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0 FACULDADE DE SINOP CURSO DE DIREITO KEVYN JUNIOR GONÇALVES LIBERDADE RELIGIOSA E A GUARDA DO SÁBADO FRENTE ÀS INSTITUIÇÕES DE ENSINO Sinop/MT 2018 1 KEVYN JUNIOR GONÇALVES LIBERDADE RELIGIOSA E A GUARDA DO SÁBADO FRENTE ÀS INSTITUIÇÕES DE ENSINO Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Banca Avaliadora do Departamento de Direito, da Faculdade de Sinop - FASIP, como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em Direito. Orientador: Profº. Rodolfo Fares Paulo Sinop/MT 2018 2 KEVYN JUNIOR GONÇALVES LIBERDADE RELIGIOSA E A GUARDA DO SÁBADO FRENTE ÀS INSTITUIÇÕES DE ENSINO Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Banca Avaliadora do Curso de Direito - FASIP, Faculdade de Sinop como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em Direito. Aprovado em ___/___/___. ______________________________________ Rodolfo Fares Paulo Professor Orientador Departamento de Direito - FASIP _____________________________________ Thalisson Make Fernandes Ramos Professor(a) Avaliador(a) Departamento de Direito – FASIP _____________________________________ André Rodrigues Pereira da Silva Professor(a) Avaliador(a) Departamento de Direito – FASIP _____________________________________ Rodolfo Fares Paulo Coordenador do Curso de Direito FASIP – Faculdade de Sinop Sinop/MT 2018 3 DEDICATÓRIA Primeiramente a Deus e a minha família, a todos do Curso de Direito da Faculdade Fasipe, e às pessoas com quem convivi nesse espaço ao longo desses anos que demonstraram paciência e carinho. A experiência adquirida com meus amigos nesse espaço foi a melhor de minha formação acadêmica. III 4 AGRADECIMENTO - Agradeço primeiramente a Deus, autor e mantenedor de minha vida, por ter me abençoado em toda a caminhada acadêmica, autor de todas as minhas conquistas, e é por isso que louvo o seu Eterno nome. - A minha rainha Ivanete Rodrigues que teve e ainda tem um papel fundamental em minha vida, principalmente no aspecto acadêmico, pois abriu mão de vários sonhos pessoais para auxiliar em minha caminhada, um exemplo de mulher e mãe. Sou grato a Deus por ser seu filho. Agradeço também aos meus irmãos Klever Juliano Gonçalves, Kálebe Gonçalves e Kayla Juliana Gonçalves pelo apoio, compreensão e por ter me aturado durantes esses cinco anos. À Cidinha Monteiro por ter me ajudado em momentos importantes e difíceis, fazendo parte desta conquista. Ao meu pai Valtacir Gonçalves que prestou apoio moral, e ao restante de minha família que sempre me apoiaram e incentivaram na busca deste objetivo. - Ao corpo de docentes da Faculdade Fasip, que possui ótimos professores, principalmente ao Coordenador Rodolfo Fares Paulo que prestou seu auxílio, não somente nesta pesquisa, mas também no decorrer do curso até a sua conclusão. - Aos amigos que fiz durante essa caminhada, tais como Marcio Gomes, Hermes Gireli, Willame Francisco, e outros, também aos amigos que perdi em função dos desfechos da vida “Paula Carolina Boff” e a todos que de algum modo fizeram parte deste notável objetivo conquistado. IV 5 EPÍGRAFE “Lembra-te do dia de sábado para santificá- lo”. “Felizes são os que ouvem a palavra de Deus e a guardam”. Êxodo: 20:8 Lucas 11:28 V 6 GONÇALVES, Kevyn Junior.LIBERDADE RELIGIOSA E A GUARDA DO SÁBADO FRENTE ÀS INSTITUIÇÕES DE ENSINO. 2018. 88 Páginas. Monografia de Conclusão de Curso – FASIP – Faculdade de Sinop. RESUMO A presente pesquisa trata do tema “liberdade religiosa” elencado no rol de direitos e garantias fundamentais destacados nos incisos VI e VIII do artigo 5° da Constituição Federal de 1998. Tal direito adveio com a evolução histórica dos direitos fundamentais até chegar aos dias atuais em que predomina o Estado Democrático de Direito. Através de grandes fatores históricos será exposto como se deu o advento da separação do Estado da Igreja (religião), e como isso contribuiu para a evolução e consolidação do direito a liberdade de credo, não apenas nos países de primeiro mundo, mas principalmente no que diz respeito ao Brasil e suas Constituições anteriores. Embora se trate de um tema estampado na Carta Magna, este é pouco debatido no meio jurídico, por isso gera certos conflitos quando um vestibulando ou acadêmico que possui o sábado como dia sagrado anseia cursar o ensino superior. Fruto de outro direito fundamental elencado pela Carta Maior, a educação geralmente desenvolve suas atividades justamente neste dia. Desse modo, prejudica os adventistas do sétimo dia e judeus, por exemplo, pois diversos vestibulares, provas, trabalhos extracurriculares e outras atividades avaliativas acontecem bem no dia considerado santo, uma vez que coloca em conflito sua fé e crenças. Apesar do direito a liberdade religiosa e o da autonomia das instituições colidirem às vezes, mostra-se que com o uso da prestação alternativa e o método de adequação com certas classes que desejam professar sua fé se revelam verdadeiros instrumentos efetivos, não ferindo os direitos das instituições de Ensino, pública ou privada, muito menos o princípio da Isonomia. Palavras chaves: Acadêmico Adventista. Ensino Superior. Guarda do Sábado. Liberdade Religiosa. 7 GONÇALVES, Kevyn Junior. RELIGIOUS FREEDOM AND THE SATURDAY GUARD AGAINST THE INSTITUTIONS OF TEACHING. 2018. 88 Pages. Conclusion Course Monograph - FASIP - Faculty of Sinop. ABSTRACT This research deals with the theme of "religious freedom" listed in the list of fundamental rights and guarantees highlighted in items VI and VIII of article 5 of the Federal Constitution of 1998. This right came with the historical evolution of fundamental rights until the present day in which dominates the Democratic State of Law. Through great historical factors will be exposed as the advent of the separation of the State of the Church (religion), and how this contributed to the evolution and consolidation of the right to freedom of belief, not only in the first world countries, but mainly in what concerns Brazil and its previous Constitutions. Although it is a theme stamped in the Magna Carta, this is little debated in the legal environment, so it creates certain conflicts when a college student or academic who has the Sabbath as a sacred day yearns to pursue higher education. As a result of another fundamental right listed by the Major Charter, education usually carries out its activitiesprecisely on this day. In doing so, it harms Seventh-day Adventists and Jews, for example, because various college entrance exams, tests, extracurricular works, and other evaluative activities happen well on a holy day, as it conflicts with their faith and beliefs. Although the right to religious freedom and that of the autonomy of institutions sometimes collides, it is shown that with the use of alternative provision and the method of adjustment with certain classes wishing to profess their faith, they prove to be real effective instruments, not harming the rights of educational institutions, public or private, much less the principle of Isonomy. Key words: Adventist Academician. Guard of the Sabbath. Higher Education. Religious Freedom. 8 Sumário INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 9 1 ORIGEM E CONCEITO DE LIBERDADE RELIGIOSA ............................................. 11 1.1 Aspectos Históricos da Liberdade Religiosa em Roma ................................................. 15 1.2 Aspectos Históricos da Liberdade de Crença na França .............................................. 19 1.3 Aspectos Históricos da Liberdade de Crença em outros Países ................................... 19 1.4 Estado, Religião e Direito ................................................................................................. 21 1.5 O Constitucionalismo e o Estado Laico .......................................................................... 23 2 HISTÓRICO DA LIBERDADE RELIGIOSA NO BRASIL .......................................... 30 2.1 Liberdade Religiosa na Costituição de 1824 .................................................................. 31 2.2 Liberdade Religiosa na Constituição de 1891 ................................................................ 34 2.3 Liberdade Religiosa na Constituição de 1934 e 1937 .................................................... 37 2.4 Liberdade Religiosa na Constituição de 1946, 1967 e 1969 .......................................... 38 2.5 Evolução e Consolidação dos direitos à Liberdade Religiosa na Constituição de 1988 .................................................................................................................................................. 41 2.6 Abrangência da Liberdade Religiosa na Constituição de 1988 .................................... 43 2.7 Liberdade de Culto, Organização Religiosa e Assistência Religiosa ........................... 45 2.8 Escusa de Consciência ou de Credo ................................................................................ 50 2.9 Limites da Liberdade Religiosa ....................................................................................... 52 3 LIBERDADE RELIGIOSA E A GUARDA DO SÁBADO FRENTE ÀS INSTITUIÇÕES DE ENSINO .............................................................................................. 55 3.1 Libedade Religiosa e o Direito à Educação .................................................................... 56 3.2 Origem da Guarda do Sábado ......................................................................................... 58 3.3 Conflitos Existentes da Guarda Sabática frente às Instituições de Ensino ................. 64 3.4 Prestações Alternativas como Solução Constitucional da Controvérsia ..................... 67 3.5 Medidas Alternativas Adotadas pela Faculdade Fasip que Visam Obstar Prejuízos ao Acadêmico Guardador do Sábado ................................................................................... 69 3.6 A Jurisprudência Pátria a respeito da Guarda Sabática e as Prestações Alternativas frente às Instituições de Ensino Superior ............................................................................. 72 3.7 Ponderações quanto ao Princípio da Isonomia .............................................................. 75 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 80 REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 82 9 INTRODUÇÃO A discussão que permeia esta pesquisa tem o objetivo de analisar o instituto da liberdade religiosa elencado em nossa Carta Magna, não de forma estrita, mas de modo a abarcar o máximo de conteúdo importante sobre o tema. Buscando desenvolver a temática em questão, vale ressaltar um objetivo principal correspondente a verificação de como se deu a consolidação do direito de credo no Brasil até chegar a respeito da guarda de um dia sagrado pelo acadêmico e o posicionamento das unidades de ensino em relação a isto, haja vista que o tema despende bastante análise, pois há ainda muita falta de compreensão por parte de algumas instituições. Na tentativa de alcançar este principal ponto, foi realizado um levantamento sobre o contexto histórico da liberdade religiosa a nível mundial a fim de demonstrar que fora conquistada através de muita luta e sofrimento dos povos antigos, uma vez que a história nos remete a tristes episódios de violência e morte contra aqueles que ousavam discordar da religião imposta pelos governantes. Em um segundo momento o trabalho enfatiza o desenvolvimento da liberdade religiosa em nível de Brasil, haja vista que a legislação pertinente ao tema por aqui ainda é escassa e pouco discutida. Apesar da falta de legislação e das consequências que isso traz na vida de quem realmente quer exercer sua liberdade de credo, há muitas pessoas que não abrem mão de seus princípios oriundos da fé e não deixam de considerar os entendimentos adotados na atualidade, que não são unânimes, mas inferem na inaplicabilidade da norma prescrita. Pretende-se também com esta pesquisa mostrar a fundamentação da crença de uma determinada classe de acadêmicos que guarda o sábado e também as dificuldades que enfrentam ao ingressar no ensino superior para conquistar seu sonho de se tornar um profissional qualificado. 10 No entanto, é importante destacar que este estudo não tem o escopo de causar diferenciação entre os que guardam o sábado e os demais acadêmicos, nem exigir privilégios que os destaquem dos demais, mas sim demonstrar a difícil jornada enfrentada por eles no dia a dia. Em meio a tudo isso, através da utilização do bom senso são apresentadas formas alternativas, através das quais é evidentemente constatado que pode haver um respeito recíproco tanto aos direitos do acadêmico quanto às normas das instituições de ensino estatais ou privadas. Não obstante, são trazidos a tona casos concretos nos quais as pessoas tiveram dificuldades em exercer suas crenças, o que resultou em conflitos, onde foi necessário buscar o judiciário para a solução. Contudo, em alguns casos foi observado que as próprias instituições de ensino, através de funcionários qualificados, conseguiram um meio de adequar o aluno possuidor de suas crenças ao objetivo principal, que é formar alunos com excelência, ajudando-o em sua caminhada até o recebimento do diploma. Desse modo, o objetivo principal é mostrar que mesmo havendo certos conflitos entre direitos elencados em nossa Carta Maior, principalmente no que tange aos acadêmicos e instituições de ensino, pode haver uma forma alternativa de prevenir que tais conflitos cheguem até o judiciário, e mais, que tal solução exige tanto um esforço por parte do aluno quanto por parte da instituição. Com isso, cabe dizer que o método desenvolvido para o deslinde deste trabalho, trata-se de pesquisa bibliográfica, não deixando de considerarque fora utilizado também uma mini entrevista a fim de saber a opinião de um Coordenador do Curso de Direito, como será demonstrado mais tarde. Reitera-se que tal trabalho é de importante contribuição para a área escolhida, uma vez que abre a discussão sobre um tema de suma importância para os acadêmicos que necessitam do respeito a guarda de um dia sagrado para eles para concluírem uma etapa extremamente importante para suas vidas, que é a formação acadêmica. 11 1 ORIGEM E CONCEITO DE LIBERDADE RELIGIOSA A liberdade religiosa apresentada em nossa Constituição Federal atual passou por demasiados processos no decorrer da história, ou seja, não surgiu do mero acaso. Tal tema, ainda hoje, possui grande relevância, pois não se pode deixar de considerar a grande influência que possui sobre o comportamento do indivíduo perante a sociedade, não somente na atualidade, mas desde os tempos mais remotos. Por este motivo, é válido dizer que a religião pautou a vida do ser humano desde o princípio de sua existência. Este aspecto de vida do indivíduo baseado na fé, em suas crenças e leis oriundas de divindades, era carregado consigo onde quer que fosse. Alguns autores assinalam que a religião exercida através da fé e da obediência às leis morais e éticas deixadas pelas divindades nada mais são do que uma forma de gratidão por tudo que os entes superiores realizavam na vida particular do indivíduo. Desse modo, na maioria das civilizações o estilo de vida do ser humano era pautado no temor, na adoração e na devoção a Deus ou aos deuses, como aduz Ellen White (2007, p. 381): “O dever de adorar a Deus se baseia no fato de que Ele é o Criador, e que a Ele todos os outros seres devem a existência”. Somado a esta ideia estava o fato da necessidade de expressar o seu estilo de vida religioso, até porque a adoção de uma religião sem a sua exteriorização é morta, como a própria Bíblia Sagrada acentua em Tiago 2: 17-18: “Assim também a fé, se não tiver as obras, é morta em si mesma. Mas dirá alguém: Tu tens a fé, e eu tenho as obras; mostra-me a tua fé sem as tuas obras, e eu te mostrei a minha fé pelas minhas obras”. (ALMEIDA, 2009, p. 1594). Dito isto, não se pode negar que a religião influenciou grandemente não apenas na vida do indivíduo em si, mas também na cultura e leis cogentes das antigas civilizações como ocorreu com as leis que em sua criação estavam intimamente ligadas ao Torá (Pentateuco) baseado nos dez mandamentos recebidos por Moisés depois de pronunciados e escritos pelo próprio Deus no monte Sinai e até mesmo na cultura Grega com as liturgias dos deuses do 12 Olimpo, assim como, na cultura egípcia em que os reis acreditavam serem descendentes diretos das divindades e, por fim, na Índia com seus grupos de castas criados pelo deus Brahma, dentre outros. (SCALQUETTE, 2009, p. 01 e MOSCATELI, 2009, p. 2435). Ao se conceber este tipo de crença, também nascia o temor às divindades, e desta forma, a crença de que o indivíduo poderia pagar não somente nesta vida por seus erros, mas também na vindoura, por isso os aspectos religiosos influenciavam em seu comportamento social e ao mesmo tempo eram transportados, inclusive, para o campo de elaboração das leis de ordem social e econômica, como no caso do alcorão que até os dias de hoje influenciam nas leis civis na região arábica desde a sua elaboração pelo profeta Maomé. (SCALQUETTE, 2009, p. 03). Não obstante, a influência da religião não se perfazia apenas nos tempos de paz, mas também em tempos de guerras, pois eram nesses momentos que a fé e as crenças eram testadas, sendo ao final demonstrado qual deus era o mais forte ou se a nação estava ou não sendo punida devido ao seu histórico de conduta. Um exemplo claro é a história dos hebreus ao serem conquistados pelos Caldeus oriundos da Babilônia que, por diversas vezes, foram motivos de chacota: O fato de esses homens, adoradores de Jeová, estarem cativos em Babilônia, e de os vasos da casa de Deus terem sido postos no templo dos deuses de Babilônia, era orgulhosamente citado pelos vencedores como evidência que sua religião e costumes eram superiores à religião e costumes dos hebreus. (WHITE, c2007, p. 243) Noutro giro, impele destacar que ligado ao aspecto da religião há algo muito importante, o “livre arbítrio”. Na antiguidade, assim como hoje, acreditava-se que não bastava o ser humano viver de acordo com aquilo que fora deixado pelas divindades, suas escolhas deveriam partir do interior do indivíduo, sem qualquer repressão, ou seja, deveria pautar sua vida em ideais divinos por sua livre e espontânea vontade, pois tal questão baseava-se e baseia-se até hoje em uma escolha personalíssima, como bem cita Rivero&Moutouch: Na base da participação numa religião, há necessariamente um ato pessoal de adesão ao sistema do mundo por ela proposto, ato que tem ainda mais valor e significado por ser livre. Por esse aspecto, a liberdade religiosa é uma forma da liberdade de opinião, que designamos mais especialmente pelo nome de liberdade de consciência. (RIVERO & MOUTOUH, 2006, p. 523) 13 Apesar das guerras e das culturas adotadas por cada nação em seu tempo, essa liberdade de optar por uma religião, fosse ela qualquer, era tolerada pelos detentores do poder até certo limite. Isso era baseado no fato de que pairava a ideia de que não havia a possibilidade de se controlar o íntimo do seres humanos. Nascia, assim, os primeiros traços da liberdade religiosa, não de forma explícita, conforme reconhecido pelo Rei Addashir, ainda no século III a.C. citado por Neidsonei Pereira de Oliveira: Sabei que a autoridade somente se exerce sobre o corpo dos súditos, e que o rei não tem poder algum sobre o coração humano. Sabei que, ainda que se dominem os homens no que diz respeito a suas posses, não se dominará nunca o fundo das suas mentes. [Tradução livre]. (OLIVEIRA, 2007, p. 36). Dito isso, a expressão, ou melhor, a ideia de liberdade religiosa, não se sabe de forma precisa em qual época surgiu, mas segundo relatos históricos, a expressão foi usada pela primeira vez pelo advogado Tertuliano, em 197 d.c, ao realizar a defesa de diversos cristãos que estavam sendo perseguidos pelo império Romano, sendo a sua base de defesa a seguinte: “É um direito humano fundamental, um privilégio natural, que todo homem adore segundo as suas próprias convicções”. (REVISTA HISTÓRICA, 1999, p. 237). Diante deste relato verifica-se que o referido advogado também seguia a corrente de que a devoção e a adoção de convicções é natural do ser humano, devendo sua escolha ser totalmente embasada no livre arbítrio, já que é algo que interfere, muitas vezes diretamente, no caráter do indivíduo e, portanto, deveria ser algo livre de qualquer controle, seja interno ou externo. Por conseguinte, para melhor compreensão do que será explanado, é necessário conceituar o que é a liberdade religiosa. Antes de tudo, porém, cabe dizer que a religião possui um aspecto espiritual anterior ao mundo concreto, e como dito anteriormente, está ligado às divindades, ou aquilo considerado sagrado, e para tanto, o termo “religião”, segundo dicionário brasileiro Globo, engloba o temor, respeito, fé, crenças, devoção e outras singularidades. Tal palavra é oriunda do latim “religione”, que também pode ser entendida como religar da original “religare”, como aponta outros estudiosos, ou seja, evidenciando que há uma conexão do mundo concreto com o espiritual. Já no sentido da expressão no mundo concreto, a liberdade religiosa possui campo mais abrangente do que aquela do campo espiritual, segundo assinala Robert Jacques: 14 A liberdade religiosa é, em primeiro lugar,uma liberdade “individual” dado que consiste, para o indivíduo, em dar ou não a sua adesão intelectual a uma religião, escolhendo-a, ou rejeitando-a livremente. [...] Mas é também uma liberdade “coletiva” no sentido de que não se esgotando na fé ou na crença, necessariamente, dá origem a uma prática cujo livre exercício deve ser garantido. (OLIVEIRA, Apud, JACQUES, 2003, p. 84). Portanto, a liberdade religiosa é a faculdade do indivíduo de optar por escolher ou não uma religião, e ao fazê-la, não pode ser pouca a exteriorização através do exercício da fé em crenças, assim deve ser garantida para ser efetiva. Ademais, a liberdade religiosa não se finda apenas na liberdade de crer ou não, mas abre demasiados direitos inerentes a primeira, como a liberdade de expressão, a liberdade de culto, a liberdade de reunião e de organização, que serão abordados nos capítulos posteriores. Constata-se, dessa forma, que a liberdade não se limita apenas ao campo interior do ser humano, mas vai além, atingindo tanto a questão individual, que se refere a sua escolha ou não de optar a um credo, quanto à social, quando parte do indivíduo a escolha por uma religião e como conseqüência se origina os demais direitos e garantias citados, pouco envolvendo outros indivíduos. (MOTA & BARCHET, 2009, p. 108). Percebe-se novamente que este conceito de liberdade está intimamente ligado ao livre arbítrio, tanto de cunho individual quanto coletivo, sendo o exercício e a escolha realizados sem qualquer impedimento, seja psicológico ou exterior, conforme citado anteriormente, pois caso contrário, de nada vale a religião quando imposta de forma arbitrária, com o objetivo de romper o controle da consciência do indivíduo ou de suas ações, uma vez que os valores trazidos pela religião imposta não terão os mesmos efeitos do que aquela aceita com a vontade livre, o que ao mesmo tempo desrespeita o princípio máximo da dignidade da pessoa humana. Apesar de ter existido essa tolerância e do pensamento ser impossível de controlar a consciência do ser humano, desde a antiguidade não deixou de haver movimentos empreendidos por poderes absolutos no intuito de monopolizar a crença e a fé da civilização. Muitos foram os que sofreram por optar por sua religião em vez daquela imposta. A princípio, quando um indivíduo escolhia uma religião divergente da adotada pela civilização, era apenas motivo de chacota, exclusão dos círculos sociais. No entanto, no decorrer da história houve o desencadeamento de várias perseguições, com aplicação de torturas e inclusive muitos perderam a vida por não aceitarem a hipótese de abrir mão de suas crenças. Tais acontecimentos envolviam a liberdade de religião e se deram com mais afinco após o nascimento de Cristo exposto na Bíblia Sagrada, como será abordado mais adiante. 15 Desse modo, cumpre de forma sucinta trazer à tona alguns aspectos históricos arquivados sobre a repressão a essa liberdade, como ocorreu em Roma, França e outros países que em nada beneficiaram no desenvolvimento humano e no direito discutido, conforme será apresentado a partir de agora. 1.1 Aspectos Históricos da Liberdade Religiosa em Roma Ao tratarmos da Roma Antiga através das obras dos mais renomados historiadores, constata-se que tal império sempre se baseou em liturgias, deuses e contos de grandes guerreiros, como em sua própria origem ao ser contada a lenda de que os seus fundadores, Remo e Rômulo, irmãos gêmeos, foram criados por uma loba e, posteriormente, fundaram a primeira cidade que mais tarde foi chamada de a grande Roma. (SCALQUETTE, 2009, p. 01). Em seus primórdios, por mais que houvessem adotado crenças em deuses e demasiadas liturgias, os romanos eram conhecidos por serem acolhedores. Pessoas de diferentes culturas, credo e status econômico se uniram à causa dos irmãos. Não havia, naquela época, problemas com o exercício da liberdade de crença. Com o crescente desenvolvimento do império, devido à união com vários povos no decorrer dos reinados, Roma viera a se tornar uma grande potência com grande viés cultural, econômico e social (BRANDÃO, 2015, p. 27-29). No entanto, na era de Cristo, quando o cristianismo começou a se estabelecer iniciou um dos mais graves problemas ligados ao tema liberdade religiosa. Nesse ínterim, cumpre salientar que será tratado do cristão devido ter sido a classe que mais sofreu represálias no decorrer da história. Por conseguinte, apesar de o povo judeu ter sido dominado pelo império Romano, ele ainda tinha, até então, a liberdade de expressar e exercer suas crenças abertamente, como por exemplo, na questão dos sacrifícios e rituais do santuário descritos no livro de Êxodo do Pentateuco. Porém, com o tetrarca Herodes no comando de uma das províncias, isso mudou. Com a vinda predita do Messias, muitos foram perseguidos por causa de sua crença no Salvador. Várias pessoas passaram pela morte, inclusive crianças, pelo fato de temer que o nascimento do Messias, considerado nas profecias do povo Hebreu como o salvador da nação, pudesse usurpar seu trono pela força como bem exposto nos relatos bíblicos comprovados pela arqueologia (ARQUEOLOGIA BÍBLICA, 2006). 16 Após a morte de Herodes, tomando o mesmo rumo, o conhecido Saulo de Tarso, parte judia e parte romana, antes de se converter ao cristianismo, iniciou uma grande perseguição a vários cristãos, simplesmente pelo fato das interpretações das escrituras trazidas por Cristo não irem ao encontro dos anseios e tradições impostas pelos sacerdotes da época. Isso contribuiu para estreitar ainda mais a liberdade que parte do povo judeu tinha até então, pois antes de serem perseguidos os novos cristãos foram proibidos de propalarem suas crenças em Cristo, mas para infelicidade dos sacerdotes da época, o movimento somente crescia, conforme evidenciada na Bíblia Sagrada (ALMEIDA, 2009, p. 1.437). Mais adiante, quando o poder romano ainda era estabelecido, no reinado de Nero, aproximadamente no ano 64 d.C. houve árdua perseguição aos professos cristãos que em dito momento foram classificados como seita, inclusive taxados de criminosos por não aderirem aos costumes religiosos impostos pelo imperador. Como se não bastasse, até mesmo à autoria do grande incêndio provocado por Nero na época segundo estudiosos foi atribuída aos cristãos, justamente pelo fato do conflito de crenças e razões políticas existentes. Nero identificou os cristãos como uma entidade separada, bem distinta dos judeus. O imperador, de fato, segundo Tácito (55-120 A.D.), “amarrou a culpa (isto é, incêndio culposo sobre eles) e infligiu as mais requintadas torturas sobre uma classe odiada por sua abominação chamada cristãos pelo populacho”. (PHD BACCHIOCCHI, 2009, p. 100). Posteriormente, no reinado do imperador Domiciano no ano 81 – 96 d.C. também houve grande perseguição despendida, não apenas aos cristãos, mas a todos aqueles que se recusavam a cumprir seu edito. Ao se intitular deus, Domiciano decretou que aquele que não aceitasse adorá-lo como divindade seria acusado de rebeldia, e nisso qualquer conduta dos cristãos ou dos demais cidadãos da civilização que desagradassem o povo pagão era motivo de entregá-los ao monarca para castigo sob alegações de serem hereges que traziam a desordem no império. (LISSNER, 1959). Já na época do imperador Trajano em 98 – 117 d.C. apesar dos precedentes de perseguição, seu reinado foi mais brando. No entanto, este período foi breve, se findando em 117 – 138 d.C. O reinado do imperador Adriano que chegou até mesmo a crucificar várias pessoas por causa da fé que professavam foi um marco histórico à repressão da liberdade de crença como evidenciada na Obra os Césares de Roma, 1959. Posteriormente, no reinado de Marco Aurélio (161 – 180 d.C.) não foi diferente, o monarcafoi duro e feroz contra os cristãos, desencadeando uma grande perseguição. No 17 entanto, quanto mais perseguia, mais crescia o movimento cristão, adquirindo o título de igreja pura, pois só aderia ao movimento os que realmente eram sinceros de coração, distanciando aqueles que tinham interesses políticos ou financeiros. Em seguida, do mesmo modo agiu o Imperador Sétimo Severo (193 – 211 d.C.). Nesse período, qualquer desgraça acidental ocorrida era atribuída aos cristãos, por não aceitarem os deuses do imperador, muitos menos atendiam a ordenança obrigatória de adoração. Por isso foram vítimas de todos os métodos de tortura. Com o exemplo de seus antecessores, Décio e Valeriano (249 – 260 d.C.) deram início a primeira perseguição oficial, pois até então as perseguições não eram inteiramente legalizadas pelos imperadores, mas sim permitidas. O interessante era que tal atitude decorria da ideia de que o povo cristão em crescimento era um perigo para o império, pois o cristianismo tinha grande influência sobre as pessoas. Não obstante, no reinado do imperador Diocleciano e Galério (284 – 305 d.C.) as perseguições se intensificaram e chegaram a editar um decreto em que constava que todos que não sacrificassem aos seus deuses seriam executados (LISSNER, 1959). Em (325 - 337 d.C.) no reinado do imperador Constantino, uma nova etapa se iniciou, vendo o monarca que as perseguições até ali empreendidas somente faziam com que o movimento cristão ganhasse mais força, e, mormente buscando agradar tanto aos seus súditos quanto aos cristãos, decidiu estabelecer um dia de adoração, estipulando o domingo, em homenagem ao deus sol, utilizando de uma grande estratégia política e religiosa. Tudo isso culminou com o nascimento da Igreja Católica, perdendo o status de igreja primitiva e a pureza até então adquirida. Nela foram introduzidas várias superstições e culturas estranhas, juntamente com as escrituras em seu meio, passando nesse momento de igreja perseguida para perseguidora. Ao mesmo tempo em que passou a andar de mãos dadas com o Estado, teve, após a intitulação do papado, grande influência sobre o governo como se denota da história. Fruto disso são os vários princípios e mandamentos sagrados que foram retirados das escrituras sagradas para satisfazer as vontades e anseios do Imperador, como por exemplo, o dia santo de guarda, que foi mudado do sábado para o domingo, pois até então não se comungava o 1° dia da semana como escolhido. Também ocorreu a inclusão de imagens de escultura, dias de santos e festas, dentre outras homenagens baseadas exclusivamente em vontades humanas, conforme ensina Bacchiocchi (2009, p. 147-151). Nos acontecimentos posteriores ao reinado de Constantino, já na idade média, mais perseguições foram travadas, inclusive em face daqueles que agora contrariavam a Igreja 18 Católica Apostólica Romana, como percebe-se na obra de Foxe ao contar sobre Jhon Wickliff que viveu por volta de (1371 d.C.) em que por diversas vezes teve que se defender perante cardeais sobre suas obras e pregações baseadas puramente nas escrituras sagradas. Do mesmo modo ocorreu com seu sucessor JhonHuss ao expor sua fé com pontos de vista inteiramente atrelados às escrituras sagradas, foi obrigado pelo Cardeal de Cambray a rejeitar o que pregava, e não o fazendo, foi posto em uma fogueira e queimado até a morte. (FOXE, 2013, p. 64-86). Posteriormente, o próprio Martinho Lutero, notável reformador protestante do século XV (d.C.), grande erudito das escrituras sagradas foi submetido a julgamento devido a sua fé. Ele trouxe uma nova abordagem quanto à filosofia teológica baseada no estudo da bíblia sagrada e nos escritos de seus antecessores já citados. Isso causou grande revolução quanto a forma de interpretação e descobertas de verdades até então negligenciadas pela Igreja Católica, o que resultou na reforma protestante, como é conhecido atualmente. Com muita coragem e fé ele se opôs às doutrinas da Igreja no que se referia a venda de indulgências. Foi perseguido posteriormente e submetido a julgamento perante as autoridades religiosas e Civis, sendo obrigado a abrir mão de sua fé. Contudo, com grande convicção disse a famosa frase: “A não ser que seja persuadido por argumentos suficientes, tirados da escritura e da razão, não posso e não desejo retratar-me; Porque fazer qualquer coisa contra a consciência é arriscado e perigoso” (FOXE, 2013, p. 109-110). No dia seguinte ao seu julgamento foi denunciado pelo Imperador Carlos V como herético notório. O mesmo tratamento recebeu os sucessores deste grande doutor das escrituras, como nos casos de Patrick Hamilton da Escócia, de Ridley na Inglaterra e outros tantos da Itália e Alemanha. Martinho Lutero com suas obras inspirou muitos irmãos de fé, fazendo com que eles passassem a lutar e a defender aquilo que era justo e verdadeiro a luz das escrituras, sendo que alguns perderam a vida por isso, tudo por quererem exercitar aquilo que chamamos hoje de liberdade religiosa. Percebe-se na dura caminhada da conquista da liberdade religiosa, que esta fora traçada tremendamente pela violência, envolvendo torturas tanto físicas quanto psicológicas, e na maioria das vezes, ceifando a vida de incontáveis seres humanos. O interessante é que nesta busca por controle e poder pelos detentores do domínio monárquico não pairou somente em Roma, atingiu posteriormente diversos países, inclusive com culturas e credos diferentes, como será exposto a seguir. 19 1.2 Aspectos Históricos da Liberdade de Crença na França Nas eras pós Martinho Lutero, novamente muitas pessoas continuaram sendo perseguidas e impedidas de professar seu credo de forma livre, como ocorreu na França em 177 (d.C.), ao narrar John Foxe: Durante a mesma perseguição padeceram os gloriosos e mui constantes mártires de Lyon e Vienne, duas cidades da França, dando um retumbante testemunho e, para todos os cristãos, um espetáculo ou exemplo singular de fortaleza em Cristo nosso Salvador. A história deles é assim contada pelas suas próprias igrejas onde padeceram. (FOXE, 2013, p. 23). Percebe-se que um dos primeiros países que posteriormente se tornaram símbolos da liberdade também tiveram o passado marcado pelo sangue de pessoas que apenas queriam exercer um direito intrínseco ao ser humano. Na França, entretanto, não ficou apenas naqueles acontecimentos mencionados acima, pois aproximadamente no ano de 1793, mesmo em eminente declaração dos direitos do homem como será explanado nos capítulos posteriores, o Poder Legislativo através de sua Assembleia lavrou um enunciado afirmando que Deus não existia, e deu ordens de extirpar todas as bíblias do país, impedindo também os cultos religiosos durante o vigor da lei que perdurou por 3 (três) anos e meio. No entanto, novamente não conseguiram manter o controle sobre os indivíduos e principalmente, sobre suas crenças. Mesmo com a separação do Estado e da Igreja em um período tão conturbado e violento, o resultado foi apenas violência, mortes e degradação do ser humano, conforme assinalado por alguns autores, como Ellen G. White tais acontecimentos foram trazidos por reflexos dos atos de Roma. 1.3 Aspectos Históricos da Liberdade de Crença em outros Países Não apenas na grande Roma e na França ocorreram perseguições aos cristãos, mas também em outros países, como sobreveio na Ásia menor, onde diversos cristãos armênios foram massacrados em Erzurum – Armênia. Outros tantos foram deportados pelo império Otomano, numa guerra que se estendeu pelos anos de 1683 até 1842. Nesse período, até mesmo o cargo público era proibido àqueles que não aderissem à fé e crenças predominantes. Mormente massacres continuaram na revolta búlgara de 1876 e na guerra Russo-Turca em 1877 a1878, onde soldados turcos quase exterminaram a comunidade cristã em seus 20 territórios, tudo em virtude da fé da pequena comunidade, conforme contado por Donald Quartaert em sua obra. (QUARTAERT, 2008, p. 20). Além do mais, uma das tragédias que envolveram muitas mortes e não há como ser esquecida foi a travada por Adolf Hitler que ceifou a vida de milhões de judeus no evento denominado holocausto, ao realizar atos aterrorizadores sob a filosofia de pureza racial que também envolvia no contexto geral a religião dessa nação, pois não se admitia a introdução de crenças na implantação de seu novo governo, sendo uma espécie de fraqueza do império se levada a cabo. Por este motivo, os judeus eram obrigados a irem para os campos de concentração, sofrendo as mais terríveis torturas e mortes sob a opressão nazista (Escola Sabatina, 2018, p. 63-90) Outro país combatente da liberdade de religião foi a União Soviética, onde o poder deste país liderou e encorajou o ateísmo durante a sua existência, suprimindo e eliminando várias crenças de origem cristã durante a sua permanência (União Soviética), também resumidamente abordado por Quartaert. Atualmente ainda existem países que são intolerantes quando o assunto é religião. Como é de conhecimento geral, em algumas partes do Oriente médio onde predomina o Islamismo, ou na Índia onde há predominância do Hinduísmo, e dentre outros por aí a fora que se fosse levar a cabo daria vez a várias obras. Diante desse vasto quadro apresentado até aqui, é de fácil constatação que desde o início dos tempos vários foram os que tentaram monopolizar a fé ou introduzir, de forma imperativa, certas crenças em sua civilização, ou até mesmo fazer com que a religião, não importando o credo, fosse extirpada de sua nação, e o pior, na maioria das vezes apoiados pelo governo absolutista ou mesmo apoiada pela religião predominante. Tendo em vista a persistência dos seres humanos em manter a fé em um Deus ou deuses através de suas crenças, é valido afirmar com toda vênia que a religião para muitos foi e é a base de sua existência, do caráter e aspecto moral. É nela que o indivíduo encontra amparo não apenas para a vida física, mas também espiritual, tanto que várias pessoas deram a vida por amor a sua fé. Ao mesmo tempo, tais fatos históricos confirmam a impossibilidade de impor ao ser humano uma religião forçada, pois como dito alhures, pode-se até ter um controle sobre os atos do ser humano que se perfazem de forma exterior, no entanto jamais sua consciência poderá ser controlada. Por derradeiro neste capitulo, vale assinalar que nos dias atuais, com a evolução e regulamentação dos direitos humanos houve uma diminuição à repressão da liberdade de credo. Contudo, apesar de haver normas de âmbito mundial adotadas por centenas de nações, 21 não quer dizer que se findaram essas perseguições, como ocorre no Oriente Médio citado anteriormente, na Coréia do Norte, Somália e outros por aí a fora. Da mesma forma que os tempos mudaram, as maneiras de repressão à liberdade de credo também passaram por certa evolução. As que não ocorrem de forma física, como mortes, aprisionamento ou tortura nos estados extremistas, acontecem de forma sorrateira ou indireta, como uma discriminação ou tolhimento de alguns direitos do cidadão em virtude de sua fé baseada em suas crenças. No Brasil são notórios os direitos elencados na Constituição de 1988, principalmente aqueles referentes à liberdade religiosa, como liberdade de crença, culto e expressão. Direitos esses que se consolidaram no decorrer das últimas décadas e que começaram a se basificar lá, em seus primórdios, ao se adotar a forma de Estado Laico, resultante não apenas da conquista de direitos, mas também do histórico dos poderes antecedentes ao manusear a liberdade religiosa, que é o que será abordado a partir deste momento. 1.4 Estado, Religião e o Direito Ao se analisar o contexto fático entre Estado e Religião, não se pode deixar de considerar a grande influência desta última sobre o primeiro no decorrer dos tempos. De modo que ambos, na maioria das vezes, andaram juntos, começando pelo fato de que só ocupava o poder aquele que fosse o ungido das divindades. Da mesma forma, o reino somente prosperaria quando os reis e o povo seguissem a vontade de Deus ou dos deuses após serem abençoados pelos sacerdotes, papas ou guias da nação concernente a religião, haja vista o declínio da nação também estar relacionado com a religião ao ser deixada de lado ou quando negligenciada, sendo este fator evidenciado inclusive em Atenas que sucumbiu a tal dilema, como exposto por Valter da Silva Vasques: Até mesmo Atenas (capital Grega), uma sociedade considerada o berço da democracia onde se desenvolveu a filosofia e outras ciências, a crença nos deuses da mitologia e a relação entre a religião e o Estado era tão próxima, que uma infundada e caluniosa acusação de ateísmo condenou à morte o filósofo Sócrates. Os calendários, as atividades sociais, os esportes, eram relacionados à religião sob a anuência do Estado. Em Roma, a tal ponto a religião relacionou-se com o Estado que César confundiu-se com um deus. E quando surgiram os primeiros sinais de decadência do Império, uma das razões alegadas foi o abandono da antiga religião. Parece-nos que naqueles tempos, um Estado só se mantinha firme na medida em que a religião o legitimava (SOUZA, 2007, p. 70, Apud VASQUES, 2005, p.5) 22 Tendo isso por base, vários foram os reinados em que a religião, através de seus representantes, num contexto geral, dominou o governo. Uns de forma mais benéfica e outros não, citando como exemplos, a antiga Israel, o Estado Grego e especialmente a Roma na idade média após o surgimento da Igreja Católica ao estabelecer o Estado medieval, logo após a invasão dos bárbaros, o que segundo Maluf: “toda a história política da Idade Média gira em torno das relações entre Estado e a Igreja Romana”. (MALUF, 2010, p. 127), chegando alguns autores a mencionar o termo “religião política”, como trata Oliveira, visto sua ligação com as atividades do Estado estar baseada na teocracia conforme defendido abaixo pelo pensamento agostiniano: Essa filosofia parte da ideia de que o poder terreno é um instrumento para a instauração de ordem imposta por Deus. Nesse sentido, os príncipes, a quem tal poder foi confiado, seriam ministro de Deus. Trata-se de uma concepção essencialmente teocrática, segundo a qual o poder temporal deve estar a serviço espiritual, visão que permite tanto a legitimação da autoridade política por meio de seu fundamento na autoridade divina como a legitimação da dimensão política da igreja, originando uma cultura clerical, que submete as leis civis às leis divinas e coloca a Igreja acima do Estado. (FERREIRA, GUANABARA, JORGE, 2008, p.16) Esta ligação entre ambos, não somente na antiguidade, dava-se em virtude da forte teoria teocrática que teve grande influência principalmente na Idade média. Conforme dito anteriormente, a ocupação do poder absolutista na imagem do rei era proveniente de ordem divina, em que era alegado que o direito à soberania fora recebido pelo próprio Deus, por isso o monarca era visto como ministro da divindade, fazendo cumprir os desígnios da santidade na terra, sendo que muitas das vezes, o próprio imperador em seus delírios se confundia com uma divindade, tendo os súditos que se subordinarem a vontade do detentor do poder, conforme elencado anteriormente, e como bem dispõe Dalmo de Abreu Dallari: Teorias teocráticas, que tiveram predominância no fim da Idade Média, quando já se prenunciava a clara conceituação de soberania, bem como no período absolutista do Estado Moderno. Seu ponto de partida é o princípio cristão, externado por SÃO PAULO,“omnis potestas a Deo”, ou seja, todo poder vem de Deus. Essas teorias apresentavam-se como de direito divino sobrenatural quando afirmavam que o próprio Deus concedera o poder ao príncipe, e de direito divino providencial, quando sustentavam que a soberania vem de Deus como todas as coisas terrenas. (DALLARI, 1998, p. 33). 23 Por conseguinte, não se pode negar o papel da Igreja Católica como instituição nesses episódios, pois com a influência do Papa advinham diversos benefícios, como a aquisição de terras em nome da Igreja, isenção de impostos, inclusive funções, como a realização de casamentos, administração de cemitérios e o ensino da época como assevera Chavante& Rocha (2014, p. 358). Ademais, a Igreja era mantida e custeada pelos imperadores, o que dava direito a eles de nomearem cargos de confiança na Igreja, mantendo assim, os representantes da religião ao lado do governo. Andando igreja e Estado lado a lado, acreditava-se que a primeira desferiria certa positivação sobre o governo exercido pelo monarca, ganhando ao mesmo tempo, os fiéis súditos, conforme disciplinado abaixo: Sob este prisma, compreende-se como a religião esteve tão fortemente ligada ao poder do Estado nas antigas civilizações. Os templos e seus sacerdotes eram respeitados e sustentados pelos reis. Havia uma união quase inextricável. A religião dava legitimação ao poder do Estado, ao mesmo tempo em que se beneficiava com sua proteção. (SOUZA, 2007, p. 70, VASQUES, 2005, p.5) No entanto, esta influência da religião, ou melhor, da Igreja sobre o Estado, em um contexto geral, estava prestes a acabar. Com a evolução dos tempos, dos direitos, dos aspectos sociais emergentes cumulados com as crises, o povo clamava por uma revolução. Embora o Estado possuísse um laço com a Igreja no período medieval e moderno, a ligação desta com o povo estava se desfazendo, visto os antecedentes históricos de perseguição, como ocorreu no episódio da Santa Inquisição e os demais eventos descritos no capítulo anterior. Não obstante, somado a este fator estava o Estado, que em seu absolutismo e à imagem do Rei, não podia ser responsabilizado, por isso estava, mormente, despreocupado com os vários direitos tolhidos de seus súditos, que na maioria das vezes era apoiado pela própria Igreja. Tido isso, se vislumbrou o desligamento entre o Estado e a religião no governo. Os primeiros eventos ocorreram nos Estados Unidos e na França conforme será explanado a seguir. 1.5 O Constitucionalismo e o Estado Laico A ideia de separação entre Estado e Religião não surgiu de uma hora para outra. Vários foram os períodos da história estudados. Com a evolução dos tempos, veio a diversidade de culturas, de filosofias, de direitos e, inclusive, de religiões. Com isso, a 24 imagem de se manter apenas uma religião predominante veio perdendo espaço, principalmente nas crises de cada época. Este desdobramento fático não é atual. É algo que vinha sendo parte de estudos de diversos filósofos e estudiosos, séculos antes de Cristo. Um exemplo a ser citado é a famosa história de Sócrates que em sua época trouxe o conceito renovador de que o Estado em sua administração não poderia ser baseado somente no anseio dos deuses, negligenciando os demais aspectos sociais inerentes aos valores humanos, o que por consequência fez com que o filósofo fosse acusado de forma injusta de corromper a juventude através de suas ideias revolucionárias, pagando com sua própria vida a defesa de sua tese, conforme cita Souza ao mencionar Valter da SilvaVasques: Até mesmo Atenas (capital Grega), uma sociedade considerada o berço da democracia onde se desenvolveu a filosofia e outras ciências, a crença nos deuses da mitologia e a relação entre a religião e o Estado era tão próxima, que uma infundada e caluniosa acusação de ateísmo condenou à morte o filósofo Sócrates. (SOUZA, 2007, p. 70 apud VASQUES, 2005, p.5) Platão também seguiu a mesma linha de raciocínio, alegando que o Estado não deveria ter por base apenas as concepções e vontades dos deuses, mas sim que o governo e a administração fossem traçados pela ética, a luz da razão e da racionalidade, ligadas intrinsecamente à realidade social, pois um governo baseado em tais dilemas seria mais lúcido do que aqueles que tinham por fundamento a mitologia, contos ou superstições. Noutro giro, as divindades poderiam ser usadas para distorcer uma democracia a ser implantada, conforme enfatizado por Mauro Ferreira de Souza ao discorrer sobre o tema. Posto isso, o aspecto do Estado como ente independente da Igreja também foi objeto de estudo com grande ênfase nos séculos XVI a XVIII e evoluiu nos séculos posteriores, onde grandes pensadores como John Locke e Jean-Jacques Rousseau, dentre outros, contribuíram avidamente com suas teses sobre a separação dos poderes e organização do Estado à luz do contratualismo, sendo de fácil constatação em análise as obras destes renomados estudiosos que não se via falar na instituição de um Estado onde a religião ou a Igreja tivesse um papel na administração, mesmo que de forma indireta. Percebe-se isso quando Rousseau discorre sobre a ideia de as funções do Estado e da Igreja serem distintas, assim como suas finalidades, visto o Estado, à imagem de ente governante, preocupar-se com os cidadãos em um contexto geral ao moldar suas leis e administração conforme a necessidade da civilização, e de outro lado a igreja estar ligada intimamente a parte espiritual do indivíduo, ou seja, seu estado de paz interior. Se ambos 25 interferissem um na função do outro certamente a consequência seria a mesma dos Estados cristãos anteriores. Destarte cada um deveria respeitar a sua finalidade para não causar conflito, caso contrário, tudo aquilo que provoca a desunião na sociedade civil como ocorrera nos tempos passados, é inútil e deveria ser considerado refugo(REIS, 2012, p. 275; MOSCATELI, 2009, p. 2438): Para estabelecer a paz dos locais onde há diferentes opiniões religiosas, duas coisas devem ser perfeitamente distinguidas: religião e governo, e suas espécies de oficiais, magistrados e ministros, e suas províncias [...]; o magistrado deve apenas visar a paz e segurança do Estado, os ministros devem estar apenas preocupados com a salvação da alma, e se estes últimos fossem proibidos de se intrometer com a composição e execução das leis em sua prédica, provavelmente nós estaríamos muito mais tranquilos. [...] Assim, Rousseau qualifica como má, em primeiro lugar, a religião do sacerdote, por tudo o que já havia dito sobre os problemas inerentes aos Estados cristãos. Dado que a meta do Contrato Social reside em descrever os meios para a manutenção de um corpo político coeso, tudo o que prejudica a unidade da sociedade civil, colocando o homem em contradição consigo mesmo, é inútil e deve ser descartado. Rousseau continua ao tecer a forte ideia de que a soberania estatal ilimitada estava intrinsecamente ligada ao povo como nação e somente a ele, não sendo em nada vinculada ao Rei como autoridade terrestre, quebrando, deste modo, o laço entre o divino e a coroa, ao discutir Maluf sobre a convencionalidade do Estado: O Estado é convencional, afirmou Rosseau. Resulta da vontade geral, que é uma soma da vontade manifestada pela maioria dos indivíduos. A nação (povo organizado) é superior ao rei. Não há direito divino a coroa, mas, sim direito legal decorrente da soberania nacional. A soberania nacional é ilimitada, ilimitável, total e inconstrangível. (MALUF, 2010, p. 88) Por conseguinte, ao debater sobre as atividades do Estado, John Locke contribuiu grandemente sob a ótica do liberalismo, indo inclusive contra o absolutismo defendido por Tomas Hobbes, acentuando queos direitos inerentes ao ser humano são superiores ao Estado, existindo entre o governo e os particulares apenas uma troca de serviços, e principalmente apoiando a liberdade religiosa sem qualquer ligação com o Estado ou afronta deste à liberdade do indivíduo, como bem assevera Maluf: 26 O homem não delegou ao Estado senão os poderes de regulamentação das relações externas na vida social, pois reservou para si uma parte de direitos que são indelegáveis. As liberdades fundamentais, o direito a vida, como todos os direitos inerentes à personalidade humana, são anteriores e superiores ao Estado. Locke encara o governo como troca de serviços: os súditos obedecem e são protegidos; a autoridade dirige e promove a justiça; o contrato e utilitário e sua moral é o bem comum. (MALUF, 2010, p. 85). [...] Pregou Lucke a liberdade religiosa, sem dependência do Estado, embora tivesse recusado tolerância para com os ateus e combatido os católicos porque este não toleravam as outras religiões. (MALUF, 2010, p. 85) Em vista das bases expostas acima, ao tratar sobre tais teorias em contraste com as funções distintas de cada qual (Estado e Religião ou Igreja), é valido dizer na visão dos autores que não seria benéfico à sociedade como um todo que o Estado suscitasse uma religião ou dominasse a Igreja em suas atividades ou a consciência dos indivíduos, muito menos que a Igreja interferisse ou influenciasse na administração do Estado, pois caso contrário voltar-nos-ia aos primórdios da história conforme explanado nos capítulos anteriores, gerando assim insegurança e demasiadas perseguições aos indivíduos. Apesar das discussões e abordagens sobre tal separação trazidas pelos filósofos e pensadores desde antes de Cristo até os séculos XVII a XIX, ainda predominava o absolutismo que por sua vez é sucessor do feudalismo, e conforme já assinalado, o rei era um representante de Deus, e para tanto cuidaria de todos os interesses inerentes a administração do Estado, sendo inquestionável em suas atividades de governo. No entanto, esse quadro estava prestes a mudar, tendo em vista os ideais trazidos à tona por diversos pensadores, como aqueles citados a pouco, acrescidos de um desenvolvimento do complexo social e políticas de governo, nascia à ideia de um Estado laico, ou leigo, sendo aquele de acordo com o Dicionário Brasileiro Globo (1965) que não possui uma religião ou credo oficial, aspecto este emergente nas primeiras revoluções da história moderna ao renascer o constitucionalismo no século XVIII. Embora o Constitucionalismo apresente aspectos amplos, resultou de uma série de visões iluministas, trazendo a tona não apenas uma sistemática de organização estatal, mas também a ideia do homem participar ativamente em sua atividade, atrelado a criação de diversas garantias de direitos, conforme trago no conceito de Mota & Barchet: Consiste o constitucionalismo em um movimento nascido da vontade do homem de comandar seu destino político e de participar na vida do Estado. Esta participação poderia ser como o senhor do governo, ou, ao menos, 27 como a garantia de que os governantes respeitariam um rol de direitos mínimos. (MOTA & BARCHET, 2008, p. 11) Um dos marcos inicial foi a revolução americana que a luz contratualista exerceu grande influência na quebra do poder absoluto e, mormente na conquista dos primeiros direitos fundamentais no evento de “Bill ofRight’s”, ou declaração de Direitos da Virginia, como assinala Gilmar Mendes. Revolução esta realizada sob a ótica dos direitos inerentes ao homem que possuía um liame com o desenvolvimento de um Estado moderno, sem influência de um poder arbitrário, conforme aduzido abaixo: Diz o autor que “a afirmação dos direitos do homem deriva de uma radical inversão de perspectiva, característica da formação do Estado moderno, nas representação da relação política, ou seja, na relação Estado/Cidadão ou soberano/súditos: relação que é encarada, cada vez mais, do ponto de vista dos direitos do cidadão não mais súditos, e não do ponto de vista dos direitos do soberano, em correspondência com a visão individualista da sociedade (...) no início da idade moderna”. (MENDES, BRANCO, 2014, p. 134-136) Anuído a este evento estava a primeira emenda à Constituição americana, onde se decidia pela separação entre o Estado e a Igreja e, mormente consolidando o direito às primeiras liberdades do cidadão, principalmente a relacionada a liberdade de crença e a impossibilidade do Estado se lançar sobre o foro íntimo do indivíduo, como ensinado por Moraes: Relembre-se que a primeira emenda à Constituição norte-americana assegura, em síntese, a liberdade de culto, de expressão e de imprensa, afirmando que o Congresso não legislará no sentido de estabelecer uma religião, ou proibindo o livre exercício dos cultos ou cerceando a liberdade de palavra, ou de imprensa, ou o direito do povo de se reunir pacificamente, e de dirigir ao Governo petições para a reparação de seus agravos. (MORAES, 1998, p. 127). Este episódio influenciou em outro marco mui importante, que foi a revolução francesa entusiasmada pela burguesia que se pautava sob a ótica do iluminismo. Neste episódio abriram-se as portas aos novos ideais trazidos pelos intelectuais liberalistas da época, que penderam diretamente na política, economia e âmbito social, e que também gerou reflexos na separação entre a Igreja e o Estado, visto que a Igreja tomou parte na revolução em trâmite, indo contra os revolucionários, o que desencadeou uma série de eventos, como a concretização, pelo menos no papel, de alguns dos direitos fundamentais inerentes ao homem, 28 através da declaração francesa em 1789, onde regia que todos eram iguais perante a lei, originando o famoso jargão Liberdade, Igualdade e Fraternidade, conforme elenca ao tratarem da origem e conceito de nacionalismo pós-revolução: A ideia de nacionalismo afirmou-se com a Revolução Francesa e com seu ideário, que buscava subverter o pensamento de que o poder emanava de Deus ou do rei. Ao longo do século XIX, os liberais encamparam o conceito de nação e buscaram associá-lo à universalização dos direitos políticos na luta contra Estados autoritários e em países que estavam sob domínio estrangeiro. (AZEVEDO, SERIACOPI, 2013, p. 265) Diante disso, é de fácil percepção que o Constitucionalismo não foi apenas brocardo cheio de sofismas com vistas a acalmar o povo da época, mas sim um movimento que rompeu com o absolutismo e, ao mesmo tempo, garantiu algumas das liberdades aos cidadãos juntamente com a limitação do poder na pessoa do Estado, inclusive a liberdade de credo, chegando alguns autores a aduzir que o evento constitucionalista foi uma ideologia que atingiu não somente o campo jurídico, mas também aspectos sociais e econômicos, como ensina Canotilho: O constitucionalismo exprime também uma ideologia: «o liberalismo é constitucionalismo; é o governo das leis e não dos homens» (MC ILWAIN). A ideia constitucional deixa de ser apenas a limitação do poder e a garantia de direitos individuais para se converter numa ideologia, abarcando os vários domínios da vida política, econômica e social (ideologia liberal ou burguesa). Por isso se pôde afirmar já que o constitucionalismo moderno é, sob o ponto de vista histórico, um «produto da ideologia liberal. (CANOTILHO, 1993, p. 64). Sendo assim, após todos estes eventos que originaram demasiados direitos ao ser humano, nota-se que a separação do Estado e da Igreja também fazia parte deste ideal, pois um estado laico reflete não somente aqueles indivíduos que adotavam um credo, mas também aos agnósticos ou ateus, cabendo ao Estado, garantidor dos direitos, fornece a cada componenteum tratamento igualitário, atingindo a todos, sem exceção, independentemente se adota um credo ou não, o que por sua vez chega ao objetivo final que é a construção de um Estado democrático, com normas garantidoras ao cidadão que, de certa forma, não veio a se consolidar efetivamente após tais revoluções, mas influenciaram grandemente no desenvolvimento dos direitos fundamentais e da valorização da atuação do cidadão na 29 atividade estatal, através da criação das constituições em diversos países, como é atualmente no Brasil, após trilhar um período de transformações como será abordado a seguir. 30 2 HISTÓRICO DA LIBERDADE RELIGIOSA NO BRASIL Com a descoberta do Brasil e a chegada da família real ao território em pleno desenvolvimento, chegaram também não apenas demasiados ideais ilusórios, mas também uma grande quantidade de pessoas ansiando por um lugar onde predominasse a ordem, a paz e o progresso. Ligado a este fator está o processo de independência do Brasil que foi mais pacífico do que o geralmente adotado pelos demais, pois os países anteriores a descoberta do Brasil possuíam ligaduras fortíssimas com suas antigas potências ou poderes locais, o que causou na separação grandes conflitos e muita violência na conquista de sua independência. Apesar de a família real ter vindo para o Brasil fugindo de Napoleão, trouxe grandes mudanças para o novo Estado, como a criação de portos, escolas e universidades, dentre outros projetos que na época foram bem sucedidos. Isto se devia ao fato da grande demanda de pessoas ingressando no país, pois se estima que, na época, habitavam no território brasileiro cerca de cinco milhões de pessoas, entre elas, 800 mil índios e um milhão de escravos, conforme assinala (SARMENTO, p. 71, 2013), o que deu vez a uma diversidade de culturas, tradições, religiões e costumes. Muito embora o Constitucionalismo tivesse iniciado seu desenvolvimento na Europa, na época em que o Brasil fora descoberto se perfazia um período pós-revolução, e entrementes, buscava-se o retorno ou senão, o fortalecimento da monarquia, não sendo diferente o intuito de D. Pedro I, haja vista sua despretensão com aquele movimento, como bem cita Daniel Sarmento: Na fala imperial já se revela não só a ambiguidade do compromisso de Pedro I com o constitucionalismo, mas também a complexidade do ambiente político ideológico do momento: superada a era revolucionária na Europa e derrotado o Império Napoleônico, vivia-se um período de restauração das monarquias. (SARMENTO, 2013, p. 72) 31 A luz do pensamento acima era notória a intenção de solidificação da monarquia no Brasil, pois ainda pairava a ideia de que a soberania era exercida na pessoa do Imperador, por ser o ungido de Deus, porquanto era inviolável e indeclinável enquanto estabelecido no poder, conforme elenca (MENDES, BRANCO, 2014, p. 99), e isto se derivava, não somente devido a derradeira força do absolutismo, mas principalmente pelo fato de ainda existir um forte laço com o catolicismo. Tal fator influenciou grandemente na elaboração da Constituição Imperial de 1824. Apesar de tais elementos constantes, não deixou de trazer os primeiros traços da liberdade religiosa graças ao reflexo do liberalismo conforme será abordado adiante. 2.1 Liberdade Religiosa na Constituição de 1824 Ainda que o descobrimento do Brasil trouxesse como consequência o grande aglomerado de culturas, costumes e religiões sobrestou no período a derradeira força do absolutismo como dito alhures. Traços esses verificados no próprio texto da Carta de 1824 em seus artigos 3º e 4º, os quais aduziam o seguinte: “Art. 3º - O seu Governo é Monarchico Hereditario, Constitucional, e Representativo. - Art. 4. A Dynastia Imperante é a do Senhor Dom Pedro I actual Imperador, e Defensor Perpetuo do Brazil”. (BRASIL, 1824, RJ). Embora a monarquia desferisse seus últimos suspiros, o imperador era a autoridade suprema na questão política como dispõe Mota &Barchet: Foi a única Constituição monárquica do Brasil e se caracterizou pela sua semi-rigidez, pela instituição de um Poder Moderador, que ela mesma conceituava como “chave de toda organização política”; tal poder pertencia ao Imperador e estava acima dos demais poderes constituídos. (MOTA & BARCHET, P. 33) Mesmo tratando-se de uma Constituição Imperial, não deixou de elencar alguns direitos individuais como aduz Sarmento. No entanto, no que se referia à religião, a questão era unânime, sendo a confissão oficial do país a Católica Apostólica Romana, como elencava o artigo 5º da Carta: “Artigo. 5. A Religião Catholica Apstolica Romana continuará a ser a Religião do Imperio [...]”. (BRASIL, 1824, RJ). Não parava por aí, objetivando sua positivação no poder através do apoio da Igreja, o Imperador antes de assumir o trono deveria por certo jurar defender a religião da nação, e não somente ele, assim como seu herdeiro legítimo a suceder e seus conselheiros, conforme destacava o Artigo 103º, 106º e 141º, vejamos: 32 Art. 103. Imperador antes do ser acclamado prestará nas mãos do Presidente do Senado, reunidas as duas Camaras, o seguinte Juramento - Juro manter a Religião CatholicaApostolica Romana, a integridade, e indivisibilidade do Imperio; observar, e fazer observar a Constituição Politica da Nação Brazileira, e mais Leis do Imperio, e prover ao bem geral do Brazil, quanto em mim couber. [...] Art. 106.0 Herdeiro presumptivo, em completando quatorze annos de idade, prestará nas mãos do Presidente do Senado, reunidas as duas Camaras, o seguinte Juramento - Juro manter a Religião CatholicaApostolica Romana, observar a Constituição Politica da Nação Brazileira, e ser obediente ás Leis, e ao Imperador. [...] Art. 142. Os Conselheiros serão ouvidos em todos os negocios graves, e medidas geraes da publica Administração; principalmente sobre a declaração da Guerra, ajustes de paz, nogociações com as Nações Estrangeiras, assim como em todas as occasiões, em que o Imperador se proponha exercer qualquer das attribuiçõesproprias do Poder Moderador, indicadas no Art. 101, á excepção da VI. (BRASIL, 1824, RJ). Nisto era inegável a união entre o Estado brasileiro inicial e a Igreja, e este fato se consolidava no relacionamento entre ambos e em suas atividades, visto a Igreja ser sustentada pelos cofres do Império, sendo os padres inclusive remunerados pelo Imperador, e em decorrência disto, era prerrogativa do soberano nomear padres, bispos e demais cargos de confiança da Igreja, conforme previa o Artigo 102º da Constituição, chegando alguns autores equiparar os clérigos como “funcionários públicos”. (SARMENTO, 2013, p. 73). Não obstante, as pessoas que mantinham o intuito de manifestar outro tipo de religião além daquela adotada pelo império até possuíam o “direito assegurado”, desde que não ofendesse a moral pública conforme dispunha o artigo 179º: Art. 179. A inviolabilidade dos Direito Civis, e Políticos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperial pela maneira seguinte: [...] V. Ninguém póde ser perseguido por motivo de Religião, uma vez que respeite a do Estado, e não offenda a Moral Publica. (BRASIL, 1824, RJ) No entanto, deveriam fazê-lo em casa, não podendo perturbar a paz da comunidade, muito menos falar sobre suas crenças em público, conforme bem elencava o art. 5º da referida Constituição - 1824: “Artigo. 5. A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião do Império. Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto doméstico, ou 33 particular em casas para isso destinadas, sem fórma alguma exterior do Templo”.(BRASIL, 1824, RJ). O interessante era que, por mais que estivesse previsto na Constituição Imperial que ninguém poderia ser perseguido por motivo religioso, o próprio Estado incumbia-se de fazer tal papel pela via de supressão de direitos civis do cidadão. Fato este evidenciado no artigo 95 da respectiva Carta, onde descrevia que não poderia ocupar o cargo de deputado aquele que não professasse o mesmo credo adotado pela nação. Veja a transcrição da original do artigo na Constituição: Art. 95. Todos os que podem ser Eleitores, abeis para serem nomeados Deputados. Exceptuando-se: [...] III. Os que não professarem a Religião do Estado. (BRASIL, 1824, RJ) Apesar de a primeira Constituição Imperial assegurar alguns direitos individuais devido aos reflexos do liberalismo do século XVIII, como elenca (ALEXANDRINO E PAULO, 2015, p. 26-27), eram suprimidas as espécies inerentes a liberdade de consciência, tais como a liberdade de expressão e liberdade de culto. Como dito alhures, se a religião adotada fosse divergente a do Estado, os cultos deveriam ser feito em casa, não admitindo a hipótese de criação de templos, realização de festivais ou demais programações que envolvessem a sociedade, ou seja, era estritamente proibido de externar aquilo que estava no interior do indivíduo se sua crença ou doutrina colidissem com a religião oficial. Percebe-se na Constituição 1824, que a maneira de se controlar o credo e a consciência do ser humano não se dava mais de forma violenta e física como nos séculos passados, pois o campo de repressão e perseguição agora se perfazia na mente do ser humano. Desse modo, o cidadão que tivesse o desejo de exercer todos os direitos elencados na Constituição de 1824 seria obrigado a ir contra aquilo que tivera adotado em seu foro íntimo, pois nesta época não estavam consolidados todos os direitos individuais. Apenas alguns direitos relacionados a liberdade religiosa eram respeitados, de forma limitada e nem ao menos eram cumpridos a fio, “apenas uma fachada como aduz o professor Sarmento (2013, p. 75). Fato este que estava prestes a mudar com as novas revoluções sociais e políticas a serem iniciadas no Império. 34 2.2 Liberdade Religiosa na Constituição de 1891 Com grandes mudanças políticas e sociais ocorrendo ainda na vigência da Constituição de 1824, que fora pautada no semi-absolutismo atrelado ao catolicismo, iniciam- se os movimentos que resultariam mais tarde na proclamação da república sob a ótica do liberalismo republicano inspirado no modelo norte-americano, sendo diversas as questões que contribuíram para isto, inclusive religiosa visto a contínua entrada de imigrantes no país, como bem leciona (CHAVANTE, ROCHA, 2014, p. 356-371): Outras questões conturbaram o ambiente católico à época, não exclusivamente no Brasil, ocasionando tensões e transformações, o que levou certo autor a defender a tese de que havia uma “coligação” composta pelo galicanismo (regalismo), jansenismo, liberalismo, maçonaria, deísmo, racionalismo e protestantismo, que se opunham ao projeto conservador e ultramontano da Igreja Católica5. Leonard aponta duas circunstâncias locais que favoreceram grandemente a abertura religiosa a partir do segundo Império: a disposição política e religiosa do Imperador e a necessidade que o Brasil tinha de receber imigrantes provenientes dos países de maioria protestante, contingente essencial à realização do programa colonizador nacional. (CHAVANTE, ROCHA, p. 356-371) Diante de tais circunstâncias, a proclamação da República era um fato que não poderia ser evitado, vindo a ocorrer em 1889 impulsionado pelo militar Deodoro da Fonseca ao perceber a crise na monarquia, conforme cita Daniel Sarmento: Por ocasião da queda da monarquia, em novembro de 1889, as bases de sustentação do regime monárquico estavam profundamente desgastadas. Concorreram para a crise do regime monárquico sobretudo após a “questão religiosa”, a “questão militar” e a emancipação dos escravos sem indenização aosex-proprietários. O movimento republicano vinha ganhando corpo no país, desde o começo da década de 1870. (SARMENTO, 2012, p. 78). Na incursão deste grande evento histórico, o novo modelo de Estado baseado no republicanismo liberal já se via livre das ligaduras que possuía com a Igreja mesmo antes da promulgação da primeira Constituição Republicana do Brasil, sendo isto materializado na promulgação do Decreto nº. 119-A em 7 de Janeiro de 1890, onde impedia que o Estado estabelecesse ou interferisse em qualquer credo adotado por seus cidadãos conforme se vê na citação fiel do texto original da respectiva Carta abaixo: 35 Art. 1º E' prohibido á autoridade federal, assim como á dos Estados federados, expedir leis, regulamentos, ou actos administrativos, estabelecendo alguma religião, ou vedando-a, e CREAr differenças entre os habitantes do paiz, ou nos serviços sustentados á custa do orçamento, pormotivo de crenças, ou opiniões philosophicas ou religiosas. Art. 2º a todas as confissões religiosas pertence por igual a faculdade deexercerem o seu culto, regerem-se segundo a sua fé e não serem contrariadas nos actos particulares ou publicos, que interessem o exercício deste decreto. Art. 3º A liberdade aqui instituida abrange não só os individuos nos actos individuaes, si não tabem as igrejas, associações e institutos em que se acharem agremiados; cabendo a todos o pleno direito de se constituírem e viverem collectivamente, segundo o seu credo e a sua disciplina, sem intervenção do poder publico. Art. 4º Fica extincto o padroado com todas as suas instituições, recursos e prerogativas. (BRASIL, 1890, RJ) A composição do Decreto realizado por Ruy Barbosa possuía grandes traços do que fora estatuído na Constituição dos Estados Unidos da América que vislumbrava a filosofia de um país livre, e ao mesmo tempo, a ideia de que a e efetiva democracia era instituída apenas quando respeitado o princípio máximo da dignidade da pessoa humana que, por sua vez, era ligado intrinsecamente ao exercício efetivo de cada direito inerente a pessoa, inclusive a liberdade de religião. Nisto, os laços da Igreja com o Estado começaram a se petrificar, mas não a ponto de extinguir-se, demonstrando assim o grande peso dos efeitos do neo-liberalismo americano e francês. Com a promulgação da Constituição de 1891, restou evidente o direito à liberdade religiosa em face da aparente separação do Estado com a Igreja. Isto é percebido no fato de que nem ao menos foi citado o nome de “Deus” ou qualquer outra divindade em seu preâmbulo, sendo inclusive retiradas algumas funções da Igreja, como a exclusão dos efeitos civis do casamento beatificado, o retorno ao Estado a administração dos cemitérios e também a determinação de abstenção do ensino religioso nos estabelecimentos de ensino público, conforme cita Pedro Lenza: O Brasil, nos termos do que já havia sido estabelecido pelo Decreto n°. 119- A, de 07.01.1890, constitucionaliza-se como um país leigo, laico ou não confessional. Retirando-se os efeitos civis do casamento religioso. Os cemitérios, que eram controlados pela Igreja, passaram a ser administrados pela autoridade municipal. Houve proibição do ensino religioso nas escolas públicas. Não se invocou, no preâmbulo da Constituição, a expressão “sob a proteção de Deus” para sua promulgação. (LENZA, 2012, p. 106) 36 Como bem esclarecido pelo autor acima, o Brasil passou oficialmente a se declarar um Estado laico, ou seja, se tornou um país neutro no que se referia à religião, rompendo, pelo menos no papel, os laços com a igreja, passando a constar na constituição de 1891 o seguinte: Art. 72. A constituição assegura a brasileiros e
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