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NDJ – BDA – FEV/14142 A LEGALIDADE E O LIMITE DO PODER-DEVER REGULAMENTAR NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO Kátia Regina Camila Catalano Mestranda pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC – SP; Advogada Introdução. 1. A legalidade no Estado Democrático e Social de Direito. 1.1. Breve histórico sobre a legalidade. 1.2. Legalidade: regra ou princípio? 1.3. As diferentes significações do termo “princípio”. 1.4. A legalidade como regra jurídica. 1.5. Limites ao poder-dever regulamentar do Executivo. Conclusões. Referências. INTRODUÇÃO A legalidade, como concebida no Estado Democrático e Social de Direito, garante aos ci- dadãos em geral a liberdade de agir e de exercitar as suas vontades sem qualquer interferência do Poder Público, salvo as restrições previstas em leis amplamente discutidas no Poder Legislativo Federal, Estadual ou Municipal, garantindo a parti- cipação representativa de todos os grupos sociais. Tratando sobre os princípios jurídicos e o conceito a eles atribuído no denominado pós- -positivismo, ver-se-á que a legalidade não se trata de princípio, mas sim de regra jurídica que não admite ponderação no momento de sua aplicação, razão pela qual a imposição de obri- gações e limitações administrativas aos cidadãos por parte do Poder Executivo apenas pode se dar validamente com respeito aos termos legais. Assim, partindo da legalidade como garantia individual e regra jurídica, serão estabelecidos al- guns critérios objetivos para delimitar o exercício da competência regulamentar do Executivo, não só com base na doutrina nacional, mas também no Direito comparado, adaptando-o obviamente ao ordenamento jurídico brasileiro. 1. A LEGALIDADE NO ESTADO DEMOCRÁTICO E SOCIAL DE DIREITO 1.1. Breve histórico sobre a legalidade A análise histórica da evolução da legalidade mostra-se essencial neste artigo, na medida em que a sua conquista encerrou a era em que o poder autoritário monocrático podia interferir na liberdade individual dos súditos – e não cidadãos – sem que a vontade da maioria fosse amplamen- te debatida em um devido processo legislativo. Sem prejuízo das bases filosóficas construídas por Aristóteles,1 que afirmavam a preferência de um governo de leis sobre um governo de homens, a verdade é que a noção básica de soberania no período pré-Revolução Francesa se resumia no po- der real absoluto, no qual o rei, sob o fundamento de sua superioridade divina, podia derrogar todas as regras estabelecidas de acordo única e exclu- sivamente com a sua vontade pessoal. García de Enterría,2 analisando o Direito Público europeu pré-revolucionário, apresenta a doutrina de Domat, que, em sua obra Les lois civiles dans leur ordre naturel, escrita em 1689, descreve no capítulo destinado ao Direito Público como era concebida a “relação” soberano-súdito à época. Neste sentido, o autor apresenta parte do capítulo atribuído ao Rei Luiz XIV, nos seguin- tes termos: Para tratar a fondo el Derecho Público en su extensión y tal como está en uso en vuestro Reino es preciso comenzar por los fundamentos de la autoridad y del poder que Dios ha puesto en la persona sacrosanta de vuestra Majestad para gobernarlo, de los derechos ligados a ese poder, de la veneración, de la obediência y de la fidelidad que le deben sus súbditos y a todas sus órdenes. 1. ARISTÓTELES, 1977, livro III, cap. 12, p. 115. Sobre o tema, Norberto Bobbio (1989, p. 152) coloca a questão da seguinte forma: “Bom governo é aquele em que os governantes são bons porque governam respeitando a lei ou aquele em que existem boas leis porque os governantes são sábios?”. 2. GARCÍA DE ENTERRÍA, 2009, p. 99. DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES – NDJ – BDA – FEV/14 143 Es preciso entrar en el detalle de los derechos que encierram el uso de ese poder en paz e en guerra, las fuerzas y las otras ayudas necessárias para hacer subsistir en Estado en orden y tran- quilidade y defenderle contra las empresas de los enemigos [...]. Pues como el orden público es la obra de Dios mismo, que dispone del gobierno de todos los Estados, que da a los reyes y a los otros príncipes todo su poder y que regula el uso y el orden del cuerpo de la sociedad de los hom- bres de los cuales el ha puesto los Jefes, es en la fuerza de las verdades que el nos ensena por la Religión y en las luces naturales de la justicia y de la equidade donde es preciso profundizar el detalle de las reglas del Derecho Público. Portanto, o conceito de soberania era tra- duzido no dever de obediência e fidelidade dos súditos à supremacia real, não havendo limites jurídicos para as ações do rei, salvo os relativos à sua prudência, educação e a seu ideal político. Com o movimento do racionalismo jurídico do século 18 e diante das primeiras noções de direitos fundamentais, começa a surgir a ideia de que o Estado não poderia ser reduzido à vontade do monarca, como um enviado de Deus, sendo imprescindível que a liberdade dos indivíduos fosse também preservada. Tais filosofias liberais acabaram por abalar as bases do Estado Absolutista e deram ensejo, um século mais tarde, à Revolução Francesa, que procurou buscar na supremacia do Poder Legisla- tivo sobre o Poder Executivo a solução limitadora dos desmandos da monarquia, relacionando a vontade popular representativa à produção da lei. Neste contexto, a legalidade nasce com a necessidade de se aplicar na prática a tese da se- paração entre os Poderes,3 bem como para a de- fesa da liberdade dos indivíduos, destacando-se como defensores desses ideais os filósofos John Locke, Montesquieu e Jean-Jacques Rousseau. Partindo da premissa de que o fundamento de autoridade de uma lei está na expressão da maio- ria, que se traduz em um “acto da totalidade”, Locke alicerça a obrigatoriedade das leis na vontade do povo, empregando quase absoluta supremacia ao Poder Legislativo sobre o Poder Executivo. Não obstante seu pensamento, Locke susten- ta certos limites ao Poder Legislativo e reconhece a possibilidade de produção de leis imperfeitas, razão pela qual defende certa margem de liber- dade de atuação do Poder Executivo “sempre e quando isso favoreça o bem público e conte com a aquiescência da sociedade”.4 Posteriormente, segue Montesquieu com a teoria sobre a separação de Poderes do Estado, que, retomando Aristóteles, estabelece, como forma de garantir a liberdade e de conter o ha- bitual abuso daqueles que detêm o poder, a sua divisão em três esferas: a) o Poder, Legislativo, para a elaboração das leis; b) o Poder Executivo; e c) o poder de julgar. 3. Dallari (1998, p. 188) ressalta que “O antecedente mais remoto da separação de poderes encontra-se em Aristóteles, que considera injusto e perigoso atribuir-se a um só indivíduo o exercício do poder, havendo também em sua obra uma ligeira referência ao problema da eficiência, quando menciona a impossibilidade prática de que um só homem previsse tudo que nem a lei pode especificar”. De fato, Aristóteles (2006, p. 113) dizia que: “Em todo governo, existem três poderes essenciais, cada um dos quais o legislador prudente deve acomodar da maneira mais conveniente. Quando estas três partes estão bem acomodadas, necessariamente o governo vai bem, e é das diferenças entre estas partes que provêm as suas. O primeiro destes três poderes é o que delibera sobre os negócios do Estado. O segundo compreende todas as magistraturas ou poderes constituídos, isto é, aqueles de que o Estado precisa para agir, suas atribuições e a maneira de satisfazê-las. O terceiro abrange os cargos de jurisdição”. 4. Com efeito, Locke (1983, p. 99) dizia que: “Embora em uma comunidade constituída, erguida sobre sua própria base e atuando de acordo com a sua própria natureza, isto é, agindo no sentido da preservação da comunidade, somente possaexistir um poder supremo, que é o legislativo, ao qual tudo o mais deve ficar subordinado, contudo, sendo o legislativo somente um poder fiduciário destinado a entrar em ação para certos fins, cabe ainda ao povo um poder supremo para afastar ou alterar o legislativo quando é levado a verificar que age contrariamente ao encargo que lhe confiaram. Porque sendo limitado qualquer poder concedido como encargo para conseguir-se certo objetivo, por esse mesmo objetivo, sempre que se despreza ou contraria manifestamente esse objetivo, a ele se perde o direito necessariamente, e o poder retorna às mãos dos que o concederam, que poderão colocá-lo onde o julguem melhor para a garantia e segurança próprias. E, nessas condições, a comunidade conserva perpetuamente o poder supremo de se salvaguardar dos propósitos e atentados de quem quer que seja, mesmo dos legisladores, sempre que forem tão levianos ou maldosos que formulem planos contra as liberdades e propriedades dos súditos; porque, não tendo qualquer homem ou sociedade de homens o poder de renunciar à própria preservação, ou consequentemente, os meios de fazê-lo, a favor da vontade absoluta e domínio arbitrário de outrem, sempre que alguém experimente trazê-los a semelhante situação de escravidão, terão sempre o direito de preservar o que não tinham o poder de alienar, e de livrar-se dos que invadem esta lei fundamental, sagrada e inalterável da própria preservação em virtude da qual entraram em sociedade. E assim pode dizer-se neste particular que a comunidade é sempre o poder supremo, mas não considerada sob qualquer forma de governo, porquanto este poder do povo não pode nunca ter lugar senão quando se dissolve o governo”. NDJ – BDA – FEV/14144 Partindo de um modelo de cooperação entre os Poderes, o filósofo, em tese,5 defende que ne- nhum prevaleça sobre os demais, o que pode vir a se mostrar ambíguo na medida em que resta ao Executivo a faculté d’empêcher (veto) sobre as de- cisões do Legislativo, sem que este último tenha o mesmo direito sobre as atividades executivas. De qualquer forma, montando os alicerces da legalidade, Montesquieu atribui à lei o fator determinante das várias formas de governo, afirmando que o arbítrio é a base do despotis- mo, e a legalidade o fundamento da república,6 atrelando a tal conceito a expressão racional de uma vontade geral que deve ser obedecida pelo Executivo e cujo fundamento é garantir a liber- dade dos cidadãos, pois esta consiste em fazer aquilo que a lei permite. Em que pese partirem de premissas dife- rentes, Locke, da supremacia do Legislativo, e Montesquieu, da mútua colaboração entre os Poderes, em comum, viam na lei, como expres- são da soberania do povo, a solução para os excessos cometidos pelo Poder Executivo. Jean-Jacques Rousseau, na mesma linha de Locke, defende o Poder Legislativo como sendo o único Poder soberano e superior, afirmando que “o poder legislativo é o coração do Estado”,7 o que denota sua pouca preocupação com a limitação de seus poderes. Atribuindo ao povo a autoria das leis e sendo elas a declaração da vontade geral, Rousseau afirma que exigir o cumprimento delas nada mais é do que garantir a liberdade de todos “já que a voz do maior número obriga sempre todos os outros”.8 Paulo Otero,9 apresentando síntese do pen- samento rousseauniano, descreve o seguinte: O indivíduo encontra-se, deste modo, numa dupla relação com o Estado, sendo legislador, enquanto membro da coletividade soberana, e também súdito, agora como destinatário de prescrições das leis de que foi autor e a que deve obediência. Observa-se aqui um verdadeiro processo integrativo ou de síntese conciliatória entre o indivíduo e o Estado, substituindo-se a tradicional ideia de luta do homem contra o poder para a defesa da liberdade, pois no esquema rousseauniano a liberdade só se encontra dentro do Estado e não contra o Estado. Dando início à ideia de legalidade material, Rousseau também ressalta a importância de as leis serem elaboradas em termos gerais e abstra- tos, atribuindo à noção de legalidade o conteúdo de igualdade e garantindo que o Poder Executivo, mero aplicador das leis, seja impessoal na elabo- ração de atos concretos.10 Sobre o Poder Executivo, o filósofo destaca ser este “a força aplicada da lei” cuja função é a de simplesmente executá-la, afirmando que seus membros estão impedidos de formar vontade autônoma por “não serem senhores do povo, mas sim os seus meros oficiais”. Em que pese o seu pensamento central de absoluta supremacia do Legislativo, Rousseau admite que em casos excepcionais e para salvaguardar a pátria, é au- torizado ao Poder Executivo afastar todas as leis e suspender a autoridade soberana do povo, o que revela grande contradição de sua tese, muito bem destacada pelo já citado Paulo Otero.11 5. Em tese porque, conforme esclarece Paulo Otero (2003), “será, porém, que a concepção de um modelo de separação de poderes em que o exercício do legislativo conta com a participação do executivo – veto – isto sem que este sofra o exercício de idêntica faculdade por parte do primeiro, permite alicerçar uma verdadeira ideia de paridade entre os dois poderes? Ou, segundo uma outra perspectiva, como poderá existir uma legalidade heterovinculativa da Administração se o próprio poder executivo goza de uma faculté d’empêcher a produção legislativa e, por esta via, se encontra habilitado a escolher e a configurar a legalidade a que se vai vincular?” 6. SILVESTRI, 1979, p. 283. 7. ROUSSEAU, 2007, livro III, cap. XI, p. 89. 8. Idem, ibidem, livro IV, cap. II, p. 105. 9. OTERO, 2003, p. 60. 10. Destaca o filósofo: (ROUSSEAU, op. cit., p. 56): “Quando digo que o objeto das leis é sempre geral, por isso entendo que a Lei considera os súditos como corpo e as ações como abstratas, e jamais um homem como um indivíduo ou uma ação particular. Desse modo, a Lei poderá muito bem estatuir que haverá privilégios, mas ela não poderá concedê-los nominalmente a ninguém; a Lei pode estabelecer diversas classes de cidadãos, especificar até as qualidades que darão direito a essas classes, mas não poderá nomear este ou aquele para serem admitidos nelas; pode estabelecer um governo real e uma sucessão hereditária, mas não pode eleger um rei ou nomear uma família real. Em suma, qualquer função relativa a um objeto individual não pertence, de modo algum, ao poder legislativo”. 11. OTERO, op. cit., p. 66. “Rousseau lança, deste modo, uma dúvida nuclear sobre todo o seu modelo anteriormente gizado: soberano será o poder legislativo ou aquele poder que a ditadura confere a um magistrado para, visando salvar a pátria, suspender as leis?” DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES – NDJ – BDA – FEV/14 145 De uma maneira geral, portanto, a legalidade surgiu como forte instrumento do liberalismo precursor da Revolução Francesa, sendo sua raiz ligada aos conceitos de supremacia do Le- gislativo soberano – já que a lei é a vontade da maioria do povo – e de garantia de liberdade e igualdade – pois é geral e abstrata –, sendo o Poder Executivo mero aplicador de seus termos. Nesse sentido, o art. 4º da Declaração Uni- versal dos Direitos do Homem e do Cidadão12 destaca, in verbis: A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que não prejudique outrem: assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão os que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Esses limites apenas podem ser determinados em lei. É de se concluir, portanto, que com a Revo- lução Francesa iniciou-se o denominado Estado de Direito, com a supervalorização do homem- -indivíduo e de sua liberdade e a delimitação dos limites invasivos a que o Estado haveria de se circunscrever na esfera do cidadão. A França revolucionária, ademais, construiu um legado decisivopara a compreensão do Es- tado de Direito, já que deixou expresso na citada Declaração de 1789 que não há Estado onde não houver uma Constituição feita pela nação sobe- rana que contenha uma declaração de direitos e uma organização do poder político segundo o princípio da divisão de Poderes. Neste sentido, podemos dizer com Verdú13 o que caracteriza o Estado de Direito: Quando um Estado estrutura juridicamente a organização e o exercício do poder político, de maneira que os indivíduos estejam protegidos pela existência prévia das normas e institui- ções garantidoras de seus direitos e liberdades, quando toda a atividade estatal se submete a essas normas e instituições, sem exceções além daquelas reclamadas pelo bem-estar geral, po- demos dizer que nos encontramos perante uma comunidade jurídica civilizada. O Estado Liberal de Direito juridicizou, esclareceu e ordenou com critério [sic] formais a organização e o exercício do poder limitado pela Constituição. No entanto, como bem assevera Sahid Maluf, assim como a República de Platão, que fora ar- quitetada no mundo das ideias, o Estado Liberal seria realizável, como se disse algures, numa coletividade de deuses, nunca numa coletividade de homens.14 A legalidade meramente formal, tal como concebida pelos liberais, ou seja, estranha aos problemas sociais e, consequentemente, a qual- quer intervenção na ordem econômica, não tar- dou a enfrentar os questionamentos antiliberais do séc. 19. A experiência da guerra, obviamente, também leva a questionamentos acerca da legali- dade formal e das liberdades individuais, uma vez que a realidade social não era identificada com as garantias até então protegidas pela legalida- de, tais como as relativas aos direitos políticos e civis, a vida, a intimidade e a liberdade. Como indica Bobbio:15 Da crítica das doutrinas igualitárias contra a concepção e a prática liberal do Estado é que nasceram as exigências de direitos sociais, que transformaram profundamente o sistema de re- lações entre o indivíduo e o Estado e a própria organização do Estado, até mesmo nos regimes que se consideram continuadores, sem altera- ções bruscas, da tradição liberal do século XIX [...]. Liberalismo e igualitarismo deitam suas raí- zes em concepções da sociedade profundamente diversas: individualista, conflitualista e pluralista, no caso do liberalismo; totalizante, harmônica e monista, no caso do igualitarismo. Para o liberal, a finalidade principal é a expansão da personali- dade individual, abstratamente considerada como um valor em si; para o igualitário, essa finalidade é o desenvolvimento harmonioso da comunidade. E diversos são também os modos de conceber a natureza e as tarefas do Estado: limitado e garan- tista, o Estado liberal; intervencionista e dirigista, o Estado dos igualitários. Diante dos movimentos socialistas decor- rentes de grandes monopólios econômicos e da 12. Disponível em: <http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao_e_conteudos_de_apoio/legislacao/direitoshumanos/declar_dir_homem_cidadao.pdf>. Acesso em: 19 dez. 2013. 13. VERDÚ, 2007, p. 144. 14. MALUF, 1986, p. 145. 15. BOBBIO, 2000, p. 42. NDJ – BDA – FEV/14146 consequente desigualdade social, surgem os denominados direitos fundamentais de segunda geração e o Estado Social de Direito, incumbido de garantir a todos os denominados direitos so- ciais, tais como o acesso à educação, à cultura, à saúde, dentre outros. Para atender às novas necessidades de uma sociedade cada vez mais complexa e pluri- classista, o Estado passou a desenvolver outras funções, não só relativas às prestações de ser- viços públicos e sociais, mas também ligadas à intervenção na atividade econômica, gerando um campo fértil à ampliação do poder regulamentar do Executivo. No entanto, da mesma forma que o Estado de Direito e sua legalidade formal exacerbada é passível de crítica, o Estado Social, que ignora a necessidade de limites legais e intervém de forma desarrazoada na liberdade dos cidadãos, também o é. O Estado, sob o manto de Estado-Providência, pode vir a alargar as suas técnicas interventoras e asfixiantes, restringindo demasiadamente a liber- dade e propriedade dos indivíduos, mostrando-se nefasto ao desenvolvimento econômico do país. Portanto, a lei do Estado de Direito serve justamente para limitar os eventuais abusos co- metidos pelo Estado intervencionista disfarçado de Estado-Providência, tal como, outrora, a lega- lidade limitou os abusos do Estado Absolutista. Logo, o Estado Democrático e Social de Di- reito em que nos encontramos é o resultado de uma longa disputa histórica de interesses e refle- te a tentativa de compatibilizar o desenvolvimento econômico com uma ordem social justa, definidos antecipadamente por preceitos constitucionais. Nessa linha de raciocínio, é evidente que a tensão anteriormente existente entre Estado de Direito e Estado Social, diante de nossa atual Constituição da República, mostra-se comple- tamente despropositada. Isso porque, em um Estado Democrático e Social de Direito a vontade da soberania popular é manifestada mediante a edição da lei, que deve buscar os seus valores materiais nos princípios jurídicos consagrados em nossa Carta Política, sob pena de nulidade absoluta. Uma lei que ignora os valores materiais da Constituição é absolutamente inválida, da mes- ma maneira que um ato administrativo do Poder Executivo que inova a ordem jurídica e ignora a lei é integralmente ilegal. Cumpre observar, ainda, que mesmo com a tentativa de retomada do Estado regulador não intervencionista da década de 1990 e a busca por uma Administração Pública gerencial, a verdade é que, no quadro atual, a sociedade se depara constantemente com a atuação de um governo que ora se mostra interventor na liberdade e pro- priedade privada dos cidadãos e ora se mostra gerencial, delegando à sociedade civil parte de suas tarefas constitucionais. Por uma ou outra razão, a legalidade mostra- -se hoje e, arrisca-se afirmar, ainda mais do que antes, imprescindível para a higidez do orde- namento jurídico brasileiro e para a realização de um legítimo Estado Democrático e Social de Direito, conforme preconiza a Constituição da República em seu art. 1º. Conforme lembra-nos Celso Ribeiro Bastos:16 A sujeição do próprio Estado à vontade dimanada de um de seus órgãos, o Legislativo, só foi possível ao termo de um longo processo de corrosão do absolutismo monárquico. Foi, portanto, o advento do Estado Constitucional que tornou possível falar-se de um autêntico princípio da legalidade. Não é possível, portanto, admitir atos admi- nistrativos que imponham obrigações aos admi- nistrados sem previsão em lei e sem um devido processo democrático, por absoluto retrocesso na evolução histórico-jurídica. Ainda que em benefício da coletividade, a restrição a direitos só é admitida pela lei, posto que a lei, pelo menos em tese, é sempre nascida da coletividade, seja de forma direta ou indireta, como sói acontecer nas democracias modernas. Logo, se o Estado é o produtor da lei, natural que, ao impô-la aos cidadãos-administrados, tenha o dever de cumpri-la, sempre com vistas à 16. BASTOS, 1999, p. 29. DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES – NDJ – BDA – FEV/14 147 verdadeira democracia. Do contrário, ou seja, se quem faz a lei a ela não se obriga, será estabe- lecida absoluta arbitrariedade. Claro que a legalidade está longe de ser a solução de todos os problemas do Estado, uma vez que, desde tempos idos, as suas falhas e imperfeições foram destacadas pelos filósofos liberais supramencionados e apenas se confir- maram no transcorrer dos séculos. Todavia, diante da ordem jurídica em vigor, é certo que a submissão dos atos normativos do Poder Executivo às leise destas aos preceitos e valores constitucionais é a fórmula mais segura de se defender os ideais democráticos tão per- seguidos ao longo da história. 1.2. Legalidade: regra ou princípio? A maioria da doutrina e jurisprudência refere- -se à legalidade como um princípio jurídico e, atrelando-a ao art. 5º, inc. II, da Constituição da República, discorre sobre ela como sendo ínsita ao Estado de Direito. Celso Antônio Bandeira de Mello,17 ao apre- sentar o princípio da legalidade, afirma que além de assentar-se na própria estrutura do Es- tado de Direito e, pois, do sistema constitucional como um todo, está radicado especificamente nos arts. 5º, inc. II, 37, caput, e 84, IV, da Constituição Federal. E prossegue: “estes dispositivos atribuem ao princípio em causa uma compostura muito estrita e rigorosa, não deixando válvula para que o Executivo se evada de seus grilhões”. Como sabemos, o art. 5º, inc. II, da Consti- tuição da República estabelece como garantia fundamental que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, deixando claríssimo em seu texto que a proibição ou obrigação de um comportamento a ser imposto pelo Poder Público deve ter por fun- damento uma das espécies legislativas previstas no art. 5918 da Carta Política referida. Sendo ga- rantia fundamental, a legalidade é cláusula pétrea e, assim, não pode ser objeto de emenda cons- titucional que pretenda modificá-la ou mitigá-la. O dispositivo constitucional, da mesma for- ma, traduz a ideia de hierarquia normativa do sistema jurídico brasileiro e, com ela, a de supre- macia da lei, pois, situada imediatamente abaixo da Constituição da República, tem prevalência sobre os regulamentos e atos administrativos produzidos pelo Poder Executivo. Porém, com o desenvolvimento do conceito de princípio realizado nos últimos tempos, a grande questão que se coloca é se, de fato, a le- galidade trata-se de princípio ou de regra jurídica e, em sendo uma ou outra coisa, qual a diferença prática dessa definição para o nosso estudo. É o que se passa a enfrentar. 1.3. As diferentes significações do termo “princípio” A análise evolutiva do conceito de princípio implica o estudo sobre a sua normatividade no sistema jurídico ou, em outras palavras, se ele pode ser entendido como norma jurídica em sentido estrito e, assim, determinar comandos de dever-ser. Conforme esclarece Paulo Bonavides,19 a ju ridicidade dos princípios passa por três fases distintas, quais sejam, a jusnaturalista, a positivis- ta e a pós-positivista. Na primeira delas, os prin- cípios carecem absolutamente de normatividade jurídica, uma vez que “habitam ainda esfera por inteiro abstrata” e são reconhecidos como dimen- sões ético-valorativas inspiradas em postulados de justiça. A segunda fase inicia-se com a positivação dos princípios nos Códigos Civis atuando como fontes integrativas do Direito, cuja função principal é a de garantir a completude do ordenamento ju- rídico, evitando as denominadas lacunas norma- tivas. Segundo tal visão positivista, os princípios jurídicos equivalem aos princípios que informam o Direito Positivo e lhe servem de fundamento, sendo certo que os estabelecidos em ordem 17. BANDEIRA DE MELLO, 2012, p. 105. 18. “Art. 59. O processo legislativo compreende a elaboração de: I – emendas à Constituição; II – leis complementares; III – leis ordinárias; IV – leis delegadas; V – medidas provisórias; VI – decretos legislativos; VII – resoluções. Parágrafo único. Lei complementar disporá sobre a elaboração, redação, alteração e consolidação das leis.” 19. BONAVIDES, 1996, p. 232. NDJ – BDA – FEV/14148 constitucional possuem eficácia meramente pro- gramática, sem possuir normatividade jurídica. Citando a doutrina de Flórez-Valdés, Bonavi- des20 apresenta a concepção positivista dos princípios nos seguintes termos: Estes princípios – acrescenta literalmente o mesmo autor – se induzem por via de abstração ou de sucessivas generalizações, do próprio direito positivo, de suas regras particulares [...]. Os princípios, com efeito – prossegue – já estão dentro do direito positivo e, por ser este um siste- ma coerente, podem ser inferidos do mesmo. Seu valor lhes vem – conclui – não de serem ditados pela razão ou por constituírem um direito natural ou ideal, senão por derivarem das próprias leis. É evidente que tal concepção positivista dos princípios coincide com a legalidade formal exa- cerbada já citada no item precedente, na qual o domínio avassalador e sem limites das leis tor- nava o conceito de princípio como aquele ligado absolutamente ao Direito Positivo. É de se observar, por oportuno, que a dife- rença fundamental entre as duas fases não está no caráter de normatividade dos princípios – já que em ambas a eficácia normativa é negada –, mas sim nos métodos de solução para colmatar as lacunas jurídicas. Para os jusnaturalistas, o ordenamento jurídico positivo não é capaz de suprir todas as lacunas, razão pela qual o seu preenchimento deve se socorrer do Direito natural e, ao revés, na concepção positivista, o ordenamento jurídico possui completude pelos prin cípios jurídicos nele inseridos. Com o marco filosófico do pós-positivismo e a vinda do denominado neoconstitucionalis- mo,21 inicia-se a terceira fase da juridicidade dos princípios, caracterizada, enfim, pela sua nor- matividade e pelo reconhecimento de que tanto os princípios como as regras jurídicas possuem eficácia normativa. No entanto, é imprescindível destacar que nesta terceira fase, na qual é reconhecida a eficácia normativa dos princípios, duas etapas doutrinárias manifestaram-se de forma sucessiva e complementar, dando contornos distintos ao conceito. Tratando sobre essa diferença conceitual, assevera Fernando Canhadas22 o seguinte: Deveras, é importantíssimo compreender que, ao afirmarem que o princípio jurídico é norma jurídica, autores já citados como Ataliba, Bandeira de Mello e Carrazza, dentre inúmeros outros, não estão a referir-se à norma jurídica completa, estruturada logicamente em um antecedente e um consequente. Eles estão a referir-se a uma proposição prescritiva, elevada à condição de ele- mento estruturante do sistema jurídico em razão de sua dupla função exercida sobre as normas jurídicas: uma vetorial, que dita o sentido que a norma jurídica deve seguir ao ser composta, sob pena de ser considerada inválida (incompatível com o sistema ao qual pertence); e uma herme- nêutica, ao servir como ideia-chave necessária à correta interpretação das normas que compõem o sistema jurídico (genuíno critério hermenêutico estruturante desse sistema). Por outro lado, quando autores como Ronald Dworkin, Robert Alexy, Virgílio Afonso da Silva ou Humberto Ávila tratam do tema dos princípios, eles estão a referir-se a normas jurídicas comple- 20. BONAVIDES, 1996, p. 235. 21. Barroso (2007), em artigo que discorre sobre o neoconstitucionalismo, esclarece o marco filosófico do novo Direito Constitucional nos seguintes termos: “O jusnaturalismo moderno, desenvolvido a partir do século XVI, aproximou a lei da razão e transformou-se na filosofia natural do Direito. Fundado na crença em princípios de justiça universalmente válidos, foi o combustível das revoluções liberais e chegou ao apogeu com as Constituições escritas e as codificações. Considerado metafísico e anti-científico, o direito natural foi empurrado para a margem da história pela ascensão do positivismo jurídico, no final do século XIX. Em busca de objetividade científica, o positivismo equiparou o Direito à lei, afastou-o da filosofia e de discussões como legitimidade e justiça e dominou o pensamento jurídico da primeira metade do século XX. Sua decadência é emblematicamente associada à derrotado fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha, regimes que promoveram a barbárie sob a proteção da legalidade. Ao fim da 2ª Guerra, a ética e os valores começam a retomar ao Direito. A superação histórica do jusnaturalismo e o fracasso político do positivismo abriram caminho para um conjunto amplo e ainda inacabado de reflexões acerca do Direito, sua função social e sua interpretação. O pós-positivismo busca ir além da legalidade estrita, mas não despreza o direito posto; procura empreender uma leitura moral do Direito, mas sem recorrer a categorias metafísicas. A interpretação e aplicação do ordenamento jurídico hão de ser inspiradas por uma teoria de justiça, mas não podem comportar voluntarismos ou personalismos, sobretudo os judiciais. No conjunto de ideias ricas e heterogenias que procuram abrigo neste paradigma em construção incluem-se a atribuição de normatividade aos princípios e a definição de suas relações com valores e regras; a reabilitação da razão prática e da argumentação jurídica; a formação de uma nova hermenêutica constitucional; e o desenvolvimento de uma teoria dos direitos fundamentais edificada sobre o fundamento da dignidade da pessoa humana. Nesse ambiente, promove-se uma reaproximação entre o Direito e a filosofia”. 22. CANHADAS, 2011, p. 25. DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES – NDJ – BDA – FEV/14 149 tas, constituídas de antecedentes e consequen- tes. E essas normas jurídicas, para a maior parte dessa doutrina (exceto Ávila), são qualificadas pela circunstância de terem como objetivo não apenas regrar condutas ou comportamentos (embora também possam fazê-lo), mas também, substancialmente, fazer com que um determinado valor seja aplicável o máximo possível ao caso concreto, mediante a ponderação entre outros valores também aplicáveis. Nessa medida, cons- tituem, para usar o termo empregado por parte dessa doutrina, mandamentos de otimização, que visam a máxima concreção dos valores que lhes dão fundamento. Exprimindo a primeira etapa doutrinária desta terceira fase de juridicidade dos princípios, Celso Antônio Bandeira de Mello,23 atribuindo ao concei- to demasiada carga axiológica e o determinando como alicerce do sistema jurídico, descreve-os nos seguintes termos: Princípio é, pois, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para exata compreensão e inteligência delas, exatamente porque define a lógica e a racionalidade do sistema normati- vo, conferindo-lhe a tônica que lhe dá sentido harmônico [...] violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio violado, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremis- sível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra. Pela noção estabelecida, os princípios reve- lam constitutivos da ordem jurídica formados de valores de mais alto grau extraídos do sistema e que, hierarquicamente superiores às demais nor- mas, devem orientar a compreensão e aplicação de todo o ordenamento jurídico. Percebe-se aqui que o contorno dado ao conceito de princípio como elemento estruturante do sistema impede que dele sejam diretamente extraídas normas jurídicas em sentido estrito, ou seja, comandos concretos de dever-ser com antecedentes e consequentes jurídicos. Ademais, não se vê em tal enfoque a possibilidade de se aplicar um princípio na maior medida possível dependendo das circunstâncias do caso concreto. Outra é a conotação de princípios dada pela segunda etapa doutrinária encabeçada por Dworkin24 e aprimorada por Alexy, juristas respon- sáveis por criar um novo discurso metodológico que eleva a norma à categoria de gênero, do qual as espécies vêm a ser o princípio e a regra. Partindo de tal premissa e afirmando que tanto as regras como os princípios “podem ser formulados por meio das expressões deônticas básicas do dever, da permissão e da proibição”, Alexy25 conceitua princípios jurídicos da seguinte forma: Princípios são, por conseguinte, mandamen- tos de otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras colidentes. Já as regras são normas que são sempre ou satisfeitas ou não satisfeitas. Se uma regra vale, então, deve-se fazer exatamente aquilo que ela exige; nem mais, nem menos. Regras contêm, portanto, determinações no âmbito daquilo que é fática e juridicamente possível. Isso significa que a distinção entre regras e princípios é uma distinção qualitativa, e não uma distinção de grau. Não dando enfoque à hierarquia entre as regras e os princípios e ao grau axiológico de tais normas, Alexy apresenta uma nova feição ao tema acrescentando que os princípios são aplicados em variados graus, a depender das 23. BANDEIRA DE MELLO, 1971, p. 284-286. 24. Dworkin (2011, p. 39-43), ao discorrer sobre regras e princípios, enfatiza o seguinte: “a diferença entre princípios jurídicos e regras jurídicas é de natureza lógica [...]. As regras são aplicáveis à maneira do tudo-ou-nada. Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a decisão [...]. Se duas regras entram em conflito, uma delas não pode ser válida”. 25. ALEXY, 2011, p. 87 e 90. NDJ – BDA – FEV/14150 condições fáticas do caso concreto, e as regras, em sendo válidas, devem ser aplicadas integral- mente sem qualquer tipo de ponderação. Entre nós, Fernando Canhadas, citando a doutrina de Virgílio Afonso da Silva, destaca que o autor afirma que as regras garantem direitos definitivos que devem ser realizados totalmente por meio da subsunção, enquanto os princípios garantem direitos prima facie, já que, como mandamentos de otimização, são aplicados em diversos graus, por meio do sopesamento. Na hipótese de conflito entre normas, no caso de regras parcialmente incompatíveis, a solução ocorre por meio da instituição de uma cláusula de exceção entre ambas e, em sendo absoluta a incompatibilidade, a solução se dá pela declara- ção de invalidade de uma delas. No caso de princípios, nunca haverá incom- patibilidade absoluta que dê ensejo à declaração de invalidade de qualquer um deles, não sendo também necessário socorrer-se à cláusula de exceção. Nesta hipótese, a solução dependerá das condições do caso concreto que implicarão a prevalência de um princípio em detrimento dos demais, sem que seja necessária a exclusão do mundo jurídico daqueles que não foram aplicados. Por fim, como última diferença principal, in- dica Fernando Canhadas26 que sendo normas de estrutura, os princípios contêm em seu antecedente uma descrição abstrata de determinada competência normativa passível de ser exercida, enquanto em seu consequente há uma previsão acerca da finalidade a ser atingida no exercício de referida competência; não há, portanto, uma descrição precisa acerca da con- duta a ser praticada pelo sujeito passivo a quem a norma é dirigida, como ocorre com as regras. Como dito alhures, a primeira e a segunda etapas desta terceira fase coexistem e ape- nas dão contornos distintos ao mesmo signo. Tratando sobre tais enfoques doutrinários ao signo “princípios”, Ricardo Marcondes Martins27ressalta que princípio é o nome do mandamento nuclear do sistema e também é o nome do mandamento de otimização, é o nome do enunciado lógico e é o nome de uma espécie de norma jurídica (destaques do autor). Indica o autor que incide em lamentável equí- voco quem considera que o conceito de princípio como mandamento nuclear está superado, pois “abdicá-lo resulta em abandonar a estrutura sistêmica do Direito e, pois, condenar à morte a Ciência Jurídica”. E prossegue afirmando que “o neoconstitucionalismo não importou na renúncia à concepção de princípios como viga-mestras, elementos nucleares e conceitos aglutinadores do conjunto normativo”. Nesse sentido, como premissa deste artigo, ao ser afirmado no próximo tópico que a legali- dade trata-se de regra jurídica, e não de princí- pio, parte-se do conceito de princípio enquanto mandamento de otimização e, assim, a ideia central é diferenciá-lo das regras pelos critérios trazidos pela doutrina desta segunda etapa do pós-positivismo. 1.4. A legalidade como regra jurídica Em termos constitucionais, a norma jurídica que discorre sobre a legalidade estabelece que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.28 O sentido deôntico-jurídico retirado da norma constitucional da legalidade pode ser expresso da seguinte forma: a ocorrência de imposição de obrigação de fazer ou deixar de fazer algo a qual- quer indivíduo deve ser criada em virtude de lei. Até este ponto, não é possível concluir se a legalidade trata-se de regra ou princípio, já que, para esta última doutrina pós-positivista, a efi- cácia normativa em sentido estrito encontra-se presente em ambos os casos. 26. Canhadas (2011, p. 71), sintetizando o pensamento, apresenta o conceito de princípio nos seguintes termos: “Princípio jurídico é espécie de norma jurídica em sentido estrito, do tipo de estrutura, disposta no sistema de acordo com uma hierarquia flexível, caracterizada por não possuir em seu consequente normativo previsões precisas acerca das condutas reguladas, mas mandamentos de otimização de valores a serem realizados na maior medida possível, aplicáveis por meio de um sopesamento fundamentado que deve considerar todas as condições fáticas e jurídicas verificáveis no caso concreto”. 27. MARTINS, 2010, p. 27. 28. Reitera-se que o termo “lei” abrange todas as espécies legislativas previstas no art. 59 da Constituição da República. DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES – NDJ – BDA – FEV/14 151 No entanto, ao atribuir eficácia normativa ao dispositivo, seu conteúdo exprime não só norma jurídica completa, estruturada formalmente por um antecedente e um consequente jurídicos, como também contém descrição precisa acerca da conduta a ser praticada pelo Estado, não havendo qualquer grau de abstração no antece- dente da norma que possa caracterizá-la como princípio. Somado a este aspecto, há de se destacar, ademais, que tal como lançada em termos cons- titucionais, a legalidade não admite ponderação em sua aplicação. Ao contrário, ela exprime um direito que deve ser totalmente satisfeito quando aplicado às situações fáticas e, assim, não visa à concretização de um valor na maior medida possível. Ora, a legalidade jamais poderá ser afastada em face de qualquer outro princípio constitucio- nal, já que consiste em verdadeira determinação estabelecida pelo constituinte no sentido de que, para impor uma obrigação a alguém, deve ser esta criada por lei. Adepto às últimas doutrinas desenvolvidas no pós-positivismo, destaca Fernando Canha- das29 sobre o tema o seguinte: Quando falamos em legalidade, estamos nos referindo ao mandamento segundo o qual ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. O efeito imediato propagado por esta proposição prescriti- va é objetivo: se não há lei prevendo determinada obrigação, o jurisdicionado não tem o dever de adimpli-la. Não há uma obrigação que possa ser parcialmente prevista em lei: ou ela está integral- mente prevista e deve ser adimplida, ou não está e seu adimplemento não poderá ser validamente exigido. Nesse sentido, a legalidade não deve ser buscada na maior medida possível, ela deve ser simplesmente obedecida, em caráter definitivo. E sendo assim, em que pese sua extrema relevân- cia dentro do sistema jurídico, a legalidade seria, para os adeptos dessa doutrina a que estamos a chamar de terceira fase, verdadeira regra jurídica e não um princípio. Na mesma linha de raciocínio, Ricardo Mar- condes Martins30 acrescenta: É plenamente correto, considerando o con- ceito da segunda fase,31 falar em princípio da anterioridade tributária, princípio penal da reserva legal, princípio da motivação. Considerando o conceito da terceira fase,32 os três são típicas regras jurídicas. Deveras: são juízos que não determinam que um valor seja concretizado na maior medida possível, não são mandamentos de otimização, mas determinações. Editada uma norma pelo Estado, é uma regra: ela deve ser motivada. Para tipificar uma conduta como crime, é uma regra, deve ser editada previamente uma lei. Para cobrar um tributo, é uma regra, deve ser editada uma lei no exercício financeiro anterior ao da cobrança. São determinações e não mandados de otimizações, mas são ideias-chave que carac- terizam o sistema jurídico brasileiro; sem elas, o sistema mudaria substancialmente, são, pois, fundamentais. São princípios perante o conceito de princípio da segunda fase e regras perante o conceito de princípio da terceira fase. Para defender a legalidade como princípio ju- rídico, há quem possa indagar se, em ponderação com o princípio da segurança jurídica, a norma admitiria ponderação e deixaria de ser aplicada em determinados casos concretos. Explica-se. A dúvida pode surgir na medida em que, em obediência à legalidade, atos admi- nistrativos produzidos pelo Executivo devem estar de acordo com a lei, sob pena de invalidade. Não raras vezes, no entanto, tais atos são emitidos pela Administração Pública em desacordo com os termos legais, conferem direitos aos adminis- trados e, mesmo possuindo vício de ilegalidade, permanecem no mundo jurídico em respeito ao aspecto subjetivo do princípio da segurança jurí- dica (princípio da confiança). Poderia se questionar, nesta hipótese, se a legalidade cedeu espaço à segurança jurídica, já que, decorrido determinado tempo, o ato ilegal prevaleceu e foi mantido em respeito à confiança depositada pelos cidadãos no que tange à legali- dade dos atos produzidos pelo Estado. 29. CANHADAS, 2011, p. 28. 30. MARTINS, 2010, p. 27-28. 31. Neste ponto, o autor refere-se como segunda fase a aqui tratada como primeira etapa da doutrina pós-positivista, ou seja, àquela doutrina que, mesmo conferindo eficácia normativa aos princípios, ainda os considera como mandamentos nucleares de um sistema. 32. Aqui, o autor refere-se como terceira fase à segunda etapa doutrinária do pós-positivismo. NDJ – BDA – FEV/14152 No entanto, a resposta é negativa, pois a hi- pótese citada trata-se de verdadeira cláusula de exceção entre duas regras existentes em nosso ordenamento. A primeira reflete a legalidade, que afirma a necessidade de lei para a imposição de obrigações jurídicas válidas e, consequentemen- te, que atos administrativos devem ser produzidos de acordo com a lei. A segunda é a cláusula de exceção à primeira imposta, prevista no art. 54 da Lei Federal nº 9.784/1999,33 que determina o prazo de decadência de cinco anos para que a Administração anule atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os seus destinatários. Mais uma vez, torna-se evidente que a lega- lidade trata-se de regra jurídica, cujo critério de aplicação é a subsunção – e não o sopesamento –, na medida emque jamais poderá ser ponde- rada diante do caso concreto, sendo certo que a incompatibilidade entre ela e outras regras do sistema é solucionada pela cláusula de exceção, que é imposta por outra regra jurídica. Por todos os ângulos de análise, a única conclusão lógica que se pode obter é, partindo da premissa de princípio como mandamento de otimização, a norma referente à legalidade trata-se de regra jurídica, pois: a) possui em seu antecedente jurídico descrição precisa acerca da conduta que deverá ser observada pelo Es- tado; b) não visa à concretização de um valor na maior medida possível, uma vez que exprime um direito a ser totalmente satisfeito quando aplicado às situações fáticas; c) em caso de colisão com outras regras, a solução do conflito é feita por meio de cláusula de exceção ou pela invalidade da norma que com ela seja incompatível, e, con- sequentemente; d) seu método de aplicação é a subsunção. Deste modo, a regra da legalidade, como direito fundamental e cláusula pétrea do sistema, deve ser integralmente aplicada pelo Estado, não admite exceções e, assim, limita o poder-dever regulamentar do Executivo, como será adiante verificado. 1.5. Limites ao poder-dever regulamentar do Executivo Fazendo um compilado de tudo o que foi exposto até o presente momento, as ideias de- senvolvidas podem ser resumidas nos seguintes termos. A legalidade é fruto de longo processo his- tórico que procurou, através dos tempos e em constante evolução, atribuir à soberania do povo a fonte de imposição de toda e qualquer obrigação a ser observada pelos cidadãos, evitando, assim, que um governo déspota venha a se formar com a imposição exclusiva de suas vontades sem um verdadeiro processo democrático. Cientes de que a lei não é a solução de todos os problemas, é claro que em um Estado Democrático e Social de Direito a sua validade está condicionada ao atendimento dos valores materiais e limitações formais impostos pela Constituição da República, na medida em que a lógica jurídica do sistema assim estabelece. Trazendo a evolução histórica do conceito de princípios jurídicos, em uma visão pós-positivista que deu ensejo ao neoconstitucionalismo e atri- buiu eficácia normativa às regras e aos princípios, estes são entendidos como mandamentos de otimização e, assim, concluiu-se que a legali- dade trata-se de regra jurídica que não admite sopesamento. Nesse sentido, se a regra da legalidade, ao ser aplicada, deve ser satisfeita em sua totalidade, não admitindo ressalvas – a não ser as impostas por outras regras de exceção –, passa-se a abor- dar neste tópico se o poder-dever regulamentar do Executivo poderia, no sistema jurídico brasi- leiro,34 inovar a ordem jurídica e criar obrigações sem previsão legal. 33. “Art. 54. O direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé. § 1º No caso de efeitos patrimoniais contínuos, o prazo de decadência contar-se-á da percepção do primeiro pagamento. § 2º Considera-se exercício do direito de anular qualquer medida de autoridade administrativa que importe impugnação à validade do ato.” 34. Tratando sobre a correlação entre o poder regulamentar e o princípio da legalidade, observa Ricardo de Barros Leonel (2013) o seguinte: “Esta asserção – de que na compreensão do poder regulamentar é indispensável o estudo do princípio da legalidade –, se é válida em termos teóricos, ganha maior significado quando se parte para o estudo pragmático. É que o exame do primeiro em determinada ordem constitucional está claramente atrelado ao modo como o constituinte tratou e delimitou o segundo. DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES – NDJ – BDA – FEV/14 153 Tal questionamento é de extrema pertinên- cia, pois além de o processo legislativo possuir algumas falhas, tais como a impossibilidade de prever todas as situações fáticas existentes no mundo fenomênico e poder vir a desobedecer aos comandos constitucionais, o Estado Social prestador de serviços públicos e interventor na atividade econômica (ainda que em caráter excepcional) acaba por demandar maior poder regulamentar do Executivo. Sob o ponto de vista pragmático, a proble- mática também se mostra relevante visto que inúmeros são os decretos, instruções normativas, portarias e demais atos normativos expedidos diariamente pelo Executivo que, de alguma for- ma, criam obrigações aos indivíduos em geral ou àqueles que venham a estabelecer relações jurídicas com o Estado. Pois bem. Visando resguardar a garantia fundamental da legalidade, o próprio sistema procura solucionar alguns problemas impostos pelas deficiências do processo legislativo. Sem tecer maiores considerações sobre a temática, já que ela, por si só, demandaria outro estudo minucioso e específico, é cediço que o uso de conceitos indeterminados pela lei autoriza, em parte, o Executivo a agir com maior liberdade e a concretizar os comandos legais abstratos às necessidades do caso concreto. No que tange à ausência de lei e a impos- sibilidade do exercício de direitos e liberdades constitucionais, a Constituição da República prevê o mandado de injunção e a ação direta de inconstitucionalidade por omissão como garan- tias ao cidadão, para que, na falta da lei, possa exercê-los mediante ordem judicial. Da mesma maneira, na hipótese de incom- patibilidade entre os preceitos da lei e os valores estampados na Carta Política, são previstas ações que visam expurgar do mundo jurídico qualquer lei tida por inconstitucional, tanto pelo meio difuso como pelo meio concentrado, nesta última hipótese, mediante ação direta de incons- titucionalidade. Mesmo diante de tais soluções constitucio- nais, é evidente que a função regulamentar do Executivo ocupa vasto espaço no ordenamento, ao ponto de sustentarem alguns que o signo “lei” previsto na regra da legalidade, na verdade, deve ser também entendido como decreto, regulamen- to e atos administrativos em geral para o fim de criar obrigações ao cidadão comum. Assim, partindo da legalidade como regra jurídica e garantia fundamental, o próximo passo é tratar do exercício do poder-dever regulamen- tar do Estado e identificar os limites a que está sujeito. Por uma visão tradicional, há muito tempo sustenta a doutrina que a Constituição da Repú- blica, ao tratar sobre decretos e regulamentos no sistema brasileiro, revela em seu art. 8435 a fun- ção normativa do Executivo, que deve ser exer- cida estritamente para dar “fiel execução à lei”. Somado ao citado dispositivo, o art. 25 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias apenas reafirma que, pelo Texto Constitucional de 1988, foi vedado ao Executivo inovar a ordem jurídica e criar obrigações aos administrados a pretexto de utilizar a sua função normativa.36 Daí porquê ser possível concluir que a concepção do princípio da legalidade e do poder regulamentar em determinado Estado não se- rão idênticos ao que se pode traduzir com tais expressões, num mesmo contexto temporal, em Estado diverso [...]. Em síntese, pode-se afirmar que: a) o estudo dos limites do poder regulamentar está íntima e indissoluvelmente ligado ao estudo do princípio da legalidade; b) a análise a respeito de ambos não é estática, mas dinâmica; c) a compreensão dos conceitos jurídicos indeterminados traduzidos pelas expressões “princípio da legalidade” e “poder regulamentar” se realiza em função dos aspectos temporal e espacial considerados (tempo e lugar do estudo de tais conceitos), e consequentemente com toda a carga de cultura jurídica então vigorante”. 35. “Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: [...] IV – sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem comoexpedir decretos e regulamentos para sua fiel execução; [...] VI – dispor, mediante decreto, sobre: a) organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos; b) extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos; [...] Parágrafo único. O Presidente da República poderá delegar as atribuições mencionadas nos incisos VI, XII e XXV, primeira parte, aos Ministros de Estado, ao Procurador-Geral da República ou ao Advogado-Geral da União, que observarão os limites traçados nas respectivas delegações.” 36. Evidenciando diversos abusos por parte do Executivo, ocorridos na vigência da Constituição anterior, prevê o art. 25 do ADCT o seguin- te: “Art. 25. Ficam revogados, a partir de cento e oitenta dias da promulgação da Constituição, sujeito este prazo a prorrogação por lei, todos os dispositivos legais que atribuam ou deleguem a órgão do Poder Executivo competência assinalada pela Constituição ao Con- gresso Nacional, especialmente no que tange a: I – ação normativa; II – alocação ou transferência de recursos de qualquer espécie”. NDJ – BDA – FEV/14154 Celso Antônio Bandeira de Mello,37 ao tratar sobre regulamento no Direito brasileiro, conceitua- -o como ato geral e (de regra) abstrato, de competência privativa do Chefe do Poder Executivo, expedido com a estrita finalidade de produzir as disposições operacionais uniformizadoras necessárias à exe- cução da lei cuja aplicação demande atuação da Administração Pública. Resumindo o seu pensamento, afirma o autor que: a) só por lei se regula liberdade e propriedade; b) só por lei se impõem obrigações de fazer ou não fazer; c) a finalidade da competência regulamentar é instituir procedimentos dando condições para que as leis sejam cumpridas, bem como disciplinar a discrição administrativa ante conceitos legais indeterminados; e, por fim, d) é proibida a delega- ção de competência legal ao regulamento, já que o art. 68 da Constituição prevê taxativamente as hipóteses de delegação legislativa. Ricardo de Barros Leonel,38 citando a re- conhecida autoridade doutrinária de Geraldo Ataliba, afirma que o mestre ofereceu extenso rol de limites do poder regulamentar, dentre os quais destacou: a) o regulamento é veiculado por decreto; b) tem natureza de ato administrativo infralegal; c) não pode ser autônomo; d) é nulo se ultra e extra legem; e) é preciso que haja previamente a lei regulamentada; e) [sic] leis autoexecutáveis não são regulamentáveis; f) o regulamento não inova na ordem jurídica; g) não pode o Executivo fraudar a lei, protelando sua regulamentação; h) a lei não pode atribuir a outros órgãos que não ao Presidente o poder regulamentar; i) as balizas do poder regulamentar estão na Constituição, mas a lei pode fixar prazo para seu exercício; j) o regulamento que interpreta a lei só é vinculante para a própria administração e seus servidores; k) o Presidente não pode regulamentar lei que não lhe caiba executar; l) só matéria administrativa comporta regulamentação, ficando excluídas leis processuais, civis, penais; m) o regulamento não pode dispor sobre relações entre particulares; n) o Presidente só pode regulamentar leis da esfera da União, e nesta que sejam de âmbito do Executivo, em matéria administrativa; o) pelo regulamento o Presidente exerce seu poder hierárquico, regu- lando relações secundárias e formais entre os funcionários e os administrados, ou seja entre a administração e os administrados, para a prática de atos de obediência às leis. Na mesma linha e em termos mais atuais, Ricardo Marcondes Martins,39 negando a possi- bilidade de criação de obrigações no plano abs- trato pela Administração Pública sem base legal e constitucional, defende o seguinte: Enquanto a função legislativa caracteriza-se precipuamente pela realização de ponderações no plano abstrato, a função administrativa caracteriza- -se pela realização de ponderações no plano con- creto. Sem embargo, o próprio texto constitucio nal, no inciso V do art. 49 e no § 4º do art. 169, indica a possibilidade de função administrativa normativa, quer dizer, edição de normas abstratas pela Administração. Há, porém, que se esclarecer: nos termos do inciso IV do art. 84 da CF e do inciso I do art. 25 do ADCT, à Administração é permitido efetuar ponderações no plano abstrato apenas e tão somente para concretizar as ponderações legislativas e constitucionais. As ponderações abstratas da Administração são instrumentais das ponderações legislativas e constitucionais. Sobre o previsto no inc. VI do art. 84 da Constituição, que estabelece a possibilidade de o Presidente da República dispor, mediante decreto, sobre “organização e funcionamento da adminis- tração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públi- cos” e a “extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos”, bem como de referida competên- cia poder ser delegada aos Ministros de Estado, a melhor doutrina administrativa, denominando-o como decretos impróprios, sustenta que a hipó- tese não incluiu em nosso ordenamento o decreto autônomo40 justamente porque seu âmbito de 37. BANDEIRA DE MELLO, 2012, p. 347 e seguintes. 38. LEONEL, 2013, p. 21. 39. MARTINS, 2011, p. 105-106. 40. Nesse sentido, Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2002, p. 142) afirma que não há lugar para os regulamentos autônomos na ordem jurídica pátria, na medida em que o art. 84, inc. IV, da CF/88, ao prever o poder regulamentar do Presidente da República, indica que ele deverá ser exercido para a “fiel execução” da lei. Anota ainda que mesmo a regulamentação inerente à organização e ao funcionamento da Ad- ministração Federal deve ser feita na “forma da lei”, e que a criação e estruturação de Ministérios e de órgãos da Administração depende de lei, cuja iniciativa é privativa do Chefe do Executivo (art. 61, § 1º, inc. II, al. e, CF/1988). Conclui assim que nem mesmo regulamentos autônomos em matéria de organização administrativa existem no ordenamento nacional. DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES – NDJ – BDA – FEV/14 155 abrangência é limitado a questões organizacionais internas dos Ministérios. Portanto, não resta dúvida entre a maioria dos juristas que já enfrentaram com profundidade o tema de que apenas as espécies legislativas previstas no art. 59 da Constituição podem criar obrigações aos indivíduos e que aos regulamen- tos compete, exclusivamente, a tarefa de fazer ponderações abstratas das disposições legais e constitucionais. Trazendo à baila a doutrina de García de Enterría,41 que com as devidas adaptações pode ser aproveitada em nosso ordenamento para sin- tetizar os limites do poder-dever regulamentar, o controle judicial dos regulamentos deve se pautar em requisitos formais e materiais. Como limites formais do regulamento desta- ca o autor a competência, a hierarquia normativa e o procedimento a ser observado à sua produ- ção. Como limites materiais, indica o respeito aos princípios gerais do Direito, a matéria regulamen- tar que pode ser inserida em seu conteúdo e a necessária irretroatividade de seus efeitos. No que tange à competência, a Constituição da República foi claríssima em estabelecê-la exclusivamente ao Chefe do Poder Executivo, o que implica afirmar que apenas o Presidente da República é competente a expedir decretos regulamentares fundamentados na supremacia geral que fixem normas gerais aos administrados que não possuem uma relação jurídica específica com a Administração.42 Neste ponto, reiteramos que a ressalva pre- vista no inc. VI do art. 84 da Constituição e, em especial, o parágrafo único do dispositivo que prevê a possibilidade de delegação aos Minis- tros de Estado para expedir meros decretos de organização não constitui exceção à regra,já que estes não possuem função regulamentar com efeitos externos. Sobre a hierarquia normativa é oportuno observar que não só existe uma ordem escalo- nada entre a lei e o regulamento, como também entre os atos administrativos normativos entre si. Conforme elucida Ricardo de Barros Leonel:43 Dentro desse sistema normativo escalonado, no ápice do qual se encontra a Carta Magna, os demais atos normativos primários e secundários devem localizar-se de forma sequencial, respei- tando os limites decorrentes da necessidade de adequação dos atos inferiores ao superiores. Isto significa na prática que assim como as leis devem apresentar conformidade ao texto da Constituição, os regulamentos também devem amoldar-se aos parâmetros da própria Carta e das leis em geral. Não se pode contudo olvidar que entre os próprios regulamentos é imperativa a observân- cia da hierarquia normativa. Basta recordar que, como princípio geral, só o Chefe do Executivo possui verdadeiro poder regulamentar, e que os demais órgãos da administração como v.g. os Ministérios podem editar meros regulamentos subalternos de valor interno, destinados à prover a execução das leis e decretos Presidenciais. Daí a indispensável obediência aos atos normativos que lhe são superiores na estrutura escalonada das normas. Acrescente-se à intelecção acima que entre os atos normativos, excluído o próprio regula- mento, existem as instruções normativas dos Ministérios, os regimentos internos que regem as corporações legislativas e as resoluções emanadas pelas altas autoridades do Executivo (com exceção à própria Presidência). Portanto, em uma ordem escalonada de submissão, todos os atos normativos elencados submetem-se à Constituição, às leis e aos regulamentos, sendo vedado a uma instrução normativa, por exemplo, sobrepor-se ao decreto regulamentar presiden- cial e assim por diante. 41. GARCÍA DE ENTERRÍA, 1991, p. 198. 42. Ricardo de Barros Leonel (2013), citando Maria Sylvia Zanella Di Pietro, discorre que a autora entende que há na Carta vigente dois casos em que expressamente foi prevista a existência de agências reguladoras, referindo-se à Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e à Agência Nacional de Petróleo (ANP), indicadas claramente nos art. 21, XI, e 177, § 2º, III, da CF/1988, pois nos dois dispositivos a Constituição comete à “lei” a instituição de um “órgão regulador” e a definição de suas atribuições. Para estas duas agências apenas, que têm fundamento constitucional, a doutrinadora reconhece a concessão de poder regulamentar pelo constituinte reformador, mas que não é incondicionado e autônomo, como o que se verifica nas agências do Direito norte-americano ou mesmo nos regulamentos autônomos do Direito francês. Nesse sentido, deixa claro seu entendimento de que houve simples concessão de função regulamentar aos órgãos reguladores, atividade esta que fora destas hipóteses é privativa do Chefe do Poder Executivo. 43. LEONEL, op. cit., p. 30. NDJ – BDA – FEV/14156 Como não há no sistema jurídico brasileiro uma lei que estabeleça o procedimento a ser observado na produção do regulamento, tal como ocorre no Direito espanhol, os princípios da publicidade e do devido processo e, acima de tudo, o regime democrático devem obrigar o Executivo a assegurar a participação popular na elaboração do regulamento pela sua publicidade, tanto na fase inicial como na conclusiva, para que setores da sociedade ligados ao conteúdo do ato possam legitimar a sua produção, tal como ocorre nas audiências públicas referentes aos orçamentos participativos. Adentrando os limites materiais, como todo e qualquer ato produzido pela Administração Pú- blica, os regulamentos devem respeito não só às leis em sentido estrito, mas também ao Direito, nele incluído, é claro, os princípios gerais que regem nosso sistema. Neste ponto abre-se espaço a uma nova visão sobre o controle dos regulamentos, visto que não está mais restrito à mera legalidade por via de mandado de segurança, como tradicio- nalmente sempre entendeu a doutrina clássica. Referido controle também pode ter por escopo a proporcionalidade e razoabilidade do conteúdo da norma regulamentar, tendo em vista os prin- cípios jurídicos constitucionais e, nessa linha, ser objeto de ação direta de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal. Sobre a matéria regulamentar que pode ser inserida no conteúdo do ato, conforme já citado alhures pela doutrina de Bandeira de Mello e Geraldo Ataliba, apenas comportam regulamen- tação matérias legais que dependam de uma atuação da Administração Pública para serem concretizadas. Logo, somente matéria instrumen- tal e administrativa comporta regulamentação, respeitada a divisão de competências entre os entes federados, não podendo o decreto dispor sobre relações entre particulares, como as liga- das ao Direito Privado. Por fim, o limite material que enseja a irre- troatividade dos comandos regulamentares tem por finalidade concretizar o princípio da se- gurança jurídica, já que normas posteriores não podem evidentemente ser aplicadas a situações pretéritas, tal como nos esclarece Ricardo de Barros Leonel:44 Como último aspecto merece destaque a irretroatividade dos regulamentos. Assim como ocorre com relação às leis, quanto aos regula- mentos deve valer o princípio da irretroatividade prejudicial, na medida em que estes atos nor- mativos não devem retroagir para alcançar, de forma maléfica, situações já consumadas nas relações existentes entre os cidadãos em geral e a administração. Ainda que no caso concreto não seja pos- sível falar-se na existência de direito adquirido, ato jurídico perfeito ou mesmo coisa julgada em matéria administrativa, se determinados atos foram praticados de conformidade com o modelo regulamentar previsto ao tempo de sua realiza- ção, a edição de regulamento posterior não pode ter o condão de invalidar o que foi implementado de forma válida e adequada à norma contempo- rânea, sob pena de causar ao particular atingido prejuízo que não lhe deve ser carreado. Daí a irretroatividade regulamentar. São estes, portanto, os limites ao exercício da competência regulamentar a que está adstrito o Chefe do Poder Executivo. CONCLUSÕES Por todo o exposto, no Brasil não há que se fa- lar em mitigação à legalidade por diversas razões elencadas neste trabalho. Por primeiro, porque a legalidade é garantia fundamental veiculada por regra jurídica que não admite sopesamento em sua aplicação prática, e seu eventual afastamen- to depende de outra regra jurídica que inclua no sistema uma cláusula de exceção. De outra medida, conjugando os arts. 5º, inc. II, 84, inc. IV, da Constituição da República e 25 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a interpretação sistemática extraída do ordenamento não pode ser outra a não ser a de que os limites do poder-dever regulamentar estão estampados nas leis e na Carta Magna, po- dendo ser, para fins meramente metodológicos, elencados na competência, hierarquia normativa, procedimento, respeito aos princípios gerais de Direito, limites ao conteúdo regulamentar e irre- troatividade de seus termos. 44. LEONEL, 2013, p. 32. DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES – NDJ – BDA – FEV/14 157 Concluindo o raciocínio com coerência e sem olvidar futuras discussões que possam ser trava- das sobre o tema, é certo que os regulamentos executivos com efeitos externos que podem ser editados validamente são aqueles de competên- cia exclusiva do Presidente da República que não podem impor deveres ou obrigações a terceiros em geral na ausência de lei, tampouco contrariar a ordem jurídica, sob pena de serem expurgados do mundo jurídico pelo Poder Judiciário. REFERÊNCIAS ALEXY, Robert. Teoria dos direitosfunda- mentais. 2. ed. Trad. de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2011. ARISTÓTELES. Tratado da política. Lisboa: Europa-América, 1977. ______. A política. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Cria- ção de secretarias municipais. Revista de Direito Público, São Paulo, v. 15, 1971. ______. Curso de direito administrativo. 29. ed. São Paulo: Malheiros, 2012. 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