e os cépticos têm 
razão em atacá-la . Por es.te motivo, o ponto de vista de Reinho1d 
é, de antemão, um ponto de vista « impossfvel » . No seu princípio 
supremo, na distinção entre a representaç�o e o objecto, deixou 
escapar precisamente o «único ponto de . vista possível» para 
compreender a Crítica. Todos os despropósitos restantes são 
consequências necessárias deste erro primo. 
Na verdade, como · se relacionam representação e objecto ? 
Só há um caminho para a explicação : a eliminação da coisa-em-si 
e a to.tal incorporação do objecto na representação . · É e�te o
sentido da equiparação kantiana do objecto e fenóIIJ.eno. A repre­
sentação tem que ser o original � o objecto, o produzido . 
O conceito de produzir, entendido como um acto- espontâneo, 
é trazido por Beck para o ponto focal, E aqui acolhe um motivo 
fundamental da Teoria da Ciência de Fichte entrementes vinda 
a lume (1794) . A consciência não começa com um facto acabado, 
mas sim com uma efectuação activa. Desta tem de tratar o 
princípio supremo da filçisofia. O único p<Jnto de vista possível , 
o transcendental , é o do « representar original »; no qual os
obj ectos surgem pela primeira vez na consciência. Kant, no 
decorrer da sua investigação , atinge de facto este .ponto central 
na « unidade sintética da apercepção ;> . Beck converte-o em ponto 
de partida, pois só daqui se pode compreender o carácter ori­
ginário do representar. Aqui se enraíza toda a « composição» 
original do múltiplo, gias também, e ao mesmo tempo, todo o 
reconhecimento por meio do cenceito desse múltiplo como 
36 
objecto . Portanto, a intuição e o pensamento têm aqui a sua 
origem comum. 
Em rigor, Beck não apresenta uma teoria que explique 
como os objectos nascem desta origem subj ectiva. Permanece 
no postulado puro da actividade produtora do suj eito . Tão-pouco 
se ocupa do problema da possibilidade de o sujeito produzir 
os seus objectos e de, no entanto, os considerar em seguida 
como dados . Neste ponto não atinge a altura especulativa das 
ideias de Mairnon, que sabe dar uma resposta satisfatória a 
este problema. Tão-pouco se eleva ao idealismo lógico daquele,. 
pois o seu conceito do transcendental permanece fundamentado 
subjectivamente . A importância de Beck atinge o máximo e 
esgota-se na clarificação do suj eito transcendental entendido 
como espontaneidade pura, suficiente para a matéria pura e 
forma. É totalmente alheio ao que fica para além disso. E nem 
sequer a sua adesão às formulações de Fichte referentes ao seu 
princípio supremo é essencial para a sua teoria. Importante 
para esta é, apenas , a defesa .rigorosamente idealista de toda 
a condicionabilidade «exterior» do obj ecto e a redução inteira 
de todo o conteúdo às funções produtivas do suj eito, cuj a exis­
tência a Crít ica da Razão Pura demonstrou. 
5 .º J a kobi
Se não se prestar atenção ao carácter estritamente « trans­
cendental » do idealismo kantiano, que é apenas o da « cons­
ciência em geral » , e de modo algum o do suj eito individual 
empírico; se se deixar passar despercebida a ênfase que Kant 
põe na defesa do « realismo empírico » , como ponto de vista 
natural e inevitável do sujeito individual; e se se não puder 
chegar até à compreensão da relação recíproca especial de rela­
tividade e de complementaridade a que prudentemente a Crítica
da Razão Pura conduz estes dois pontos . de vista - então deve 
parecer necessàriamente ambígua a atitude de Kant no tocante 
ao probl ema central do ponto de vista. Da falta de atenção a 
esta relação nasce na · fi losofia pós-kantiana imediata o conflito 
à volta da concepção do real ; conflito a que serviu de objecto 
a « coisa-em-si » - como conceito central daquela realidade - tra­
tada com tanta prudência por Kant. Reinhold falhou de maneira 
catastrófica no ponto em questão , e viu-se assim arrastado para 
o lado realista, sem a menor ideia do alcance da sua incongruên­
cia. Schulze vê-lhe o erro fatal à luz duma ampliação facciosa 
e t ira daí a sua conclusão céptica; Maimon e Beck regressam 
37 
com instinto certeiro à questão ebuliente do carácter transcen­
dental do idealismo, mas não encontram pràpriamente qualquer 
formulação positiva que assegure ao «conceito de fenómeno » 
de Kant o significado «emplricamentc realista» que assume para 
com a consciência individual e natural . Fica assim, também no 
caso deles , só. insatisfatàriamente resolvido o :rp.ais difícil de todos 
os problemas. Não é, portanto, de admirar que, apesar de todos 
os seus esforços e conclusões , em parte de alto valor, a reacção 
contra o realismo, que começa já a partir de 1787 com Jakobi, 
possa continuar a afirmar-se. É que se se não quiser abandonar 
inteiramente a justa pretensão da consciência natural de insistir 
na realidade das coisas e de não afastar da discussão por meio 
de qualquer subtileza, não se pode deixar de combater, até ao 
extremo limite, as tendências do idealismo contrário a essa 
pretensão e opor-lhes uma teoria que estej a assente de pés 
firmes sobre o fenómeno inegável da realidade dos objectos 
externos . O mérito de Jakobi é ter tirado esta consequência com 
intransigência parcial e tê-la convertido numa teoria anti-idea­
lística . Do ponto de vista histórico fica, por isso, sem rival entre 
os adversários de Kant, como o mais positivista e, no tocante 
à teoria, como o mais consequente. 
Friedrich Heinrich Jakobi nasceu em 1743 em Düsseldorf, 
recebeu . a maior parte da sua educação em Genebra, foi a prin­
cípio comerciante, depois funcionário, vivendo em seguida du­
rante anos no isolamento na qualidade de particular erudito 
em Pempelport, perto da sua cidade natal , donde se transferiu 
finalmente para Holstein. Em 1 804, obteve o cargo de presidente 
da Academia das Ciências de Munique, que desempenhou até 
à sua morte em 1 8 1 9 . Foi durante a sua vida retirada que pro­
duziu a maioria das suas obras . As mais importantes dentre 
essas obras são as seguintes : Vber die Lehre des Spinoza, in 
B riefen an Moses Mendelssohn [ « Sobre a Teoria de Spinoza, 
em cartas dirigidas a Moses Mendelssohn» ] ( 1 785) , David Hume 
über den Glauben, oder I dealismus und Realismus [ «David 
Rume sobre a Fé, ou Idealismo e Realismo »] ( 1787) , Sendschrei­
ben an Fichte [ «Missiva dirigida a Fichte >�] ( 1799 ) , Vber das 
Unternehmen des Kritizismus, die Vernunft zu Verstande zu 
bringen und der Philosophie überhaupt eine neue Absicht zu 
geben [ « Sobre o Empreendimento do Criticismo

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