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ESPAÇOS DE RESISTÊNCIA LITERATURA NEGRA NO SARAU ENEGRESCÊNCIA

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Espaços de resistência: Literatura Negra no Sarau EnegrescÊncia
Paulo Sérgio Paz[1: Mestrando em Estudo de Linguagens – pelo Programa de estudo em linguagens – PPGEL - UNEB. E-mail: paulosergio90@yahoo.com.br..]
Ricardo Oliveira de Freitas[2: Professor Titular Pleno da UNEB/Campus I, Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Estudos das Linguagens - PPGEL/UNEB e Professor Colaborador do Programa de Pós-Graduação em Letras, Linguagens e Representações/UESC. Coordena o Grupo de Pesquisa e Estudos em Midiativismo e Midialternativas – GUPEMA. Pós-Doutorado em Estudos Culturais e Mídia, pelo IACS/UFF. E-mail: ricofrei@gmail.com.]
Resumo: O trabalho aqui apresentado tem, como objetivo, analisar como o Sarau Enegrescência atua na circulação e divulgação da literatura negro-brasileira e negro-africanas, além de estudar o espaço onde acontece este evento. Historicamente excluída do cânone literário nacional e dos principais espaços de consagração, a literatura negra tem circulado em espaços periféricos. Diante disso, através de pesquisas de campo e entrevistas realizadas, busco analisar este sarau, que está fora do circuito cultural da cidade, e que atua para combater o imaginário preconceituoso que se criou em torno das populações e dos espaços negros. A literatura presente neste sarau trata do dia-a-dia dos afrodescendentes, que discute as vivências e reproduz suas dores e lutas através de poemas. Devido ao seu engajamento ético, é possivel observer que o Sarau Enegrescência, tem se utilizado da poesia como um importante veicúlo de fortalecimento das identificações étnico-raciais em um processo de resistência aos paradigmas ocidentais, que estigmatizam e subjugam a população negra. A partir das implicações teóricas advindas de seu título e de sua abordagem das literaturas africanas, analisarei como a questão do essencialismo negro é observado de fora, que, mesmo à revelia dos idealizadores do evento, se mostra bem evidente no sarau.
Palavras-chave: Literatura Negra, Africanas, Saraus Periféricos.
A partir dos anos 1980, principalmente por causa da reorganização teórica-conceitual pela qual passaram muitos cursos de Letras do país com a entrada dos Estudos Culturais, a literatura negro-brasileira conseguiu algum espaço nas faculdades nacionais. Em paralelo à emergência de novos paradigmas, movimentos externos à Academia também são fundamentais nesse processo, a exemplo das antologias poéticas negras, que também ganharam força nesta década, como a Axés7 e a consolidação dos Cadernos Negros, publicados desde 1978; além do grande efetivo de novos atores sociais nos espaços acadêmicos, ocupação que se iniciou em 1970, com o Movimento Negro Unificado (MNU), e se intensificou a partir de 2003, com a instituição de cotas sociorraciais em Universidades públicas e privadas pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT).
Nesta paisagem, é mesmo relevante conferir alguma atenção aos Estudos Culturais, que se tornaram o principal elemento renovador/modificador das produções acadêmicas, uma vez que questionam divisões hierárquicas entre o “alto” e “baixo”, demonstrando como tais classificações são construídas historicamente pelas classes dominantes como uma ideologia através da qual se legitimam e se perpetuam no poder.
Com efeito, o advento dos Estudos Culturais nas Universidades aproximou a cultura popular e as identidades subalternizadas dos espaços de produção oficial de conhecimento, o que implicou na abertura, não pacífica, da Academia a novas vozes. Neste sentido, a resistência aos Estudos Culturais, ainda visível em muitos cursos de Letras,
[...] significa, também, a contrariedade de alguns segmentos das classes letradas frente à ampliação das condições de acesso à universidade a um enorme contingente de pessoas antes relegada (sic) às suas margens, assim como uma oposição à abertura interdisciplinar que, ao permitir que profissionais com formação em diferentes áreas atuem em um mesmo curso, realizem pesquisas com aportes teóricos desenvolvidos em diversos campos de conhecimento ou participem dos mesmos eventos acadêmicos, resulta no questionamento da hierarquia estabelecida na ordem dos saberes. Felizmente, a julgar pela força das mudanças ora em curso na universidade brasileira, parece-nos difícil crer que essa resistência da parte dos que se opõem aos Estudos Culturais seja suficiente para vencer os contrapoderes que hoje nela emergem, graças à atuação das classes populares (LIMA, 2010, p. 25).
No que tange especificamente à literatura, campo em que a resistência aos Estudos Culturais foi bastante acirrada devido à quebra do estatuto de “Belas Letras”, que vem a ser uma noção elitista e zeladora do poder simbólico das classes dominantes, as classes populares têm, cada vez mais, construído meios de produção, publicação e divulgação de suas expressões literárias, antes absolutamente invisibilizadas ou minoradas pela repetição de um cânone bem demarcado dos pontos de vista étnico e de classe.
Neste contexto, os espaços situados fora das faculdades ou do circuito oficial de gabinetes e academias, ganham extrema relevância. É o caso, por exemplo, dos saraus de poesia negra que ocorrem em Salvador. Essas rodas poéticas têm contribuído decisivamente para lançar a última pá de cal sobre o silenciamento produzido em torno dos textos afro- brasileiros, com o que atuam também nos processos de identificação e de conscientização étnico-racial.
Apesar de se mostrar como um campo fértil e bastante relacionado às abordagens mais contemporâneas, a literatura “afro” ou “negra” não se apresenta como um ponto pacífico na Academia: há muitos intelectuais que se opõem a pensá-la como um suplemento à Literatura Brasileira. Isto porque, de acordo com Eduardo de Assis Duarte (2005, p.1), “[...] argumenta- se que critérios étnicos ou identitários não devem se sobrepor ao critério nacionalizante”.
No entanto, a Nação não existe em si mesma, mas sob a condição de um discurso/imaginário produzido sobre ela, constituindo-se, portanto, como um constructo amplamente ideológico a serviço daqueles que detém o poder de dizê-la. Assim, de acordo com o historiador uruguaio Hugo Achugar (2006, p. 203), o perfil do “[...] sujeito enunciador do discurso fundante do Estado-nação, na América Latina, durante o século XIX [...], teve um projeto patriarcal e elitista, que excluiu não só a mulher, mas índios, negros, escravos, analfabetos e, em muitos casos, a quem não tinha propriedades”.
Ao longo do século XX, este mesmo projeto se manteve, sendo constantemente reproduzido pelos aparelhos ideológicos do Estado, embora contestado pelos movimentos feministas, negros e LGBTs, principalmente a partir da década de 1960. Entretanto, é sua atualização que está em jogo quando a Literatura Brasileira é reduzida ao “critério nacionalizante” para reprimir a emergência dos estudos literários afro-brasileiros.
Com efeito, a “menina dos olhos” da cultura está sendo provocada por novas estéticas literárias que buscam, a todo momento, um embate ético com o discurso fundante do Estado- nação, que é construído a partir da visão da “elite” vigente no país – grupo político/cultural/étnico-racial que reproduz uma visão de mundo eurocentrada. Nesse sentido, o querer manter-se sempre com o domínio do discurso – e, por extensão, do poder – fez com que a literatura considerada como nacional – mas, que na verdade, é a expressão literária de uma classe específica – fechasse suas portas para outras perspectivas sociais e suas respectivas literaturas – discursos poéticos ou ficcionais que recriam a realidade a partir da experiência das minorias.
A Literatura Afro-Brasileira ou Negro-Brasileira, apesar do silenciamento que lhe é imposto, é composta por um riquíssimo corpus literário que vai desde Domingos Caldas Barbosa, século XVIII, até os contemporâneos Oswaldo de Camargo e Lande Onawale, como comprova a antologia em quatro volumes organizada por Eduardo de Assis Duarte (2011).Segundo Eduardo de Assis Duarte,
A inexistência de uma recepção crítica volumosa e atualizada, bem como de debates regulares nos fóruns específicos da área de Letras, decorre desses fatores e também da ausência da disciplina “Literatura Afro-brasileira” (ou “Literatura Brasileira Afrodescendente”) nos currículos de graduação e pós-graduação da maioria dos cursos de Letras instalados no Brasil. Como consequência, mantém-se intacta a cortina de silêncio que leva ao desconhecimento público e vitima a maior parte dos escritores em questão (DUARTE, 2005, p.2).
O quadro que Duarte aponta vem sendo, de forma tímida, superado em algumas Instituições de Ensino Superior do Brasil, com o empenho de professores interessados em dar visibilidade a esta profícua vertente literária, portadora de um discurso outro em relação àquele constitutivo do Estado-nação. É, no entanto, um caminho ainda árduo para se trilhar, já que a resistência ao contato com discursos negros está alicerçada no racismo como fenômeno estruturante da sociedade brasileira moderna e contemporânea.
Sarau Enegrescência e as Literaturas negro-brasileiras e negro-africanas: um olhar sobre esse espaço de resistência.
O Projeto Enegrescência surgiu a partir do livro de poesia Enegrescência, publicado em 2013 e escrito em parceria por David Gomes e Lidiane Ferreira. É composto pelas rodas de sarau e pelo blog enegrescência.blogspot, que foi criado com o intuito de registrar poesias autorais, além daquelas de escritoras e escritores negras e negros recitados nas rodas de poesia. De acordo com o blog, o projeto tem o objetivo de “criar meios de divulgação das literaturas afro-brasileira e literaturas africanas”, a fim de promover a valorização destas produções poéticas.
O Sarau Enegrescência é fruto da vontade coletiva de quatro estudantes do curso de Letras Vernáculas da Universidade Federal da Bahia (UFBA): David Gomes, Lidiane Ferreira, Gonesa Gonçalves e Fabio Cunha. Trata-se de uma ideia vinculada à própria experiência como estudantes de Letras, aos quais era negado o contato com outras literaturas além daquelas constitutivas do cânone nacional brasileiro/europeu. Engajados na perspectiva contemporânea de romper o silenciamento em torno dos textos literários não hegemônicos, os quatro estudantes buscaram meios de divulgação de produções negro-brasileira, cabo-verdiana, moçambicana, são-tomense, guineense e angolana.
Desde a sua primeira edição, em novembro de 2014, o Sarau Enegrescência vem ocorrendo uma vez por mês, sempre aos sábados, no Centro Cultural Casa de Angola, localizado no bairro da Barroquinha, em Salvador.
Com o microfone aberto, cada pessoa pode trazer sua poesia e declamá-la, independentemente de sua temática – o que interfere na dinâmica das apresentações proposta pelos idealizadores do evento, uma vez que muitos poemas apresentados pelo público não dialogam com a proposta ética/estética que o evento veicula. Embora os idealizadores do sarau assumam um compromisso em estabelecer diálogos com temáticas que não estão diretamente relacionadas com a sua proposta inicial, a falta de critérios para a declamação de textos compromete o seu objetivo final, que é a divulgação das literaturas negro-brasileira e das literaturas africanas de Língua Oficial Portuguesa.
Neste sentido, é importante salientar que, embora haja um engajamento ético embasado no recorte racial, outras discussões circulam no sarau, como as temáticas erótica, feminista e homoafetiva. Assim, busca-se um diálogo com o público a fim de mostrar que há produções literárias que discutem e são produzidas por outras minorias marginalizadas além dos povos negros.
Desta forma, do ponto de vista ético, o Sarau Enegrescência procura abrir um diálogo com os presentes no evento sobre assuntos que permeiam a sociedade e atingem diretamente o seu público-alvo. Segundo David Gomes, um dos fundadores do Sarau,
[...] a gente pensa que a literatura não está dissociada da sociedade. Então, o sarau, a gente pensa que não é só recitar poemas e recitar contos, é necessário também que haja discussão, haja discussões sobre a sociedade [...]. Quer dizer, a literatura, na realidade, não está restrita ao texto literário em si, falar sobre literatura pode envolver outras questões.[3: Depoimento obtido a partir de entrevista realizada com os organizadores do Sarau Enegrescência, em 10 de abril de 2015, para fins desta pesquisa. A transcrição completa da entrevista se encontra em apêndice.]
A denúncia da homofobia, do sexismo e do racismo são questões presentes no sarau, realizadas tanto por seus idealizadores quanto por convidados, que dialogam com o público presente em um momento em que as recitações são temporariamente suspensas.
Um ponto interessante deste sarau é a presença de convidados que vêm ao espaço para falar de sua vida, artistica ou de combate as injustiças sociais. Um desses convidados foi o MC Coscarque (André Costa). Nascido e criado no Subúrbio Ferroviário de Salvador, ele já está há mais de 8 anos na estrada e trabalha na divulgação do Hip Hop no cenário alternativo baiano. Ele foi convidado para falar sobre sua música e poesia, bem como acerca da luta que os cantores de rap têm para sobreviver de sua arte. O convidado também falou sobre o mercado fonográfico baiano, a falta de políticas culturais que abarquem o rap e sobre racismo.
Outra convidada que já passou pelo sarau foi a ativista Sandra Muñoz, coordenadora da Casa Cristal Lilás da Bahia, que promove a prevenção e o enfrentamento à violência contra a população LGBTTT. Sandra Muñoz falou sobre a homofobia, especialmente voltada para as populações lésbica e transgênero, e a luta que ela vem travando ao longo dos anos para denunciar pessoas, governos e instituições públicas que discriminam mulheres, gays, lésbicas, travestis, transexuais e transgêneros.
Iachas Camime Machado, cabeleireira, especialista em tranças afro, também passou pelo sarau afim derealizar uma discussão baseada em sua experiência na estética afro, pautada nos cabelos das mulheres negras e dos homens negros, como forma de sair do padrão de beleza hegemônico definido. 
Noutro plano, os poemas produzidos e recitados pelos idealizadores do sarau também estão carregados de um engajamento ético, como forma de abrir uma reflexão, um diálogo. Embora o recorte racial seja marcante nesses textos, não há um aprisionamento dos autores em uma única temática.
Assim, David Gomes segue uma linha temática voltada à valorização da negritude e da denúncia do racismo: seus poemas são fortemente empenhados no que diz respeito ao fortalecimento da cultura negra na sociedade. Lidiane Ferreira segue uma linha que passa pelo recorte racial e pela temática feminista. Fábio Cunha não tem uma linha definida, o que indica que o poeta ainda está à procura da definição de sua angústia autoral. Gonesa Goncalves diz que sua escrita também é homoafetiva: “Eu escrevo, a maioria das vezes, para temas de minoria, homoafetividade, recorte racial, o corpo feminino [...]”.[4: Depoimento obtido a partir de entrevista realizada com os organizadores do Sarau Enegrescência, em 10 de abril de 2015, para fins desta pesquisa. A transcrição completa da entrevista se encontra em apêndice.]
Por outro lado, a organização estética do sarau está toda voltada para a valorização do corpo negro associado às vestimentas africanas. Este é um ponto importante no combate à estética branco-europeia que se estabelece como hegemônica na sociedade. Então, vestir os corpos com colares e pulseiras feitos de madeira, conchas e sementes de árvores africanas, além de turbantes, é uma forma de resistência a toda essa tentativa de apagar o que não está em acordo com o padrão brancocêntrico.
O Sarau Enegrescência carrega, em seu nome, uma particularidade que acarreta diversos entendimentos: o signo “enegrescência”, em nada arbitrário, é formado a partir da aglutinação de dois outros signos, “enegrecer” e “essência”, que remetem automaticamente à ideia de uma “essência negra”, embora esta sejauma leitura negada através de nota explicativa em sua página oficial no Facebook e também no Blog:
Apesar de o termo "Enegrescência" possibilitar uma remissão a um essencialismo negro, rejeitamos qualquer tipo de essencialismo, pois entendemos as "essências" como fatores que contribuem para a racialização dos indivíduos ou de determinadas culturas, podendo proporcionar hierarquizações raciais. Além disso, uma concepção essencialista não condiz com uma visão dinâmica das sociedades africanas, relegando-as ao espaço do estático e do a-histórico. Entendemos o princípio da ancestralidade como elemento importantíssimo para a compreensão das culturas africanas, mas nunca recaindo nos essencialismos, percebendo, então, as sociedades como construções culturais e dinâmicas.
O discurso dos idealizadores do Sarau Enegrescência, aliás, corretíssimo do ponto de vista teórico, contrasta amplamente com o título dado ao evento que organizam, posto que conotativo, sim, de uma estratégia essencialista, que, aliás, vem a ser adensada quando relacionada com outros elementos constitutivos do sarau: sua marca, que centraliza o continente africano; a terminologia usada, “literatura negra”; o local onde ocorre, Casa de Angola. Da mesma forma, quando os organizadores usam o termo “raça negra”, racializam o ser, atribuindo-lhe uma identidade fixa, imóvel, portadora de características baseadas no fenótipo da pessoa.
Com o desenvolvimento do pensamento contemporâneo, a noção de “essência”, de identidades fixas e a-históricas, foi combatida e derrotada. No entanto, a construção essencialista das identidades étnico-raciais opera, desde os anos 1960, como uma forma de ressignificação da negritude, procurando quebrar qualquer negatividade criada em torno dos afrodescendentes pela positivação do signo “negro” e dos corpos negros, adotando medidas de valorização e de elevação da autoestima.
É importante ressaltar que houve uma época em que a adoção de medidas essencializantes foi necessária, como a já referida década de 1960, e, mais intensamente, com a criação do Movimento Negro Unificado (MNU), em 1978. Através de discursos voltados para a positivação do “ser negro”, o MNU reorganizou toda a forma de pensar de uma população que vivia sob o estigma do racismo, que a desvalorizava e criava empecilhos ao seu desenvolvimento.
Naquele momento, caracterizado por um largo enfrentamento à sociedade veladamente racista, a postura do MNU foi vital na transformação do homem negro e da mulher negra. No entanto, esta é uma estratégia um tanto perigosa, posto que
O momento essencializante é vulnerável porque naturaliza e desistoriciza a diferença, confunde o que é histórico e cultural com o que é natural, biológico e genético. No momento em que o significado “negro” é arrancado de seu encaixe histórico, cultural e politico, e é alojado em uma categoria racial biologicamente constituída, nós valorizamos, pela inversão, a própria base do racismo que estamos tentando desconstruir (HALL, 2009, p.326).
O discurso essencialista ainda é recorrente e está presente na fala e nas produções literárias de muitos escritores contemporâneos como uma forma de combater o racismo: embora o conceito cientificista de “raça” não seja mais aceito do ponto de vista da ciência, ele continua operando no imaginário social do Ocidente.
No Sarau Enegrescência, alguns símbolos nos fazem lembrar um essencialismo velado, a começar pela associação de seu título com a sua marca. A imagem do continente africano centralizado, quando lida sobre a clave de uma proposta em “tornar-se essencialmente negro”, reduz a experiência plural de ser negro a uma construção fixa do que é sê-lo.
Ainda sobre este mesmo aspecto, outro ponto importante a se ressaltar é o espaço onde ocorre o evento: a Casa de Angola. Embora os idealizadores do sarau digam que a escolha do espaço tenha a ver, única e exclusivamente, com o diálogo que eles pretendem fazer entre as literaturas negro-brasileira e negro-africanas, o espaço atua também como um reforço da ideia de um discurso essencialista uma vez que aponta, em conjunto com a marca do evento, para a identificação de uma origem, que seria o vetor da ação de “tornar-se negro”.
Assim, o sarau nasce carregado de um engajamento em se constituir como um elo entre o Brasil e o continente africano – localidades que se unem em torno de uma população, os negros. É importante marcar que, em si, esta não é uma perspectiva descolada do pensamento contemporâneo, mas a forma como os organizadores a veiculam sim: a de uma essência que deve ser recuperada pela ação em “enegrecer-se”.
O Sarau Enegrescência peca ainda quando opta por abarcar apenas a África lusófona, isto é, as literaturas dos cincos países africanos que têm a Língua Portuguesa como idioma oficial: Moçambique, São-Tomé e Príncipe, Angola, Cabo-Verde e Guiné-Bissau. Neste sentido, a África lusófona, parte do todo África, é significada como uma metonímia do continente, o que reduz a abrangência da abordagem em torno das literaturas africanas.
Outro elemento importante a se destacar neste sarau é o conceito com o qual eles definem a vertente da literatura brasileira com a qual trabalham, que vem a ser a “Literatura Negra”. Tanto no blog como nos discursos obtidos por meio de entrevistas, essa definição ganha destaque entre outras igualmente possíveis, como “Literatura Afro-brasileira”, “Literatura Afrodescendente” e/ou “Literatura Divergente”.
O conceito “literatura negra” ou “literatura negro-brasileira”, como emprega Cuti (2010), remete a uma essencialização do fenômeno literário, vinculando-o a uma construção pautada, quase exclusivamente, na cor da escritora ou do escritor. O termo “negro-brasileiro” faz frente a outras terminações empregadas pelos pesquisadores brasileiros e que, segundo Cuti (2010), visam esvaziar a luta dos negros contra o racismo. Com efeito, não se trata apenas de uma briga por terminologias e, sim, por uma opção ideológica através da qual a mudança do nome interfere diretamente na identidade de quem faz literatura negra.
Embora eu entenda a posição do escritor, fico inclinado a crer em uma postura essencialista em seu discurso, já que, quando ele marca que a cor da pele deve ser o principal definidor de quem produz literatura negro-brasileira, ele recai na velha dicotomia branco versus negro, esquecendo-se ou minorando o discurso efetivamente enunciado, que, associado ao pertencimento étnico, deveria ser o elemento identificador da literatura negra. Para poder falar em nome de uma etnia não basta ter o fenótipo, nem pertencer à mesma cultura: é preciso, acima de tudo, ter um ponto de vista que concentre a experiência de ser negro.
Em um determinado período foi importante o uso do “essencialismo estratégico”, tal como o define Hall, mas, com o avanço do pensamento contemporâneo, tal discurso deve ser recebido com restrições. Embora seja verdade quando Cuti (2010) fala que só quem tem a pele escura é quem sente o racismo, nem todos que a possuem estão aptos a falar em nome dos negros: a pele não implica, necessariamente, em uma consciência histórica dos processos de exclusão movidos contra a população afrodescendente nem, muito menos, uma postura de enfrentamento e de quebra do paradigma racista. Por uma tomada de posição, eu opito pela terminologia: Literatura Negra, entendendo todas as implicações que cercam a terminologia citada. No entanto, acredito que por anos a palavra “negro/a” foi posta como algo negativo, se fazia de tudo para se livrar dessa expressão, agora que a literatura encontrou uma expressão que revelasse a voz de quem sempre foi silenciado, do oprimido, querem mudar a terminologia para uma outra forjada dentro das Acadêmias.
Outro aspecto importante a se destacar no Sarau Enegrescência é sua reiteração da perspectiva de visibilizar apenas autores negros africanos de Língua Oficial Portuguesa. O ponto inovador deste sarau é mesmo a promoção das literaturas africanas de autores negros como José Craveirinha, Noêmia de Souza, AgostinhoNeto, Conceição Lima e tantos outros, de modo a fazer frente à maciça veiculação que é dada apenas a escritores africanos brancos, a exemplo de Mia Couto, Pepetela, Agualusa, dentre outros, que contam com o aval das editoras portuguesas.
É como se as literaturas africanas de língua portuguesa precisassem passar por Portugal para validar seu escritor, acarretando em um entendimento de que as africanas estão internamente ligadas à literatura portuguesa. A pesquisadora são-tomense Inocência Mata atenta para essa questão quando diz que:
Muita gente pensava, e ainda pensa, ainda vê as literaturas africanas como literaturas ultramarinas, como um apêndice da literatura portuguesa. Até há pouco tempo, havia uma universidade em que essa era a designação […], Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa (MATA, 2009, p, 3-4).
Para a professora, essa visão é fruto de um sistema em que as literaturas africanas de língua portuguesa precisam da “metrópole” para existirem, para se espalharem pelos outros países da CPLP, como em uma atualização simbólica do antigo Império Português.[5: Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (Portugal, Brasil, Guiné-Bissau, Angola, São Tomé e Príncipe, Moçambique e Cabo Verde)]
Isso acarreta em duas situações: a primeira como já foi dito é a limitação da circulação de bens culturais, que precisam primeiro passar por Portugal para depois ganhar o mundo. O segundo, que não está dissociado do primeiro, é a questão do domínio da lusofonia nas produções literárias dos países africanos e até mesmo no Brasil. O domínio da lusofonia acaba silenciando e esvaziando as línguas maternas dos escritores africanos. Trata-se do empoderamento e, por extensão, da manutenção simbólica do poder de Portugal sobre suas ex-colônias que, mesmo com o fim da colonização, se faz ainda presente.
Nesse sentido, o evento incorre ainda nas limitações impostas pela lusofonia. Henrique Freitas, intelectual e professor da UFBA, já chama a atenção para a necessidade de superar essa hegemonia lusa. Para ele:
[...] o desafio do século XXI é escapar a essa importante estratégia que foi potência no momento de emergência dos estudos das africanas no País, mas hoje, sob este e novos signos como o da lusofonia, converge para perigosos monologismos teleológicos que reencenam Portugal como origem, centro e parâmetro desde a etimologia. A própria noção de literatura restringe-se, nesta lógica, a uma experiência artística específica de letramento formal em língua europeia, promovida pela empresa colonial e mítica portuguesa (FREITAS, 2013, p. 42).
Segundo os idealizadores do sarau, a falta de acesso a autores que escrevam a partir de suas línguas maternas é um obstáculo para recitações e publicações em seu blog – uma desculpa que Inocência Mata (2009) combate com veemência. De acordo com ela, o pesquisador não pode ter este tipo de comportamento: a falta de acesso, com todo avanço tecnológico da internet, não pode ser explicação para se conseguir determinadas obras ou ter conhecimento delas.
É necessária a superação da língua portuguesa como difusora da escrita africana, assim como se faz necessário quebrar o cânone africano instituído no Brasil, que privilegia escritores brancos. No que tange à literatura brasileira, é igualmente importante visibilizar outros discursos além daquele que se configura como hegemônico. De uma forma ou de outra, o Sarau Enegrescencia procura responder a essas demandas e, embora timidamente e passível de algumas críticas, vem cumprindo com seu projeto estético e ético.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Embora com um corpus já firmado, a literatura negra ainda passa por invisibilização em muitos espaços literários oficiais, como Academias de Letras e Universidades, que prescindem de disciplinas específicas, voltadas para a discussão de autorias e temáticas afro- brasileiras, em sua grade curricular obrigatória.
Neste contexto, os saraus literários têm sido os principais eventos onde a literatura negra circula, seja ela produzida por novos poetas ou por escritores afrodescendentes já estabelecidos. É principalmente por meio dos saraus periféricos que a literatura negra vem ganhando cada vez mais força e visibilidade entre o público.
Os saraus são hoje os principais divulgadores de poetas negros que não encontram espaços no circuito hegemônico nos centros urbanos, não só aqui em Salvador, mas em todo o território nacional. Pensar a literatura negra dissociada destes espaços é não enxergar toda a sua potencialidade e seu poder de ressignificar localidades.
A literatura negro-brasileira – ou, no caso do Enegrescência, também negro-africana – que circula nos saraus negros de Salvador, apresenta-se com uma identidade que a relaciona intimamente tanto com o espaço em que os eventos acontecem, quanto com o público que está presente neles. Devido ao seu engajamento ético, é possível observar que tais saraus têm se utilizado da poesia como um importante veículo de fortalecimento das identificações étnico- raciais em um processo de resistência aos paradigmas ocidentais, que estigmatizam e subjugam a população negra.
REFERÊNCIAS
ACHUGAR, Hugo. Ensaio sobre a nação no início do século XXI: breve introdução in situ/ab situ. In: 	. Planetas sem boca. Escritos efêmeros sobre Arte, Cultura e Literatura. Tradução de Lyslei Nascimento. Belo Horizonte> Editora UFMG, 2006. p.199- 220 
CUTI. Literatura Negro-brasileira. São Paulo: Selo Negro, 2010.
DAMAZIO, Aline. Mapa indica principais saraus de Salvador. Correio da Bahia, Salvador, 21.nov.2013, Somos. Acesso em 11 nov. 2014.
 Disponível em: http://www.correio24horas.com.br/detalhe/noticia/mapa-indica-principais-saraus-de- salvador/?cHash=4c6491984ca9bfaa05e34c304c77472e. 
DUARTE, Eduardo de Assis. Literatura e Afro-descendência In: 	Literatura, política, identidades: Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2005.
DUARTE, Eduardo de Assis. Por um conceito de literatura afro-brasileira. In: DUARTE, Eduardo de Assis; FONSECA, Maria Nazareth Soares (Orgs.). Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica. Volume 4: História, teoria, polêmica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011. p. 375-403.
FREITAS, Henrique. Dez-a-fios epistemológicos para as Literaturas Africanas no Brasil. In: SANTOS, José Henrique de Freitas; RISO, Ricardo. Afro-rizomas na diáspora negra. As literaturas africanas na encruzilhada brasileira. Rio de Janeiro: Kitabu, 2013. p. 41-58.
GOMES, david; CUNHA, Fábio; GONÇAVES, Gonesa e FERREIRA, Lidiane. Projeto Enegrescência [blog na Internet]. Salvador: fevereiro de 2015. Disponível em: http://enegrescencia.blogspot.com.br/ Acesso em: 20.maio.2015.
GOMES, david; CUNHA, Fábio; GONÇAVES, Gonesa e FERREIRA, Lidiane. Projeto Enegrescência [página no Facebook]. Salvador: novembro de 2014. Disponível em: https://www.facebook.com/projetoenegrescencia?fref=ts Acesso em: 15.dez.2014.
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