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1 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO FACULDADE DE DIREITO Adrielly Ribeiro do Rego, David Bezerra e Paulo Roberto de Siqueira Junior BREVE ANÁLISE SOBRE O “CASO DOS EXPLORADORES DE CAVERNAS”: abordagens jurídicas, filosóficas e sociológicas desenvolvidas nos discursos presentes na Obra de Lon L. Fuller Rio de Janeiro 2014 2 BREVE ANÁLISE SOBRE O “CASO DOS EXPLORADORES DE CAVERNAS”: abordagens jurídicas, filosóficas e sociológicas desenvolvidas nos discursos presentes na Obra de Lon L. Fuller Trabalho apresentado como requisito parcial para aprovação na disciplina Introdução ao Estudo do Direito II, da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professor: José Ricardo Cunha Rio de Janeiro 2014 3 SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO............................................................................................................ 4 2. TEMAS PRESENTES NOS DISCURSOS................................................................ 7 2.1 O JUSNATURALISMO........................................................................................ 7 2.2 O JUSPOSITIVISMO........................................................................................... 8 2.3 COMMON LAW.................................................................................................... 10 2.4 SEPARAÇÃO DOS PODERES ......................................................................... 12 2.5 DOS CONTRATOS (SOCIAL, JURÍDICO E BIOJURÍDICO) .................... 15 2.6 DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE. ...................................................... 18 2.7 NOÇÃO DE JUSTIÇA ....................................................................................... 19 2.8 CONCEPÇÃO DE PENA .................................................................................. 20 2.9 OBJETIVOS DA NORMA PENAL .................................................................. 22 2.10 EXCLUDENTE DA LEGÍTIMA DEFESA E ESTADO DE NATUREZA ................................................................................................................................ 23 2.11 HERMENÊUTICA JURÍDICA ....................................................................25 2.12 MORAL EM SIGMUND FREUD ................................................................27 3. CONCLUSÃO ............................................................................................................28 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .....................................................................31 4 1 INTRODUÇÃO O presente trabalho tem como ponto de partida a análise da forma que os discursos se dão e a busca pela verdade através dos argumentos. O objetivo dessa introdução é entender as atividades discursivas existentes no processo de produção textual, em que se pode considerar como um mecanismo interacional entre sujeitos com objetivos pré-determinados – que, nesse caso, é o de julgar -, inseridos num contexto social. Os temas abordados durante a história de Lon L. Fuller1 servem de entendimento dos discursos praticados. Ou seja, o que convém analisar no Caso não é o objetivo-fim aparente no texto, mas sim as ferramentas, o caminho percorrido pela eficácia dos argumentos e seus pontos delimitantes. Vale ressaltar que não iremos fazer apenas uma análise discursiva, mas também explicaremos certos temas gerais que observamos no texto-base, relacionando-os ao estudo do direito. Para colocarmos em prática a análise discursiva do “O Caso dos Exploradores de Cavernas”2, primeiros nos atentamos em fazer um breve resumo sobre a história. Lon L. Fuller imaginou uma situação para explicar melhor a abordagem da argumentação jurídica num caso hipotético. Com esse objetivo aparente, ele escreveu “O Caso dos Exploradores de Cavernas”. A história é basicamente sobre um grupo de quatro acusados que faziam parte da “Sociedade Espeleológica” - que tinha como objetivo a exploração de cavernas. Num determinado dia, esses quatro acusados, com a companhia de Roger Whetmore, adentraram numa caverna, em que após a entrada houve um desmoronamento que bloqueou a única saída ali existente. Devido a demora para a volta às suas casas, seus familiares procuraram o secretário da Sociedade, e este entrou em contato com uma equipe de socorro. A tarefa de retirada do obstáculo se mostrou bastante complicada, e então se deu por necessário a ajuda de mais homens, máquinas e outros recursos. Mesmo com a grande repercussão e mobilização para o feito, isso só se deu por completo no trigésimo dia após a entrada dos homens na caverna. Os exploradores levaram consigo um rádio, em que puderam entrar em contato com o grupo de resgate e com os médicos. Os cinco homens perguntaram quando seriam retirados de 1 Professor de “Jurisprudence” da Harvard Law School, onde trabalhou até 1972. 2 Título original: The case of the speluncean explorers 5 lá e tiveram dez dias como resposta. Eles também perguntaram se poderiam sobreviver – sem suprimentos – durante esses dez dias, e tiveram uma resposta negativa. Houve um silêncio e tempos depois Roger Whetmore entrou em contato novamente, através do rádio, representando o grupo preso. Ele perguntou aos médicos que se os exploradores se alimentassem da carne de um deles, o resto do grupo poderia sobreviver. Mesmo por contragosto dos médicos, a resposta foi afirmativa. Logo após, Roger perguntou se seria aconselhável fazerem isso baseado na “sorte”, mas ninguém se atreve a responder essa pergunta. Houve então um rompimento da transmissão, e a equipe de resgate acreditou que isso se deu devido ao descarregamento das pilhas do rádio transmissor. Quando a equipe conseguiu tirar o obstáculo e libertar os exploradores, foi constatado que Roger Whetmore fora morto e servido de alimento para seus companheiros. Os sobreviventes então falaram que o próprio Roger fora o idealizador do ato, ou seja, ele propôs que algum deles se sacrificasse para servir de alimentos para os demais, se mostrando, então, o único procedimento que poderia manter a maioria vivo. A escolha se deu pela sorte através de um par de dados que o próprio idealizador trazia consigo. Apesar da ideia não ser bem aceita num primeiro momento, os exploradores acabaram concordando com o de cujus. Porém, antes do sorteio, Roger se mostrou arrependido e quis desistir da própria proposta. Obstante, devido a essa mudança do combinado, os demais exploradores o acusaram de violar o acordo firmado, e então iniciou-se o sorteio. Quando chegou a vez de Roger, ele se recusou a participar, e então um dos encavernados o fez em seu lugar, pedindo-lhe, entretanto, que fiscalizasse o ato e que protestasse se houvesse alguma incorreção durante sua realização. O sorteio ocorreu de fato, e por infortúnio do destino, Roger fora sacrificado. Logo após serem libertados, os sobreviventes foram denunciados pela prática de homicídio contra Roger Whetmore, sendo condenados à forca. Como única exceção existente, competia ao Chefe do Poder Executivo, instaurando-se no princípio da clemência, que consistia na comutação da pena, dissolvido o Tribunal do Júri, os seus integrantes peticionaram junto ao Chefe daquele poder, pedindo-lhe que a pena fosse comutada em prisão de seis meses. Durante o julgamentodo recurso de apelação, os integrantes do Tribunal de Segunda Instância se manifestaram, cada um com sua forma e ferramentas argumentativas. Em ordem, manifestou-se o Presidente Truepenny, J., Foster, J., Tatting, J., Keen, J. e Handy, J. A proposta essencial desse trabalho é de apresentar os temas que foram abordados 6 para o julgamento do Caso. Porém, vale ressaltar a importância da construção dos discursos – calcado em Michel Foucault. A análise do discurso é uma área da linguística e da comunicação especializado em decompor construções ideológicas apresentados num determinado texto. A análise é proposta pela filosofia materialista, que põe em jogo a prática das ciências humanas e a divisão do trabalho intelectual, de forma reflexiva. Segundo Silva (2005, p. 16): “A Análise do Discurso leva em conta o homem e a língua em suas concretudes, não enquanto sistemas abstratos. Ou seja, considera os processos e as condições por meio dos quais se produz a linguagem. Assim fazendo, insere o homem e a linguagem à sua exterioridade, à sua historicidade.” Para Foucault, devemos nos desraigar da ideia aparente de que temos sobre a finalidade de um discurso, as fáceis interpretações e a busca insistente de uma espécie de ultima ratio3 evidente das coisas. Ou seja: “Há um trabalho negativo a ser realizado: libertar- se de todo um jogo de noções que diversificam cada uma à sua maneira [...] é preciso desalojar essas formas e essas forças obscuras pelas quais se tem o hábito de interligar os discursos dos homens; é preciso expulsá-las da sombra de onde reinam”4 Logo, o primeiro movimento de análise discursiva que podemos fazer perante ao “Caso dos Exploradores de Cavernas”, é a de que os juízes – e também o autor Lon L. Fuller - não buscam apenas encontrar uma solução para o litígio. Eles expõem, de acordo com suas vivencias – podemos observar expressamente no discurso de Handy, J. sobre um caso antigo que o próprio julgou, por exemplo – seus votos, seus argumentos. De alguma forma, há uma disputa discursiva em jogo, pois ao passo em que a história vai se diluindo, cada julgador encontra um dilema, uma outra face interpretativa baseado nos argumentos de seus colegas de trabalho. Através desse “desprendimento” tendencioso, podemos então entender as influências filosóficas, sociológicas e na maior parte, jurídicas, encontradas nas entrelinhas argumentativas. Vale ressaltar que não há uma expressa relação de poder entre os discursos – todos tem o mesmo peso de voto – mostrando, então, que se trata de uma espécie de jogo, em que os jogadores estão numa situação de igualdade e que a disputa do melhor argumento não 3 Expressão que tem como origem o latim e pode ser entendida como último recurso. Muito utilizado no campo do Direito Penal. 4 FOUCAULT, 1987, p. 23 - 24. 7 significa a solução do Caso. Da mesma forma que os autores secundários dos discursos estão em par de igualdade, nós iremos analisar os temas que encontramos de forma homogênea. A partir dessa breve introdução, prosseguiremos para as incidências temáticas – grande parte, jurídica – observadas no julgamento. O desenvolvimento deste trabalho irá tratar inteiramente sobre o conteúdo argumentativo que encontramos. Concluiremos o trabalho expondo nossa opinião, pois a história institivamente nos convida para essa reflexão e achamos importante “entrarmos nesse jogo”. Por fim, acreditamos que este trabalho vale por toda sua produção, todo o seu desenrolar e seu caminho perseguido. O grupo convida o leitor à leitura. 2 DOS TEMAS PRESENTES NOS DISCURSOS 2.1 O JUSNATURALISMO A tese da existência de um direito etéreo fundado na essência da natureza humana, inafastável portanto pelo direito positivo sempre atraiu a atenção dos jusfilósofo ao longo de décadas. A superação da natureza humana por um complexo de regras nunca foi vista como algo absolutamente incontestável, o que deu azo a diversos estudos sobre o tema. Observa-se ao largo da história, constante polêmica no âmbito da Filosofia do Direito, desde a teoria Clássica dos gregos até as contemporâneas percepções. Tomando de empréstimo as palavras de Reale (1984, p.1): “apesar de todas as profundas objeções que foram e são feitas, permanece sempre como problema inarredável O autor afirma que mesmo nas épocas de mais arraigado positivismo, quando parecia superada de vez a tese jusnaturalista, não se poderá afirmar que, “mesmo então a ideia de Direito Natural tenha deixado de ser um problema para converter apenas em uma indagação ilusória, devida a persistência inadmissível de um equívoco”5 É essa ideia de que nem sempre as normas em vigor atendem a Justiça que motivou o voto do Ministro Foster, ao sustentar a inaplicabilidade da Lei no caso concreto, sob pena de se produzir uma injustiça. Tal raciocínio é completamente relegado pelo juspositivismo, na medida em que a Justiça da Lei não deve ser contestada. Nesse diapasão, concordamos com a corrente juspositivista no sentido de que não está 5 REALE, 1984, p.1 8 ao talante do julgador questionar a justiça que há em determinada Norma, sendo-lhe reservado tão somente cotejar a Lei aplicável com as demais regras do ordenamento jurídico e, em não havendo motivo legal que justifique a não incidência da Lei deve o Juiz aplica-la. Tal raciocínio se deve ao fato de o Juiz não gozar de legitimidade democrática para deliberar de dentro de seus gabinetes acerca da norma justa e injusta, de modo que tal autorização permitira que cada Juiz julgasse de acordo com sua concepção, causando uma enorme insegurança jurídica e por vezes injustiças. Sobre o tema tratou com maestria Souza (1996), em seu livro Segurança Jurídica e Jurisprudência, cuja obra fica clara a relação entre a Justiça e a Segurança Jurídica, in verbis: Segurança e Justiça à sua vez, são valores que se completam e se fundamentam reciprocamente: não há Justiça materialmente eficaz se não for ”assegurado“ aos cidadãos, concretamente, o direito de ser reconhecido a “cada um o que é seu”, aquilo que, por ser justo, lhe compete. Portanto, é de se destacar a perniciosidade que há em autorizar juízes afastar a lei, cuja elaboração é revestida de legitimidade democrática, quando bem entenderem em nome de um ideal etéreo e impalpável de Justiça. Concordamos que é possível que a atividade legislativa é passível de equívoco, mas a via correta para a superação das imperfeições legais é o campo político, razão pela qual rejeitamos o transporte de uma discussão política aos autos processuais. 2.2 O JUSPOSITIVISMO Fica evidente na leitura do caso em tela a invocação do juspositivismo, especialmente pelo Ministro Keen, J, para sustentar a primazia da lei. A forma de discurso abordada por esse Magistrado implica reconhecer que ao julgador não é facultado se furtar da aplicação da Lei por se enveredar numa busca pela Justiça. Para o citado Juiz, quando isso ocorre estaríamos diante das opiniões pessoais do intérprete que cede às suas preferências em detrimento da Lei. Nesse passo, verifica-se que o elemento da neutralidade axiológica apregoada pelo Juspositivismo é posto como adequado e mais seguro para a coletividade e para o julgamento do caso na medida em que o conceito de justo, bom, moral ou correto varia tanto no tempo como no espaço, de modo que essa flutuação pode causar injustiças. Nesse sentido já escreveu 9 Hans Kelsen6, in verbis: se se concede que em diversas épocas, nos diferentes povos e até no mesmo povo dentrodas diferentes categorias, classes e profissões valem sistemas morais muito diferentes e contraditórios entre si, que em diferentes circunstâncias pode ser diferente o que se toma como bom ou mau, justo e injusto e nada há que tenha de ser havido por necessariamente bom ou mau, justo ou injusto em todas as possíveis circunstâncias, que apenas há valores morais relativos – então a afirmação de que as normas sociais devem ter um conteúdo moral, devem ser justas, para poderem ser consideradas como Direito, apenas pode significar que estas normas devem conter algo que seja comum a todos os sistemas de Moral enquanto sistemas de Justiça. Em vista, porém, da grande diversidade daquilo que os homens efetivamente consideram como bom ou mau, justo ou injusto, em diferentes épocas e nos diferentes lugares, não se pode determinar qualquer elemento comum aos conteúdos das diferentes ordens morais. O recurso utilizado pelos demais Ministros invariavelmente tendem a não aplicação da Norma ao caso concreto, recorrendo a conceitos etéreos de Justiça, equidade ou, como foi no caso do voto do Ministro Truepenny, à remessa da responsabilidade do julgamento para outro Poder, qual seja, o Executivo. Todas essas alternativas violariam de morte o conceito Juspositivista, já que a pedra de toque dessa concepção jurídica é a ideia da completude, é dizer, não há lacunas no ordenamento jurídico, cabendo ao julgador sempre encontrar a norma aplicável e subsumi-la ao caso concreto. Dissertando sobre o tema, o jurista italiano Norberto Bobbio7, fez brilhante explanação, senão vejamos: Por “completude” entende-se a propriedade pela qual um ordenamento jurídico tem uma norma para regular qualquer caso. Uma vez que a falta de uma norma se chama geralmente “lacuna” (num sentido do termo “lacuna”), “completude” significa “falta de lacunas”. Em outras palavras, um ordenamento é completo quando o juiz pode encontrar nele uma norma para regular qualquer caso que se lhe apresente, ou melhor, não há caso que não possa ser regulado com uma norma tirada do sistema. Assim, partindo da premissa juspositivista, não caberia outra solução ao caso concreto se não a aplicação da Lei em vigor, independentemente do resultado dessa aplicação não parecer justo aos olhos leigos da sociedade. No juspositivismo não há espaço para discutir a 6KELSEN, 2009. p. 72 - 73. 7BOBBIO, 1995. p. 115. 10 validade da Lei, exceto se essa invalidade já estiver prevista anteriormente pela própria Lei, mesmo porque qualquer decisão que se abstenha de aplicar a Legislação em vigor subtrairia a legitimidade típica do Poder Legislativo em sua função legiferante. No atual sistema jurídico brasileiro a concepção positivista clássica tem sido superada, sobre tudo com o reconhecimento da força normativa dos princípios, que não raro tem sido utilizado pelos interpretes na solução de caso concretos e dada a sua natureza abstrata verifica-se o afastamento da concepção juspositivista original. 2.3 COMMON LAW Common Law pode ser entendido como um sistema jurídico que se desenvolveu a partir das decisões dos tribunais, e não de forma puramente positivista e/ou kelseniana: “A Teoria Pura do Direito é uma teoria do Direito positivo – do Direito positivo em geral, não de uma ordem jurídica especial. É teoria geral do Direito, não interpretação de particulares normas jurídicas, nacionais ou internacionais [...] É ciência jurídica e não política do Direito.”8 Ou seja, a Common Law se dá através das pronunciações dos tribunais sobre determinados casos, e esta pronunciação servirá de base e parâmetro para futuros litígios ou casos de relevância judicial que remetem a hermenêutica jurídica. Quando não existe um precedente, os juízes tem autoridade para criar uma decisão que mais a frente possa servir de parâmetro, de precedente futuro. O ordenamento jurídico brasileiro desenvolveu-se estruturado no âmbito da Civil Law, porém é observável um traço marcante do sistema Common Law na efetiva compreensão acerca da vinculação dos precedentes judiciais nas decisões de cunho jurídico extremamente relevantes (vide casos sobre casamento entre pessoas do mesmo sexo, p.ex.) nos tribunais brasileiros. Por exemplo, o Supremo Tribunal Federal quando emite súmulas vinculantes, influencia de alguma forma decisões futuras, por ser considerado uma fonte de direito, diferente da lei expressa. Conforme tecelado por AZEVEDO; BEZERRA JR. (2010, p. 6724): Por efeito vinculante deve ser entendida a vinculação, obrigatoriedade, dos poderes estabelecidos às decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de controle abstrato de constitucionalidade. O efeito vinculante abrange os Poderes 8 KELSEN, 2009. p. 1. 11 Executivo e Judiciário, e em todos os seus níveis, o Executivo está adstrito a posicionamentos desse viés, não podendo descumprir o conteúdo das decisões judiciais sob pena de sofrer processo de intervenção. Quanto ao Judiciário, o efeito vinculante obriga todas as suas instâncias à exceção do STF, porquanto a Corte Suprema não está atrelada ao efeito vinculante, podendo alterar seus julgados desde que haja mudança na composição de seus membros ou que seu posicionamento seja modificado qualitativamente a situação jurídica, por alguma razão. Nos atentando ao Caso, observamos o traço do Common Law em toda a história. Quando os Ministros Foster, J., Tatting, J. e Keen, J. falam sobre casos anteriores – por exemplo, Commonwealth v. Staymore, Fehler v. Neegas, Commonwealth v. Parry, entre outros citados -, estão tornando explícito o sistema jurídico adotado. Vejamos esse exemplo retirado diretamente do Caso dos Exploradores de Cavernas: Toda proposição de direito positivo, quer contida em uma lei ou em um precedente (grafo nosso), deve ser interpretada de modo racional, segundo seu propósito evidente. Isto é uma verdade tão elementar que é, a rigor, desnecessário alongar-me a este respeito. Os exemplos de sua aplicação são inumeráveis e se encontram em todos os setores do ordenamento jurídico. No caso Commonwealth v. Staymore o acusado foi condenado tendo em vista uma lei que considera delituoso estacionar os automóveis, em certas áreas, por um período superior a duas horas.9 Como a história foi escrita por um professor da Faculdade de Harvard, que fica situada num território que tem como regime sistemático o Common Law, observamos a influência externa para essa escolha no Caso dos Exploradores de Cavernas. Também por ser um caso muito a frente ao nosso tempo - ano de 4300 -, uma interpretação que julgamos plausível se dá em torno de uma “evolução” do direito, em que, como o Direito é uma ciência social, ela leva em conta os aspectos e comportamentos humanos numa sociedade, e isto não é algo petrificado, estático, então está sempre em movimento. Como pode haver mudanças, um melhor ajuste e escolha para uma sociedade evoluída – em relação ao passado - pode ser a Common Law que não se pauta somente em leis e normas “estáticas”. Mesmo por ser um direito majoritariamente regido por pronunciamentos dos tribunais, vale lembrar que o Common Law é pautado por princípios, não são palavras e decisões soltas e arbitrarias. Não é algo que foge inteiramente do direito “estático”. Podemos observar isso no Caso, pois mesmo havendo o discurso sobre casos antecedentes, os juízes se fazem valer por 9 FULLER, 1976, p. 11. 12 princípios e pela lei que dá o pontapé inicial para a discussão docaso: "Quem quer que intencionalmente prive a outrem da vida será punido com a morte N.C.S.A. (n.s.) § 12-A.”10 Como o litígio apresentado é considerado “difícil”, pois não há uma resposta inteiramente segura que vá solucionar o problema, os discursos se pautam por princípios, como já dito, e por políticas, e não apenas a regras, porém, sem deixar de recorrer ao direito preexistente. 2.4 SEPARAÇÃO DE PODERES Aqui abordaremos a teoria da separação de poderes, que tem um aspecto histórico instituído primeiramente por Aristóteles, em sua obra “A Política”, que admite existir três órgãos separados a favor do Estado: o Poder Deliberativo, o Poder Executivo e o Poder Judiciário: Em todo governo, existem três poderes essenciais, cada um dos quais o legislador prudente deve acomodar da maneira mais conveniente. Quando estas três partes estão bem acomodadas, necessariamente o governo vai bem, e é das diferenças entre estas partes que provêm as suas. O primeiro destes três poderes é o que delibera sobre os negócios do Estado. O segundo compreende todas as magistraturas ou poderes constituídos, isto é, aqueles de que o Estado precisa para agir, suas atribuições e a maneira de satisfazê-las. O terceiro abrange os cargos de jurisdição.11 Também versando sobre a teoria da tripartição de poderes, Locke em sua obra “O Segundo Tratado do Governo Civil” define a existência do um Estado onde o homem seja livre para decidir sobre seus atos. Ele defende que o Direito Natural assegura a cada ser humano um juízo de valor já que todos são iguais perante o Criador sendo obras Dele, sendo assim, não podem ser lesados por ninguém. Além de propor a divisão das funções do Estado como Legislativa, Executiva e Federativa. Posteriormente, Montesquieu em sua obra “O Espírito das Leis” consagrou o modelo da separação de poderes com as devidas atribuições sendo a referência que serve de base para a concepção atual de tripartição de poderes atualmente. A teoria consiste em atribuir ao Estado três esferas de poder: o Legislativo, que faz as leis, bem como as aperfeiçoam ou as 10 FULLER, 1976, p. 8. 11 ARISTOTELES. Política. Trad. de Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 113. 13 revogam; o Judiciário, que dá ao príncipe ou magistrado a faculdade de punir os crimes ou julgá-los; e o Executivo que se ocupa o príncipe ou magistrado estabelecer a segurança e prevenir as invasões: O poder executivo deve estar entre as mãos de um monarca, porque esta parte do governo, que precisa quase sempre de uma ação instantânea, é mais bem administrada por um do que por vários; ao passo que o que depende do poder legislativo é com freqüência mais bem ordenado por muitos do que por um só.12 Com isso, Montesquieu ressalva que não se pode deixar com um só as tarefas de legislar, administrar e julgar às normas legais, já que o homem quando tem o poder tende a abusar dele não tendo limites. Embora a expressão “separação de poderes” seja comumente utilizada, vale-se ressaltar que o poder do Estado é uno e indivisível. O que acontece é a distribuição de funções atribuída pelo Estado aos órgãos. Através do sistema de freios e contrapesos, um poder do Estado está apto a conter os abusos do outro de forma que haja um equilíbrio. Apesar dos poderes terem funções distintas, um não tem um peso maior que o outro, sendo considerados harmônicos e independentes entre eles. Como podemos ver na explicação de Dallari: Segundo essa teoria os atos que o Estado pratica podem ser de duas espécies: ou são atos gerais ou são especiais. Os atos gerais, que só podem ser praticados pelo poder legislativo, consistem na emissão de regras gerais e abstratas, não se sabendo, no momento de serem emitidas, a quem elas irão atingir. Dessa forma, o poder legislativo que só pratica atos gerais, não atua concretamente na vida social, não tendo meios para cometer abusos de poder nem para beneficiar ou prejudicar uma pessoa ou um grupo em particular. Só depois de emitida a norma geral é que se abre a possibilidade de atuação do poder executivo, por meio de atos especiais. O executivo dispõe de meios concretos para agir, mas está igualmente impossibilitado de atuar discricionariamente, porque todos os seus atos estão limitados pelos atos gerais praticados pelo legislativo. E se houver exorbitância de qualquer dos poderes surge a ação fiscalizadora do poder judiciário, obrigando cada um a permanecer nos limites de sua respectiva esfera de competências. (DALLARI, 2014, p. 218) Baseada no modelo tradicional de tripartição, o Brasil tem os poderes executivo, 12 MONTESQUIEU, 2005, p. 172. 14 legislativo e judiciário. Sendo o executivo formado pelo presidente, seus ministros e seus secretários. Eles governam e administram os interesses públicos baseado nas leis da Constituição. O legislativo tem a função de elaborar normas e legislar, aprovando ou não as propostas feitas pelo poder executivo, sendo construído pelas Câmaras dos Deputados e pelo Senado Federal. Já o poder judiciário é aquele que exerce julgamentos, sendo regras e leis que vem do poder legislativo. É composto pelo Supremo Tribunal Federal, Superior Tribunal de Justiça, entre outros Tribunais. Cabe aqui ressaltar que o Poder Judiciário não interfere noutro Poder Estatal. Deve, portanto, avaliar o caso, determinando se os réus são culpados ou não e não esperar que outro Poder faça esse trabalho por ele, já que é de sua competência faze-lo. Por fim, o juiz Keen, J., diante de seu veredicto inicia seu argumento dizendo que o Tribunal não deve considerar o pedido do Poder Executivo, afinal, não é competência do Poder Judiciário levar em conta o que o chefe do Poder Executivo possa fazer. Logo após argumenta sobre as leis que estão sendo consideradas severas, alegando que a legislação é uma criação do povo, sendo responsável por ela mediante uma eleição, concedendo àqueles que foram elegidos o poder de legislar e criar as leis. Aqui ele se equivoca, afinal, nem todos os cidadãos tem a possibilidade de legislar, mas a sociedade em si tem o direito e o dever político de contestar uma norma que seja nociva a ela. Levando em conta a interferência do presidente Truepenny, C. J., podemos observar que a estrutura do Estado está dividida em competências e prevê que “as funções de legislar, administrar e julgar devem ser atribuídas a órgãos distintos e independentes, mas que, ao mesmo tempo, se controlem reciprocamente.” (BARROSO, 2014, p. 27) Tanto a opinião de Tatting, J. quanto a de Keen, J. estão relacionadas ao fato do presidente da Suprema Corte, Truepenny, C. J. ter pedido recurso à clemência executiva pois, ao analisar o caso, a pena precisaria ser reconsiderada e propôs ao demais juízes que seguissem o exemplo do pedido de clemência já feito ao chefe do Executivo: Em um caso desta natureza o princípio da clemência executiva parece admira- velmente apropriado para mitigar os rigores da lei, razão por que proponho aos meus colegas que sigamos o exemplo do júri e do juiz de primeira instância, solidarizando- nos com as petições que enviaram ao chefe do Poder Executivo. (FULLER, 1976, p. 8) Segundo o presidente da Suprema Corte, o Executivo só poderia indeferir o pedido de clemência após a instauração de nova investigação, o que levaria pelo menos três meses e 15 seria incompatível com as funções tradicionalmente atribuídas ao Executivo. Em sua opinião, essa seria a forma de fazer justiça sem contrariar a lei vigente: É atualmente improvável queo chefe do Poder Executivo denegue estas solicitações, a menos que ele próprio fosse realizar investigações pelo menos tão extensas como aquelas efetuadas em primeira instância, que duraram três meses. A realização de tais investigações (que, de fato, equivaleriam a um novo julga- mento do caso) seria dificilmente compatível com a função do Executivo, como é nor- malmente concebida. Penso que podemos, portanto, presumir que alguma forma de clemência será concedida aos acusados. Se isto for feito, será realizada a justiça sem debilitar a letra ou o espírito da nossa lei e sem se propiciar qualquer encorajamento à sua transgressão. (FULLER, 1976, p. 8) 2.5 DOS CONTRATOS (SOCIAL, JURÍDICO E BIOJURÍDICO) No julgamento da quaestio iuris telada, se sustentou a tese de que os explorados aprisionados não se encontravam, à época dos fatos, sob a égide do contrato social com cujas normas estão sendo julgados. Essa posição foi sustentada pelo Min. Foster, segundo o qual tudo que se deu naquela caverna deveria ser regido pelas leis da natureza, na medida em que a situação em que eles se colocaram não pôde ser prevista pela sociedade, razão pela qual imperava um verdadeiro estado de natureza, sendo válida qualquer convenção formada por aquela micro sociedade dos cinco escavadores. Nessa senda, o acordo de vontade ali firmado que resultou na morte da vítima seria legítimo, não havendo que se falar na incidência das Leis que regem as relações sociais normais. Assim, como não há um poder concentrado nem uma jurisdição definida que possa dar poder a um indivíduo sobre os outros, este estado sem sujeição e nem subordinação, pressupõe a perfeita liberdade e igualdade. Nesse sentido lecionou Locke (1998, p. 382): perfeita liberdade para regular suas ações e dispor de suas posses e pessoas do modo como julgarem acertado dentro dos limites da lei da natureza, sem pedir licença ou depender da vontade de qualquer outro homem. E também um estado de igualdade, em que é recíproco todo o poder e jurisdição, não tendo ninguém mais que outro qualquer. 16 Superado o contrato social, há que se aferir a validade do contrato na perspectiva jurídica. Aqui cabe uma impugnação, tendo em vista que não pode o direito chancelar um acordo de vontade no qual o que está em jogo é a vida dos contratantes, mesmo porque a vida é o instrumento pelo qual o ser humano se vale de todas as garantias e direitos que lhe são inerentes, de modo que se trata de um bem jurídico indisponível. Sob a ótica da legislação vigente brasileira, um contrato por meio do qual uma das partes é credora da vida de outra seria considerado nulo, por possuir objeto ilícito, nos termos do Art. 166 do Código Civil de 2002, assim caminha a jurisprudência pátria, veja-se por exemplo: CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. INSTRUMENTO PARTICULAR DE COMPRA E VENDA. CESSÃO DE DIREITOS. TERRENO CONCEDIDO PELA TERRACAP PELO PRÓ/DF. IMPOSSIBILIDADE DE CESSÃO. VEDAÇÃO CONTRATUAL. ILICITUDE DO OBJETO. NULIDADE DO CONTRATO. INTELIGÊNCIA DO ART. 166, II, DO CÓDIGO CIVIL. 1. CONSTITUI ELEMENTO ESSENCIAL DE TODO E QUALQUER CONTRATO A LICITUDE DE SEU OBJETO, CUJA AUSÊNCIA IMPÕE A DECLARAÇÃO DE NULIDADE DO NEGÓCIO JURÍDICO, A TEOR DO DISPOSTO NO ART. 166 DO CÓDIGO CIVIL. 2. A CESSÃO DE DIREITOS DE IMÓVEL SITUADO EM TERRENO CONCEDIDO PELA TERRACAP PELO PRÓ/DF, COM EXPRESSA VEDAÇÃO CONTRATUAL NESSE SENTIDO, CONSTITUÍDA SEM LICENÇA DO PODER PÚBLICO, NÃO PODE SER TOLERADA PELO PODER JUDICIÁRIO, SOB PENA DE CONIVÊNCIA COM A PRÁTICA DE ATO ILÍCITO. 3. RECURSO IMPROVIDO.13 O contrato biojurídico, pouco falado nos trabalhos científicos jurídicos e dificilmente encontrado em livros, versa, sobretudo, sobre a disposição do próprio corpo com fim em si mesmo, e não o tratando como objeto, assim como defende o brilhante estudioso Caio Mario da Silva Pereira14, como veremos: No conceito de proteção a integridade física, inscreve-se o direito ao corpo, no que se configura a disposição de suas partes, em vida ou para depois da morte, para finalidades científicas ou humanitárias, subordinado contudo à preservação da própria vida ou de sua integridade. A lei não pode placitar a autolesão. É o que consagra o Art. 13 do Código Civil, cujo caput, contudo, peca de uma incorreção 13 TJ-DF - APC: 20100112231469 DF 0070980-51.2010.8.07.0001, Relator: J.J. COSTA CARVALHO, Data de Julgamento: 10/07/2013, 2ª Turma Cível, Data de Publicação: Publicado no DJE : 23/09/2013 . Pág.: 94 14 PEREIRA, 2014, p. 212. 17 técnica. O Caso põe em questão a disposição do próprio corpo como mantenedor do contrato firmado, observando assim a pincelada da ideia de negócio com cunho biojurídico. Whetmore abdica de sua própria vida, de seu corpo, estabelecido no acordo entre eles. Porém essa disposição entra em conflito com o limiar da integridade física e moral, pois a vida perdida é um dano contínuo para com seus familiares, entendendo a vida como algo personalíssimo e não como um objeto, sendo utilizado como meio para se chegar a uma finalidade. Ainda na discussão sobre negócios jurídicos, observamos defeitos que podem ser admitidos e neste caso, nos atentamos a dois: a coação e o estado de perigo. A coação, entendida pelo ordenamento jurídico brasileiro, é um defeito do negócio jurídico em que alguém, através da força física ou de argumentações de má-fé, força a outra parte a declarar alguma vontade - caso da coação moral - ou agir conforme o detentor da força física o enseja. Ou seja, como vemos em PEREIRA (2014, p. 445): De dois processos valer-se-á, e então diz-se que de duas maneiras pode o agente ser compelido ao negócio jurídico: ou pela violência física, que exclui completamente a vontade, [...] ou pela violência moral, vis compulsiva, que atua sobre o ânimo do paciente, levando-o a uma declaração de vontade viciada. No Caso dos Exploradores de Cavernas, observamos a influência da coação moral no que diz respeito a um defeito do suposto contrato firmado entre os homens dentro da caverna. Após querer se desfazer de sua ideia, Whetmore foi coagido, de forma indireta, moralmente a seguir em frente. Como observamos nesse trecho: Entretanto, antes que estes fossem lançados, Whetmore declarou que desistia do acordo, pois havia refletido e decidido esperar outra semana antes de adotar um expediente tão terrível e odioso. Os outros o acusaram de violação do acordo e procederam ao lançamento dos dados. Quando chegou a vez de Whetmore um dos acusados atirou-os em seu lugar, ao mesmo tempo em que se lhe pediu para levantar quaisquer objeções quanto à correção do lanço. Ele declarou que não tinha objeções a fazer. Tendo-lhe sido adversa a sorte, foi então morto. Dentro dos parâmetros brasileiros, o Código Civil de 2002 em seu artigo 156 estabelece o que vem a ser o estado de perigo. Vejamos: “Art. 156. Configura-se o estado de 18 perigo quando alguém, premido da necessidade de salvar-se, ou a pessoa de sua família, de grave dano conhecido pela outra parte, assume obrigação excessivamente onerosa” O estado de perigo pode ser observado inicialmente no momento em que Whetmore sugeriu que um deles dispusesse de seu corpo para salvar a vida dos outros homens, pois em sua concepção, uma vida a menos valeria mais que cinco mortes. O defeito do estado de perigo se dá exatamente nessa linha de raciocínio: entende-se que a vida, mesmo que seja uma, não serve como reposição de outras tantas. Apesar de Whetmore parecer agir segundo seus instintos, num momento excepcionalíssimo, o defeito do negócio jurídico acabouincidindo sobre ele mesmo – que propondo a morte de um deles, tentou se salvar -, e logo após o desenrolar do sorteio, foi morto por seus companheiros. 2.6 DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE Sobre o tema, nos debruçaremos apenas no fito de explicitar que no rol de direitos da Personalidade encontra-se inserido o direito à vida, razão pela qual a lesão aos direitos da Personalidade de Whetmore, a vítima, foi incontestavelmente violado. A Personalidade há de ser considerada sobre diversos prismas, e sem dúvida a vida é um deles. Nessa esteira, SOUZA (1995, p. 124) cita o alemão Hugo Donnelus que distinguia no objeto do direito sobre a própria pessoa quatro bens: a vida, a incolumidade corporal, a liberdade e a reputação.15 A Jurisprudência brasileira já é pacífica nesse sentido e, corroborando o nosso raciocínio, trazemos à colação um exemplar da jurisprudência nesse sentido, veja-se: DIREITO DO CONSUMIDOR E PROCESSUAL CIVIL. DEPÓSITOS EM CONTA BANCÁRIA VINCULADA. FGTS. TRANSFERÊNCIA PARA OUTRO BANCO. COMPROVAÇÃO. INEXISTÊNCIA. ÔNUS DA PROVA. CONSUMIDOR. DANOS MORAIS.NÃO-OCORRÊNCIA. 1. AINDA QUE SE TRATE DE RELAÇÃO DE CONSUMO, COM A POSSIBILIDADE DE INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA, DEVE O CONSUMIDOR COMPROVAR OS FATOS CONSTITUTIVOS DE SEU DIREITO, NÃO LHE SENDO PERMITIDO, COM APOIO EM TAL BENEFÍCIO, INGRESSAR EM JUÍZO SEM QUALQUER COMPROVAÇÃO DE SUAS ALEGAÇÕES, DEIXANDO A CARGO DA PARTE RÉ TODA A FUNDAMENTAÇÃO PROBATÓRIA DOS AUTOS. 2. INEXISTENTE LESÃO A BEM EXTRAPATRIMONIAL, 15SOUZA, 1995, p. 124. 19 CONSUBSTANCIADOS NOS DIREITOS DA PERSONALIDADE: VIDA, INTEGRIDADE FÍSICA, LIBERDADE, HONRA, NOME ETC., (grifo nosso) NÃO HÁ QUE SE FALAR EM DEVER DE INDENIZAR POR DANOS MORAIS. 3. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO.16 2.7 NOÇÃO DE JUSTIÇA Durante a leitura do Caso, é observável implicitamente e explicitamente uma noção de justiça na deliberação. A justiça não é algo objetivo, parte da concepção de cada um. Dentro da área jurídica, este tema tem bastante relevância, e faz parte, por exemplo, dos três critérios de valoração de uma norma jurídica, descritos pelo ilustre Norberto Bobbio em sua obra Teoria Da Norma Jurídica. Para ele, o problema da justiça é o problema da correspondência ou não da norma aos valores últimos ou finais que inspiram um determinado ordenamento jurídico. [...] O problema se uma norma é justa ou não é um aspecto do contraste entre mundo ideal e mundo real, entre o que deve ser e o que é: norma justa é aquela que deve ser; norma injusta é aquela que não deveria ser. Pensar sobre o problema da justiça ou não de uma norma equivale a pensar sobre o problema da correspondência entre o que é real e o que é ideal. Por isso, o problema da justiça se denomina comumente de problema deontológico do direito. (BOBBIO, 2014, p. 48) Um aspecto histórico-filosófico de justiça está intrinsicamente ligado à concepção aristotélica, que versa sobre a ideia de “Justiça como uma virtude suprema, que tudo abrangia, sem distinção entre o direito e a moral.” (ROSS, 2000, p. 313) Já para Platão, a justiça era um conhecimento para fins de bem-estar da Pólis, em que se assemelhava com a moral: seria um privilégio dos sábios conhece-la e estes deveriam assumir o poder da polis e distribuir as funções sociais conforme um bem-comum justo. No caso em tela, nos discursos observamos o traço marcante da noção de justiça. Para o Presidente Truepenny, C.J., há a ideia de justiça sem debilitar a letra da lei. Para ele, justo é o que está dentro dos parâmetros jurídicos para haver um julgamento. Não se deve levar em consideração aspectos meramente subjetivos, pois do que valeria toda uma extensão jurídica sobre determinado assunto? Já o juiz Foster, J. indaga: “Se é justo que estas dez vidas tenham 16 STJ, Relator(a): Desembargador MÁRIO-ZAM BELMIRO, julgado em 3/6/2009, DJ-e de 12/6/2009 20 sido sacrificadas para salvar as dos cinco exploradores, a que título diremos ter sido injusto que estes exploradores executassem um acordo para salvar quatro vidas em detrimento de uma?”17 E para Keen, J. o ideia de justiça foi discutido sobre a injustiça do assassinato, que acaba nos remetendo ao ideal de moral humana e ao propósito da lei. 2.8 CONCEPÇÃO DE PENA Abordaremos aqui a concepção de pena para darmos o pontapé inicial à análise penal da visão dos Ministro no Caso dos Exploradores de Cavernas. Considera-se pena, na visão do professor Souza (2011, p.326) “a perda de um direito imposto pelo Estado em razão de uma infração penal.” Já na visão do famoso sociólogo francês, Émile Durkheim, através de sua ilustre obra “As regras do mundo sociológico”, a pena tem a importante função de restaurar a “consciência coletiva” ⎯ a capacidade da sociedade de julgar e dar valor à atos individuais, podendo os classificar em um ator imoral, reprovável ou criminoso ⎯ que se tornou desvalorizada diante de algum delito. Para podermos discutir sobre as teorias da pena no ordenamento jurídico brasileiro, primeiro é forçoso explicaremos a doutrina utilizada para conceituar a finalidade da pena. São utilizados três grupos de teorias: a teoria absoluta, a teoria relativa e a teoria mista. Na teoria absoluta ou retributiva, a pena é uma reação ao criminoso pela conduta ilícita. É como o Estado balanceia o mal causado pelo condenado à alguém específico ou à sociedade. Segundo o Professor Souza (2011, p. 326): Segundo as teorias absolutas, a pena é exigência de justiça. Quem pratica um mal deve sofrer um mal. A pena se funda na justa retribuição, é um fim em si mesma e não serve a qualquer outro propósito que não seja o de recompensar o mal com o mal. Já na teoria relativa ou preventiva, a pena tem por objetivo a prevenção de novos delitos. Ela tenta impedir que os condenados voltem a ter uma conduta ilícita, sendo uma forma de manter a paz e o equilíbrio social. E a última teoria é a mista, já que essa teoria é uma combinação das teorias absolutas e relativas. Para a teoria mista, a pena é a reação do Estado diante do delito do condenado, 17 FULLER, 1976, p. 11. 21 como uma forma de prevenir que esse sujeito volte a causar um mal, sendo o ordenamento jurídico brasileiro adepto dessa teoria, pois seu único objetivo é recuperar e prevenir novos delitos, como pode ser encontrado na Lei de Execução Penal18. O Min. Keen, J. apresenta em seu texto a colocação de que o magistrado deve valer-se da moral, da ética e do bom senso, primando pelo bem comum e pelo justo para avaliar a norma legislada, tendo a mesma visão de Durkheim ao passo que a pena tem a função de restaurar a “consciência coletiva”. Ele ainda alega que não defenderia os acusados, já que o princípio da legítima defesa não se aplicaria a este caso. Defendendo também o fato de que a lei deve ser aplicada no mesmo modo que é dada como escrita, e além disso, o judiciário crie exceções a aplicação das leis, poderão ocorrer consequências futuras, afetando então o campo da isonomia e da moralidade. Por fim, Keen, J. confirma a sentença, condenando os acusados, pois alega que está a cumprir restritamente a legislação em questão. Sendo assim, adepto da teoria absoluta, como podemos ver em um trecho de seu discurso: A única questão que se nos apresenta para ser decidida consiste em saber se os réus, dentro do significado do N.C.S.A. (n.s.) § 12-A, privaram intencionalmente da vida a Roger Whetmore. O texto exato da lei é o seguinte: "Quem quer que intencio-nalmente prive a outrem da vida será punido com a morte". Devo supor que qualquer observador imparcial, que queira extrair destas palavras o seu significado natural, con- cederá imediatamente que os réus privaram "intencionalmente da vida a Roger Whetmore. O Min. Tatting, J. revela sua dificuldade em exprimir suas convicções à análise judicial em questão. Além de invocar a jurisprudência ao seu favor, ele relata que os casos ocorridos não conseguem sustentar uma opinião com o de agora, pois não tem qualquer similaridade, sendo assim, difícil de interpretar. Quando não há uma lei, o juiz deve julgar conforme o conceito da moral, dos costumes, mas mesmo assim ele se abstém não emitindo seu parecer. 18 Lei n. 7.210/84, de 11 de julho de 1984 22 2.9 OBJETIVO DA NORMA PENAL Um ordenamento jurídico deve protege os indivíduos lançando mão dos instrumentos do Direito Penal. Para podermos falar da pena, objetivamos estabelecer que esse Direito visa garantir o convívio por meio da proteção dos bens jurídicos mais importantes à sociedade, pois são bens vitais dela e do indivíduo, merecendo assim proteção legal em razão do seu significado social. A sanção penal brasileira possui a finalidade de retribuir ao criminoso a pena, pela conduta ilícita, e tem por objetivo a prevenção para que não ocorra novos crimes. Como está descrito no artigo 10 da Lei de Execução Penal19: “A assistência ao preso e ao internado é dever do Estado, objetivando prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade.“ A pena é regida por características próprias como a legalidade, a personalidade, a individualidade, a proporcionalidade e a humanidade. Essas descrições penais asseguram ao delinquente o cumprimento digno da pena que lhe é destinada. No Caso dos Exploradores de Cavernas, o Ministro Keen, J., baseado na teoria absoluta, rege seu discurso punindo o condenado sem ter como objetivo final a sua reeducação, ressocialização ou reparar o dano causado pelo delito. Ao longo da sentença ele manteve sua postura fiel e estrito cumprimento à norma legislada, e relata: A única questão que se nos apresenta para ser decidida consiste em saber se os réus, dentro do significado do N.C.S.A. (n.s.) § 12-A, privaram intencionalmente da vida a Roger Whetmore. O texto exato da lei é o seguinte: "Quem quer que intencio- nalmente prive a outrem da vida será punido com a morte". (FULLER, 1976, p. 17) Se por ventura, esse fato viesse ocorrer no Brasil, a pena de morte não seria uma opção, já que é considerado inconstitucional, pois é fundamentada na assinatura pela Declaração dos Direitos Humanos e pelo Protocolo da Convenção América de Direitos Humanos, que é assegurado ao país que erradicou a prática da pena de morte, além disso, o direito a vida é previsto na Constituição Federal em seu brilhante artigo 5º. 19 Lei n.7.210/84 (Lei de Execução Penal) 23 2.10 EXCLUDENTE DA LEGÍTIMA DEFESA E ESTADO DE PERIGO Primeiramente, antes de falarmos sobre a excludente de legítima defesa ou de ilicitude e sobre o estado de perigo, devemos nos atentar a entender do que é formado o crime. O crime no Brasil é conceituado pelo Professor Souza (2011, p. 136) como sendo a: Conduta (ação ou omissão) típica, antijurídica e culpável, conforme proposta pela doutrina penal alemã, a mais influente no Brasil como também nos demais Estados latino-americanos e parte da Europa continental (entre outros, Áustria, Espanha, Portugal, Itália). É importante salientar que o autor do Caso tem origem estadunidense, e isto pode desembocar numa relação e concepção de crime diferente da adotada em terras brasilienses. Vejamos: A título ilustrativo, entre os norte-americanos, Jerome Hall enfatiza sete elementos básicos da teoria do delito: elemento subjetivo (mens rea); conduta (act); congruência entre mens rea e conduta; resultado; relação de causalidade; punição; e legalidade. Segundo aquele autor, tais noções desembocam na seguinte concepção: “o resultado proibido deve ser imputado a qualquer adulto normal que, voluntariamente, exteriorize a intenção criminosa, devendo, dessa forma, ser submetido à sanção cominada na respectiva lei penal.”20 Porém, iremos analisar o Caso com a ótica de concepção de crime brasileira. O artigo 25 do Código Penal brasileiro conceitua a legítima defesa dessa forma: “Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.” Analisando o ato dos réus partindo do princípio da proporcionalidade, pois na reação ao ataque tido como injusto, devem ser usados meios necessários de forma justa medida e suficiente para cessar os ataques vitimados, podendo ser uma “agressão” atual ou iminente, pois se for futura, poderá configurar algum delito e não será tutelado pela legítima defesa, acreditamos que os réus atuaram de forma fora dos parâmetros proporcionais naquele momento, em que Whetmore, mesmo mudando de ideia sobre a disposição de seu corpo, não 20 Hall, 2009. p. 18 apud Souza, 2009. p. 136 24 mostrava uma agressão que possa servir de base para a legítima defesa dos réus, configurando assim, num crime de homicídio21. O caso dos exploradores abre espaço para a discussão da excludente, nas falas dos juízes Foster, J. e Tatting, J. O Min. Foster acredita que a excludente deve ser aplicada como fonte de interpretação da lei e sua argumentação se dá inclinada ao objetivo da norma penal, que é o de dissuadir os homens da prática do crime. A excludente não deve ser considerada crime, pois irá contra o ideal de prevenção que a norma penal tanto contempla. Ele acredita que a lei "Quem quer que intencionalmente prive a outrem da vida será punido com a morte". N.C.S.A. (n.s.) § 12-A.” ( FULLER, 1976, p. 8) tem seu espaço de legítima defesa, mesmo que fale de um ato excludente da vida humana. Vejamos: “Atentando, pois, para os objetivos principais da legislação penal, podemos seguramente declarar que esta lei não se destinava a ser aplicada nos casos de legítima defesa.” (FULLER, 1976, p. 12). O Min. Tatting, J. critica o argumento de Foster, tal que é aplicável no Caso, pois os homens que mataram Whetmore estavam exercendo seu direito proposto pelo contrato anteriormente firmado entre eles. Isso acabaria levando a uma inversão do Caso: Whetmore seria considerado o incitador do assassinato, ou seja, seria considerado o próprio homicida, uma vez que Foster, J. entende que os prisioneiros estavam “defendendo” suas próprias vidas. Tatting, J. acredita que os réus violaram o dispositivo legal em questão (N.C.S.A. § 12-A) e que Foster se contradiz na parte do objetivo da norma penal (que neste trabalho é falado no ponto 2.9 - Objetivos da norma penal). Abrindo caminho no estado de natureza, proferido pelo juiz Foster, J. há uma inclinação a discutir sobre o estado de perigo. Quando pensamos em cinco homens presos numa caverna durante dias, imaginamo- los em estado de perigo ou necessidade. Portanto, é importante entendermos se o Art. 24 do Estatuto Repressivo se aplica a esse caso. O artigo diz: Art. 24 – Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir- 21 Esse crime é previsto no Art. 121do Código Penal brasileiro 25 se. § 1º – Não pode alegar estado de necessidade quem tinha o dever legal de enfrentar o perigo. § 2º – Embora seja razoável exigir-se o sacrifício do direito ameaçado, a pena poderá ser reduzida de um a dois terços.22 Ele é aplicável ao Caso dos exploradores? Consideramos que sim, num determinado momento. Quando Whetmore desiste de dispor seu corpo para o canibalismo que ali irá ocorrer, neste momento julgamos que ele estava num estado de perigo, pois quatro homens famintos, após pactuarem o acordo, não concordaram com a ação de Whetmore. Vejamos: Entretanto, antes que estes fossem lançados, Whetmore declarou que desistia do acordo, pois havia refletido e decidido esperar outra semana antes de adotar um expedi- ente tão terrível e odioso. Os outros o acusaram de violação do acordo e procederam ao lançamento dos dados. Quando chegou a vez de Whetmore um dos acusados atirou-os em seu lugar, ao mesmo tempo em que se lhe pediu para levantar quaisquer objeções quanto à correção do lanço. Ele declarou que não tinha objeções a fazer. Tendo-lhe sido adversa a sorte, foi então morto.23 2.11 HERMENÊUTICA JURÍDICA Aspecto importante do processo decisório é a interpretação da Lei para sua correta aplicação. Sobre o tema o Ministro Foster sustentou timidamente que a aplicação da Lei não se deve dar isoladamente, literalmente, distante de outras regras do ordenamento jurídico. In casu, o Ministro apontou o reconhecimento da legítima defesa para afastar a aplicação literal da Norma que comina uma sanção para o homicida. Implicitamente o Ministro invocou um dos métodos de interpretação da Lei, qual seja, o método sistemático, que propugna uma leitura de todo o ordenamento jurídico, em conjunto, para que se chegue a conclusão de qual regra deve prevalecer no caso concreto. Como bem ressalta Canaris (2002, p. 158): É uma interpretação a partir do sistema externo da lei, portanto nas conclusões retiradas da localização de um preceito em determinado livro, seção ou conexão de parágrafos, da sua configuração com proposição autônoma ou como mera parte de uma proposição (...) 22 Art. 24 do Código Penal Brasileiro 23 FULLER, 1976, p.7. 26 Insta salientar os demais métodos de interpretação disponíveis ao intérprete da lei, quais seja, o gramatical/literal, o teleológico, o histórico e para alguns, o sociológico. O primeiro, como leciona França (1997, p. 8), “é aquele que, hoje em dia, tem como ponto de partida o exame do significado e alcance de cada uma das palavras do preceito legal”, ou seja, trata-se de método apegado ao conteúdo da linguagem legal, razão pela qual são muito utilizados nos, como diria o Professor Luis Roberto Barroso, “casos fáceis”, já que nos casos difíceis a aplicação da letra fria da lei induziria o hermeneuta a equívoco. O segundo método se preocupa com a na busca da finalidade das normas jurídicas tentando adequá-las aos critérios atuais, pois o Direito por ser uma ciência primariamente normativa ou finalística sua interpretação há de ser na essência teleológica. O intérprete ou aplicador da norma jurídica, desse modo sempre terá em vista o fim da lei, ou seja, o resultado que a mesma precisa atingir em sua atuação prática. Como dispõe Ferraz Júnior (2008, p. 266 – 267): A interpretação teleológica axiológica ativa a participação do intérprete na configuração do sentido. Seu movimento interpretativo, inversamente da interpretação sistemática que também postula uma cabal e coerente unidade do sistema, parte das consequências avaliadas das normas e retorna para o interior do sistema. É como se o interprete tentasse fazer com que o legislador fosse capaz de mover suas próprias previsões, pois, as decisões dos conflitos parecem basear-se nas previsões de suas próprias consequências. Assim, entende-se que, não importa a norma, ela há de ter, para o hermeneuta, sempre um objetivo que tem para controlar até as consequências da previsão legal (a lei sempre visa os fins sociais do direito às exigências do bem comum, ainda que, de fato, possa parecer que elas não estejam sendo atendidos). O método histórico, por sua vez, baseia-se na investigação dos antecedentes da lei, seja referente ao histórico do processo legislativo, seja às conjunturas socioculturais, políticas e econômicas subjacentes à elaboração da lei. É graças a esse método de interpretação que o intérprete pode observar a mutabilidade do Direito, é dizer, o Direito não é estático sendo suscetível às transformações na sociedade. Finalmente o método sociológico, visa perquirir o fim da Lei com base nas exigências sociais, tendo-se sempre em vista o bem comum, dessa forma, o método sociológico baseia-se na adaptação do sentido da lei às realidades e necessidades sociais. Bastante esclarecedora é a lição de Hekenholff (1986, p. 28) quando afirma que “o processo sociológico conduz à investigação dos motivos e dos efeitos sociais da 27 lei”. No ordenamento jurídico brasileiro esse método encontra guarida na nossa Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro (LINDB) em seu art. 5º24, que orienta o Juiz a sempre procurar atender aos fins sociais da Norma. Assim, verifica-se que no caso sob exame a interpretação da Lei se deu de forma apressada. Aqueles que votaram pela condenação, especialmente o Ministro Keen J., não observaram o conjunto de métodos interpretativo, e mesmo diante de um hard case optaram por se apegar ao método gramatical de interpretação, o que sem dúvida conduziria para uma famigerada aplicação da Lei Penal em desfavor dos réus. 2.12 MORAL E ÉTICA EM SIGMUND FREUD Devido ao presente trabalho tratar de um caso com cunho majoritariamente jurídico, pode parecer estranho à primeira vista a aproximação do direito com o pai da psicanálise, Sigmund Freud. Este brilhante estudioso dedicou grande parte de seus estudos e pesquisas para o tema da ética e da moral. A relação da tese freudiana com o Caso dos Exploradores se dá no âmbito da moral, ética e reprovação moral no que diz respeito ao canibalismo e assassinato presentes na história de Fuller. E essa relação nos conduz ao propósito do julgamento: os assassinos devem ser condenados a morte pelo canibalismo e pelo assassinato? Ou deve haver um entendimento de que eles, pelo fato de chegarem ao ponto de devorarem carne humana já terem passados por uma reprovação moral e social suficiente, e que isso já se entenda como uma condenação por si só? A imoralidade presente deve ser sentenciada mais ainda? Para Freud, a moral e a ética se dão quando pensamos no coletivo. Estes dois pontos de partida são componentes relacionais que servem de vetor para possibilitar a vida em sociedade: “[...] o desamparo inicial dos seres humanos é a fonte primordial de todos os motivos morais”25 O pai da psicanálise nos adverte sobre a ética, no que diz respeito a demonstração dos direitos coletivos em relação aos direito individuais, e vice-versa. Quando pensamos que estamos abrindo mão de desejos pessoais é porque temos uma conduta ética, porém o que acontece é o contrário: devido a uma conduta ética, desistimos de desejos individuais para o 24DECRETO-LEI Nº 4.657, DE 4 DE SETEMBRO DE 1942 - Art. 5o Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum. 25 FREUD, 1996, p. 422. 28 bem coletivo. E é isso que acontece dentro da caverna: Whetmore abre mão de sua vida – ele e todos os outros atores naquele local, inicialmente– para o bem da coletividade: a vida. Ou seja, a conduta ética é construída de acordo com o status de sobrevivência, pois não é algo naturalmente humano se sacrificar para servir de alimento para outros. A moral freudiana caminha de mãos dadas com a ética, e que em tese o psiquismo humano tende primariamente à satisfação pulsional, sem qualquer consideração por outros indivíduos, satisfação essa que deve ser barrada em relação aos objetos externos pela moral, como lei que interdita os impulsos sexuais e agressivos, e reconduzida contra o ego em uma satisfação indireta e parcial, que se manifesta na forma de um sentimento crônico de culpa, o que satisfaz indiretamente parte do masoquismo primário de cada indivíduo.26 Esse entendimento de moral pode ser reconduzido para o Caso, em que a lei que condena o assassinato barra a satisfação pulsional interna de uma pessoa, e que neste caso foi utilizado para um bem maior, apesar de haver a reprovação moral evidente, pois o assassinato e a forma como se deu – pelo canibalismo - são social e moralmente condenáveis. 3 CONCLUSÃO Todo o caminho realizado na confecção do presente trabalho nos rendeu grandes conhecimentos e desbravamentos na área jurídica, sociológica e filosófica. Tentamos não nos atermos somente a literatura de cunho estritamente jurídico, pois acreditamos que temas externos fazem parte da vida social – e o Direito normatiza isso. Os temas falados no curso desse trabalho nos deixou com uma indagação: o julgamento proferido no Caso foi a escolha certa? Diante de tantos pontos de vistas e entendimentos, o grupo acredita que a melhor saída para o Caso seria a não condenação dos assassinos. Iremos explicar nosso ponto de vista a partir de pontos contrários ao nosso. Primeiramente, a decisão formulada poderá servir de caso precedente para casos futuros, e então haverá o surgimento de litígios semelhantes a esse que tentarão se “acobertar” sob o Caso dos Exploradores. A segunda visão contrária a nossa, que julgamos interessante, diz respeito a lei de Newgarth, em que foi formulada pelos legisladores num plano social que exigia a rigidez da 26 BARRETA, 2012. 29 Lei, oriunda da necessidade histórica que surgiu como evolução natural da sociedade humana, e que isso visa a proteção da comunidade, já que a mesma foi colocada em risco pela extrema flexibilidade que havia no passado. Bem, entendemos que os dois pontos anteriores são fortes, porém se remetem apenas à Lei, ao Direito, de forma restrita. E o Caso não trata somente da Lei, mas de temas além, como por exemplo a moral, a vida humana, a justiça social, entre outros. Entendemos como importante a opinião pública, que neste Caso é a favor a absolvição dos réus. Muito além de julgar como certo ou errado, o Tribunal deveria observar a opinião da população. Não significa que a absolvição pudesse servir de precedente para casos futuros que possam se fazer de forma dolosa. Os assassinos já sendo sentenciados por uma pena devido a reprovação moral presente, pois não é natural se alimentar de carne humana ou matar seu semelhante dentro de uma caverna. Devemos levar em conta a ocasião em que eles se encontravam: a fome pode levar o homem ao delírio, pois não fazia parte da rotina dos réus deixarem de comer por dias. Também acreditamos que a letra da lei não deve ser extremamente rígida, pois deve abrir espaço para a interpretação. A lei deve configurar uma relação positiva com o mundo real, protegendo bens jurídicos, mas também sendo flexível às atividades humanas. Ou seja, “não matarás” também tem sua excludente. A lei, em sua maioria, tem uma rota de fuga. E nesse caso, a rota deveria ser aplicada aos réus, pois mesmo tendo alguma intenção em matar Roger Whetmore, este foi conveniente desde o início – e aliás, deu a ideia de sacrificar uma vida em prol de outras quatro - , eles dispuseram seu corpo num tipo de contrato biojurídico – apesar, de como visto, não ser um contrato totalmente eficaz pois não preenche o parâmetro da integridade física e moral. Cada um é dono de si, desde que não fira outrem. Mesmo que fira a dignidade humana de si mesmo, pois a vontade interna, quando exercida com muito vigor, atravessa barreiras. Por fim, o trabalho não pretende se debruçar exaustivamente sobre o que é certo ou errado no julgamento do réus. Pretendemos, então, mostrar que a busca da verdade se dá por vários aspectos, por vias diferentes, que são a gama de argumentações que coloram o Caso. É impossível nos desfazermos de influências externas e tentar observar o Caso de forma totalmente neutra. Como pretende Platão, em sua “Alegoria da Caverna”, o homem sábio é aquele que se desfaz de sua realidade falsa, e pretende buscar a verdade saindo da caverna, observando a luz fora daquilo que antes o prendia e que entendia como Verdade as sombras. Conforme dito por Rosa Luxemburgo: “quem não se movimenta, não sente as 30 correntes que te prendem.” Ou seja, com a atividade argumentativa debatida durante o julgamento, cada juiz pôde observar seu ponto fraco, em contraste com objeções feitas por seus companheiros de Tribunal. Além de tentar resolver o Caso, a história nos mostra o enriquecimento argumentativo que vai se adquirindo cada vez mais. E é isso que acontece durante o exercício desse trabalho: adquirimos conhecimentos, observamos determinadas objeções e opiniões que antes julgávamos como corretas e entendemos que o Direito não se faz somente de Verdades, de crostas maciças, mas também da flexibilidade, e a partir disso busca-se uma melhor adequação ao Caso. 31 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARISTOTELES. Política. Trad. de Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 113. AZEVEDO, Alba Paulo de; BEZERRA JR., José Albenes. O mecanismo da súmula vinculante: regulamentação e aplicação no direito brasileiro. In: Encontro Nacional do CONPEDI, 19, 2010. Fortaleza Anais... Fortaleza, 2010, p. 6724. BARRETA, João Paulo F.. A origem da moralidade em Freud e Winnicott. Winicott e- prints. São Paulo, v. 7, n.1, 2012. BARROSO, Luis Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 4˚ ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 27. BOBBIO, Noberto. 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