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,, 
" ":>·'·· · . . ;·:~ :~ ;~~~~~~L~i~:ti)~.· 
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA 
Reitor 
Naomar Monteiro de Almeida Filho 
Vice-Reitor 
Francisco José Gomes Mesquita 
~·. ' ·.:;~ 
&DUF8A 
EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA 
Diretora 
Flávia Goullart Mo ta Garcia Rosa 
Conselho Editorial 
Titulares 
Ângelo Sxaniecki Peuet Serpa 
Caiuby Alves da Costa 
Charbel Ninõ El-Hani 
Dante Eustachio Lucchcsi Ramacciotti 
José Teixeira Cavalcante Filho 
Maria do Carmo Soares Freitas 
Suplentes 
Alberto Bcum Novaes 
Antônio Fernando Guerreiro de Freitas 
Armindo Jorge de Carvalho Bião 
Evelina de Carvalho Sá Hoisel 
Cleise Furtado Mendes 
Maria Vida! de Negreicos Camargo 
• Casa das Áfricas 
Elikia M'Bokolo 
~ 
AFRICA NEGRA 
~ 
HISTORIA 
-E CIVILIZAÇOES ·, ... 
Tomo I (até o século XVIII) 
Tradução ele 
ALFREDO MARGARIDO 
Revisão acadêmica da tradução para a edição brasileira 
DANIELA MOREAU 
VALDEMIR ZAMPARONI 
Assistentes: Bruno Pessoti e Mônica Santos 
EDUFBA I Casa das Áfricas I 2009 
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A E1fingo do Egito •nllgo L 
- I -
AS HERANÇAS AFRICANAS 
Séculos obscuros: a fórmula, popularizada nos fins dos anosl960 por Raymond Mauny, continua a ser suficientemente verdadeira nos dias de hoje para 
designar rodos os períodos do passado africano a respeito dos quais os espe-
cialistas das diferentes disciplinas trabalhando para o conhecimento da hu-
manidade e das suas obras na África se esforçaram -sem grande êxito - para 
encontrar e produzir dados e fatos sobre os quais construir outra coisa que não 
fossem mitos. Todavia, estes "séculos obscuros" libertaram muitos segredos, 
e os véus sucessivamente levantados dão já a respeito das idades ·mais antigas 
do continente afrícano imagens muito afastadas das crenças que durante muito 
tempo funcionaram como conhecimentos. Assaz paradoxalmente, foi sobre o 
passado mais antigo que surgiram os conhecimentos melhor estabelecidos, 
cabendo de resto este trabalho mais às" ciências auxiliares" da história do que 
aos próprios historiadores. No que se refere à hominização, às grandes linhas 
do povoamento mais antigo, às formas mais recuadas de coleta e de caça e às 
modalidades de passagem para a agricultura e a pastorlcia, às primeiras técnicas 
metalúrgicas e mesmo às crenças e práticas rel igiosas mais arcaicas, devemos 
com efeito vol tar-nos para a obra dos pré-historiadores, dos paleontologistas, 
dos biológos, dos geneticistas, dos lingüistas e dos especialistas da antropologia 
ffsica. No que se refere aos perlodos relativamente menos antigos, as coisas 
passam-se como se a "barreira dos mitos" Qoseph Ki-Zerbo) continuasse a opor 
obstáculos inui trapassáveis ao trabalho minucioso de exumação, de coleta e de 
acumulação de dados que permitem de ora em diante, apesar das inevitáveis 
polêmicas, esboçar, e não apenas nas suas grandes linhas, a história múltipla 
- 17 -
do continente africano: a da própria eclosão da humanidade, assim como a da 
formação dos primeiros Estados; a história das técnicas e das civílizações ma-
teriais ao lado da história das primeiras manifestações do sentimento religioso; 
a história dos africanos no pleno domínio dos seus solos assim como no das 
suas relações muito precoces com os mundos exteriores. Se os debates entre 
especialistas continuam a ser vivos e os combates quase sempre encarniçados, 
vêem-se jã aparecer, sob traços precisos e num continente notavelmente aberto, 
as primeiras sociedades humanas e civilizações que podemos qualificar como 
sendo "africanas". 
L O CONHECIMENTO ADQUIRIDO: UMA OUTRA ÁFRICA A 
REDÊSCOBRIR 
O que é agora admitido, graças ao trabalho dos especialistas, confirma que 
foi de fato no continente africano que a humanidade deve ter surgido. Apoiado 
num leque de provas cada vez. mais amplo e sólido, semelhante fato não pode 
deixar de provocar novas inte rrogações: poder-se-á, por exemplo, continuar a 
sustentar que a África teria sido o continente por excelência do fechamento sobre 
si, esperando de certa maneira que outros viessem descobri-la? 
A. A anterioridade africana 
Enunciada, não sem polêmica, por Cheikh Anta Diop, a questão da 
"anterioridade africana" não se dirige em primeiro lugar, como parece tê-lo 
acreditado o historiador senegalês, à "origem das civilizações", de que a África 
teria sido "a mãe" antes de as transmitir a outros continentes. Corno mostram 
hoje as inúmeras derivações do "afrocentrismo•, semelhante ponto de vista pode 
ser apenas, na verdade, a reapropriação pelos africanos de todos os preconceitos 
sobre os quais, antes deles, os europeus e outros tinham pretendido exercer a 
sua hegemonia. Ao contrário, estamos hoje autorizados a dizer, de maneira ainda 
mais rad ical, que a questão da "an terioridade africana" se impõe no próprio cerne 
dos processos de horninízação e, de certa maneira, a montante da que se refere 
à eclosão das sociedades humanas e das suas civiliz.ações respectivas. 
1. A África e o processo de hominização 
Os restos paleontológicos das primeiras fases do "reino" animal e da 
"ordem" dos primatas aos quais pertenceo "gênero" humano, encontram-se em 
vãrios continentes (na África, mas também nas Américas, na Europa e na Ásia): 
os Ples iadapis, sobretudo na América do Norte e na Europa; os Strépsirhines, 
("narizes ~achados") na Ásia do Sudeste, na América do Norte, na Europa e na 
- 18-
, 
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África; os Haplorrinos "narizes não rachados", sobretudo na Ásia do sudeste, 
na América e na África. Mas só na África se encontram os vestlgios de todas as 
fases da hominização e podemos, por conseqüência, reconstituir- com uma 
grande margem de incerteza e multipl icando as hipóteses - todas as fases da 
muito longa evolução que, ao longo de cerca de 70 milhões de anos, levou 
dos primeiros primatas ao Homo sapiens. Quase todos os paleontologistas 
concordam quanto a este ponto: "A África- mais precisamente a África oriental 
e a África meridional - representa, neste momento, a única região do mundo a 
ter oferecido à palentologia hominldeos incontestáveis de 2, 3, 4, 5, 6, talvez 10 
milhões de anos" (Yves Coppens). São circuns tâncias geológicas, ambientais e 
climáticas muito particulares que explicam a concentração excepcional destes 
fósseis na África oriental e merid iona l. Assim, só na região do Vale do Rift, 
as pesquisas levadas a cabo até fins dos anos 1980 e começo dos anos 1990, 
permitiram exumar nada menos que 200 mil restos de vertebrados, entre 
os quais 2 mil res tos de Hominldeos. Desta longa evolução podemos nos 
contentar em reter que é na África que se encontram ilustradas as principais 
fraturas da evolução do reino animal e os grandes momentos de mutação ou 
de progresso gradual levando à emergência do gênero humano. 
Urna das fraturas maiores foi aquela que, há mais ou menos 42 milhões 
de anos, operou no seio dos Haplorrinos - uma das subordens dos primatas 
- a distinção entre os "Jà.rsiifonnes e os Simiiforrnes. Destes últimos, também 
chamados símios ou antropóides, encontra-se um grande número de espécies 
na África, em particular na depressão do Fayoum, no Alto Egito: Patapithecus, 
Oligopithecus, Propliopithecus e Aegyptopithecus. No decurso do Mioceno infe-
rior (de 22,5 a 16 milhões de anos), estas espécies conheceram transformações 
de grande an1plitude a respeito das quais continuamos a interrogar-nos: 
Como não podia deixar de ser, as primeiras respostas do dadas pela 
África e apenas pela África. [ ... ] Foi necessário esperar a colislo das placas 
continentais afro-árabes e asl:ltícas há cerca de 16 a 17 milhões de anos. 
assim como a Instalação consecutiva de pontes continentais, para assistirmos 
ao estabelecimento da circulação entre a África e a Ásia. Espalhar-se-ãona 
Ásia e na Europa Cercopitecos, Pliopitecos e Dropltecos (espécies resultantes 
dos primeiros antropóides) , ao mesmo tempo que prosseguirão o seu 
desenvolvimento na África, simultaneamente com a apariçlo de outros 
grupos. (Yves Coppcns, 1983. pp. 55-56) 
Está ainda mal documentado em todos os lugares no mundo o período 
aparentemente crucial que oscila entre 1 O milhões a 4 ou 3 milhões de anos. 
Volta a ser de novo na África que encontramos, com fósse is relativamente 
numerosos de Australopithecus, os raros vesúgios dos processos que se 
registraram então. Datado entre se is milhões e um milhão de anos, este 
floriu, se assim se pode diz.er, do mar Vermelho ao Cabo, com alguns sítios 
privilegiados onde foram revelados os fósseis mais numerosos: si t ios vizinhos 
- 19 -
do lago Thrkana no norte do Quênia; garganta de Olduvai na Tanzãnia; Haddar 
e vale do Orno na Etiópia; Taung, Makapansgat, Sterkfontein, Kromdraai, 
Swartkrans na África do Sul. Os especialistas distinguem aqui duas espécies: 
uma espécie g.rácil (Australopithecus afa.rensis e Australopithecus africanos), 
datada entre 4 e 2, 7 milhões de anos, e uma espécie robusta, mais tardia, 
aparecida há cerca de 2,2 milhões de anos na África oriental (Au~tralopithecus 
boisei) e há cerca de 2 milhões de anos na África austral (Australopithecus 
robustos). Para alguns especialistas, o Australopithecus afarensis, que algun.s 
nomeiam pré-australopithecus (Yves Coppens), seria a fonte comum de onde 
teriam saído, por um lado, o gênero Australopithecus (Australopithecus 
africanos, Australopithecus boisei e Australopithecus robustus) e, por outro 
lado, o gênero humano (H orno habilis, H orno erectus e H o mo sapiens). 
Seja como for, a existência do Australopithecus afarensis está claramente 
provada na África graças a uma série notável de fósseis (entre 4 a 2, 7 milhões 
de anos) encontrados na Etiópia, no Quênia e na Tanzãnia. Apresenta sempre 
as mesmas características: altura reduzida (l, 1 O a 1,30 m) associada a pequeno 
peso (25 a 45 kg no caso dos adultos); capacidade craniana sempre pouco 
elevada (300 a 400 cm3); robuste:r; dos membros e bipedia bem assegurada, 
malgrado braços muito mais compridos do que os do Homo sapiens; vida em 
grupo, mas sem habitat organizado; não utilização de utensflios fabricados. É a 
este grupo que pertence o famoso fóssil, de que se encontraram em Haddar 52 
ossos do esqueleto e que recebeu os nomes de Lucy (dado pelos investigadores 
odúentals) e Birklnesh (~você é uma pessoa de valor", nome amárico dado 
pelos etíopes). 
A espécie grácil - Australopithecus africanos - datada entre 3 e 1,8 
milhões de anos está melhor distribuída, já que os seus fósseis se encontram 
tanto na África austral (Taung. Makapansgat e várias outras grutas do Transvaal, 
Botswana) como na África oriental (vale do Orno, East Thrkana e Tanzãnia). 
Os caracteres que lhe são atribuídos tanto a diferenciam do Australopithecus 
afarensis como da espécie robusta: um cérebro mais volumoso ( 400 a 500 cml) 
e melhor irrigado; uma dentadura mais forte, permitindo mastigar vegetais 
assim como despedaçar as pequenas presas animais. Não é impossível que o 
Australopithecus africanos tenha utilizado utensllios: encontraram-se, com 
efeito, na gruta de Makapansgat, dentes e ossos partidos de animais e, no vale 
do Orno, fragmentos de quartzo que podiam ter servido de utensflios. 
Maior e mais volumosa, a espécie robusta viveu na África oriental e 
na Áfi'ica austral. O Australopithecus boisei da África oriental, inicialmente 
conhecido sob o nome de Zinjanthropus boisei (entre 2,5 a 1 milhão de anos), 
era um animal já impressionante: 1.50 a 1, 70m de altura e até 100 kg de peso; 
uma capacidade cerebral entre 500 e 550 cm3; uma dentadura evocando um 
regime alimentar vegetariano com base em tubérculos, rahes, bulbos ... Mas 
nada indica que tenha uti lizado utensilios. O Australopithecus robustus, cujos 
. 20-
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primeiros fósseis foram descobertos em Kromdraai já em 1938, é também 
conhecido sob o nome de Paranthropus. É dotado das mesmas características 
que o Australopithecus boisei, tendo contudo um tamanho e um peso menor 
(menos de 90 kg). 
2. A AJrica e o gênero Homo 
O gênero Homo ter-se-ia constituído no seio da famflia dos Hominldeos 
há cerca de 4 milhões de anos. Mas teria continuado a viver paralelamente 
aos Australopithecus durante três milhões de anos. A partir dos fósseis 
conhecidos, distinguem-se no seio deste "gênero" três "graus" ou "táxones": 
Homo habilis, Homo erectus e Homo sapiens, correspondendo a diferentes 
estágios na evolução do gênero. Esta evolução, cujas diferentes peripécias estão 
longe de impor a unanimidade, parece ter sido gradual. com um ritmo lento 
a princípio e uma aceleração do movimento evolutivo no fim do Pleisto<:eno, 
quando se verificou o aparecimento do Homo sapiens. Os paleontólogos 
criaram numerosos cenários no que se refere à emergência do gênero Homo. 
O mais bem aceito foi o de Yves Coppens, que insiste na importância das 
evoluções climáticas e ambientais em relação com as mutações geológicas e que 
estabelece, numa fase tardia, "uma evidente correlação entre a seca, a aparição 
do Australopithecus boisei e o desenvolvimento do H orno habilis": 
'1\Jdo parece passar-se como se a mudança clim,rica, provocando uma 
mudança de paisagem, desempenhasse um papel, ralvez o papel essencial. 
na seleção destes dois homin(deos em meio descampado evideme1~ente 
perigoso, onde se enconrravam muito vulneráveis: Ausrralopithecus boisel 
protegido pelo seu ramanho, Homo habilís ajudado pelo desenvolvimento do 
seu sistema nervoso central, Australopithecus boisei adaptado a um regime 
alimentar vegetariano Obroso e coriáceo, Homo habills a um regime onfvoro 
oportunisra. (Yves Coppens, 1983, pp. 113·14) 
Ao aplicar este radodnio aos per!odos mais antigos do Mioceno superior, 
este s<\bio pôs em evidência todas as conseqüências possíveis da queda do Vale 
do Rift e da elevação das suas margens. Teria havido em primeiro lugar uma 
mudança do regime das precipitações e do clima. provocando uma evolução 
muito diferente da floresta de uma parte e de outca do Vale do Rift: a floresta 
ter-se-ia mantido a oeste e teria desaparecido progressivamente a leste para 
ceder o lugar a paisagens abertas. Os macacos antropóides teriam sobrevivido 
na parte florestal, talvez melhorando a sua adaptação ao meio florestal onde os 
encontramos ainda nos dias de hoje (documento 1). A leste do Vale do Rift, a 
adaptação a um meio cada vez mais despojado da sua cobertura florestal e cada 
vez mais seco teria levado a urna longa série de mutações, tanto no plano dos 
caracteres anatõmicos, como no plano das capacidades intelectuais: 
- 21 -
I . 
Um certo número das nossas caracteristicas, e nilo das menores, silo novas 
e parecem constituir a herança leste·afrícana da humanidade: trata-se da 
consciência refletida, da vida social. da emoç§o, da llngua, e is to sem d úvida 
porque o meio diflcil em que o homem se encontra exposto o obriga a um 
comportamento particularmente atento; a sociedade fecha-se, a mãe e 0 filho 
ficam ligados durante mais tempo. a caça organiza-se em grupo, a alimentaçilo 
é panill1ada, tudo se põe "natur11lmente" em movimento para viver. proteger 
a progeni tura, preservar a espécie. {yves Coppens, 1983, pp. 1 17-18) 
Documento 1: Meio a mbiente e ho minizaçlio 
~dos P-s(fiO'Ias tdlimpMzls) 
t dot Hominfd&o• (Au•trelopif.hecu• • primeiros Horrt<M&) 
O ChlmptJn'Zd:t 
2000 km 
Depois da primeira descoberta feita em 1959 por Louis B.S. e Mary 
Lea.key em Olduvai (Tanzâoia), foram exumados fósseis de Homo habil is em 
vários sítios africanos, nomeadamente Olduvai, Koobi Fora (Quênia), vale do 
Omo (Etiópia), Swartkrans e Sterkfontein (África do Sul). Datadoentre 2 a 1 7 
milhões de anos, o Hemo habilis apresenta no conjunto caracteres anatômic~s 
diferentes dos que caracterizam os Australopithecus: certamente uma pequena 
estatura (1 ,10 a 1,30 m) mas uma capacidade craniana ent re 500 e 700 cmJ e 
uma dentadura indicando nitidamente uma alimentação carnívora que devia ser, 
conforme as circunstâncias, a de um necrófago ou a de um autêntico caçador. 
Também se lhe atribui o fabrico de utensílios em pedra e uma vida social certa: 
organização em famílias e em bandos; construção de campos e de abrigos para 
se proteger do vento e dos predadores. 
-22 . 
Logo que chegamos ao "grau" de Homo erectus, encontramo-nos face a 
debates aparentemente novos, na realidade muito velhos, a respeito do lugar 
da África nes ta fase e nas fases posteriores da evolução do gênero humano. Os 
primeiros fósseis do Homo erectus foram encontrados em Java já nos fins do 
século XIX, na China no principio do século XX e muito mais tarde na África, 
a partir de 1960. Tudo se passa como se as teodas elaboradas a partir dos 
fósseis asiát icos fossem incapa21es de integrar a contribuição nova fornecida 
pelos fósseis africanos. Ora. em contradição com as teorias segundo as quais 
o Hemo erectus asiático e o Homo erectus africano n~o formariam uma, mas 
duas espécies di ferentes, estas duas séries de fósseis apresentam semelhanças 
indiscutlveis no que se refere às características principais no plano da anatomia. 
Além disso, a maior parte dos fósseis encontrados na África oriental são mais 
antigos do que os fósseis asiáticos. 
Atrás des tes desacordos vemos aparecer debates que ascendem 
ao século XVII, aos primeiros passos de uma nova ciência que era então 
a "história natural do homem". Para lá de considerações puramente 
cientificas, estes debates remetem, hoje como ontem, para o problema 
das relações possfveis entre es ta "história natural", muito antiga e muito 
longa, e as populações vivendo atualmente na Terra e creditadas por alguns 
autores com características e qualidades irredutíveis que definiriam uma 
hierarquia imutâvel. Entre o monogenismo (teoria que concebe uma origem 
humana única e de acordo com a qual as "raças" se teriam diferenciado 
progressivamente, a partir de uma fonte comum, sob o efeito do meio natural 
ou da hereditariedade) e o poligenismo (que defende uma origem múltipla ou 
uma "criação" separada das " raças" atuais), a querela parece hoje encerrada, 
na medida em que ninguém nega hoje a unidade da espécie Hemo sapiens 
sapiens. Na realidade, esta querela deslocou-se e opõe dois modelos muito 
diferentes. Esta oposição é em primeiro lugar puramente teórica e foi ilustrada 
pelos dois modelos elaborados em 1976 por Williams Howells: o modelo dito 
do "candelabro" e aquele chamado da "arca de Noé", entre os quais podemos 
imaginar lima série de situações intermediárias (documento 2). O primeiro, 
o modelo do "candelabro", supõe uma separação muito precoce (por volta 
de 1 milhão de anos) dos antepassados do Homo sapiens, os Hemo erectus. 
A espécie Homo sapiens teria assim tido origens diferentes nos diversos 
continentes, sem que seja possível estabelecer a menor mistura entre os 
diferentes grupos assim constituídos. Para o modelo da "arca de Noé", o 
Homo sapiens ter-se-ia constituído num lugar determinado (provavelmente a 
África) e teria emigrado para outros continentes do Antigo Mundo onde teria 
completamente substituído, segundo procedimentos ainda mal eluddados, 
as populações anteriores de Hemo erectus ou de Homo sapiens arcaicos. 
. 23 -
Documento 2: Hipóteses e modelos sobre a origem do 
Homo saplens 
Modelo do candelabro 
CMtinonlu 
África Europa Homo IIIJIIon,.•~IM• 
llUJ'--·-
Modelo da arca de Noé 
Os conllnentes (1,2,3,4 e 5) sao representados por pontos na barra horizontal do tempo atual. No primeiro 
modelo, as raizes do Homo saplens sAo profundas (compridas • Plefstoceno P<ecoce e médiO) no decur.!o do 
tempo, e separadas conforme os diversos conUnenteo. No segoodo modelo, as raizes são ree.ntes (curtas • 
Plelstooeno tardio) e $0 hé um lugar de Origem (por exemplo, a África), da onde Irradiam mlgraçOes 
(podando escalonar-so sucessiva monte no tempo) pera outros conllnantes. 
Fonte: G. Lucotte, 1995, p. 28 . 
Dlferenclaç!o tistca e dlvorelfiaçao cultural na eepécle humana 
(8 partir de marcadores genéllcos e de critérios tingulstlcos) 
Fonte: L. L Cavaiii-Sforza, "Reconstructlon of human evolullon: bringlf'l!l togot~r gonetk. orcheologlcal 
and linguirtk data•, Proceed/ngs ot the National A<ademy oi Sdence (USA), as. 1988, pp. 6002.03. ' 
-24. 
A confrontação entre este modelo teórico e outros comparáveis com 
os fósseis efetivamente encontrados no terreno fez aparecer dois modelos 
de evolução paleontológicos diferentes. Um, o da uevolução multirregional", 
também chamado policentrismo, organiza-se em torno das seguintes teses: 
existência de uma população ancestral comum nascida na África, Homo 
erectus, a qual, tendo emigrado da África há cerca de 2 milhões de anos, 
povoou a Europa e a Ásia; formação de "contrastes entre centro (África) e 
periferia (Europa e Ásia) no seio dos Homo erectus" (Milford H. Wolpofl); 
"estabelecimento precoce de traços regionais", levando esta "continuidade 
regional" às raças atuais que teriam evoluído paralelamente. O outro modelo, 
o do monocentrismo, também chamado "jardim do Éden", parte do mesmo 
postulado para chegar a teses diferentes: existência de um antepassado comum 
aparecido na África, Homo erectus; emigração tardia para fora da África, por 
volta de 0,2 milhões de anos, de populações que "possuíam já a maior parte dos 
caracteres anatômicos presentes nas populações atuais"; substítuição completa 
do Homo erectus por homens modernos de origem africana ("holocausto 
pleistoceno" de acordo com os termos de M.H. Wolpoff). 
Para Günter Brauer, um dos defensores mais ativos e mais ardentes do 
modelo monocentrista, as descobe.rtas sucessivas de fósseis do gênero Horno 
na África oriental e na África austral puseram inteiramente em causa, apesar 
das resistências de caráter mais ideológico do que cientifico, o amontoado das 
hipóteses acumuladas a partir do século passado com base em traços demasiado 
tênues encontrados na Europa, tais como o Homem de Neandertal (entre 120 
mil e 40 mil anos}, o Homem de Cro-Magnon (por volta de 30 mil anos), o 
Homem de GrimaldL..: 
Se aceitannos este cenário (monocêntrico), a imag~ da evolução recente 
do homem modiflcou-se fundamentalm ente . Antigamente, parecia 
que no con tinente negro viviam populações cul tural mente atrasadas e 
morfologicamente arcaicas na época em que, na Europa, o Paleolftico superior 
se expandia. Atualmente, pensa-se que a África constitui a regilo mais provável 
da origem dos Homens de típo moderno, pelo menos no que diz.respelto à 
pane oddental do Mundo Antigo. (G. Brãuer, "I:hyporhht afrirmnr dt l'origint 
dts hommes modtrnes", injJ. Hullin, e A.M. Tlllier, ed., 1991, p. 205) 
Nesta perspectiva, haveria motivo para distinguir na Áfiica pelo menos três 
graus de desenvolvimento do Homo sapiens: o Homo sapiens arcaico precoce. 
o Homo sapiens arcaico tardio e Homo sapiens anatomicamente moderno. O 
primeiro grau (Homo sapiens arcaico precoce), datado de O, 4 a 0,2 milhões de anos 
e que está bem provado pelos sítios de Bodo, Ndutu e Eyasi na Áfiica do leste, 
pelos de Broken Hill na África central e Hopefield na África do Sul, possui traços 
comuns ao Homo erectus e ao Homo sapiens: capacidade craniana superior a 1250 
em' (comparada com os 1450 do Homem moderno}; modificação da forma do 
crânio; dimorfismo sexual bem pronundaçlo. O segundo grau (Homo sapiens 
. 25-
I 
I. 
arcaico tardio) é datado de 0,2 a O, 1 milhão de anos, dotado de uma capacidade 
craniana sempre superior a 1350 cm3 e os seus fósseis estão localizados em 
yários sítios da África orientale da África austral. Quanto ao Homo sapiens 
anatomicamente moderno, os restos mais antigos. encontrados na África 
oriental assim como na África austral, permitem datá-lo de pelo menos 100 
mil anos, talvez até 130 mil anos. A originalidade dos sítios africanos é a de 
apresentar uma continuidade cronológica e morfológica não encontrada nos 
outros continentes. Estes Homo sapiens anatomicamente modernos parecem 
ter ocupado a maior parte da África desde o Pleistoceno superior e teriam 
atingido os países do norte (África do norte, Oriente Médio e Europa) muito 
mais tarde, no decurso do último período interglaciário (Riss/ Wurm) e no 
princípio da última glaciação (WOrm) do quaternário. "Em conseqüência, 
conclui G. Brauer, a expansão das populações modernas para o norte deve 
ter sido o fator decisivo da desaparição dos Neandertalianos na Europa e no 
Oriente Médio. Os homens do Cro-Magnon não tinham pois u·ma origem 
européia. Por essa razão, não se enraizavam numa população neandertalóide 
marginal, mas, pelo contrário, provinham de uma linhagem não neandertaliana, 
da qual descendem também as populações africanas modernas". Quanto·aos 
Homo sapiens do Extremo Oriente, as lacunas cronológicas e morfológicas são 
ainda demasiado numerosas; contudo, os dados disponíveis não contradizem a 
hipótese segundo a qual os Homo sapiens modernos teriam alcançado o Oriente 
Médio a partir da África, e depois a Ásia oriental onde se teriam misturado 
com popu.lações autóctones arcaka~ . 
Assentando até aqui exclusivamente na paleontologia, este cenário tem 
recebido há mais de uma década o reforço de argumentos extraldos da biologia e 
da genética moleculares. Uma primeira síntese, levada a cabo em 1978, abordou 
o problema da origem do Homem a partir de uma perspectiva pluridisdplinar 
combinando simultaneamente as ciências do Homem (estudo das diferenças 
lingüísticas a partir de 5 mil Unguas faladas atualmente) e as ciências da vida 
(estudo das variações genéticas entre as populações do planeta, a partir de 
uma amostra de 42 populações, 19 provindo da Ásia, 7 da África, 6 da Europa, 
5 da América e 5 da Oceania). A comparação dos diferentes grupos permitiu 
reconstituir uma espécie de árvore genealógica cujo tronco comum se encontra na 
África. A primeira subdivisão separa os africanos dos não-africanos; depois outras 
subdivisões criam, em cada um destes grupos, subgrupos (pigmeus, bantu, nilo-
saharianos entre os africanos; norte-eurasiáticos e sul-asiáticos) que por sua vez 
se cindem. Este processo é acompanhado por misturas precoces entre grupos e 
subgrupos. Numa segunda fase, os inquéritos recorreram quase exclusivamente 
aos recursos da genética molecular. Sem entrar nos pormenores de operações de 
uma grande complexidade e de uma extrema tecnicidade, retenhamos apenas as 
conclusões concordantes destas investigações que visam principalmente o DNA 
mt (DNA mitocondrial: trata-se de uma parte do genoma transmitido da mãe à 
filha e que não se recombina com o genoma do pai) e sobre o cromossomo Y (uma 
parte do genoma transmitido exclusivamente do pai ao filho): 
-26-
I 
o modelo que, de ora em diante, parece prevalecer malgrado resistências 
entre alguns paleomologistas. é aquele que consiste em aceiw que os homens 
modernos nasceram numa área local africana relativamente circunscrita; 
depois ter-se-iam propagado rapidamente a partir deste ponto para invadir 
0 resto da África e depois o mundo na sua totalidade, substituindo nessa 
ocaJilo as outras populações humanas preexistentes. ( ... ] É por outro lado 
posslvel que a vantagem seletiva principal das populações de Homens 
modernos, tendo-se assim propagado, se deva ao fato de que deviam possuir 
uma língua elabornda: Isso teve como efeito reforçar os laços sociais, favorecer 
a comunicação quando foram postas a funcionar técnicas de caça em grupo, 
e permitir a transferência rápida da informação útil durante os movimentos 
migratórios. (G. Lucotte, 1995, p. 21) 
B. Um continente aberto 
Estas evoluções muito distantes mostram já a que ponto está errado um 
dos preconceitos mais tenazes a respeito da África, segundo o qual este s~ria 
um continente fechado e isolado, cortado de todos os outros tanto por barreiras 
naturais invenclveis - o Saara e os oceanos - e dobrado receosamente sobre si 
mesmo. Este sólido preconceito, que funciona freqüentemente em paralelo 
com a crença de que a África não teria história· ou, no melhor dos casos, que 
só teria uma história muito curta, t.em como corolário a ilusão de que foi numa 
época muito recente que os outros - a saber, os europeus- ter!~, para ~eu 
bem ou para seu infortúnio, "aberto" a África e, ao mesmo tempo, Introduzido 
nela a história. Estas teorias, na sua versão "científica" ou nas suas formas 
profanas, remetem para a história complica?a das relações dos europeus_ com 
a África e os africanos. Vistas a pattir da Africa, todas estas crenças nao se 
assentam naturalmente em nada. Porque, até onde podem chegar os nossos 
conhecimentos, é certo que ainda frágeis, vemos bem que a Áfric:t estabeleceu 
relações continuas com as outras partes do mundo. O único problema deriva 
da impressão persistente segundo a qual foram os outros que a procuraram, 
mais do que ela os procurou, e deriva sem dúvida da ignorância quase total 
na qual nos encontramos ainda, por falta de fontes- ou seja, por f~lta de ~m 
trabalho significativo dos historiadores - no que se refere a possíveis relaçoes 
ativas dos africanos com o mar e com os outros mundos: · 
Será emão exato, atrav~s da história, que os africanos em todo o seu comi11ente, 
viraram as costas ao mar? Que o consideraram como um espaço perigoso, 
hostil, atertorlzados peran:e a id~la de ai navegar, como o lugar da 1110rte e dos 
mortos? Duas Clbservações de raspllo. A primeira~ que [ ... } existem poucas 
coleções de fontes orais consagradas ao mar e aos seres que ai vivem, ao p33so 
que abundam as narrativas relativas, por exemplo, ao slluro.1 Carência real 
das fontes ou carencla dos investigadores? A segunda ~ qu~ a idéia de que 
0 oceano_ ocidcn!al em partiwlar - é o lugar dos .nonos e das maravilhas 
-27-
N 
A 
~rtence provavelmente a toda a humanidade; tanto a encontramos no curso 
quotidiano de Rá entre os egípáos como, multo mais tarde, no ciclo arturiano. 
Ou também no oceano circundante com o qual, bueando-se nos gregos, 05 
árabes rodeiam as terras habitadas: todos os limites marltimos !Ao aterradores 
sobretudo quando slo considerados não levar a parte alguma. 0. Devisse, 
"Les Africains, la mer et les historiens", Cahier d'ttudts africaincs, n. 115·116, 
1989, pp. 399-400} 
Enquanto ~ssa história não for escrita, é necessário extrair o máximo 
das fontes existentes - exteriores- que, por mais carregadas de preconceitos 
que estejam, dão uma primeira idéia da "abertura" do continente africano. 
1. África Negra e o mundo mediterrânico 
Fontes escritas, relativamente numerosas, atestam a existência de 
relações antigas entre o continente africano (inicialmente designado "Líbia", 
"Etiópia" depois) e o mundo mediterrã.nico, engloban.do neste termo não só 
o conjtlnto das regiões e Estados do Mediterrâneo, mas também a Assíria e a 
Pérsia, cujas ações e aventuras na África se misturam, no decurso do primeiro 
milênio a.C., com as dos povos do Mediterrâneo (documento 3). 
Documento 3: A África Negra e o mundo mediterrânico 
ATLANTICO 
Rola o comercial e • "nlradu dos carros" • Col6nl11 gregae 10001tm 
. 28 . 
Relações múltiplas e ricas 
É necessário acrescentar imediatamente que estas fontes escritas se 
revelam de uma utilidade precária e de exploração dificil, enquanto não forem 
confirmadas por outras fontes, sobretudo arqueológicas e lingüísticas. 
O sentido destas relações está ainda para ser avaliado: numa abordagem 
"difusionista", que privilegia a transmissão de modelos sociopolíticos,cultu-
rais ou técnicos. a partir de "centros" reputados como prestigiosos (o Egito 
primeiro, depois Cartago e os estabelecimentos gregos e romanos) para as 
periferias (o resto da África) mais ou menos bárbaras e certamente passivas 
e receptivas, insistiu-se muitas vezes sobre as "influências" do mundo medi-
terrânico sobre a África, esquecendo do que é evidente, de que em qualquer 
relação bilateral ou multilateral as influências não são nunca em sentido único 
e também ocorrem - sobretudo nos domlnios menos diretamente perceptíveis 
- das aparentes "periferias" para as zonas centrais. Entre o mundo mediterrâ-
nico e o resto da África, as relações cobriram visivelmente todos os campos: 
migração dos grupos humanos t;m efetivos sempre mais ou menos numerosos; 
curiosidades cientificas; conquistas militares e hegemonias pol!ticas, trocas 
de práticas sociais e de crenças; relações comerciais e econômicas assentadas 
em interesses redprocos. Se, ao longo do vale do Nilo, as relações polltico-
militares se sobrepuseram freqüentemente, parece que, na longa duração 
e na maior parte das áreas geoestratégicas e culturais, as trocas comerciais 
consütulram o aspecto dominante. À questão cativante dos começos (como 
se fizeram as primeiras trocas entre grupos que tinham noções di ferentes e, 
às vezes, nenhuma noção do valor de uso e do valor de troca dos objetos pro-
postos uns aos outros), foi o historiador grego Heródoto que respondeu num 
texto difícil de interpretar, consagrado ao "comércio mudo" do ouro, praticado 
pelos canagineses nas costas africanas do oceano Atlântico: 
Os cartagíneses dizem também isto: que há uma regiNo da Ubía, e homens 
que ai habitam, fora das colunas de Hércules: que, quando eles alcançam 
estes homens e desembarcam as suas mercadorias, eles as Jnstalam em fila 
ao longo da pro.ia, voltam para os seus navios, e fatern urna fumarada; os 
indlgenas ao avislar e sta fumaça, dirigem-se pa.ra a beira-mar, depositam o 
ouro que oferecem em troca da carga, e voltam a Instalar-se a distãnda, os 
cartaglneses duembarcam, I!Xaminam o ouro; se lhes parece equivaler à 
carga, recu~ram-no e vao-se embora; se não lhes parece equivalente, voltam 
a instalar-se nos seus navios ~ aí se mantém; os indfgenas aproximam-se e 
acrescentam ouro ao que tinham depositado, até os terem satisfeito. Nem 
uma nem outra das partes, dize m os cartagíneses, procura fraudar: eles 
próprios não tocam no ouro antes de ele ter atingido, do seu ponto de vista, 
urn valor Jgual ao da carga, e os indlgenas, nilo tocam nas mercadorias antes 
de eles terem tomado o ouro. (Heródoto, Hisroires, IV. 196, ed. e trad. de Pfi. 
E. Legrand, Parls, Les Belles Lettres, 1985) 
. 29. 
I 
I 
I 
I 
I_ 
Uma vez estabelecidas, estas relações de trocas adquiriram tendências 
e características que iam revelar-se muito duradouras, tanto na natureza das 
mercadorias como na organização das trocas. Do ponto de vista dos produtos, 
trata-se acima de tudo de bens raros e de gêneros de luxo: incenso e gomas 
arábicas, cujo valor simbólico e religioso fora imposto pelos sacerdotes egípcios; 
essências aromáticas, perfumes e madeiras preciosas; produtos de caça (marfim, 
peles, cascas, cornos de rinoceronte e de outros animais) e de coleta (óleos); 
objetos e seres curiosos (pigmeus, macacos, panteras, elefantes, rinocerontes 
bicornes, diferentes dos rinocerontes unicórnios da Ásia); escravos. enfim. 
embora a África estivesse muito longe de deter o monopólio no fornecimento 
da mercadoria humana às sociedades da bacia do Mediterrâneo. Do ponto de 
vista da organização, assistia-se à instalação de dois tipos de trocas conforme 
as mercadorias passavam diretamente dos "produtores" ao lugar de consumo 
(trocas por meio de redes), ou passavam pelas mãos de vários intermediários 
comerciantes entre os lugares de produção e as zonas de consumo (trocas por 
escalas). É poss[vel distinguir pelos menos três grandes eixos ligando a África 
Negra e os pafses do Mediterrâneo, ao longo dos quais estavam organizadas 
as trocas, parece que, de maneira diferen te: o vale do Nilo (comércio por 
escalas). o mar Vermelho (comércio por escalas e depois por redes). as rotas 
transaarianas (comércio'por rede). 
ca. -7.700 
ca. -2300 
-2000/-1800 
-15301-1520 
-1 505/-1484 
ca. -710/-660 
-Vil/-V século 
·610/ -595 
-VIl-V séculos 
-550/-500 . 
Documento 4: A África Negra e o mundo medlterr3nlco, 
balizas cronológicas 
-Campanhas do fara6 Snefru, fundador da IV dlnasl.la na N(Jbia. 
- Campanhas de Harkhuf no "pais de Yam·. 
- XII' dinastia dos fara6s. Abertura de um canal entre o Mediter-
râneo e o mar Eritreu. Campanhas de Sesóstris 1 e 11 na Núbia: 
fronteira sul em Senna. 
- Tutmés 1: campanhas militares contra Kush. 
-A rainha Hatchepsut do Egito organiza uma expediçlo marHima 
para o sul, para o "pais de Punt", 
- Os kushltas senhores do Egito 
- Crescimento do comércio cartaglnês nas costas marroqulnas e 
talvez mais al ém. 
- Reino do faraó Necan que enviou uma expedlçlio marítima ao 
redor da África. 
-Após a conquista do Egito por Cambises, os per;as multiplicam 
as relações co_mercials entre o Nilo e a Pérsia através do pais de 
Sabá e as viagens ao longo das costas da Azania (Zanzlbar e a 
sua região). 
- Expedição de Eutymene de Marselha, autor de um Périplo 
do mar Exterior, às costas senegalesas: encontro de um "ma r 
suave• (rio em cHeia) "pleno de monstros aquáticos quase 
semelhantes aos crocodilos e aos hipopótamos que vivem no 
Nilo". 
-30-
-510 
-478/-465 
-IV século 
-324 
- 147/-146 
-117/-108 
-48/-27 
-23 
-21/-20 
Século I d.C. 
+40 
+60 
+70 
+83/+92 
ca. +901+168 
século IX 
1406 
-Viagem de dois anos do grego Scylax de Caryanda, da lndia ao 
Egito, passando pelas costas da Azania. 
- o rei da Pérsia, Xerxes, condena o seu sobrinho Satapés a dar 
a volta à Libia pelas colunas de Hércules: encontro de uma 
"margem habitada por homens pequenos vestidos com folhas 
de palmeira·. 
- Périplo de Hannon. Périplo do mar Interior de Scylax de 
Ha llcarnasso (pseudo-Sylax) descrevendo os caminhos do 
Mediterrâneo para a Ilha de Cerne (Mogador). 
-Fundação de Alexandria seguida por viagens de exploraç3o na 
Arábia e talvez no curso superior do Nilo. 
- VIagem do historiador Pollbio ao longo da costa atlântica até 
ao "rio Banbotum [Oued Draa? Senegal?! cheio de crocodilos e 
de hipopótamos". 
-Viagem do grego Eudóxio de Cyzique: viagens na fndia e estada 
forçada na Azanla; tentativa de alcançar as lndlas através das 
colunas de Hércules, el(ploraçao das costas marroqulnas. 
- Os romanos instalam-se no Egito: viagens mais numerosas para 
a lndia e para as costas da Azania; os gregos Diógenes e Teófilo 
no cabo Rapton (perto de Mombaça); o grego Dloscorides no 
cabo Prason (cabo Delgado?). 
- Expedição punitiva do general romano Petronius em Napata 
(entre a 3' e a 4' cataratas) contra "Etlopes" que tinham 
devastado a Tebaida. 
- Expediç3o do general Cornelius Balbus, comandante da 
Tripalítanla, para o Fezzan e além. 
- Périplo do mar Eritreu. 
- Expedição punitiva do general Suetonius Paulinus da Mauritânia 
(Marrocos) contra as populações habitando o outro lado do Atlas. 
- Obedecendo a Instruções de Nero, dois centuriões romanos 
exploram o reino de Meroé. 
- Expedição punitiva de Septimus Flaccus a partir da Tripolitânia 
contra os Garamantes. Talvez tenha alcançado Bllma (Niger). 
- Tendo partido da Tripolitânla, Jullus Maternos atinge o "pais de 
Agisyrnba", daf trazendo rinocerontes blcornes. 
- Vida de Cláudio Ptolomeu, autor de A Geografia. 
-A Geografiá de Ptolomeú traduzida para o árabe. 
- Jacobus Angelus traduz A Geografia de Ptolomeu para o latim. 
Um eixo privilegiado: o vale do Nilo 
Ao longo do Nilo , vi<~ natural de passagem entre a África mediterrãnicae os países do sul, as relações eram visivelmente antigas. Mas até onde no 
sul, e quão antigas? As hipóteses maximalistas, que merecem desconfiança da 
maior parte dos especialistas c são carregadas de dífusionismo, encaram estas 
relações como tendo alcançado para o sul regiões que os viajantes europeus 
do século XIX julgarão ser os primeiros a "descobrir": 
- 31 -
Os seus traficantes e os seus soldados [do Egito] chegaram freqüentemente 
ao pais de Punt e ao pais de Kush - a Etiópia, a Somália e o Sudlo atuais. 
Ta.Jvez tivessem ido ainda mals longe; talvez tivessem atingido as margens 
do lago Chade, as florestas do Congo (Zalre) e as terras altas de Uganda. Se 
assim foi, não deixaram a Mse respeito nem palavras nem sinal. Com todo 0 
seu espírito empreendedor, a influência direta do Egito não conseguiu nunca 
ultrapassar o baixo e o médio vale do Nilo. Os grandes vetores das crenças, 
Idéias e invenções materiais do Egito n5o foram os próprios egípcios, mas sim 
os povos de Kush e os da África do norte. (B. Davidson, 1973, p. 43) 
No que se refere à questão da periodização, os dados existentes mantém-
se obscuros e muíto controversos até a m• dinastia dos faraós (ca.-2815/-2700). 
1bdo o período anterior, cada vez mais documentado graÇas aos arqueólogos, 
parece testemunhar parentescos profundos entre as diferentes regiões do 
vale do Nilo. Contudo, a partir dos inícios do Antigo Império (ca.-2815), uma 
espécie 'de "linha de separação" concretizada por uma sucessão de fortes, 
tentou separar o reino dos faraós dos seus agitados vizinhos do sul. É também 
necessário notar que as épocas "históricas" a respeito das quais existem fontes 
constituem um contexto globalmente pouco favorável ao estabelecimento das 
relações entre o baixo vale e o médio e alto vale do Nilo, essencialmente devido 
à desertificação progressiva do Saara e ao deslocamento geral das populações 
para o sul - afastando-se do Mediterrâneo - de preferência a fazê-lo para o 
norte. Só apenas a partir de meados do lli milênio e da v• dinastia dos faraós as 
nossas informações começam a ganhar consistência. Por volta de -2560, Userkaf, 
ftmd ador da v• dinastia, levou as suas expedições até Elefantina, na linha de 
Assuã, e teve o cuidado de marcar o limite das suas expedições mandando 
gravar o seu nome nos rochedos da primeira catarata. Os outros faraós da v• 
dinastia, nomeadamente Sal1Uré e lsesi (ou Issi), mostraram-se também muito 
empreendedores: este último contou entre os seus comandantes um Baurzeded 
que lhe trouxe das terras do sul o primeiro "anão" (negrilho?) conhecido na 
história do Egito faraônico. As coisas mudaram com a VI• dinastia (ca.-2500/-
2200) . Os faraós começaram então a recrutar soldados nas terras do sul, como 
parece provar um baixo relevo que mostra um dos faraós desta dinastia apoiado 
num bastão e recebendo as homenagens de chefes núbios ou reputados como 
tais. O primeiro documento escrito conhecido, algo explícito, data do reino do 
faraó Pepi li. Trata-se de uma carta na qual o faraó agradece ao governador das 
terras do sul, Harkhuf, ter-lhe trazido um "anãoH das "terras de YamH que se 
encontra reproduzida nas paredes do túmulo de Harkhuf em Assuã: 
Eis que tomei conhecimento desta tua carta que fizeste para o rei, no pal~clo, 
para lhe comunicar que desceSte em pu do lmá, com os soldados que ai 
estavam contigo. [ ... ]dizias nesta tua carta que tinhas trazido um Dlnga (anão), 
que dança para o deus da terra das Pessoas do Horizonte oriental, parecido com 
o Dinga que o tesoureiro real Bauneded trouxe da rerra de Punt no tempo do 
-32-
1. ~· .• 
... 
' .. 
rei Issi. E dizias então 1 minha Majestade: nunca teve ocasilo de trazer nada 
semelhan te nenhum outro [eglpcio] que tivesse visto antes o lmã. Por isso a 
minha Majestade tomarA as tuas honras numerosas e perfeitas, para g16ria do 
filho do teu filho, para sempre, e para que todos os homens dJgarn, quando 
souberem o que a minha Majestade fez pelo seu amigo único Harkhuf:-"Não 
existe nada semelhante ao que foi fe.ito pelo amigo único Harkhuf, quando 
ele desceu do Imã, devido à vigilincia com a qual age para fazer o que deseja. 
louva e ma.nda o seu Senhor i". Vem então, por ti, descendo do none, à Cone, 
imediatamente. 0~-te pressa em trazer contigo esse Dinga que obtiveste na 
terra das Pessoas do Horizonte oriental, com vida, com saúde, com força para 
realizar a dança do deus, para dar prazer ao coração, para encher o coraçlo 
do rei do Sul e do None, Neferkara, vívendo para sempre. Se vier contigo de 
barco, faz com que pessoas de conAança estejam arrás dele, e nos dois bordos, 
vigiando para que nllo caia à água; se ele se deitar l noite, faz com que homens 
de confiança se deitem com ele na sua colcha e lnspeciooa-os dez veres durante 
a noite; porque a minha Majestade deseja ver o Dinga ainda mais do que as 
maravilhas trazidas das minas de Punt. 
Se chegares à Cone, bem entendido com o Olnga, silo e forte, a minha 
Majestade dar-te-~ um presente maior do que aquele que foi oferecido 
ao tesoureiro real no tempo de lssl, Isso para mostrar a alegria da minha 
Majestade quando vir eue Dinga. (A]. Arkell, A History of Sudtr11 from the 
Earliest 1ímtslo A.D. 1821, Londres, Athlone, 1955, p. 43) 
Embora a este Harkhuf tenham sido creditadas quatro expedições 
indo para os "p~lses de Yam" (provavelmente o Darfur), estamos neste caso 
visivelmente em presença não de um comércio regular nem de um tráfico 
escravagista, mas de uma operação excepcional de rapto, cercada de todas 
as garantias para evitar a perda ou a fuga da preciosa mercadoria, objeto de 
curiosidade e de valor em virtude da sua raridade e dos talentos que lhe eram 
atribuldos. Nada permite identificar este "pais de Yam" nem determinar se 
abrigava então pigmeus. Yam é identificado, conforme os autores, à Etiópia 
ou ao Sudão: para A.]. Arkell, Harkhuf tinha alcançado o Darfur utilizando as 
pistas conhecidas mais tarde pelo nome de "Estrada dos 40 dias". Quanto à 
palavra dinga e às suas variantes- dinka, dínki, clenk, dank, donku - continuam 
a existir em várias línguas da Etiópia. O próprio texto sugere que o anão 
precioso fora capturado numa região mais ou menos longínqua. Foi sem dúvida 
encaminhado através de uma série de intermediários antes de cair nas mãos 
do representante do faraó. 
Foi só a partir da XIJ' dinastia, fundadora do Médio Impérío (ca. 
-2000/-1800), que a presença polftlca e militar do Egito se estabilizou a sul 
da primeira catarata. A expansão devia recomeçar sob os faraós da XVUI" 
dinastia (ca.-1590/-1310), em particular sob Thutmosis I e Thutrnosis III, e 
as relações deviam manter-se intensas até finais da xrx• dinastia (ca.-1310/ 
-1200). A atividade mílitar ia de par com as trocas comerciais como mostram 
as expedições enviadas pela rainha Hatchepsut ao "pais de Punt". Depois de 
. 33-
I 
\ 
l 
! 
I 
\ .. 
um novo e longo perlodo de retração ligado às dificuldades e às perturbações 
sofridas pelo Egito, as relações recomeçaram a partir da xxv•dinastia (ca.-710/ 
-660), a dos kushitas. Qualquer que fosse a sua origem - egípcia, persa, grega, 
romana- os soberanos seguintes iam multiplicar as iniciativas, essencialmente 
comerciais, direcionadas aos países do sul e do oceano Índico. 
O Saara e a~ "pistas africanas da sede" Oean Leclant) 
No que se refere às trocas através do Saara, dispomos pelo menos de 
três fontes para entender a sua existência numa muito longa duração: as fontes 
arqueológicas; as Histórias de Heródoto, que remetem elas próprias para outras 
fontes escritas ou, mais freqüentemente, orais; as fontes romanas e gregas 
enfim, datando do primeiro século a.C. ou do primeiro século da era cristã. 
As fontes arqueológicas consistem principalmente nas famosas gravuras e 
pinturas rupestres de que foi extraída a teoria das "estradas dos carros" (Henri Lo-
the, RaymondMauny) e a conclusão de acordo com a qual existiam co~unicações 
transaarianas diretas en'tre a África mediterrãnica e a África Negra, pelo menos 
no ptimeiro milênio a.C., a despeito da seca e da deserrificação do Saara: 
Eis o problema. [ ... ] No Saara, logo que se encontra um gmpo de rochedos 
que podem ser utilizados melhor ou pior como suporte da gravura, temos 
grandes possibilidades de aí encontrar desenhos, escalonados do tempo 
do pré-neoHtico aos nossos dias. Inversamente, os sftios que forneceram 
representações de carros são muito pouco numerosos: pouco mais de 
cinqüenta [conhecidos em 1970]. com um total de cerca de quatrocentos e 
cinqüenta canos (um sítio como Auincgh do Zemur por si só conta cem e o 
Ued Lar' ar, no sul oranês, cento e quatov.e). O que é notável é o agrupamento 
geográfico deste.~ carros: descontando algumas exceções, acham· se entre duas 
faixas relativamente estreitas indo uma do Fezzan à Curva do Nfger perto de 
Gao, com fortes concentrações em Tassili dos Ajjer, Hogar e Adrar dos !foras, 
e a outra do sul oranês e do Sus à Curva do Nfger perto de Gundan passando 
pelo Zemur, o Adrar da Mauritânia, e o sopé da falésia Tichitt-Walata. 
(R. Mauny, 1970, p. 61) 
A estes dois grandes eixos - o da Tripolitânia para Gao, com um "gancho" 
para o Tibesti, Djado e provavelmente para o Kawar e o lago Chade, e o do 
sul oranês e do sul marroquino para a Curva do Níger, com outro "desvio" 
para Tegdaast - é necessário acrescentar outros: os que existiam ao longo do 
vale do Nilo até a Núbia e certamente aqueles que, partindo do vale do Nilo, 
chegavam ao Sudão central (o Darb el-Arbain ou Estrada de 40 dias). Estes 
"carros", puxados por bois nos usos locais e por cavalos nas trocas a longa 
distãncia, .mantiveram-se como único me'io de transporte através do Saara até 
a aparição dos camelos, que tinham sido uma raridade na África do norte até o 
começo da nossa era (R. Mauny) e cuja utilização. se generalizou rapidamente 
a partir dos séculos III-IV. 
- 34-
~I 
'· 
· Apesar das contradições devidas na maior parte dos casos ao caráter 
indireto dos testemunhos que recolheu, as Histórias de Heródoto fornecem 
confirmações da existência destas trocas, ao mesmo tempo em que suscitam 
novas interrogações. Deve-se-lhes em primeiro lugar a famosa descrição dos 
Garamantes, recolhida junto das populações de Cirene que a tinham ouvido do 
rei dos Amonianos, Etearqu.e, o qual recebera a informação de outra pessoa, 
contribuindo esta longa cadeia de transmissão da informação de maneira 
substancial para tornar obscuros e opacos um certo número de pormenores: 
Partindo de Aguila, a uma distância de dez dias mais de caminho, existe um 
cômoro de sal, com água e muitas uunareiras que estão carregadas de fruros, 
como nas outras estações; e aí habitam homens que carregam o nome de 
Garamantes; é um povo muito numeroso; acarretam terra sobre o sal, e, isso 
feito, semeiam. O caminho mais direto [para sair do seu país? Para ir do seu 
país à costa?] vai desembocar nos lotófagos; de lá ao seu país há trinta dias 
de caminho. ( .. . ] Estes Garama.mes caçam, recorrendo aos seus carros. os 
Trogloditas Edopes; porque os nogloditas Edopes são de todos os homens 
a respeíto dos quais ouvimos estas narrativas, os mais rápidos na corrida. 
Os Trogloditas alimentavam·se de serpentes, de lagartos e de répteis deste 
gênero; servem-se de uma Hngua que não se parece com nenhuma outra, 
mas lançam gritos agudos como os morcegos. 
A partir dos Garamantes, a uma c:Ustância de mais dez dias de marcha, encontra-
se outro cômoro de sal com água, e em volta deste cômoro habitam homens 
que são chamados Atarantes; são os únicos homens que conhecemos que nilo 
têm nomes próprios; porque se todos reunidos utili7.arn o nome de Atacantes, 
nenhum deles possui um nome particular. Amaldiçoam o sol quando está 
demasiado ardente, e dirigem-lhe além disso insultos inimagináveis, porque os 
seus ardores os consomem, a eles mesmos, aos homens, e ao seu país. (Her6doto, 
Histórias, IV, pp. 183·84) 
Não são nada fáceis a identificação e a localização destas populações. Um 
primeiro indício refere-se à cultura material e às técnicas agrícolas ainda em 
uso nestas regiões saarianas. Outro indício é de ordem lingüística. A palavra 
'~tarantes" foi associada por alguns autores à palavra haussa atara (reunido), 
o que os colocaria entre o Níger e o lago Chade, e outros autores às palavras 
tamachek ataram (oeste) ou atar, adrar (terra alta), o que os situaria no Tassili 
dos Ajjer, a oeste do Fezzan. 
É o mesmo Heródoto que nos informa acerca de uma expedição tentada 
por jovens Nasamões para o deserto e os países do sul: 
Etearcos contou que tinha recebido um dia a visita de Nasamões [trata-se de 
um povo líbio que habita nas margens da Sirta e no território situado a leste, 
numa pequena extensão]; tinha ele pedido a estes visitantes Nasamões se lhe 
podiam dizer mais do que aquilo que ele sabia a respeito dos desertos da Ubia; 
e eles tinham respondido que havia entre eles jovens loucos, filhos de altas 
personalidades, que, chegados à idade de homem, tinham imaginado entre 
. 35 -
I I 
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l 
ouuas extravagâncias designar à sorte cinco deles para inrer os d~sertos da Ubia 
e procurar empurrar a sua Inspeção mais longe do que aqueles que tinham Ido 
mais longe. Porque, na Lfbia, as margens do mar que a limita a norte, a partir 
do Egito até ao cabo Soloeis (cabo Esparta ou cabo Cnntin] que marca 0 fim 
do continente Hbio, são habitadas de urna ponta a outra por Llbics divididos em 
numtnmu nações. exceto a parte ocupada por grego! e fenfcios: acima da zona 
marítima e das instalações d~ homens que tocam no ma.r, a Líbia é povoada por 
anim.Us selvagens; mas, acima da ~ona ~animais, só há areia, aridez tenivel, 
deserto absoluto. Por Isso os nossos jovens, delegados pelos seus camaradas 
com boas provis!5es de água e de víveres, caminharam primeiro através da zona 
habitada; depois, após t!·la atravessado, atingiram a dos animais selvagens; e 
ao sair desta, caminharam através do deserto, andando face ao zéfiro. Depois de 
terem atravessado uma grande extensão d~ território arenoso, durante muitos 
días, avistaram enfim árvores que cresciam numa planura; aproximaram-se e 
começaram a colher~ frut~ que estas árvores carregavam, mas, durante a sua 
colheita, foram assaltados por homens pequenos, de uma estatura inferior l 
média: estes homens apoderaram-se deles e levaram-nos consigo; os Nasam!5es 
não compreendíam nada da língua, nem aqueles que os levavam compreendiam 
a Hngua dos NasamOes. Foram levados auavés de vastos pamanos; e depois 
da travessia destes pântanos, chegaram a uma cidade onde todos os homens 
eram da mesma estatura dos seus raptores, e negros de pele. Ao longo desta 
cidade corria um grande rio; vinha do Poente, corria para o sol nascente; dentro, 
viam-se crocodílos. [ ... ] Etearc~ [ ... ) dizia, de acordo com os Cireneus, que 
os Nasamões tinham regressado a casa, e que as populaçOes onde tinham ido 
eram feiticeitas. (Hcródoto, H!sr6rlas, U, pp. 32·33; no que se relere à passagem 
em itálico, traduç5o retificada por Elikia M'Bokolo) 
Também aqui, se a maior parte das indicações surpreendem pela sua 
precisão, a interpretação de alguns pontos cruciais no que se refere à localização 
suscita grandes dificuldades: a referência ao zéfiro parece indicar que estes 
jove-ns teriam seguido a direção do poente e por isso não teriam saído do 
deser to. interpretações mais minuciosas do texto de Heródoto levaram alguns 
especialistas a pensar que a transmissão indireta da informação tinha levado 
Heródoto a cometer um erro: os jovens Nasamões teriam com efeito levado a 
sua expedição seja para sudoeste, em direção da Curva do Níger, seja para sul, 
para alcançar o Bahr el-Ghazal; cada uma destas hipóteses pode apoiar-se na 
referência aos crocodilos que povoavamos rios do Saara, hoje desaparecidos, 
assim como na justaposição de uma população negra e de uma população com 
a pele menos escura. 
Mais tardia, outra indicação importante de uma expedição transaariana 
provém do geógrafo Cláudio Ptolomeu que, citando Marin de Tiro (fim do 
século I), faz referência a um país Agisymba: 
Julius Maternus, esse, vindo de Leptis Magna [cidade romana desaparecida, a 
leste de Trípoli] e tendo caminhado a partir de Garama em companhia do rei 
dos Garamantes que avançava contra os Etfopes, chegou em quatro meses, 
. 36-
depois de se ter dirigido sem descanso para o sul, a Agisymba, um pais de 
e1lopes, onrle existem rinocerontes. 
Aqui, mais uma vez, a localização de Agysimba mantém-se problemática. 
A referência aos rinocerontes como "emblema do território" Oean Désanges) 
não permite de maneira alguma avançar, na medida em que várias gravuras 
rupestres da época neoUtica (IV-11 milênios) situadas no Fezzan, no Tassiü dos 
Ajjer, no Djado e no Tibesti mostram que a sua área de extensão foi muito 
maior do que nos nossos dias. É posslvel que Agisymba tenha sido uma destas 
regiões, possivelmente o Tibesti de acordo com alguns especialistas. No que 
se refere à data de expedição, situa-se provavelmente entre 83 e 92, portanto 
sob o reino do imperador Domiciano (81-96) durante o qual o rinoceronte 
(bicome africano), apareceu pela primeira vez em Roma, gravado nas moedas 
e exibido nos espetáculos oferecidos à multidão. 
A amplitude das trocas através do Saara foi muitas vezes discutida 
por alguns historiadores entre os quais os mais audaciosos não hesitam 
em pôr em causa a própria existência de tais trocas. Pôde assim falar-se do 
"Mito do comércio transaariano na época de Roma" Oohn Swanson). Entre 
os argumentos invocados pelos historiadores, há em primeiro lugar o das 
fontes, muito pouco numerosas e insuficientemente explicitas. Aparece depois 
a afirmação de acordo com a qual os romanos encontravam na África (quer 
dizer no Magreb atual e no oeste da Ubia) todos os produtos (trigo, azeitonas, 
mármore, Ral, madeiras, procluros de tinturaria, animais selvagens ... ) de 
que tinham necessidade. Só o "carbúnculo" ou "escarbúnculo", uma pedra 
preciosa hoje mal conhecida, provinha dos países mais a sul e era fornecida 
pelos Garamantes do Fezzan. Quanto às mercadorias potenciais do comércio 
transaariano (ouro, escravos, marfim, plumas de avest ruz, peles), os romanos 
podiam obtê· las no seu império. Estas reservas, que se apóiam exclusivamente 
nas fontes escritas, não parecem aceitáveis. Numerosos dados arqueológicos 
atestam, de fato, a existência das correntes de trocas evidentemente impossíveis 
de quantificar. A partir do momento em que inovações permitiram encurtar 
a duração das viagens através do Saara, essas trocas atingiram uma dimensão 
inesperada. A principal inovação foi a utilização do camelo (na verdade, o 
dromedário de uma corcova), cuja introdução na África e cuja utilização para 
assegurar as trocas continuam a dividir os especialistas. Originário da Arábia, 
teria sido introduzido no Egito nos V ou VI séculos a.C., para se espalhar 
no Saara a partir do vale do Nilo. A partir de 16, Júlio César capturou várias 
dezenas na Numldia, Estado cujas fronteiras meridionais alcançavam o Saara. 
Durante muito tempo, o uso deste animal foi essencialmente militar. Em 363, 
por exemplo, o general romano Romanos exigiu 4000 aos habitantes de Leptis 
Magna. As populações berberes do Saara dele se serviram, por sua vez, primeiro 
para as necessidades da guerra, depois para os transportes. A partir dos III-IV 
séculos, era correntemente utilizado para as trocas com os palses africanos. 
• 37-
2. O oceano Índico, lugar de trânsito e mar interior 
O oceano Índico constituiu um espaço marítimo amplamente aberto 
estabelecendo as relações da África tanto com os países asiáticos como com o~ 
Estados mediterrânicos. As relações destes Estados através do mar Vermelho 
com os pafses africanos só parecem ter-se desenvolvido a partir do 11 milênio 
a.C., depois das trocas regulares terem sido estabelecidas, a meio do século 
precedente, entre a Suméria e os países ribeirinhos do Indo. Participando 
nesta vasta rede de trocas e na koiné que dal emergia, as costas africanas do 
mar _vermelho. e do oceano Índico forneciam produtos procurados. A partir 
das epocas ma1s recuadas, o fenômeno das monções revelou-se determinante 
~ara estimular a navegação e as trocas: de novembro a março, a monção de 
mverno com ventos soprando do nordeste para sudoeste facilitava o acesso às 
costas africanas; de abril a outubro, a monção de verão com ventos soprando 
de sudoeste estimulava a subida para a Ásia e para o mar Vermelho. Se os 
povos asiáticos ribeirinhos do oceano Índico dominaram este fenômeno muito 
cedo, não se verificou o ll}esmo no que se refere aos povos mediterrãnicos: 
foi ao marinheiro grego Hippale (ca.SO) que o Périplo do mar Eritreu atribuiu a 
"descoberta" do segredo das monções. 
Documento 5: A África entre o Mediterrâneo e o oceano fndico 
L~ 
- 38-
1000 km· , .. I 
Os Estados mediterrânicos e o oceano Índico 
A continuidade destas trocas entre os Estados mediterrânicos e as 
costas leste-africanas foi atestada por várias fontes, em particular por uma 
série descontínua de textos prolongando-se durante cerca de vinte séculos. 
Os primeiros são os textos egípcios contando as navegações para o "pais 
de Punt". Antes do reino da rainha Hatchepsut, os egipcios só conheciam 
o "país de Punt" por ouvir dizer, como indicam claramente as inscrições do 
templo de Deir el-Bahari em Tebas: "Dei-te Punt. Ninguém conhecia ainda o 
caminho para as terras dos deuses, ninguém tinha subido até às escalas do 
Incenso, ninguém entre os Egfpcios. Tinha-se apenas ouvido falar, de boca 
em boca, nas narrativas das pessoas de outrora". Os produtos preciosos do 
Punt passavam então entre as mãos de intermediários que multiplicavam as 
narrativas fabulosas para desencorajar os egípcios de ai se dirigir. Só um homem 
deAssuã diz ter "visitado onze vezes estes países com os [seus] senhores", sob 
o Antigo Império. Foi a rainha Hatchepsut (ca. -1504/-1483) que organizou 
a primeira expedição para o Punt e quis imortalizar esta iniciativ~ mandando 
gravar baixos-relevos e inscrições nas paredes do templo de Deir el-Bahari, 
que ela tinha mandado construir. Depois de ter "navegado tranqüilamente para 
o país do Punt", os cinco navios fretados nesta ocasião regressaram "muito 
pesadamente carregados com as maravilhas do país do Punt: todas as madeiras 
de essências excelentes do país de Deus; montões de resina, de mirra e árvores 
de mirra ainda verdes, ébano e marfim puro, com ouro verde de Emu, com 
caneleira e incenso, e cosméticos para os olhos, com macacos e macacas e 
cães, peles de panteras do sul, com indígenas e seus filhos". Este misterioso 
"pais do Punt", que fez correr muita tinta e suscitou intermináveis debates 
entre os historiadores, é hoje situado no Chifre da África, num lugar diflcil de 
determinar com maior precisão. Do mesmo modo, os baixos-relevos de Deir 
ei-Bahari não permitem de forma alguma dize'r quem eram os habitantes de 
Punt: para Jean Doresse, "a população [ ... ] não é nada negróide. O ptlncipe 
de Punt, Parihu (ou Perehu), tem o nariz aquilino, uma barba pontiaguda, e 
os cabelos curtos, tal um tigreano moderno"; para outros, a esteatopigia da 
princesa Ati, voluntariamente salien~ada pelos baixos-relevos, sugeriria pelo 
contrário uma característ ica negróide. 
Novecentos anos mais tarde, outra expedição foi organizada a pedido 
do faraó Necan II (reinou de -611/-609 a -595/-594). Dotado de um espirito 
ambicioso e empreendedor (tinha tentado fazer reconstruir o canal ligando 
o Nilo ao mar Eritreu, aberto pelos faraós da XII dinastia), guerreiro temível 
com propósitos expansionistas confessados (travou numerosase demoradas 
guerras na Ásia menor), Nec'lfl li tinha uma personalidade que torna credível a 
expedição de que- aceitando o testemunho de Heródoto- concebeu o projeto 
e que consistia em contornar' o continente africano a partir do oriente, pelo 
mar Vermelho, os oceanos Índico e Atlântico e o Mediterrâneo: 
- 39 -
I' 
I 
I 
I 
I 
I 
I 
No que se refere i Ubia, com efeito, aquilo que dela sabemos prova estar 
inteiramente cercada pelo mar, exceto naquilo que confina com a Ásia: 
foi Nécos, o rei do Egito, o primeiro que, a nosso conhecimento, fez a 
demonsc raçlo: depois de ter acabado de abrir o canal indo do Nilo ao golfo 
Arábico, mandou partir em barcos homens da Fenlcla, com ordem, para o 
regresso, de penetrar passando pelas colunas de Hércules no mar setentrional 
[Mediterr~neo], e de regressar por esta via ao Egito. Estes fenfcios, pois, 
partidos do mar Eritrcu, navegando pelo mar austral [oceano fndico]; quando 
chegava o outono, abordavam a costa e semeavan1 a terra, no lugar da Ubia onde 
eles se encontravam, todos os anos no decurso da sua navegaçSo, e esperavam 
então a época de colheita; ceifado o trigo, lançavam-se ao mar, de tal modo 
que, passados dois anos, dobraram no terceiro ano as colunas de Hércules e 
chegaram ao Egito. B contavam eles -coisa que, no que me diz respeito, não 
acredito, mas que outros podem acreditar- que, quando eles completavam o 
périplo da Ubia tinham tido o Sol à sua direita. (Heródoto, Histoires, IV; p. 42, 
ed. e trad. de Ph. E. Legrand, Paris, Les Belles Lettres, 1985) 
Este pormenor, estimado inacreditável por Heródoto, é precisamente 
aquele que autentica o périplo, porque foi só depois de ter contornado o cabo 
da Boa Esperança de leste para oeste, que viram o sol realizar a sua revolução 
à su.a direita. 
Mais tarde, outras relações de viagens iam revelar-se fontes insubsti-
tuíveis para o conhecimento da África na Antiguidade. Uma, fundamental, o 
Périplo do mar Eritreu, mostra que no início da era cristã, o comércio da Azania 
-quer dizer, das costas leste-africanas- se tornara comum para os povos me-
diterrânicos. Três ou quatro séculos depois do Périplo do mar Eritreu, a Topografia 
cristã, de Cosmas Indicopleusces, constitui a síntese final dos conhecimentos 
dos povos da Antiguidade mediterrânica a respeito da África oriental. Este 
comerciante grego, nascido em Alexandria e tornado monge. escreveu em 547 
este livro cujo objetivo era mostrar que a terra era chata. Narrativa notável dos 
itinerários comerciais desta época, a Topografia cristii desc'revc, entre outras, 
a viagem levada a cabo por Cosmas Indicopleustes ao Ceilão em 525, viagem 
no decurso da qual visi(ou o reino de Axum e a Etiópia. 
Trocas comerciais e movimentos de população: Madagascar 
Traço de união entre a África oriental e o mundo mediterrãnico, 
o oceano Índico constituía também, já muito cedo, um espaço marítimo 
autônomo, cuja história é ainda hoje mal conhecida e feita de hipóteses mais 
ou menos brilhantes em vez de se assentar em certezas. Do ponto de vista da 
história africana, um dos problemas mais importantes desta história é a do 
povoamento de Madagascar, problema que remete para os clássicos no que se 
refere aos espaços marítimos, às rotas e às técnicas de navegação, à circulação 
dos homens, à natureza e à intensidade das trocas de bens materiais, práticas 
sociais, culturais e crenças. 
-40-
As tradições históricas especificamente malgaxes evocam de maneira 
muito contrastada a questão das origens. Algumas, tais como as narrativas 
recolhidas no século XIX entre os Merina pelo primeiro historiador malgaxe, 
Raombana (1805-1890), defendem o princípio da autoctonia, ao passo que 
outras, seguindo o modelo dos Tantaran'Ny Andriana (História dos Reis), recolhida 
pelo Padre Callet no século XIX, se referem a migrações exteriores que teriam 
povoado a Grande Ilha. 
No que se refere a esta questão das origens - "envolvidas num mistério 
particularmente espesso" (Hubert Oeschamps) e em volta da qual floriram as 
especulações mais fantasistas (origens judias, gregas, sabeanas ... ) -as primeiras 
investigações históricas sérias chegaram a conclusões bastante contraditórias. 
I.:Histoire de la géographie de Madagascar (1885) de Alfred Grandidier, entre 
outras obras do sábio fecundo, afirma que a quase totalidade do povoamento 
malgaxe provém da Ásia do sudoeste, incluindo os negros qualificados como 
"melanésios". Contemporâneo de Grandidier, G. Ferrand, ao contrário, 
pronunciou-se já em 1908 pela "origem africana dos malgaxes", sendo estes 
africanos mais precisamente bantu. Houve além disso - escola que tem os seus 
adeptos até hoje - todos aqueles que afirmavam baseando-se nas populações 
residuais "pigmóldes", que o povoamento original da ilha teria sido assegurado 
por negrilhos (talvez. os misteriosos vazimba) progres.sivamente absorvidos 
pelos imigrantes asiáticos e africanos. 
Na falta de materiais históricos conhecidos e suficientemente antigos 
as "ciênci:~s auxiliares" revelam-se aqui de um concurso prP.Cioso. Todas 
confirmam a simbiose em Madagascar de elementos de o rigem diversa, indo-
nésia, indiana, árabe e africana, o que não resolve a questão de saber em que 
proporções estes diversos elementos participaram na síntese constitutiva da 
personalidade malgaxe, nem em que momento, por que fases e por meio de 
que processos se fez esta síntese. A lingüística mostrOll; o parentesco profun-
do entre o malgaxe e as línguas indonésias. Mas as coisas não são assim tão 
simples como parecem à primeira vista. Se a glotocronologia demonstrou que 
a esmagadora maioria (mais de 90%) das palavras do vocabulário de base é 
Indonésia, a própria Hngua malgaxe foi profundan1ente e muito cedo influen-
ciada pelas Hnguas bamu, como prova a existência de palavras bantu em todos 
os linguajares malgaxes e, sobretudo, a transformação das finais consonânticas 
(características das Hnguas indonésias) em finais vocálicas (características 
de todas as Hnguas bantu). Do mesmo modo, a antropologia social revelou 
a amplitude das interpenetrações entre os traços da organização social e da 
cultura material africanas (prática de criação de gado, lugar central atribuído à 
vaca, cultos ancestrais e reais, tecelagem do algodão, cerâmica.s ... ), indonésias 
(pirogas com balancim, técnicas dos ferreiros, rizicultura em terraços, estru-
turas sociais do lmerina ... ) e árabes (alguns instrumentos de música). Parte 
destas diferentes heranças varia muito de uma região para outra da Grande 
- 41 • 
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Ilha, o que testemunha a grande complexidade da história do povoamento. 
Ao mesmo tempo, alguns traços culturais e sociais fundamentais tanto po-
dem provir da África como da Indonésia (s istemas de parentesco, trabalho da 
madeira, liberdade sexual pré-nupcial, circuncisão ... ), o que torna aleatória 
qualquer tentativa de dosagem da parte respectiva destes diversos elementos. 
As conclusões da antropologia flsica vão no mesmo sentido, embora os critérios 
de classificação retidos pelos especialis tas nem sempre susci tem a convicção: 
todos confirmam com efeito a coexistência de tipos hum~os asiáticos, negros 
e, dominando em número os dois outros, mistos. 
No que se refere à periodização deste povoamento, continuamos sempre 
reduzidos a hipóteses, mesmo se as dos dias de hoje são maís seguras e mais 
sólidas do que as do tempo passado. No que se refere às migrações indonésias, 
quase ninguém adere hoje às teorizações brilhantes mas frágeis de Georges 
P. Murdock, cuja s íntese muito influente (1959) respeitante aos povos e às 
culturns da África afirmava que o "complexo botânico malásio" (arroz, taro, 
inhame, bananeira, coqueiro, cana-de-açúcar ... ) e os homens capazes de os 
explorar tinham sido introduzidos em Madagascar no primeiro milênio a.C. 
Cronologias cada vez mais rigorosas provam hoje que estas migraçõestiveram 
lugar a meio, ou até na segunda metade do primeiro milênio da era cristã. É só 
no século ll que podemos afixar as narrativas lendárias hindus do sul da Índia 
evocando ataques repetidos de navios vindos "dos países do fundo do mar", 
identificados por muitos especialistas com o arquipélágo indonésio. Mas o 
avanço destes "nômades do mar" (R. Mauny) nas costas da África só teria tido 
lugar alguns séculos maís tarde. A primeira referência quase certa, o Plriplo do 
mar Eritreu (li ou lii século d.C.), oferece o terminus a quo, na medida em que, 
muito bem informado, ele não evoca em lado algum navegações da Ásia oriental 
para África. Estendendo-se nu!l)a duração bastante longa a partir do século li, 
a hinduização da Indonésia oferece outra referência muito preciosa. Pode-se, 
com efeito, identificar a presença na lfngua malgaxe de um certo número de 
palavras sãnscritas - é certo que em pequena quantidade-, o que tenderia a 
provar que as partidas mais importantes dos indonésios para Madagascar se 
situariam pouco depois do inicio da hinduização do arquipélago indonésio, a 
qual se operou de maneira muito des igual conforme as ilhas. As cronologias 
mais exatas retêm pois o período situado entre os séculos V e VII para as 
primeiras chegadas de indonésios a Madagascar. Elas não excluem contudo 
chegadas mais precoces (o que explicaria o caráter relativamente arcaico da 
língua malgaxc) e também não afastam a possibilidade das correntes migratórias 
terem prosseguido até o século Xll (talvez estimuladas pela aparição, a partir do 
século VIII, de barcos maiores do que as pirogas de balancim e que parecem ter 
sido utilizadas pelos primeiros emigrantes). Os primeiros chegados, designados 
às vezes como "Paleo-indonésios", apresentam nas suas estruturas sociais 
numerosos parentescos com a Indonésia. Assim, nas terras altas do lmerlna, 
a unidade social de base, o foko (clã) encontra-se em Ti mor sob o nome de 
. 42 . 
fukun. Porém, nas regiões costeiras, onde predominariam os imigrantes mais 
tardios qualificados de "Neo-indonésios", as estruturas sociais evocam as do 
mundo bantu. 
No que se refere às modalidades precisas da ocupação da Grande Uha 
está-se, maís ainda do que nas datas, no domínio das suposições. Em primeiro 
lugar os caminhos foram certamente múltiplos: seja caminhos diretos, levando 
do sul de Java a Madagascar e que, em conseqüência da sua extensão (6000 
km sem nenhuma ilha, nem possibilidade de escala), não parecem ter sido os 
caminhos maís utilizados; seja caminhos passando pelo norte, incluindo uma 
série de escalas e levando em primeiro lugar da Indonésia à Índia do sul e a Sri 
Lanka, depois, conforme os casos, do s~l indiano diretamente a Madagascar ou, 
maís provavelmente, do sul indiano para a Azania (onde são perceptíveis traços 
de influência Indonésia, em part icular no domínio da navegação marítima, das 
plantas alimentares e onde os imig.rantes indonésios se teriam pela primeira 
vez aculturado aos bantu) e da Azania a Madagascar. Existem fontes escritas 
que esclarecem certas modalidades destas migrações marítimas, mesmo se 
elas continuam a ser de interpretação difícil. Evocam elas, com efeito, duas 
ilhas- Komr ou Kamar e Wak-Wak - que tan to poderiam ser Madagascar como 
uma das ilhas indonésias. As maravilhas da Índia, escritas por volta de 953, 
relatam assim uma grande expedição, talvez até uma "invasão" (R. Mauny) 
dos Wak-Wak para as costas africanas, na qual muitos vêem um dos itinerários 
de uma das formas posslveis das migrações indonésias para as costas das ilhas 
orientaís da África: 
lbn Uk.is contou-me que foram vistos membros do Waqwaq fazer coisas 
surpreendentes. Foi assim que em 334 (945-946) chegaram num milhar de 
embarcações e os combateram com o mais decidido vigor, sem todavia poder 
submete-los porque Qanbaloh está rodeada por uma robusta muralha erQ volta 
da qual se estende o estutrlo cheio de água do mar, de tal modo que Qanbaloh 
está no melo deste estuário como uma poderosa cidadela. Tendo habitantes 
de Waqwaq abordado em sua casa mais tarde, perguntaram-lhes por que é 
que eles tinham ido entamente lá e n~o a outro lugar. Responderam-lhes 
ser porque se encontravam entre eles produtos que convinham ao seu país 
e à China, como o marfim. as cascas de tartarugas, as peles de panteras, o 
âmbar cin-rento. e porque procuravam os Zeng, devido à facilidade com a qual 
suportavam a escravatura e devido à sua força flsica. Disseram que tinham 
vindo de uma distância equivalente a um ano de viagem. e que tinh~ pilhado 
ilhas situadas a seis dias de viagem de ~baloh e se tinham apoderado de um 
certo número de aldeias e de cidades de Sofala dos Zeng sem falar de outras 
que se n:lo conheciam. Se essas pessoas falavam verdade e' se a sua descrição 
era exata, ou seja, se eles tinham vindo de uma distância de um ano de viagem, 
tal confirmaria o que dizia lbn U kis das ilhas do Waqwaq: que estão situadas 
em face da China. Mas Deus sabe melhor do que nós aquilo que realmente 
acontece. ("As maravilhas da Índia", in Mirnorial Jean Sauvagt t, Damasco, 
fnstit.ut Françals de Damas, 1954, p. 301) 
. 43-
l 
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I 
I 
I 
No que se refere às contribuições das outras populações além das 
indonésias, continuamos sempre reduzidos a hipóteses. tanto no que diz 
respeito à sua periodlzação como em tudo o que se refere à origem precisa da 
maior parte das Imigrações e aos caminhos que teriam seguido. Tal é o caso, 
em primeiro lugar, para as populações bantu, das quais as fontes portuguesas 
atestam que elas estavam efetivamente presentes na Grande Ilha nos finais do 
século XV. Algumas hipóteses supõem que as chegadas de africanos se teriam 
feito na esteira das dos indonésios, seja porque estes tenham seqüestrado 
um certo número na costa leste-africana para os levar para Madagascar, seja 
porque uma primeira síntese afro-indonésia se tinha realizado na costa ou nas 
ilhas, nomeadamente nas Comeres, antes da instalação destes novos grupos, 
principalmente no norte e no ocidente da Grande Ilha. Só talvez a arqueologia 
das costas e das ilhas leste•africanas permitirá ter certeza. Outras hipóteses 
encaram com efeito chegadas precoces de africanos, no mais tardar a partir do 
século lX, e contemporâneas dos indonésios. Estas hipóteses supõem o dominio 
da navegação marftlma por certos grupos bantu e deslocações que teriam 
provavelmente transitado pelas Comeres. Alguns destes bantu marinheiros 
estariam já islamizado$ e. teriam introduzido o Islã antes dos muçulmanos 
de origem asiática. Tais eram, em particular, os Antalaotras - mistura de 
africanos, de árabes e de indonésios - vindos das Comeres para a cos ta oeste 
de Madagascar, provavelmente no século XII, e mantendo com os árabes e os 
suaili da costa leste-africana um comércio muito ativo (tecidos da Índia em troca 
de escravos, ferro, sãndalo, mel e cera, produtos alimentares) bem conhecido 
através das tardias fontes portuguesas dos fins do século XV e dos princípios 
do século XVI. Entre os povos islamizados vindos da Ásia, devem reter-se os 
Iharanianos, os Zafi Raminia e os Antemoro que se instalaram na costa leste 
de Madagascar. Dos lharania.nos, povo conhecido apenas pelos túmulos (com 
esqueletos datados do século XIIJ) e pelas oficinas que deixaram, sabe-se que 
se trata de muçulmanos vindos do exterior - conforme as tradições orais locais 
-e tendo relações comerciais com a China e a Pérsia, cujos produtos (pratos, 
tigelas, frascos de vidro, jóias ... ) foram encontrados nos túmulos. No que diz 
respeito aos Zafi Raminia, teriam vindo, de acordo com os autores, de Sumatra 
ou mais provavelmente da Índia, talvez no século XIII. Enfim, chegados ainda 
mais 'tarde, sem dúvida entre os séculos Xlll e XVI, os Ante moro situam - corno 
tantos povos muçulmanos- a sua origem em Meca: talvez tenham partido da 
Arábia? O que ressalta claramente da sua Sorabe- livro escrito em malgaxe 
e em caracteres árabes - é terem transitado pelas Comores e por zonas de 
povoamento iharaniano. A assimilação muito rápida destes povos chegados 
tardiamente confirma por um lado a existência de uma cultura malgaxe a partir 
mais ou menos do século Xlll e, por outro lado, a antiguidade dos movimentos 
migratórios que povoaram a Grande Ilha. 
- 44-
ll. DEBATES E COMBATES 
Raramente se viram florir tantos mitos e explodir tantos combates 
como no que se refere ao passado antigo da África. Focalizados, por boas ou 
más razões, sobre certos períodos ou certos objetos privilegiados (sendo o 
Egito faraônico certamente o mais duradouro deles), estes debates possuem 
freqüentemen te uma dimensão técnica, na medida em que remetem para as· 
condições epistemológicas do exercido da profissão de historiador no contexto 
africano. Mas estão também associados à avaliação do trabalho efetuado até aqui 
sobre a África pelas gerações sucessivas de historiadores e de especialistas de 
"ciências auxiliares da história". Um dos aspectos mais reconfortantes destes 
debates deriva do fato da dúvida não incidir apenas sobre os materiais com 
os quais o historiador trabalha, mas também sobre as teorias e os paradigmas 
que foram durante muito tempo considerados como os melhores pilares da 
literatura histórica e dos trabalhos de ciências sociais e sobre o passado mais 
antigo do continente africano. 
A. Mitos e lendas 
"A barragem dos mitos" evocada por j oseph Kl-Zerbo constitui um dos 
obstáculos a superar: trata-se do inesgotável repositório de tolices do qual 
o historiador burkln~s desenhou com ll«ÇO amplo 0$ contOrnO$ e do qual 
se espera ainda constituir o ccrpus, sondar as molas e as filiações e pôr em 
evidência os elementos, na medida em que persiste a sua recorrência. Mas 
verifica-se também que as próprias fontes, escritas e orais, continuam a exigir 
um implacável trabalho de crítica e de avaliação. 
1. A questélo das fontes 
A querela das fontes, que dominou a historiografia africana nascente nas 
décadas de 1950 e 1960, está hoje encerrada. Tendo sido aceito e reconhecido o 
valor das fontes orais, todos concordam com o fato de que a variedade extrema 
das fontes (a prospecção está longe de ter acabado) de que o historiador da 
África pode tirar partido constitui uma possibilidade excepcional, com a 
condição de serem tratadas com os rigores habituais. 
As fontes escritas de todas as origens-egfpcias, gregas, latinas, chinesas, 
árabes, européias ... - de que certos historiadores tinh~m feito a con~ição 
sine qua non da produção de obras históricas, revelam-se também difíceiS ~e 
explorar, ou até enganadoras. A fascinação exercida pelos mirabilia- a respe1to 
dos quais as fontes da Antiguidade clássica oferecem o primeiro el(emplo 
conhecido - prolongou-se, através dos escritos árabes e europeus, a~é ~ ~m do 
século XIX e talvez mesmo até os princípios do século XX. Qual é a htstona que 
- 45-
semelhantes fontes permitem estudar? Trata-se da história da África ou antes 
da história da percepção da África pelos outros, percepção da qual sabemos 
~ue ~ão cessou de reproduzir preconceitos e estereótipos ao mesmo tempo que 
•a cnando novos? Simultaneamente, a confiança cega nestas fontes contribui 
da maneira mais evidente para identificar objetos, sugerir cortes cronológicos 
e .periodizações e impor maneiras de fazer, procedimentos cuja pertinência é 
dtscutfvel e cada vez mais discutida. 
Um dos exemplos mais edificantes é-nos dado por uma das fontes mais 
an~igas. comentadas, o "périplo de Hannon". Esta narrativa conta as viagens que 
tena fetto o cartaginês Hannon "para aiém das colunas de Hércules" com vista a 
"fund:U: cidades de Llbifenlcia": "pareceu bom", conforme a versão de Heidelberg 
desta vtagem (datada do século IV ou do século Il a.C.), "confiar-lhe 60 navios 
de· 50 remos, uma multidão de homens e de mulheres, alcançando cerca de 30 
mil pessoas, víveres e todo o equipamento necessário". A própria realidade da 
viagem marítima do cartaginês Hanno~ nas costas ocidentais da África depois de 
passadas as colunas de Hércules continua a suscitar. dúvidas. Alguns consideram-
na como absolutamente impossfvel e apoiam-se em argumentos extraídos das 
técnicas de navegação - confirmadas por Heródoto - e da· arqueologia. Para 
Raymond Mauny, que considera a viagem de Hannon como "a maior farsa de 
toda a histór!a das navegações da Antiguidade", a impossibilidade de semelhante 
viagem deriva das condições de navegação desta época: 
Se era fácil para um navio da Antiguidade ir do Marrocos até ao Cabo Verde -
sendo os ventos constantemente favoráveis à descida norte-sul-e relativamente 
fácil passar para lá dos Camarões, sendo os ventos algumas vezes favoráveis, 
às vezes desfavodveis, teria sido pelo contrário uma tarefa praticamente 
impossfvel ir do càbo Lopez ao cabo da Boa Esperança, sendo os ventos 
constantemente desfavoráveis para navios à vela dirigindo-se para sul. E ai, 
comrariamente ao que se passava no Saara, não existia estrada de carros para 
duplicar a via marfrima e não havia líbio-bérberes já esfregados pela cultura 
mediterrânica, mas apenas rudes khoisã, que não estavam sequer ainda no 
neolítico. (R. Mauny, 1970, p. 95) 
Semelhante viagem fora contudo tentada na época do rei da Pérsia Xerxes 
( -486/-465) e tinha acabado num fracasso relatado por Heródoto na descrição 
de Sataspés, condenado por ter estuprado uma jovem virgem: 
Ia, por este crime, ser empalado por ordem do rei Xerxes, quando sua mãe 
que era irmã de Darius, pediu a sua graça, declarando que ela própria lhe 
imporia um castigo mais violento do que aquele que fora decidido por Xerxes: 
porque ele seria obrigado a fazer o périplo da Ubia até que este périplo 0 
levass~ ao golfo arábico. Xerxes aceitou estas condições; Sataspés foi para 
o Egito; apanhou um barc() e marinheiros, c fez-se à vela para as colunas 
de Hércules; depois de as ter ultrapassado e de ter dobrado o cabo da Lfbia 
que se chama Soloeis [cabo Espartel?], fez-se à vela para sul; durante vários 
meses atravessou uma grande extensão de mar; depois, como havia sempre 
L._ -46-
ainda mais a fazer, voltou atrás e regressou ao Egito. Dal foi 'se encontrar 
com o rei Xerxes; contou ele que no ponto extremo da sua viagem navegava 
ao longo de um país povoado por homens pequenos cujo vestuário era feito 
de palmeiras; sempre que ele e os seus companheiros acostavam o navio, 
estes homens fugiam para as montanhas, abandonando as suas cidades; 
eles penetravam nestas cidades sem fazer aí o menor prejufzo, recuperando 
simplesmente o necessário para comer. A razão que o tinha impedido de 
levar a cabo inteiramente o périplo da Lfbia devia-se, dizia ele, ao fato de o 
seu navio não poder avançar mais, pois estava parado. Xerxes não aceitou 
que ele estivesse a dizer a verdade; não tendo Sataspés, fosse como fosse, 
levado a cabo a tarefa proposta, inHigiu-lhe o castigo inicialmente decidido, 
e mandou-o empalar. (Her6doto, Histórias, IV. 43) 
Acrescentemos que a ausência total de restos arqueológicos a sul do 
Marrocos, tanto nos Can1arões como no cabo Lopez, onde alguns autores fizeram 
chegar Hannon e os seus companheiros, parece confirmar de fato a tese de que o 
"Périplo" é mais uma construção intelectual do que a autêntica relação de uma 
verdadeira viagem. Apesar da força destes argumentos, esta viagem é considerada 
como muito posslvel ou provável pelos especialistas, que os mais ardentes -]. 
Carcopino e G. e C. Charles Picard - situaran1 no momento mais alto da força 
canaginesa (fim dos séculos VIl-VI ou século IV a.C.). Um dos seus argumentos 
mais perturbadores reside na exatidão da fauna e da flora descritas pelo "Périplo": 
invenção feliz de uma imaginação fecunda ou transcrição fiel de testemunhos mais 
ou menos diretos? O caso na realidade é ainda ;nais complicado porque,quer a 
viagem tenha tido ou não lugar, que vaie a fonte que a descreve e quem fornece 
descrições das costas da África? Se o Périplo de Hannon é um dos textos mais 
recoplados pelos autores gregos e latinos, a verdade é que o original redigido 
em púnico, colocado no templo de Kronos em Cartago, desapareceu. Resta 
por isso, principalmente, uma versão grega, conhecida como o "manuscrito 
de 1-Jeidelberg", e cópias latinas incompletas integradas nas obras escritas 
por Pomponius Meia e Plínio, o Velho, no século I depois de Cristo. O exame 
atento da tradição literária mostra que estas diferentes versões são como um 
exerdcio no qual se tivessem empenhado vários autores, provavelmente no 
século 11 a.C. e no século I da nossa era. O que é confirmado pelos múltiplos 
empréstimos aos autores mais diversos (Homero e Hesíodo, Heródoto, Polfbio, 
o pseudo-Scylax, talvez Aristóteles e tantos outros), assim como a ciclos 
lendários muito conhecidos, como o de Perseu, rico em todas as qualidades de 
maravilhas, mulheres peludas assimiladas às Gorgonas até ao Theon Ochema 
(montanha onde ardem fogos permanentes cujas labaredas sobem até aos astros 
e assimilada à fronteira do oikuméné) passando pelos trogloditas mais rápidos 
do que os cavaios. Seja o que for que se retiver da reaiidade da viagem, o Périplo 
de I-Iannon aparece assim como um dos antepassados particularmente fecundos 
desta longa linhagem dos mirabilia que, até princípios do século XX, preencheram 
o conhecimento da África e nos informam mais a respeito do imaginário dos 
seus autores do que sobre as reaiidades do mundo negro. 
- 47-
.,., 
\, 
Não deve tambêm acreditar-se que as fontes orais sejam totalmente 
isentas de tais fabulações . Depois de se ter assente, graças aos trabalhos 
pioneiros de Jan Vansina, o valor das fontes orais como as demais fontes, 
os investigadores discutiram durante muito tempo a questão de saber se a 
investigação de uma cronologia rigorosa nestas fontes não podia ser classificada 
como "a busca de uma quimera" (David P. Henige). Também aqui, a linha 
mediana acabou por se impor, consistindo em submeter a coleta e o tratamento 
das fontes orais às regras gerais que presidem ao tratamento de qualquer fonte e 
a regras especificas correspondendo à sua natureza própria (documento 6). 
Ao lado destas dificuldades técnicas, afinal fáceis de resolver, há 
problemas de fundo muito mais árduos que poder{amos esquematicamente 
fo; mular desta maneira: de qual(ais) histórla(s) as tradições orais são elas 
as "fontes"? Será de resto necessário só as considerar como "fontes"? Só nos 
falam do passado ou também - e talvez sobretudo - do presente? Um dos 
numerosos exemplos que ·mostram a imperiosa necessidade do rigor e da 
delicadeza com as quais é necessário manipular estas fontes é o das narrativas 
de origem, tão abundantes em todas as áreas culturais e pollticas africanas. A 
identidade e a posição social das pessoas participando na cadeia de transmissão 
do testemunho são tão importantes como o ~onteúdo do próprio testemunho. 
Tão determinantes como estas são a identidade dos coletores e as circunstâncias 
precisas da coleta. Se deixarmos de lado as diferentes narrativas acumuladas 
pelos estrangeiros de passagem, as transcrições e interpretações mais antigas 
de tradições orais remontam aos prindpio~ do século XVI e foram obra de 
letrados muçulmanos. Ver-se-á que os paradigmas extra! dos do Islã af ocupam 
um lugar central. Nas regiões costeiras. os letrados ligados ao mundo cristão 
não ficaram atrás. Aparecidos na segunda metade do século XVIfl, sob uma 
forma às vezes romanceada para agradar ao público europeu e norte-americano, 
estes textos históricos multiplicaram-se nos séculos XIX e XX. Em resposta 
ao racismo dos europeus, alguns situavam-se abertamente na perspectiva da 
"defesa" e da "reabilitação" da "raça negra". Outros apresentavam-se como 
mais preocupados com a exatidão cientlfica. Não são por isso menos carregados 
de estereótipos, de preconceitos e de manobras legitimadoras, como se pode 
ver nos mitos de origem dos I o rubi consignados na monumental Hístory of the 
Yoruba organizada pelo Reverendo Samuel Johnson nos finais do século XlX. 
A 
Categorias 
I. Fórmulas 
Documento 6: Uma tipologia das tradições orais 
B 
Subcategorias 
. 48 . 
c 
Tipos 
Titulas 
Divisas 
Didáticas 
Religiosas 
11. Poesia 
111. Listas 
IV. Narrativas 
V. Comentários 
Fonte: J. Van>lna, 1961, p. 120. 
Oficial 
Privada 
Históricas 
Didátlcas 
Est6ticas 
Pessoais 
Jurfdlcos 
Auxiliares 
Esporádicos 
2. Os mitos "científicos" 
Histórica 
Paneglrica 
Religiosa 
Individual 
Nomes de lugares 
Nomes de pessoas 
Universais 
Locais 
Familiares 
Mitos etiológ icos 
Est~ticas 
Recordações peuoais 
Precedentes 
Explicativos 
Nota ocasional 
O trabalho dos homens de ciência produziu também de maneira 
mais insidiosa, ao lado das reconstruções históricas mais refletidas e mais 
duradouras, estereótipos tanto mais persistentes pois apareciam aparelhados 
com todos os emblemas da legitimidade "ciendfica" ou acadêmica, ao mesmo 
tempo em que confortav:~m "" f:~l11as evidências do senso comum. Será um dia 
necessár io, no próprio in teresse do desenvolvimento do trabalho histórico na 
África mais do que pela busca de uma polêmica, empenhar-se em dilucidar a 
arqueologia mais antiga destas teorias e mitos "cienúficos", a sua genealogia, 
a sua filiação até os nossos dias. Basta aqui lembrar alguns deles cujos efeitos 
contam talvez entre os mais desastrosos. 
O fato de que os primeiros que escreveram a história da África tenham 
sido estrangeiros- árabes e europeus- não deixa de ter conseqtiêncías sobre as 
orientações ulteriores da historiografia africana e sobre a excepdonal vitalidade 
de algumas lendas, mais negras do que douradas. Curiosidade e ingenuidade, 
simpatia e repulsa, buscada verdade e defesa de interesses, vontade de deforma-
ção sistemática e dúvida metódíca, as atitudes mais contraditórias misturam-se 
em proporções variáveis conforme as épocas e conforme os indivfduos para 
desenhar configurações epistemológicas às quais os historiadores de hoje ainda 
não conseguiram escapar. O contexto particular que presidiu à formação destas 
historiografias estrangeiras foi sempre, além disso, caracterizado por relações 
desigualitãrias entre os africanos e aqueles que produziram esta história, 
comerciantes ou missionários , negreiros ou colonizadores. O maravilhoso, 
componente quase obrigatório de qualquer encontro com o Outro, sempre se 
misturou, no contexto africano, com o nada mais absoluto, quer se trate das 
trevas do paganismo, que seria necessário dissipar de qualquer maneira, ou 
- 49. 
de homens cuja humanidade, custasse o que custasse, deveria ser negada para 
os transformar em mercadorias. Para acrescentar à complexidade, africanos 
roçados pelas culturas dos outros ou formados nas suas escolas e nas suas 
historiografias recuperaram e, às vezes, alargaram as hipóteses e as conclusões. 
conferindo-lhes assim o carimbo suplementar da autenticidade. Este chega até 
a apresentar-se como indiscu tível em certos casos, quando, devido a um efeito 
de reuoação de que se começam apenas a identificar os sinais, as "tradições» 
orais mais "autênticas" integram no seu corpus as teses e as conclusões menos 
provadas das historiografias estrangeiras. 
Os usos historiográ.ficos do conceito de "raça" são muito significativos 
desta complexidade. Este conceito operou constantemente em dois registros 
diferentes: 
- o das relações da África com as outras partes do mundo, sendo a 
"raça africana" apresentada como tipo ideal oposta a outras "raças", e 
particularmente à "raça branca"; 
- o da evolução própria da África, onde o tipo Ideal da "raça africana" 
se realiza numa multidão de "raças" concretas, suscetíveis de seremcomparadas umas às outras e hierarquizadas. 
No que se refere ao primeiro registro, basta observar que o conceito de 
"raça" só pode ser desfavorável à África e aos africanos, na medida ern que foi 
forjado e ilustrado em pleno perlodo negreiro por homens que falavam em 
nome seja da "ciência" (a "antropologia") seja de considerações puramente 
ideológicas (pense-se por exemplo no Ensaio sobre a desigualdade das raças ltumar~as 
de Archur de Gobineau). Mas, mesmo entre os homens de ciência, o conceito 
de "raça" é utilizado com a aparente espontaneidade do senso comum, como 
fez por exemplo Eugene Pittard, professor de antropologia na Universidade 
de Gênova e diretor do Museu de Etnografia desta cidade numa obra clá.ssica, 
a Ir~troduction ethnologique à l'histoire (documento 7). 
Documento 7: A não-historicidade das raças africanas 
As raças africanas propriamente ditas, postas de lado as do Egito e de uma parte 
da África menor, não partk.iparam de maneira nenhuma na história tal como a 
compreendem os historiadores.~ certo, como vimos, que asclvilizaçOes pré-históricas 
foram floresc;entes' no solo da África. E os africanos de entao podem vir colocar-se, 
sem surpresa, ao lado dos europeus (não dizemos da mesma época) que conheceram 
as mesmas civílizaçOes. Se, como podemos acreditar, um continente africano velo 
povoar a Europa no per lodo paleolitico, na o parece que voltemos a encontrar os seus 
descendentes num momento qualquer da história escrita. Não me recuso a aceitar 
que tenhamos algumas gotas de sangue negro-de africano de pele verossimilmente 
amarela-mas devemos confessar que aquilo que de tal pode subsistir é .multo dlfldl de 
encontrar. Por conseguinte só duas raças humanas habitando a África desempenharam 
um papel eficiente na Histó.ria universal: em primeiro lugar e de maneira considerável, 
os eglpcios; depois os povos do norte da África. 
fonte: E. Pittard, Ler roces et /'histoire. lnttoduction ethnologiquo ô l 'hlrtoiro, Paris, Albln Michol, tal. 
L' évolutlon de l'humanité, 1953 {19241. p. 505. 
- 50 -
Respeitando o modo "cient!fico", o conceito "raça" deu origem à famosa 
teoria "hamftica" da qual a África atual continua, desafortunadamente, a 
suportar as conseqüências polfticas . "hamita" ou "camita" foi a princípio um 
termo sem nenhum conteúdo ciemffico, derivacl'o das diferentes transcrições 
da palavra Cam do Gênesis, sendo este o fundador de uma linhagem maldita, 
erradamente identificada com os negros da África tropical. Durante o século 
XIX, devido a uma derivação cujas modalidades e etapas continuam a ser 
obscuras, a palavra "hamita" ou "camit.a" chegou a designar não mais os 
negros da África (sempre considerados apesar disso uma "raçan maldita), 
mas os africanos "niio negros", uma espécie de "raça de contacto" Oean-Pierre 
Chrétien), na qual participavam tanto brancos como negros, só possuindo 
naturalmente as qualidades dos brancos e os defeitos dos negros. Este caldo 
onde se lançaram indiscriminadamente os peul [fula, fulani], os maasai, os 
somalis, os tutsis, ... era investido com tudo o que a história africana poderia 
ter de "positivo" e de "grande" aos o lhos dos europeus que aderiam a esta 
teoria, seguindo o exemplo do antropólogo C. G. Seligman, um dos mestres 
do africanismo br itânico na primeira metade do século XX. Estas obras, cujo 
êxito nunca foi desmentido, peram forma ao espirito de várias gerações de 
adminisuadores e de pesquisadores, até após a independência. 
Documento 8: A teoria hamftica 
A part~ uma influência s~mftlca relatlv~monte rec~nte - seja fenícia (cartaginesaj 
e estritamente limitada, seja árabe [muçulmana) e largamente difundida -. as 
civilizações africanas são civilizações camitlcas e a história deste continente é a 
história destes povos e da sua interaçao sobre os tipos africanos mais primltívos, os 
negros e os bosqulmanos, quer esta influência tenha sido exercida pelos grandes 
civilizados que foram os eglpcios, quer pelos pastores selvagens tais como são hoje 
representados pelos bedja e os somalls ( .. . ) Os camitas- que são caucasianos, quer 
dizer, pertencem à mesma raiz da espécie humana que a maior parte dos europeus 
- estão habitualmente divididos em dois grandes ramos, os camitas orientais e os 
camitas setentrionais. ( ... j Entre os camitas orientais. os caracteres cranianos. mesmo 
se variáveis, oferecem geralmente uma certa anal09ia, e devem ser considerados 
como antigas variações da mesma raiz origina l. O que também é verdade para a 
face, em grande parte, porque, excetuando a mestiçagem negra, nunca ê prognata; 
o nariz ê reto (ou aquilino quando se verificou introdução de sangue armenóide), 
os lábios silo freqüentemente espessos, sem nunca ser revirados como se verifica 
no negro, sendo o cabelo muitas vezes crespo, mas às vezes ondulado ou quase liso, 
a barba sendo geralmente reduzid~; a cor da pele varia, podendo ser amarelada, 
acobreada, castanha avermelhada, apresentando todos os matizes entre café com 
leite e preto, conforme o grau de mistura dos sangues. 
Fontes: C.G. Sellgman, les races de I'Airlqve, Paris, Poyot. 1935119301. pp. 86·67. 
Sabe-se que no quadro de outro registro- o das relações com os povos 
africanos- este conceito de "raça" é um dos principais ingredientes do conceito 
de "etnia", variante tanto do conceito de "raça" como do de "nação". Este 
conceito de "etnia" operou inicialmente na sua expressão mais dura: a que se 
-51 -
\ 
I 
I 
apóia quase exclusivamente nos critérios mais duvidosos da antropologia física 
(altura, fndice cefálico, fisionomia, cor da pele ... ), que se pensava determinarem 
os caracteres culturais, as formas de organização social e política, as culturas 
materiais, assim como, é claro. a adaptabilidade às civilizações consideradas 
"superiores". Em virtude da sua "instrumentalização" poHtico-ideológíca pelas 
administrações coloniais e pelas elites e poderes africanos, o conceito de etnia 
é um daqueles que opõem a resistência mais surda aos assaltos das ciências 
sociais, embora estas se empenhem em mostrar não só que "as etnias possuem 
uma história" a.-P. Chrétien e G. Prunier), mas que elas são um dos produtos 
movediços da história ou ainda que aquilo que o historiador encontra na sua 
investigação são processos! relações e estratégias infinitamente mais complexas 
do que as realidades contemporâneas comodamente designadas pelo conceito 
ambíguo de "etnia". 
Para lá das duradouras "tradições" paradigmáticas e "escolas" 
historiográficas, existem também, é claro, as modas intelectuais cujos efeitos 
são muito persistentes e mais profundos do que geralmente se acredita. Os 
estudos afTicanos conheceram- no decurso do século XX, mesmo durante o 
seu último quarto - um número considerável delas cuja simples lista, de resto 
muito dispensável, seria infinitamente longa. Carregada, às vezes, de pretensões 
teórico-ideológicas (pensamos. por exemplo, na voga "neo-marxista" dos 
·"modos de produção" que seduziu tantos investigadores nos anos de 1960 
e 1970). estas modas intelectuais deixaram. além dos estudos de caso e de 
monografias às vezes notáveis, interrogações e esquemas interpretativos que, na 
maior parte dos casos, mais embaraçam os historiadores do que os ajudam no 
exercício da sua profissão. "Feudalismo", "tradição" e "modernidade". "classes 
de idade", "linhagens" e ''Estados", "sociedades com Estado" e "sociedades 
sem Estado". "socíedades sem mercado" e ''sociedades. com mercado", 
"migrações" ... : os conceitos são tão numerosos que, válidos à escala local, 
perdem qualquer eficácia a partir do momento em que se pretende, como 
fazem muitas sínteses prematuras e apressadas, atribuir-lhes uma força de 
explicação universal. De todas estas noções, o "difusionismo" é talvez aquela 
que tem a vida mais longa. Companheira intelectual da ideologia abolicionista 
e "civilizadora", e da ideologiacolonial depois, o "difusionismo" apóia-se na 
tese radical de que a "civilização" foi introduzida na África a partir do exterior, 
consistindo o gênio dos afTicanos, para aqueles que lhes reconhecem algum, 
em somente adaptar estas contribuições exteriores ao seu meio ambiente e às 
suas particularidades. Este "exterior" é, como não podia deixar de ser, a Europa, 
assim como todas as áreas culturais e todos os Estados que desenvolveram. 
de acordo com estes autores, "civilizações superiores" (Ásia menor, Arábia, 
Ásia oriental). Notavelmente ilustrada pelas audácias provocadoras de 
Leo Frobenius, um dos primeiros historiadores-antropólogos a pretender 
"reabilitar" as civilizações africanas, a tese difusionista invadiu todas as áreas 
-52-
~· l. ... ;-='· 
culturais do continente e, depois de ter querido tudo gerir (origem e formação 
dos Estados, história da arte, evolução das religiões ... ), contínua ainda agarrada 
a certos domínios da história africana, em particular à história das técnicas e 
das civilizações materiais. 
B. O imbróglio do Egito faraônico 
Há já cerca de duzentos anos que a questão das relações entre o Egito 
faraônico e a África Negra se tornou um dos problemas mais tratados na 
historiografia africana e um dos pontos de fixação privilegiados pela memória 
negro-africana. Mas contrariamente às idéias difundidas na opinião corrente, 
este debate é muito mais complicado do que pode parecer a princípio. Porque 
não se trata apenas de saber se estes egípcios eram negros, questão que se 
podia de resto decompor infinitamente:. quais egípcios (em função d~ critérios 
sociopolíticos ou de localizações geográficas) e em que épocas? E também 
necessário determinar se a civilização (ou as clvilízações sucessivas?) do 
Egito faraônico era "negro-africana", interrogar-se a respeito da pertinência 
da aplicação da identidade "negro-africana" a uma determinada civilização 
e extrair, se tal for necessário, todas as conseqüências epistemológicas e 
historiográficas de caráter "negro-africano" do Egito faraônico. Aqui, bastará 
reunir e impor alguma ordem às peças esparsas de um "dossiê" que continua 
a ser polêmico e que requer mais do que nunca - uma vez que a necessária 
polêmica já se realizou - um uabalho paciente de reconstituição histórica. 
1. O veredito incerto das fontes 
Esta querela apóia-se principalmente sobre duas séries de fontes cujo 
tratamento, à medida que os especialistas as consid~ram de perto, se revela 
mais delicado e com contribuições menos certas do que se pensara durante 
muito tempo. 
A literatura grega 
Há em primeiro lugar os textos dos viajantes e historiadores gregos. Mais 
particularmente os de Heródoto e de Díodoro da Sicília. Ao ler estas narrativas, 
deve ter-se bem presente que se trata de textos cujo conteúdo é constantemente 
ambivalente, misturando o verdadeiro com o mítico, o maravilhoso com. o banal. 
a objetividade e a imparcialidade com os preconceitos mais grosseiros. 
As Histórias de Heródoto, o texto mais conhecido e mais discutido, 
confirmam de fato estas apreciações que são válidas mutatis mutandis para as 
demais fontes. No ativo de Heródoto, é necessário lembrar que- entre outros 
jufzes - um dos melhores tradutores franceses (que, todavia, em questões 
delicadas referentes à cor, não escapa à crítica), Ph. E. Legrand, vê nele um 
-53 -
I 
I 
I 
l 
•• l. 
"espírito curioso", "um bom observador", "um inquiridor consciencioso e 
desconfiado": 
Nos fragmentos narrativos, tal como nas Informações etnográficas, as 
fórmulas do tipo "pelo que dizem, pelo que dizem os Corlmlos, os Lésbicos, 
etc." constituem em minha opinião aucêmicas referendas, que devem ser 
levadas a sério. A diferença, tantas vezes assinalada, entre o que é contado 
a partir de um determinado informador e o que é contado seguindo a lição 
de ou tro, ou mais geralmente entre o que reproduz uma narrativa ouvida e 
o que exprime uma conjectura pessoal, não é menos sincero do que aquela 
respeicante a coisas vistas e a coisas conhecidas por ouvir dizer. (Ph. E. 
Legrand, Hirodott. lntroduclion. Noliú priliminoirt sur lo vit ti lo pmonnaliti 
d'Hirodott. Paris, Les BeUes Lettres. 1932, p. 66) 
Se ele se d:i conta de "lacunas e de negligências na informação visual de 
Her6doto", estas não se poderiam aplicar, como é evidente, a fenômenos tão 
visíveis e tão maciços como a cor das pessoas. Mas os escritos consagrados ao 
Egito não se limi tam apenas às coisas vistas. Eles referem-se também a coisas · 
ol!vidas e reproduzem tradições orais nas quais a parte do mito, da lenda ou 
mais simplesmente da ficção pode revelar-se substancial: 
A mais antiga das narrativas de historiador ou do historiando, na s ua tentativa 
para reconstituir a história inteira do Egito, obteve um resultado duplo e 
paradoxal. O Uvro U das Histórias (no qual se acham reunidas a maior parte 
das infonnaç6c-s60breo Egito) traz até nós os malsa.ntigot nomes da hist6ria 
humana, de restoverific:\veis em outras variantes.[ ... ] Mas ao mesmo tempo 
o Uvro 11 desta primeira História é a primeira recolha de contos populares. Ao 
primeiro historiando, "desejando saberp em primeira mão e informando-se 
no lugar [ ... ], a narração oral respondeu ironicamente recorrendo a ficções. 
[ ... ]Que o historíando inicial, aventurado na narração, tenha nela encontrado 
a flcç~o. n~o é um acidente fortuito; mesmo Isso pertence ao processo 
fundamental. As "fontes" de Heródoto são fictk ias, malgrado a sua vontade 
historiadora de procurar " informar-se", porque a ficção pertence ao processo 
da narraçilo primitiva em vias de se fazer. O.P. Faye, Th~orie du rkit, Inrroduction 
ator "Langages toto.liraim", Paris, Hermann, 1972, pp. 111-12) 
Enfim, a narrativa de Heródoto e de todos os demais nunca são fornecidas 
em estado bruto. São o resultado de uma construção na qual se insinua sempre, 
em doses às vezes difíceis de pôr em evidência, um certo número de preconceitos 
ou até de "mentiras". Foi possível, a propósito do Egito, censurar ao "pai da 
história" tanto suas "generalizações abusivas" corno as "particularizações 
abusivas" dando a este pafs todos os aspectos de uma "utopia real" (Ch. 
Froidefond) . Mais precisamente, numa reflexão historiográfica consagtada à 
maneira como Heródoto se. representou e representou o Outro, em particular 
os citas, estrangeiros absolutos do ponto de vista dos gregos porque nômades, 
ignorando o trabalho dos campos, privados de casas e de cidades, François 
- 54 -
Hartog mostrou bem que "os eg!pdos e os citas [ ... ] formam uma espécie de 
casal" e constituem duas variações extremas sobre o tema único do Outro: 
De acordo com uma tradição, Pitágoras, assim como Sólon, mas também 
Thales, fiteram a viagem ao Egito, uma vez na sua vida, para se instruir 
junto dos eglpcios, os homens mais antigos do mundo. ou em todo ocaso os 
mais antigos depois dos frígios: a s ua antiguidade assegura-lhes assim um 
acréscimo de saber e m relaç.~o às populações mais novas: Pitágoras é aluno 
dos sacerdotes egfpclos. Mas a partir do momento em que se trata dos getos, 
a situação Inverte-se e Pitágoras aparece como o mestre, em todos os sentidos 
do termo ... Indo do sul para norte, produt-se assim uma degradaçlo do saber; 
degradaçlo que se explica em parte peJa idade dàs populações: se os egípcios 
são os mais "velhos", os citas são quanto a ~es os mais novos entre os homens, 
têm apenas mil anos. (F. Hartog. Lt miroir d'Hfrodott. E=i sur la reprlsmtation 
dt l'autrt, Paris, Galilmard, Bibliotheque des hlstolres, 1980, p. 103) 
Entre as muito numerosas anotações relativas ao Egito nas Hist6rias, 
serão retidas apenas algumas onde são tratadas as caractedsticas flsicas dos 
egípcios, precisando contudo, como salienta muito justamente Chrisdan 
Froidefond, que "o espírito da sua antropologia (assenta] em conceder menos 
importância ao ITsico, aparentementeligado ao clima, do que aos usos e 
costumes" e que, mais geralmente, "os etnógrafos ionianos Uônicos] [ ... ] 
distinguem os grupos humanos mais pela 'cultura' e por Lodas as características 
físicas ou morais que fazem nascer no homem o seu meio do que pela raça e 
pela hereditariedade". 
Manifestamente, ( ... ]os colquidianos são de origem eglpcia. O que digo era a 
minha opinl§o pessoal antes de a ter ouvido ser exprimida por outros: quando 
me interessei seriamente por esta quest~o. in terroguei homens dos dois 
povos: e achei que os colquidianos possulam mais lembrança dos egípcios do 
que os egfpclos dos colquidianos; mas os egípcios disseram-me que em sua 
opini~o os colquidianos descendiam dos soldados de Sesóstrls. Eu próprio o 
tinha conjcwrado,levando em conta estes indfdos: primeiro porque tinham 
a pele negra e os cabelos crespos (o que para dizer a verdade não prova 
nada pois há ainda outros povos nesta situação); em seguida, e com mais 
autoridade, pela razão de que. entre todos os homens. só os colquldianos, os 
egfpcios e os etlopes praticam a circuncido desde a sua origem. Os {enleios 
e os si rios da Pa.lestina reconhecem eles próprios ter aprendido esta maneira 
de fazer com os egfpcios; os si rios que moram na regl§o do rio Termodon 
e do Pa.rtinios e os macrões, que são seus vitinhos, ditem ter apend ido 
recentemente dos coiquidíanos. Esses são os únicos homens que praticam 
a circuncis~o. e podemos constata.r que o fazem da mesma maneira que os 
egfpcio.~. (Heródoto, Histórias, It, 104) 
Em Diodoro de Sidlia (ca. 90-30 a.C.), cuja viagem ao Egito se realizou 
nos anos 60-56 a.C., são a história e a antropologia social e cultural, mais 
-55-
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I 
I. 
' 
do que fisica, que determinam a ligação da civilização egfpcia com o mundo 
negro-africano: 
Os etlopes afirmam que os egipcios são colonos oriundos do seu grupo e que 
esta colônia foi orientada por Osírls. Por isso, de qualquer maneira, dizem 
eles, o Egito atual era um mar e não uma terra quando da coostituiçlio oríglnal 
do universo, mas, mais tarde, o Nilo, carregando durante as suu cheias o 
enxurro proveniente da Etiópia, acumulou progressivamente aluviões. E a 
origem aluvionar da totalidade do seu pais seria claramente demonstrada por 
aquilo que se verifica na embocadura do Nilo; como. todos os anos, com efeito, 
novo enxurro se concentra regularmente nas bocas do rio, vêm-se aluviões 
empurrar o mar e a terra aumentar a sua superllcie. No que se refere aos 
costumes dos egipcios, pretendem eles que são na maior parte etropes, tendo 
os colonos conservado as antigas maneiras de fazer. Por exemplo, a crença de 
que os reis são deuses, o extremo cuidado consagrado aos ritos funerários e 
muitas outras práticas deste gênero são, ao que eles dizem, usos edopes, tal 
como as formas das estátuas e os tipos de escrita são etfopes; os egipclos, 
com efeito, possuem maneiras particulares de escrita: um, designado vulgar, ~ 
aprendido por toda a gente, e o outro, nomeado sagrado, é, entre os eglpclos. 
conhecido apenas pelos sacerdotes, que o aprenderam dos seus pais, como 
uma coisa a respeito da qual se não deve falar; ora entre os etiopes, toda a 
gente, sem exceção, utiliza estes signos. Mais ainda, os colégios dos sacerdotes 
possuem. com pouca diferença, a mesma organização entre os dois povos: 
sfto feitas purificações por todos quantos estão encarregados dos cultos dos 
deuses, estão barbeados da mesma maneira, e usam o mesmo vestu:l.rlo e o 
tipo de cetro em forma de charrua, que possuem também os rels, que trazem 
altos bonés de feltro, sendo o alto acabado em bossa e cercados pelas voltas da 
serpente que eles chamam ásplde; esta decoração parece indicar que aqueles 
que ousarão atacar o rei virão a sucumbir sob as mordeduras mortais. Os 
edopes dizem ainda muitas outras coisas sobre a sua própria antiguidade e 
sobre a sua colônia eglpcia, mas a sua menção não se impõe .. (Diodoro de 
Sidlia, Bibli<>thiq"" historiqu•. üvre lU, 2-7, tradu~o Bibiane Bommelaer, 
Paris, Les &:lles Lettres, 1989) 
Estas duas séries de textos são apenas exemplos numa lista notavelmente 
extensa, e m que os autores se influenciam uns aos outros e, às vezes, se copiam 
a algumas décadas ou séculos de distância, construindo desta maneira uma 
autêntica "miragem", uma "idealização" (Ch. Froidefond) fieqüentemente 
contraditória, que vai dominar a literatura da Grécia antiga. Um bom marcador 
são aqui as peças trágicas de Ésquilo (ca. 525-456 a .C.) que está para a tragédia 
como Heródoto para a história. A sua peça Os. Suplicantes foi a primeira 
representação dos egípcios e uma das primeiras representações de estrangeiros 
num palco grego. Pode-se perguntar em que medida os pormenores concretos 
atribuídos por Ésquilo aos egípcios traduzem realmente o conhecimento 
dos egfpcios ou exprimem, pelo contrário, a idéia que os gregos faziam dos 
"bárbaros", quer dizer dos estrangeiros em geral. Deve, na verdade, reter-se 
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. .. /~ 
-
a primeira hipótese: com efeito, Os Suplicantes fazem várias vezes referência 
aos seus rostos "queimados e enegrecidos pelo sol do Nilo" e, em vários 
momentos, é a referência a esta cor negra que designa as Danaides. Esta 
referência insistente à cor da pele - uma maneira côm oda de identificação e de 
especificação entre outras - pode levar contudo cenos autores a interpretações 
anacrônicas nas quais se atribuem a escritores, separados de nós por vinte 
séculos, os preconceitos ligados à cor da pele e caracteristicos do racismo da 
época moderna e contemporânea: 
o que os assinala (aos egfpcios) em primeiro lugar, e por diferentes vezes, é a 
cor da pele. [ ... ] N~o ~de duvidar que a cor da pele tenha constituldo por si só, 
para Ésquilo e os seus contemporlneos, um critério determinante. Por outro 
lado, ninguém pensaria em estabelecer uma diferença entre pigmentação da 
pele e uma simples dsnade.la. Para Danaos, os egfpclos são simplesmente 
negros como a noite. Pode por isso avançar-se que, na Imaginação dos gregos 
do século V. dos quais Ésquilo é, no que se refere a este ponto, o Intérprete, 
os eglpcios n~o estavan1longe de ocupar o lugar que ocupam nos nossos dias 
os negros na lmaginaç§o popular. (Ch. l'roidefond. 1970, p. 88) 
A iconografia egípcia 
Outra fonte, que entrou tardiamente no território do historiador, é 
formada pelas numerosas iconografias que cada um, seguindo o seu ponto 
de vista, interpretava à sua maneira, assim como as múltiplas estátuas cujo 
estado de degradação se presta a todas as especulações possiveis. Foi Jean 
François Champollion que, tendo s ido um dos primeiros a iniciar esta corrente, 
deixou nos prindpios do s~culo XlX uma das descrições mais conhecidas dos 
habitantes do Egito antigo (documen to 9). 
2. A racialização da questão egípcia 
No momento em quejean-François Champollion escrevia, o conceito de 
"raça" e todos os preconceitos racistas que lhe estão habitualmente assoàados 
tinham começado a invadir os estudos eglpdos. A histó ria desta derivação epis-
temológíca e ideológica ultrapassa largamente o quadro da história africana para 
ser evocada aqui em pormenor. Os estudos de Manin Berna(, que suscitaram 
tanto interesse como polêmicas, mostram apesar de tudo que, paralelamente 
à história intelectual própria do Ocidente , a evolução do continente africano 
entre os séculos XV e XIX não foi estranha ao "embranquecimento" que o 
Egito iria sofrer de maneira cada vez mais insidiosa: 
Outra maneira de considerar eRtas mudanças (nos estudos egípcios) consiste 
em levar em linha de conta o fato de que, depois do desenvolvimento da escra-
vatura dos negros e do racismo, os Jlensndores europeus estavam preocupados 
em manter os negros da África tllo longe quanto posslvel da civilização euro-
-57-
~ia. Enquanto os homens e as mulheres da Idade Mtdia e do Rena$cimento 
não tinham certeza$ acerca da cordos eglpcios, os ( ... ] eglptófilos tiveram 
tendência a v~-los como branCO$. Depois, os helenomanfacos do principio 
do século XIX começaram a duvidar da brancura dos egfpcios e a negar que 
eles tivessem sido civilizados. Foi no final do século XIX, quando o Egito foi 
despojado da sua reputação filosófica, que as suas afinidades com a África 
puderam ser restabelccidas. (M. Berna!, 1987, p. 30) 
De fato, duas correntes historiográficas tinham dominado o 
conhecimento do Egito antigo que, em conjunto, tinham cortado o Egito do 
continente africano para o integrar na Ásia ocidental e no mundo mediterrânico 
e que tinham, além disso, se apropriado deste perlodo, considerado glorioso, 
da história da humanidade: 
-a historiografia européia, ao estabelecer os supostos laços de continui-
dade entre o Egito an~igo, a ·~ntiguidade cloissica" e a Europa, forne-
cendo o primeiro, de ce.rta maneira, a "prê-história" da "civilização" e 
dos "grandes séculos" que iam expandir-se nos dois outros; 
- a historiografia árabo-muçulmana, ainda mal conhecida, hesitando 
entre ignorar no essencial um perlodo e populações dominadas pelas 
trevas do paganismo e recuperar uma idade acerca da qual monumentos 
prestigiosos testemunhavam a grandeza. 
Entre os europeus, uma das primeiras tentativas notáveis visando ligar 
o Egito antigo ao resto do continente africano, foi a de Charles de Brosses, 
·presidente do parlamento da Borgonha. membro da Academia das Insc:riçóf'"< 
e Belas Letras e um dos fundadores da antropologia na França. Este, em 1760, 
publicou um livro cujo títuJo resumia por si só a sua tese: Du cu/te des dieux 
fécicltes ou /)ctralWe de la religion de /'Egypte avec la religion de la Nigritie [Do culto 
dos deuses feitiços ou comparação entre a religião do Egito e a religião da 
Negrlcia], quer dizer a África Negra. Comparando os textos gregos e latinos 
com as narrativas dos viajantes da época moderna, o livro foi apresentado em 
1757 à ilustre Academia onde foi alvo de críticas muito violentas obrigando o 
seu audacioso autor a recuperar o manuscrito e a publicá-lo por sua própria 
conta em Amsterdã. 
Documento 9: Os povos do Egito faraônico 
No vale propriamente dito de Biban ei-Muluk (Tebas oeste), admiramos. como todos 
os viajantes que nos precederam, a surpreendente frescura das pinturas e a finura 
das esculturas de vários túmulos. Mandei desenhar a série dos povos figurando em 
baixo-relevo. Tinha acreditado a princfpio, reagindo às cópias destes baixos-relevos 
publicados na Inglaterra, que estes povos, de raças multo diferentes, conduzidos 
pelo deus Hórus, portando a vara pastoral, eram realmente nações submetidas 
ao cetro dos faraós; o estudo das legendas levou-me a conhecer que este quadro 
possui uma slgniflcaçllo multo geral. Pertence à 3' hora do dia, aquela em que o 
sol começa a fazer sentir o total ardor dos seus ralos e aquece todas as regiões 
habitadas do nosso hemisfério. Quis-se representar seguindo a própria legenda, os 
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habitantes do Egito e os das regiões estrangeiras. Temos pois aqui debaixo dos olhos 
a imagem das diferentes raças de homens conhecidas pelos egfpdos e aprendemos 
ao mesmo tempo as grandes divisões geográficas ou etnográficas estabelecidas 
nesta época recuada. Os homens guiados pelo pastor dos povos, Hórus, pertencem 
a quatro famlllas multo distintas. A primeira, a mais próxima do deus, é de cor 
vermelho escura, de estatura muito bem proporcionada: fisionomia suave, nariz 
ligeiramente aquilino, longa cabeleira entrançada, vestido de branco; as legendas 
designam esta espécie pelo nome de Rôt-enéne-Rôme, a raça dos homens, os 
homens por excelência, quer dizer os egfpclos. Não pode haver a mfnima Incerteza 
no que se refere à raça daquele que vem a seguir: pertence à raça dos negros, que 
são designados pelo nome geral de Nahasi. O seguinte apresenta um aspecto muito 
diferente: pele cor da carne, puxando para o amarelo, ou epiderme amorenada: 
nariz fortemente aquilino, barba preta abundante e terminada em ponta, vestuário 
curto de cores variadas; estes carregam o nome de Namu. Enfim, o último tem a 
cor da pele que nós designaremos como cor da carne, ou pele branca do matiz 
mais delicado, o nariz reto ou ligeiramente arqueado, os olhos azuis, barba loura 
ou ruiva, estatura elevada e muito esguia, vestido com pele de boi conservando 
ainda o pêlo, autêntico selvagem tatuado em diversas partes do cocpo: dá-se-lhe 
o nome de Tamhu. 
Del-me pressa em procurar o quadrq correspondente a este nos outros túmulos 
reais, e tendo-o com efeito encontrado em vários, as variações que ar observei 
convenceram-me plenamente de que tinham querido representar aqui os habitantes 
das quatro partes do mundo, de acordo com o antigo sistema egfpcio, a saber: 1•-os 
habitantes do Egito, por si só, fórmavam uma parte do mundo, conforme o muito 
modesto uso das velhas populaçlles; 2"- os habitantes caracterfsticos da África, os 
negros; 3•- os asiáticos; 4"- enfim (e tenho vergonha de o dizer, já que a nossa raça 
é a última e a mais selvagem da série) os europeus que, nestas épocas recuadas, 
sejamos justos, nllo faziam uma figura muito bonita neste mundo. ~ necessário incluir 
aqui todos os povos de raça loura e de pele branca habitando nao só a Europa, mas 
também a Ásia, seu ponto de partida. 
Fonte: J.J. Champotllon·flgea<, Egypte anclenne, Paris, Oldot, 1830, pp. 30·3 1. 
Se, até o fim do século XVIII, a racialização dos estudos egípcios foi 
insidiosa mantendo-se limitada ao círculo reduzido dos especialistas e dos 
conhecedores, deve-se à vontade de denunciar esta tendência, encarnada por 
Constantin-François de Volney, ter trazido o debate para a praça pública. Inscrito 
numa conjuntura ideológica e intelectual particular, o corte representado por 
Volney é significativo de vários pontos de vista, porque põe em evidência os 
deslizes e as cegueiras anteriores, desmontando-lhes os mecanismos e dando 
disso conta, numa visão global da história do mundo tal como era conhecida 
nesta época, ao mesmo tempo que se esforça por fixar as linhas de força de 
outras histórias. O historiador Volney, cuja obra está ainda para ser descoberta, 
não era- para recorrer aos termos de hoje- um "especialista", nem sequer um 
conhecedor das coisas da África. Mas aliava ele, com uma eficácia e um prazer 
raras vezes igualados, uma cultura dássica perfeita, um raro domlnio das fontes 
hebraicas, gregas e latinas, uma erudição jubilante, a paixão da descoberta 
apoiada num sentido agudo da observação, a alegria de ensinar e de partilhar 
o seu saber. Era também um homem do século das luzes, amante da liberdade 
e visceralmente oposto a todas as formas de opresslio, em particular ao tráfico 
dos negros. É preciso acompanhar de perto esta exposição rigorosa, de uma 
perfei ta probidade, de uma força e de uma clareza implacáveis, porque todos 
- 59 -
os debates ulteriores dela salram. Armado com o seu conhecimento das fontes 
antigas, Volney esforça-se por comparar a geografia humana do Egito a partir 
destas fontes com aquela que se apoiaria na observação direta das populações 
do seu tempo. A sua maneira de fazer apoiava-se em primeiro lugar num 
postulado respeitante à diversidade humana inevitável de todos os Estados: 
No meio das revoluções que ~~lo cessaram de agitar a fortuna dos povos, há 
poucos pa!ses que tenham conservado puros e sem mistura os seus habitantes 
naturais e primitivos. Em todos os lugares a mesma cupidez, que leva os 
indiv!duos a invadir as suas propriedades respectivas, empurrou as nações 
umas contra as outras: o resultado deste choque de interesses e de forças foi 
a introdução nos Estados de um estrangeiro vencedor, o qual, ora usurpador 
insolente, despojou a nação vencida do domínio que a natureza lhe tinha 
concedido; ora conquistador mais tímido ou mais civilizado, se tinhacontentado 
em participar nas vantagens que o seu solo natal lhe tinha recusado. Desta 
maneira se foram instalando nos Estados raças diversas de habitantes, que 
algumas vezes, aproximando-se em costumes e interesses, mistura.ram o seu 
sangue; mas que, na maior parte dos casos, divididas por preconceitos poiJticos 
e religiosos, viverani concentradas no mesmo solo sem jamais se confundir. No 
primeiro caso, as raças, perdendo sob o efeito da sua mistura os caracteres que 
as distinguiam fonnaram um povo homogêneo onde deixaram de se perceber 
os traços da revolução. No segundo momento, mantendo-se distintos, as 
suas diferenças perpetuadas tomaram-se um monumento que sobreviveu aos 
séculos, e que pode, em alguns casos. substituir o silêncio da história. (C. F. 
de Volney, Voyage en Egypte et ., Syrie penclo.nt les 111111ées 1783, 1784 er 1785, 
ed. de 1825, pp. 59-60) 
Operando à maneira de Heródoto, pelo qual confessava a maior admiração 
como historiador, Volney comprometeu-se em descrever os grupos humanos 
que encontrou, em particular os coptas entre os quais tinha estanciado vários 
meses para aprender a língua árabe. Esta descrição apresentava a particulari-
dade de ser simultaneamente etnográfica e histórica, muito critica a respeito 
dos preconceitos e dos mitos que a ignorância ou o cálculo obscuro tinham 
deixado acumular. O Egito do seu tempo inclufa a seus olhos "quatro raças 
principais de habitantes": os coptas, os árabes, os turcos e "uma quarta e última 
raça [cujos] individues, todos nascidos junto do Cáucaso, se distinguein dos 
outros habitantes pela cor loura dos cabelos, estranha aos naturais do Egito". 
No primeiro grupo, os coptas, "mistura de egípcios, de persas e sobretudo de 
gregos que, sob os Ptolomeu e os Constantino, possufram o Egito durante tanto 
t(:mpo'', ele ia descobrir os sobreviventes dos mais antigos egípcios. Os seus 
argumentos eram em primeiro lugar de ordem lingülstica: 
Pretende-se que o nome de coptas lhes vem da cidade de Coptos, onde eles 
se refugiaram, ao que se diz durante a perseguição dos gregos; mas creio-lhes 
uma origem mais antiga. O termo árabe Qubti, um copta, pa.rece-me uma 
-60-
alteraç~o evidente do grego Ai-gupti-os, um egípcio: porque se dcvt observar 
que i era pronunciado u entre os antigos gregos, e que os árabes mo tendo g 
nemga diante [das vogais] a ou, nem letrap, substitu!am sempre estas letras 
por q e b: os coptas são propriamente eg!pcios. (ibid., pp. 64-65) 
Vêm depois os argumentos extra idos da observação direta e reforçada 
pela comparação com as fomes antigas: 
Há um fat.o singular que toma esta acepç~o [que os copras são os descendentes 
dos antigos eg!pcios] mals provável. Ao considerar o rosto de muitos indivlduos 
desta raça, achei um caráter particular que fixou a minha atenção. lbdos têm 
um tom de pele amarelado e fumoso. que não é nem grego nem ~rabe; todos 
têm o rosto bochechudo, o olho inchado, o nariz achatado, o lábio grosso; numa 
palavra, um autênóco rosto de mulato. Estava tentado a atribui-lo ao clima, 
quando, tendo ido visitar a Esfinge. o seu aspecto me deu a chave do enigma. 
Vendo esta cabeça caracterizada de negro em todos os seus traços, lembrei-me 
da notável passagem de Heródoto, em que este diz: "Para mim, considero que 
os coptas do uma colônia dos eglpclos, porque como eles, têm a pele negra e 
os cabelos crespos"; quer dizer, que os antigos egípcios eram autênticos negros 
da espécie de todos os naturais da África; e a partir disso explica·se como o 
seu sangue, aliado há vários séculos ao dos romanos e dos gregos, deve ter 
perdido a Intensidade da sua primeira cor, conservando contudo a marca do seu 
molde original. Pode-se ar~ dar a esta observação uma extensão muito geral, e 
anunciar o principio de que a fisionomia é uma espécie de monumento próprio 
em muitos casos para constatar ou esclarecer os testemunhos da história a 
respeito das ortgens dos povos. (ibíd., pp. 65-67) 
Não contente em desenvolver a sua própria reflexão, cuja formulação em 
1787lhe tinha "parecido mais nova e picante do que assentando na verdade", 
Volney encontrou uma confirmação das suas próprias conclusões seja em certos 
viajantes da época que se tinham empenhado em desenhar a Esfinge tal como a 
tinham visto, entre os quais o dinamarquês Friderik Ludwig Norden (Drawings 
o f some ruins and colossal statues ofThebes itt Egypt, 17 41; Voyage d'Egypte et de Nubie, 
1755) e Louis-François Cassas (Voyage pittoresque de la Syrie, ú la Phénicíe, de la 
Fblestine et de la Basse-Egypre, ano VII), seja nos sábios contemporâneos como 
o alemão Johann Friedrich Blumenbach, junto do qual encontrou "fatos em si 
próprios tão picantes como decisivos". lendo dissecado múmias egipcias, o 
famoso professor de Gõtingen tinha escrito que elas revelavam a existência de 
"três raças de homens": "a raça etíope, caracterizada pelos zigomas elevados, 
os lábios grossos, o nariz largo e achatado, as pupilas salientes" e largamente 
idêntica aos coptas;· uma "raça" apresentando as caracterlsticas flsicas dos 
indianos (da Índia) e uma terceir a resultando dos cruzamentos entre as duas 
precedentes. 
Enfim, dando começo à reflexão que iria alargar na sua Meditaçi!o sobre 
as revoluções dos impérios e a decadência das civilizações, Volney empenhou-se em 
- 61 -
1 c 
explicar os preconceitos dos seus contemporâneos sobre o povoamento do 
Egito faraônico pela nova relação de forças estabelecida entre os europeus e 
os africanos: 
O fato que ele (o Egito) oferece à história permite um grande número de 
reflexões à filosofia. Que tema de meditaçio, ver a barbMie e a ignor4nda 
atual dos coptu, resultantes da aliança do g!nio profundo dos egípcios e do 
espírito brilhante dos gregos; pensar que esta raça de homens negros, hoje 
nossos escravos e objeto do nosso desprezo, ~ essa mesma à qual devemos 
as nossas artes, as nossas ciências e até o uso da palavra; imaginar enfim 
que foi no selo dos povos que se dizem os maiores amigos da liberdade e da 
humanidade, que foi sancionada a mais bárbara das e.~cravaturas, e enunciado 
o problema de saber se os homens negros possuem uma intelígência da es~cíe 
dos brancos. (ibid., p. 68) 
O "momento Volneyn parece bem ter sido decisivo porque, desde 
então, duas correntes antagonistas, mas ambas racialistas, iam desenvolver-
se paralelamente, de preferência a enfrentar-se, nos estudos e nas reflexões 
relativas ao Egi1:o antigo. A primeira, silenciosa ou abertamente anti-Volney, 
defendia mais ou menos aproximadamente a idéia de que os antigos egípcios 
só podiam ter sido brancos, teoria exprimida com a maior determinação por 
jacques-joseph Champollion-Figeac, irmão e editor pouco escrupuloso do 
dedfrador dos hieróglifos, cujos textos ele modificou constantemente quando 
não lhe convinham: 
A idéia segundo a qual a an~iga população do Egito pertencia à raça negra 
africana é um erro q ue foi há muito tempo adotado como uma verdade. 
[ ... ] É, com efeito, hoje reconhecido que os habitantes da África pertencem 
a três raças, em todos os tempos d is ti ntas umas elas outras: 1° - os negros 
propriamente ditos, no cenuo e a <l<!Ste; 2° - os caftes na costa oriental, que 
possuem urn lngulo facial menos obtuso que o dos negros, o nariz elevado, 
mas os l~bios grossos e o cabelo crespo; 3° - os mouros, pareddos pela 
estatura, a fisionomia e os cabelos às nações melhor constituídas da Europa 
e da Ásia ocidentaJ, e dela diferindo apenas pela cor da pele que é tostada 
pelo clima. É a esta última raça que pertence a antiga população do Egito, 
q uerdizerà raça branca. Oacques-Joseph Cha.mpolllon-Figeac, Egypteandemrt, 
Paris, Didot, 1839, pp. 26-27) 
Face a esta corrente, muito largamente dominante nos árculos e redes 
acadêmicas da egiptologia, levantava-se outra que defendia com a mesma paixão 
a tese de um Egito antigo negro. Com efeito, quase imediatamenteapós terem 
sido emitidas por Volney, estas certezas. convicções, hipóteses e probabilidades, 
foram retomadas pelos homens da ciência e das le tras negros, primeiro nos 
Estados Unidos da América, depois na África. Mas este invesçimento produziu 
efeitos ambíguos. Por um lado, para combater o racismo ou o racialismo dos 
seus adversários, os intelectuais negros recuperaram por sua conta o conceito 
- 62 . 
de raça, contentando-se. se assim se pode dizer, em inverter a pirâmide, 
proclamando que os antigos egípcios tinham pertencido à raça negra. Por outro 
lado, tal fervilhamento efetuou-se na maior desordem, longe dos quadros 
constringentes e das regras profissionais do oficio de historiador. O trabalho 
próprio dos homens de ciência desenrolou-se desta maneira num terreno 
repleto de abundante e muito desigual produção ideológica que não contribuiu 
de maneiJ'a alguma para fazer avançar a reflexão. Neste sentido houve de fato, 
nos anos 1950, uma espécie de "revolução cheikhantiana" na medida em que 
Cheikh Anta Diop procurou solidificar esta velha convicção recorrendo à 
util ização de técnicas e de argtJmentos inscrevendo-se plenamente no campo 
científico. Mas. entre a sua maneira de fazer e a dos seus predecessores, a 
continuidade era mais importante do que as rupturas, nomeadamente em 
dois postulados fundamentais: a adesão à teoria das "raças" - sendo estas 
de resto definidas exatamente segundo os mesmos critérios utili:tados pelos 
defensores da desigualdade das raças humanas - e a associação entre "raças" 
e "civilização", quando podemos ver nas civilizações não fatos de "raças", mas 
fatos de sociedades. 
Apesar das aparências, que levariam a acredi tar numa cristalização de 
posições antagonistas rígidas, o surdo progresso do trabalho de investigação e 
das idéias suscitado por estes debates começou a produzir os seus efeitos. Se o 
famoso colóquio do Cairo sobre o "povoamento do Egito antigo e a decifração 
da P.sc:rira mP.rníric~" (1 'l74) c:nnfirmn11 ~ pPrsist f!.ncia rl:~ partilha entre os 
partidários de um povoamento "caucasóide" e os de um povoamento "negro" 
do Egito antigo, assistimos ao desenvolvimento de duas novas maneiras de 
considerar a questão. Uma consiste em negar a pertinência do conceito de "raça" 
em proveito do estudo de relações sociais entre grupos humanos, de origens 
provavelmente diferentes . A outra, aceitando de boa ou má vontade tratar das 
raças, aposta na existência muito antiga de grupos muito heterogêneos e de 
processos de mestiçagem: 
A populaçfto que viveu neste país começa a aparecer-nos, e mesmo assim 
com muita incerteza, apenas no Neolítico. Não parece ter apresentado as 
mesmas características que a população pré-dinástica. Esta última é j:i muito 
misturada. Na sua grande maioria dolicocéfala, pertence sobretudo a tipos 
negróides e medit~rànicos aos quais se misturam individuas aparentados 
com a antiga raça d ita de Cro-Magnon e mestiços. Alguns braquicéfalos, 
vindos da Ásia interior, aparecem também e tomar-se-~o mais numerosos 
no per!odo histórico. Jnfelí~mente, ainda não somos capazes de precisar 
que camadas étnicas representam estes tipos anatômicos. E contudo, 
considerando as coisas de modo grosseiro, e sem descer a pormenores ainda 
multo controversos porque demasiado obscuros, vemos aparecer um duplo 
aspecto na fo rmação humana do país. Um substrato nil6tico e africano e 
uma contribuição a qu~ daremos o nome de camito-sem(tlca. (F. Daumas, 
U. clvilisation de l'Egypce pharaor1ique, Paris, Arthaud, p. 31) 
. 63. 
III. A EMERGÊNCIA DAS CIVIUZAÇÕES AFRICANAS 
Para lá da.q incertezas e das polêmicas, podemos estabelece.r que foi durante 
o curso dos "séculos obscurosn que foram lançadas as bases das primeiras 
civilizações africanas. Também neste terreno, algumas pistas de investigação 
aparentemente fecundas depressa se revelaram decepcionantes. É em primeiro 
lugar o caso dos agrupamentos humanos cujo conhecimento, em épocas muito 
antigas, parece eminentemente difícil. Destas primeiras populações, restam 
apenas alguns raros esqueletos. Ora, os critérios definindo os agrupamentos 
humanos remetem mais para fatos sociais e culturais do que para caracterlsticas 
flsicas, tanto mais difíceis de precisar pois estes agrupamentos resultantes de 
uma distante origem comum nunca deixaram de se misturar uns aos outros. 
Além disso, a repartição atual das populações africanas é o produto de uma 
história de longa duração da qual podemos seguir- e da qual seguiremos, quando 
chegar o momento - os andamentos durante vários séculos, história que de 
resto prossegue sob os nossos olhos. Entre esta história relativamente próxima 
e os tempos antigos das origens, muito largamente carregados de mitos, existe 
um grande vazio, sobre o qual bastará tomar provisoriamente conhecimento ao 
invés de pretender enchê-lo a todo o custo de hipóteses. 
Em segundo lugar, a natureza e os tipos de sociedades que a África 
conheceu em tal passado mantêm-se t.ambém no domlnio das hipóteses, pois 
tão deficientes são as informações quanto os métodos mais adequados para 
tirar partido das parcas fontes disponlveis. É em apenas dois domínios, o da 
história das civilizações materiais e das técnicas e o da his tória política que 
podemos avançar com passo relativamente seguro. 
A. As civilizações materiais 
A eclosão de civiliz::~ções assentadas na produção em vez da simples 
apropriação (caça, colheita, apanha) foi de fato uma "revolução", mesmo se 
não revestiu o caráter de brusquidão, de brutalidade e de inesperado que o 
termo sugere. O estudo destas civilizações materiais foi durante muito tempo 
dominado pelas teses difusionistas, de acordo com as quais a África se te ria 
limitado a receber do exterior e adaptar aos seus dive.rsos territórios tanto os 
impulsos iniciais como os materiais desta revolução. Está hoje assente que o 
processo foi endógeno. tanto no que se refere ao aparecimento da agricultura, 
como no que diz respeito à transformação dos metais. 
1. Da coleta à agricultura 
Sob sua forma mais apurada, o pensamento "difusionista" fa.z começar a 
"revolução neol!tica", geradora da cultura dos vegetais e da criação dos animais, 
. 64. 
{. 
• .. 
no Oriente, e da( derivando tanto para a Europa como para a África. O primeiro 
atingido, o Egito, teria servido de centro de di fusão secundária para a região do 
Níger. assim como para a Etiópia e a África central. Os trabalhos pioneiros do 
soviético N.l. Vavilov e os de Roland Porteres abriram caminho a numerosas 
pesquisas que reconstruíram inteiramente a origem e a evolução das plantas 
cultivadas na África, pondo em evidência o caráter nitidamente endógeno da 
totalidade do processo. 
Este corresponde tanto a uma adaptação às mudanças dos meios e dos 
ecossistemas como à criação de utensílios materiais. culturais e inreleccuais 
em transformação rápida. Se a era quaternária se caracterizou por oscilações 
climáticas de amplitude muito forte, acompanhadas por alterações incessantes 
nas paisagens e nos meios, os ecossistemas atuais do continente africano 
formaram-se entre -12.000 e -3000 anos, conforme os autores, e deram ao 
continente a configuração ambiental que dá conta do desenvolvimento das 
práticas agrícolas: um "nó florestal equatorial" (Roland Porteres), travado na 
sua expansão para leste pelo Vale do Rift mas transbordando para o golfo da 
Guiné; em volta deste "nó", uma ampla cintura semici rcular de savanas; para 
lá desta, duas zonas áridas c desérticas, o Kalahari ao sul e o Saara ao norte; 
enfim, nas duas extremidades do continente, duas bandas estreitas de clima 
temperado de tipo umedi terrãnico". Se as zonas áridas podem aparecer como 
"barreiras" na circulação das novas técnicas, o vale do Nilo e o Vale do Rift 
puderam ter sido o lugar de passagem privilegiado para algumas delas. Em 
contrapartida, não é de maneira alguma certoque a flurt:sla equatorial tenha 
constitu!do uma autêntica barreita. Este perfil, esboçado de maneira ampla, é 
naturalmente acompanhado por matizes locais às vezes muito fortes. Assim, 
a floresta equatorial, depois de ter consideravelmente encolhido entre -16.000 
e -10.000, recomeçou a estender-se até conhecer a sua extensão máxima por 
volta de -3.000, época a partir da qual ela não deixou de recuar, sob a pressão 
conjugada de um clima mais seco e da ação dos homens. No próprio interior 
da fl oresta, jan Vansina pôs em evidência alguns "tipos de lwbitats entre os 
mais diferenciados": 
Mangues costeiros, p!lntanos de água doce com matagais de rálla, outros 
pântanos, pradarias flutuantes, florestas inundadas de maneira temporária ou 
permanente, florestas em solos secos. semperviventes ou semi-caduclfolladas, 
com ou sem bosques de espécies dominantes [ ... ],lloresw em solos rochoso5, 
Oorestas cobrindo um relevo tortuoso, florestas de montanha coroadas 
por florestas de bambus acima de 1.500 metros [ ... ]; mosaicos de savanas/ 
florestas [ ... ); uv:mas intercalares espaçadas como mares ou lagos na cobertura 
florestal; rochedos desnudados e mesas; paisagens criadas por rios poderosos 
como o ZaJre em Llsala com os seus 40 km de largura, as suas ilhas, os seus 
diques naturais, e os seus pântanos associados. Não esqueçamos as florestas 
secundárias freqüentemente caracterizadas a um nlvel precoce de regeneração 
pela "árvore parasoJ• [ ... ]de crescimemo rápido. Q. Vansina, 1991, p. 49) 
• 65 • 
I 
I 
I 
Foi precisamente em alguns destes nichos privilegiados que se 
desenvolveram, a partir de -9 000, formas de coleta intensiva, que iriam levar 
à cultura propriamente dita: altas terras herbáceas da África oriental, e zonas 
de contato entre a Ooresta e a savana em particular. 
A partir destas premissas, foi posslvel distinguir vários "nichos" (N.I. 
Vavilov), onde cada planta estava submetida a uma espécie de experimentação 
das suas diferentes formas: 
-um centro oeste-africano, dominado pelo arroz africano, os sorgos deri-
vados do sorghum arundinaceum, milhos penicilares e milhos digitãrios, 
assim como plantas de tubérculos e oleaginosas, podendo es te centro 
ser subdividido num setor tropical e num setor subequatorial; 
- um centro ~ste-africano, domínio de outros sorgos resultantes da 
espécie sorghum verticillijlorum, de alguns milhos painços e de milhos 
penicilares, do gergelim; 
- um centro abisslnio, possuindo plantas especificas (cafeeiro, encete ou 
bananeira da Abissínia, te f) além das espécies bravas de sorgo (sorghum 
aetl1iopicum) e de milho painço e servindo de corredor de penetração 
às plantas vindas da Ásia tropical. A presença aqui de certas espécies 
vegetais idênticas às do centro do Oriente Médio (trigos, centeios, 
algumas leguminosas) se deve talvez mais à similitude dos ambientes 
do que a autênticos empréstimos; 
-um centro mediterrãnico, lígado ao Oriente Médio (trigos, centeios ... ) 
ao mesmo tempo que possui as suas próprias espécies vegetais (oliveira, 
arganier ... ) e cujas relações com a África subsaariana parecem de agora 
em diante, neste domínio, menos intensas do que aquilo que se tinha 
afirmado durante muito tempo. 
Mais importante ainda, foi possível identificar na base destes "centros" 
vários "berços agrlcolas primários" (Roland Portêres) no continehte africano. 
Levando em conta'a variedade destes recursos alimentares no meio florestal, 
a coleta manteve-se uma maneira privilegiada de abastecimento, às vezes até a 
época contemporânea, no "nó Oorestal equatorial". Nas zonas de savanas e de 
estepes cercando este nó, vã rios "berços primários" viram o dia, corresponden-
do grosseiramente aos centros precedentemente delimitados. A dinâmica de 
desenvolvimento destes berços levou os agricultores a "comer a floresta" (G. 
Condominas) e a acelerar o processo de savanização. Por conseqliência, devido 
a mutações climáticas, se as savanas foram primeiro um "meio natural" ao 
qual os homens se adaptaram pela prática da agricul tura, os mesmos motivos 
levaram-nos em seguida a transformar uma parte da floresta em savana para 
adaptar o "meio natural" ao seu modo de vida e às suas necessidades. Nestas 
savanas naturais ou suscitadas pela ação dos homens, os cereais ocuparam, 
ao que parece, um lugar de primeiro plano graças às diferentes variedades de 
- 66 -
/ 
sorgo e graças ao arroz. 1\ his tória da domesticação do sorgo reserva-nos sem 
dúvida muitas surpresas porque se os centros de origem das espédes bravas são 
conhecidos e muito localizados, damo-nos também conta que, já muito cedo, 
houve cruzamentos: muitas variedades de sorgo cultivadas há. muito tempo na 
África oriental e austral, tais corno o sorghum conspicuum e o sorghum roxburghii, 
provêm de cruzamentos entre os sorgos das espécies sorgllu~ arundinaceum 
(centro oeste-africano) e sorgltum verticilliflorum (centro leste-afncano). No que 
se refere ao arroz a respeito do qual se disse durante muito tempo que vinha da 
Ásia, os especialistas confirmam hoje as indicações de Estrabão que evocava no 
século I a existência de urna rizicultura propriamente africana, que se apoiava 
sobre duas variedades, oryza globtrrina (regiões do Níger) e oryza breviligulara 
(África tropical), urna e outra diferentes da oryza sativa asiática. 
Isso não quer contudo dizer que não tenha havido nenhuma troca com 
as outras partes do mundo. Mas, como mostra o caso das relações entre a 
África e a Ásia, estas trocas não se fizeram em sentido único. A África deu com 
efeito à Ásia várias variedades de sorgos, cultívados na Arábia, na Índia, na 
Birmânia e na China. Da Ásia, a África recebeu plantas tais como a bananeira, 
duas variedades de inhame (grande e peqúello - o taro) e a cana-de-açúcar, 
segundo todas as probabilidades. Uma vez na África, todas estas plantas, 
vindas do ambiente florestal úmido da Ásia oriental, não contribuíram pouco 
para fazer ganhar terra à custa da flores ta. Foi também da Ásia que a África 
recebeu, sem dúvida via vale do Nilo, os animais domésticos ausentes da sua 
fo.unn origina.!: co.prinos, ovinos e talvez bovinos (cujo.s espécies selvagens estilo 
apesar disso provadas no Egito pré-neoHtico) . 
2. A metalurgia do ferro 
A história das origens da metalurgia do ferro na África é um dos domínios 
a propósito dos quais muita tinta correu com muito pouco proveito. Por um 
lado, quis-se elaborar grandes sínteses - ou até autênticas "teorias" - antes 
até de se ter encontrado materiais suficientes e suscetíveis de esclarecer 
as circunstâncias nas quais a "invenção" ou o apuramento progressivo da 
metalurgia do ferro tiveram lugar, os processos tecnológicos elaborados então e 
as eventuais modalidades de adoção e de afinação destas técnicas à escala !oca!. 
Por outro lado, a maior parte das pesquisas arqueológicas, sobretudo naAfrica 
ocidental, foram durante muito tempo levadas a cabo de maneira privilegiada 
em sítios associados a reinos ou impérios cuja história polltica era mais ou 
menos conhecida. Ora, no começo, a metalurgia do ferro foi provavelmente 
obra de pequenas comunidades camponesas, muito antes da cons~ituição 
dos Estados. Nada prova que as características correlações estabeleodas. em 
épocas muito mais tardias entre ferro e Estados, entre ferro e cornércto. a 
"longa distância" , tenham existido em épocas mais antigas. Os dados a~ua1s, 
embora muito provisórios, não permitem apenas estabelecer a endogenetdade 
- 67 -
. i 
da metalurgia do ferro; ajudam também a clarificar a distribuição geográfica 
das populações dominando esta tecnologia. 
A diversidade dos sítios da metalurgia do ferro 
Para a escola "difusionista", da qual Raymond Mauny talvez tenha sido 
um dos seus últimos representantes, a metalurgia do ferro teria visto o dia 
entre os calibas da Anatólia por volta de -1500, antes de sertransmitida aos 
hititas que, conscientes do seu interesse econômico e militar, dela teriam feito 
o objeto de segredos militares e comerciais conservados com grande cuidado. 
A "difusão" do'metal na África ter-se-ia, apesar disso, produzido com relativa 
rapidez, por um lado porque os hititas teriam dado como presente aos faraós 
objetos de ferro e, por outro lado, porque após a invasão do Egito pelos hititas 
no século VU a.C., estes teriam sido de fato obrigados a transmitir os segredos 
tecnológicos aos seus novos e muito provisórios súditos. A partir do Egito, as 
novas técnicas ter-se-iam difundido para o sul do continente, primeiro para 
Meroé, depois de Meroé para a África oriental e central. No que se refere à 
África ocidental t eriam sido os fenícios que, depois de ter fundado Cartago por 
volta de -800, teriam primeiramente importado, depois trabalhado localmente 
o ferro . A partir de Cartago, o ferro e sua tecnologia teriam progressivamente 
alcançado a África subsaariana, principalmente pelas "estradas dos carros" . 
Para dizer a verdade, trata-se apenas de hipóteses, avançadas sem provas 
suficientes e às quais não faltou a oposição de uma multidão de argumentos 
contrárioG. A origem da eclosiío da metalurgia do ferro na África deriva do fato de 
-diferentemente do que aconteceu em todas as demais partes- se ter aqui passado 
diretamente da Idade da Pedra à Idade do Ferro, sem a mediação, durante muito 
tempo considerada obrigatória. da Idade do Bronze ou de uma Idade do Cobre. Esta 
espécie de regra sofre naturalmente algumas exceções, cujas ilustrações principais 
se encontram na Núbia, em Akjut na Mauritânia e em Agadés no Níger. Na Núbia, 
o trabalho do bronze parece ter sido mais espalhado do que o do ferro até cerca 
do século IV a.C .. Na região de Akjut, no sudoeste da Mauritânia, os minerais do 
cobre e do ferro locais foram explorados conjuntamente a partir do século V a.C .. 
Inversamente, no Níger é a partir do começo do li milênio a.C. que se pode datar 
0 trabalho do cobre, e alguns apressaram-se a concluir que teríamos ai o elo que 
faltava na cadeia tecnológica, que teria permitido passar localmente, sem influência 
externa, da indústria da pedra talhada à do ferro. Para dar alicerces à mesma 
conclusão, alguns avançam outros argumentos, nomeadamente o fato de não serem 
necessárias temperaturas muito elevadas para fundir o mineral de ferro e que certas 
técnicas de aquecimento da cerâmica puderam, por acaso ou intencionalmente, 
ter servido para as primeiras experiências da fundição do ferro. 
A medida que se multiplicam as datações, melhor nos damos conta da 
fragilidade das teses "difusionistas". Hoje, a urgência parece ser não a produção de 
novas teorias para as quais os materiais são ainda inconsistentes, mas a identificação 
- 68-
de sítios arqueológ.icos suficientemente numerosos que permitam o estudo de 
contextos e de processos reais. Todas as regiões da África onde escavações sérias 
foram levadas a cabo dão, com efeito, datas cada vez mais antigas. 
Na África ocidental, o sítio conhecido há mais tempo é o de Nok no 
planalto dejos na Nigéria. Mas ele deixou de aparecer como o mais velho porque 
certas datações, ainda pouco numerosas, dão cronologias muito antigas para a 
metalurgia do ferro (-2000 anos para Ténéré no Níger, século VIl até IX a.C. para 
Taruga na Nigéria e para os sítios ruandeses e burundeses). Conhecidos pelos 
seus objetos em terracota representando cabeças de homens ou de animais, os 
mais antigos dos quais datados do século V a.C., Nok e os seus vizinhos do vale 
da Taruga forneceram também utensílios de pedra, cerâmica, escórias de fundição 
de ferro, utensílios e armas de ferro. A partir destes restos, suficientemente 
abundantes e variados, pode-se representar a vida das sociedades nas quais estes 
objetos foram afeiçoados: uma população relativamente densa; uma destruição 
mais ou menos rápida da floresta, seja por desbravamento para liberar solos 
cultiváveis, seja por derrube para obter lenha para queimar; a associação de 
ritos de proteção e de fertilidade às atividades agrfcolas, já que, dizem alguns 
arqueólogos, as cabeças de terra cozida teriam sido utilizadas para este efeito. 
Relativamente mais recente (cerca de -250 anos), o sítio de Djenné nem por 
isso é menos instrutivo. A ocupação humana é ai provada a partir de cerca de 
-250, sendo os primeiros habitantes a principio principalmente pescadores e 
caçadores, aos quais vieram juntar-se agricultores, conhecidos por ter cultivado 
arroz e organizado um habitat permanente feito de terra pisada. Não se sabe se 
a metalurgia do ferro se desenvolveu apenas a partir de iniciativas locais ou em 
conseqüência de relações - comerciais ou outras - com sítios mais setentrionais, 
tais como o de Akjut na Mauritânia. O minério e talvez a lenha para queimar 
vinham do planalto de Benedugu, situado a cerca de 60 km mais a sul. ·fudo parece 
indicar que a ocupação e o desenvolvimento do sítio foram contlnuos e que entre 
cerca de 300 e 800 d.C., Djenné alcançou a sua extensão máxima, mais ampla 
do que a cidade atual. A aldeia de pescadores tinha cedido lugar a uma pequena 
metrópole tirando o melhor partido da sua posição à beira do Nlger, constituindo 
um eixo de trocas vital, vivendo do comércio local (peixe seco, óleo de peixe) 
ou de longa distância (como parece testemunhar a presença de objetos de cobre 
e de ouro, datados desta época) e abrigando uma classe de negociantes ou de 
chefes afortunados (aos quais eram nitidamente destinadas as ricas cedmicas 
e os objetos funerários que foram encontrados pelos arqueólogos) . 
Ainda mais tardios, os sítios de Dai ma (nordeste da Nigéda) e de Igbo-
Ukwu (leste da Nigéria) confirmam todas as mudanças econômicas e sociais 
associadas ao trabalho do ferro. Se os primeiros traços da metalurgia só são 
datados em Daima do primei ro milênio, parece bem que esta metalurgia deve 
ser posta em relação com as de sltios relativamente próximos situados no sul 
(Sao) e no centro (Koro Toro) do Chade, cuja datação remonta mais ou menos 
ao século V. A metalurgia foi acompanhada aqui por um habitat permanente 
- 69-
I 
I 
I 
(casas em terra pisada, mas também de madeira misturada com capim), criação 
de bovinos, culturas do sorgo e trocas à longa d istânc.ia. Em lgbo-Ukwu, a 
descoberta de um túmulo datado do século IX sugere a associação da metalurgia 
do ferro e de um poder pol!tico assaz elaborado. Com efei to, este túmulo é, de 
acordo com todas as probabilidades, o de um príncipe ou do detentor de um 
poder político-religioso eminente, enterrado em posição sentada num banco, 
com três marfins, um traje de gala e as insígnias da sua função e acompanhado 
pelo menos por cinco pessoas, cujos corpos tinham sido colocados num abrigo 
mortuário por cima daquele em que repousava o corpo do rei. Um traço comum 
caracteriza o conjunto des tes sítios oeste-africanos: a metalurgia do ferro e 
todas as outras inovações que lhe estão associadas foram obra de populações 
locais, indo a continuidade do povoamento a par com mutações tecnológicas, 
econômicas e pol!tico-espirituais de grande akance. 
A África central - onde as investigações arqueológicas estão ainda 
sensivelmente menos avançadas do que em qualquer outra parte - e a África 
austral oferecem um quadro assaz d iferente do da África ocidental. 
As datações obtidas na África central não parecem forçosamente menos 
antigas do que as da África ocidental e oriental. Nos Camarões, por exemplo, 
o sítio de Obobogo, junto de Yaundé, forneceu restos datados do século N a.C. 
e haveria até datas tão antigas como -1000/ -900. No Gabão, é aos séculos 11 
e I a.C. que se pode ascender neste momento, esperando a confirmação de 
datas ainda mais longínquas (-900/-800). Ruanda, Burundi e Tanzânia dão 
datas quase tão antigas (-800/-700). No que se rP.fP.re o.o 7..aire (hoje RepúblicaDemocrática do Congo) , é também para o século 11 a.C. que remetem os 
traços da indústria metalúrgica assim como a cerâmica, que revela de resto 
semelhanças evidentes entre o baixo vale do Zaire e o vale do Ubangui. É ainda 
dificil tentar sfnteses, mesmo a esta escala. 
Ao invés disso, no que se refere à África oriental e austral, os materiais 
relativamente abundantes associados à metalurgia do ferro apresentam uma 
grande homogeneidade. Este parentesco é particu la rmente verdadeiro no 
que se refere à cerâmica, a ponto de alguns investigadores proporem que se 
concentrassem os diferentes gêneros sob uma única etiqueta, o complexo de 
''Chifumbaze" (David W. Phillipson), nome do sítio arqueológico de Maçam-
bique onde tais cerâm icas foram exumadas pela primeira vez: Além disso, a 
metalu rgia do ferro desenvolveu-se aqui de modo paralelo a uma tão grande 
série de outras inovações na relação com o ambiente, no domínio agrícola e 
muito provavelmente no domínio soda! e político, que não se pode evitar pen-
sar que se está realmente em presença de uma renovação em profundidade dos 
agrupamentos humanos. Num dos sítios mais antigos, o de Urewe, em Uganda, 
é a partir de -500, mais ou menos, que se registra uma importante vontade de 
redução das superficies arborizadas. Este desflorestamento cortesponde seja a 
desbastes maciços, seja à utilização da lenha para o .tratamento do ferro, seja 
os dois ao mesmo tempo, aparecendo a hipótese de uma mudança climãtica 
o 70 o 
como a menos provãvel. O estilo de cerâmicas achadas em Urewe encontra-se 
numa vasta zona incluindo os territórios ruandês e leste-zairense, assim como 
uma parte do Quênia e da Tanzânia atuais. Julgou-se encontrar alguns paren-
tescos com cerâmicas do Chade e da África ocidental. A repartição e a datação 
dos outros sftios da metalurgia do ferro na África oriental e austral indicam 
de maneira deveras nítida uma extensão muito rápida das novas técn icas: em 
menos de dois séculos, dos séculos 11 ao IV, foi sobre mais de 2000 km - do 
Quênia e da Thnzânia, até Natal, Transvaal e Botswana- que se espalharam 
as técnicas e os gêneros de vida associados à metalurgia do ferro. Neste vasto 
espaço, os utensílios de ferro substituiriam muito rapidamente os utensllios 
de pedra talhada. Não se sabe a partir de que época o ferro começou a ser 
empregado no fabrico de objetos utilitários - enxadas, machados, pontas de 
flechas ou de lança, lâminas de faca e diversos outros utensílios e armas - e a 
partir de quando os objetos de valor e de luxo forarri trabalhados a partir de 
outros metais, principalmente o cobre e o ouro. 
O cobre, abundante nos territórios karanguês e zambiano, parece ter sido 
de uma exploração tardia, jã que os objetos de cobre mais antigos conhecidos na 
região são datados do século VIl. Em contrapartida, nos túmulos da depressão 
de Upemba, encontram-se cadáveres acompanhados por numerosos objetos de 
ferro. Estamos perante objetos preciosos ou simbólicos destinados a salientar 
o grau social do defunto ou, pelo contrário, no quadro de uma crença na vida 
após a morte, da preocupação dos vivos em "fornecer ao morto uma panóplia 
completa das arma:; e liu:; uteu:;illu:; uecessárius à sua subsistência" (Pierre de 
Maret)? No que se refere ao ouro, cujas jazidas significativas para as técnicas da 
época se encontravam apenas no Zimbábue, a sua exploração foi relativamente 
tardia, dando as datações mais precoces o fim do primeiro milênio da era 
crist11. Dados esparsos atestam igualmente uma modificação substancial das 
prãticas agrkolas e pastoris: progresso das culturas alimentícias (sorgo, feijões, 
ervilhas, abóboras principalmente); substituição de espécies animais selvagens 
(búfalos, antílopes, gnus) por animais domésticos paralelamente à persistência, 
confirmada pela abundância de armas de ferro, de importantes atividades de 
caça; progressão da criação do gado, assentada inicialmente nos carneiros e 
nas cabras, aos quais vieram acrescentar-se os bovinos, a partir dos séculos 
VIl ou Vlll, nos ambientes poupados pelas glossínas. 
Da história das técnicas à história do povoamento 
Os desenvolvimentos da história das técnicas permitem fundamentar 
sobre bases mais sólidas as especulações erudltas relativas à história do po· 
voamento. Na falta de tradições orais fiãveis remontando a um passado muito 
distante, a história do povoamento tinha durante muito tempo extraído as suas 
hipóteses e os seus argumentos da lingüística. Sabe-se não só que as llnguas 
africanas atuais possuem uma história e são um produto em perpétua mudança 
o 71 o 
I 
I 
I 
I 
I 
I 
!L. .. '' 
histórica, mas também que é possivel concentrá-las em grandes familias e subfa-
mllias. Graças em particular aos trabalhos dejoseph H. Greenberg e de Malcom 
Guthrie, existe hoje um acordo muito amplo para distinguir, na África antiga, 
quatro grandes famOias. Todas estas Jfnguas possuem uma origem e uma história 
endógenas, incluindo aquelas pertencendo à farnrtia impropriamente designada 
."afro-asiática", que durante muito tempo se julgou ser de origem estrangeira 
(Ásia ocidental), e que se considera nos dias de hoje, com quase unanimidade, 
ser também, excetuando-se o árabe, de origem africana (documento 10). 
Documento 1 O: Classificaçllo das llnguas africanas atuais 
Famlllas Principais d ivisões 
1- Segundo J.H. Greenberg (1963) 
Nlgero-cordofanlano 
Nilo~aarlano 
Khoisã 
Afro-asiático 
Oddente atlântico 
Mandê 
Voltaico 
Kwa 
Bantu 
Adamaua oriental 
Sudanês 
Saariano 
Songaí 
Khoísã 
Sandawe 
Htu.Jza 
semftleo 
Berbere 
Kush!tico 
Chádico 
2- Segundo T. Obenga (1973) 
Negro-egípcio 
Berbere 
Khoisã 
Egipcio 
Línguas nllóticas 
Unguas kushltlcas 
llnguas sudanesas 
Unguas bantu 
Zuaua 
Rifa in 
Beni-snus 
Chel'a 
Zenaga 
Tuaregue 
Kel·ou·i 
Ghilt 
Gadamés 
Zenatla 
Cahuia 
Síwa 
Na ma 
Kung 
• 72-
E~emplos 
Dlula, Peul, Temne 
Dogon, Mossl, Talensi 
Akll, loruba, lbo, lgala, Bini 
Mbaka, Zande 
Acholl, Shlluk. Mangbetu, Jie 
Zanurl, Zaghawa, Teda 
Nama, Kung, Khomani 
Arabe, Amárlco 
Berbere, Tamachek (Tuaregue) 
Somali, Galla. Afur, Bedja, Sidamo 
Haussa, Fali 
É a respeito das llnguas bantu (de muntu, plural bantu: o homem, os 
homens) que o trabalho de cruzamento das contribuições das diferentes 
disciplinas foi mais intenso e se revelou particularmente produtivo. Pode 
assim ser estabelecido que as afinidades entre as línguas bantu atuais eram de 
ordem genética e que todas procediam, segundo uma história extremamente 
complexa, de uma Hngua ancestral comum cujo centro está localizado no 
que hoje é o limite noroeste da área bantufona, numa zona correspondendo 
à Nigérla oriental e aos Camarões, com o vale do Benué como eixo. O que se 
passou a partir deste centro depende ainda muito do dorninio da hipótese: 
se isto permite reconstruir a genealogia das Hnguas e, a partir das línguas 
e do "vocabulário das instituições", construir formalmente os sistemas de 
pensamento e as formas de organização social e polltica, nada nos informa a 
respeito dos homens que teriam efetivamente falado estas Hnguas, elaborado 
estas insti tuições e relações sociais. Além disso, as fronteiras entre as Hnguas e 
os grupos llngüistlcos bantu estão longe de corresponder sempre ~s fronteiras 
reconhecidas entre os estilos de cerâmica, os modos da inumação e os outros 
dados da história das técnicas e da história das práticas culturais. 
Com estas reservas, podemos representar assim a formação e a dispersão 
das llnguas bantu. O bantu ancestral ter-se-ia formado numa época ainda 
controversa (por volta de -1000 conforme alguns autores, por volta de -3000 
segundo outros) no seio de populações de que é possível reconstituir o nivel de 
desenvolvimento técnico: indústrias líticas; domesticação de algumas plantas; 
primeiras formas de criaçãode gado, em particular a criação de cabras; uso 
da cerâmica. A partir do centro inicial. a dispersão ter-se-ia feito, conforme as 
datações mais freqüentes da glotocronologia, por volta de -3000, utilizando 
,pelo menos dois conjuntos de "estradas" que seguiam uma e outra a floresta 
equatorial úmida, seja utilizando as "estradas" do norte e de leste levando às 
terras altas da África oriental, seja pelas "estradas" do oeste e do sul levando 
para a embocadura do Congo/Zaire e que criaram a primeira clivagem entre 
o "bantu oriental" e o "bantu ocidental". Não é todavia de excluir que, para 
oeste, alguns grupos tenham atravessado a floresta seguindo as vias da ág~a 
da bacia d<l Congo/Zaire. 
Não se devem imaginar hordas humanas precipitando-se sobre territó-
r~os vazios ou ocupados por populações "primitivas" que teriam sido subme-
tidas: a dispersão foi visivelmente muito lenta, mobilizando efetivos humanos 
pouco numerosos e fenômenos de empréstimos e de aculturação redprocos 
entre os grupos falando as llnguas bantu e as outras. Aparece assim que, nas 
"estradas" de leste, os grupos bantufonos entraram em contato com outras 
populações com as quais coexistiram durante tempo suficientemente longo 
para adotar vários dos seus conhecimentos técnicos e prática.q econômicas: 
metalurgia do ferro; criação do gado bovino e do carneiro; culturas de cereais, 
nomeadamente do sorgo. A cerâmica do Urewe e os outros objetos que lhe 
estão associados constituem a expressão melhor conhecida da continuidade 
- 73-
I' 
cultural e das mutações técnicas que intervieram no seio destes grupos, uma 
parte dos quais teria prosseguido o seu deslocamento até à região cuprífera 
atual do Shaba, sudeste do Congo. Esta última região teria constituído, com 
os países do baixo Congo, dois centros de dispersão secundária. O c~ntro do 
sudeste congolês foi particularmente importante porque, após uma maturação 
local mais ou menos demorada, os movimentos de dispersão secundária pu-
seram os grupos que partiram em contato com as duas grandes correntes de 
povos bantufonos: por um lado, com a corrente ocidental (introduzindo talvez 
nesta o conhecimento da metalurgia do ferro), de onde ia partir, nos anos finais 
do primeiro século da nossa era, o movimento de povoamento de Angola, da 
Nam!bia e de uma parte da África austral; por outro lado, com o resto da cor-
rente oriental que, a partir da região dos Grandes Lagos, ia progressivamente 
povoar a totalidade da África oriental e uma parte da África austral a partir do 
século IV aproximadamente. 
As causas e as modalidades precisas desta dispersão só podem ser objeto 
de suposições. Assim, no que se refere às causas, muitos autores deixaram-se 
seduzir pelos esquemas interpretativos, ambicionando cobrir a totalidade do 
continente e visando estabele.cer uma correlação entre esta dispersão e a seca 
progressiva do Saara: 
1\ seca teria outras conseqüências sobre a repaniç§o da população africana. [ ... ) 
Todas as populações desta imensa região (o Saara} emigraram pouco a pouco, 
abandonando os seus habitats excessivamente setentrionais atingidos pela 
sec::a para regiões tne1 h.lionai:; mais irrigadas ( ... ]. O aumento da densidade da 
população da savana, devido a esta emigração e também à adoção da agricultura 
que lhe é contemporânea, deve ter incitado certas populações, abaladas pelos 
recém-chegados, a procurar novas terras para o sul, para a floresta que parece 
ter sido até então o domínio quase exclusivo dos pigmeus e sobretudo para as 
savanas do sul da bacia do Congo, favoráveis à agricultura. (R. Mauny. 1970, 
pp. 58-59) 
Nos dias de hoje, é-se muito mais prudente, e a tendência geral é a de 
renunciar tanto a explicações como a teorias gerais para as quais não se dispõe 
de nenhuma prova, além da imagem de hordas precipitando-se para o sul em 
conseqüência de uma grande catástrofe apropriando-se, depois de vitórias 
fáceis em virtude da sua "superioridade" técnica (domínio do ferro e prática 
da agricultura), das terras que os antigos habitantes, que se tinham mantido 
no estágio das economias cinegéticas, não tinham sido capazes de valorizar. 
Abandonou-se até a teoria do "sobrepovoamento" do centro de origem bantu, 
sobrepovoamento que teria sido provocado pela evolução da agricultura. 
Chegou-se assim a evocar o acaso: "É verossímil que a expansão tenha sido 
levada a cabo por acidente" Oan Vansina, 1991). A dispersão das populações 
de lfnguas bantu teria sido apenas um dos efeitos ou uma das formas de uma 
agricultura itinerante, levada a mudar de lugar e a procurar outros melhores, 
uma ou duas vezes por década. Mesmo assim, a hipótese só é válida para os 
. 74-
impulsos iniciais e deixa a porta aberta a outras motivações para deslocações 
que decorrem durante vários séculos. A título de exemplo, calculou-se que 
para ir de Sanaga (Camarões) à costa congolesa - ou seja 1000 km em linha 
reta, talvez 2000 pelos caminhos terrestres - os agrupamentos humanos teriam 
consumido 600 anos, ou seja 33 km de dez em dez anos. Mais tarde, em outros 
casos, sendo diferentes as motivações e as técnicas de deslocamento mais 
eficazes, bastaram 70 anos para percorrer os 900 km separando a confluência do 
Congo com o Alima, a sul, e a confluência do Congo com o Itirnbiri, a norte. 
Tudo parece mostrar que a coabitação foi na maior parte dos casos muito 
longa entre os recém-chegados e as populações antigas. Assim, na floresta 
congolesa, os caçadores pigmeus coexistiram com os recém-chegados, que, 
num primeiro período, praticavam a agricultura e a pesca mas ignoravam a 
metalurgia do ferro. É impossível datar as relações de "clientela" e de "servidão" 
entre povos de língua bantu e negrilhos (pigmeus), muito bem descritas nos 
livros de etnografia dos séculos XIX ou XX. Formas de troca precoce puderam 
estabelecer-se entre produtos de caça e de coleta e produtos da agricultura, da 
pesca e do artesanato. Thmbém se desconhece quando as línguas originais dos 
negrilhos desapareceram definitivamente, dando lugar, entre eles, às línguas 
bantu. Também aqui é provável que o processo tenha sido de muito longa 
duração, as populações de lfngua bantu beneficiando-se menos de uma eventual 
"superioridade" numérica ou tecnológica do que do caráter permanente dos 
seus habitats, que se tornaram referências para os negrilhos. Apesar disso, a 
maior parte. das tradições de origP.m dos povos bantu da floresta fazem dos 
negrilhos os melhores conhecedores da floresta, dos seus tesouros e dos 
seus perigos, apresentando-os como aqueles que ensinaram os segredos da 
natureza aos recém-chegados. De resto, se estes últimos proibiam o "acesso" 
das suas mulheres aos pigmeus, assim como qualquer tipo de relações sexuais, 
a importante mestiçagem, de que vemos hoje as provas, mostra que as trocas 
ultrapassaram largamente o único terreno da economia. 
Fenômenos análogos devem ter-se produzido muito mais a sul com as 
populações chamadas khoisã, ainda que a chegada de populações de língua 
bantu tenha sido ainda mais dramática, na medida em que estas trouxeram 
ao mesmo tempo a metalurgia do ferro e a prática da agricultura. Mas os 
khoisã conseguiram preservar o seu gênero de vida nas zonas onde, por razões 
climáticas, a agricultura era impossível ou muito pouco rentável. Nos lugares 
onde se misturaran1 com os recém-chegados, as influências não se fizeram 
num único sentido, como mostra a presença de muitas características fonéticas 
khoisã em muitas línguas bantu da África austral. 
É notável que ao longo destes séculos de perturbações tão profundas, 
a iniciativa, tal como o beneficio da mudança, tenha cabido a grupos de 
caçadores/coletores e de agricultores/criadores de gado, cuja organização 
sociopolítica, ainda muito mal conhecida, tinha adquirido formas outras que 
não as do Estado. Mesmo se a penadamente localizado no espaço, o Estado não 
eracontudo uma realidade ausente das primeiras civilizações africanas . 
- 75. 
. 
I i 
Meroé 
- (1) 
B. As primeiras formações estatais 
Se a pertença do Egito ao mundo negro-africano continua a suscitar 
controvérsias, Kush e Axum são os primeiros Estados africanos a respeito dos 
quais estamos assaz bem informados, tanto no que se refere à sua história factual 
como no que diz respei to à organização do Estado e à evolução das estruturas 
políticas. O conhecimento hoje mais pormenorizado dos Estados que a África 
conheceu depois deles permite ler de outras maneiras a história destes primeiros 
Estados, nos quais se viu durante muito tempo o prolongamento de sistemas 
políticos mediterrânicos e orientais, e que nos aparecem agora como a primeira 
expressão indiscutível do gênio político africano. 
Documento 11: Meroé e Axum no seu quadro geográfico 
Sltlos principais da 
metalurgia do ferro 
r.ontros urbanos e 
comerciais 
Cataratas 
FUNJE l~eglões 
Eixos comerciais 
N.B. Alguns silios sao Indicados 
com os seus nomes atuais 
500 km 
-76 -
1. A Núbia e Kush 
Os nomes de Núbia e de Kush possuíam, para os africanos do norte, 
um conteúdo muito vago: a Núbia designava os territórios situados a sul do 
Egito e irrigados pelo Nilo, e Kush uma fração mais restrita, correspondendo a 
grosso modo ao vale médio do Nilo. Se bem que a sua identidade africana tenha 
deixado de ser posta em causa, nem por isso Kush deixa de pôr problemas aos 
arqueólogos e aos historiadores, quer se trate das suas origens, de suas relações 
com ouu·as partes do mundo conhecido no seu tempo, ou das peripécias do 
seu desenvolvimento. Uma longa tradição egiptológica quis apenas ver nele 
uma manifestação, entre outras, do gênio do Egito faraônico: "Este pais, diz 
por exemplo Georges Posener, foi colonizado pelo Egito faraônico: sofreu 
durante longos séculos o ascendente da civílização egípcia, os costumes, a 
língua, as crenças, as instituições; tudo no curso da história da Núbia carrega 
a marca do seu vizinho do norte" ("Para uma localização do país de Kush no 
Médio Império", Kush, 6, 1953, p. 58) . O estabelecimento da parte que cabe 
às influências e empréstimos estrangeiros e do fundo autóctone esbarra com 
o obstáculo das fontes. As descobertas arqueológicas fornecem argumentos a 
todas as teses que se chocam. No que se refere às inscrições meroíticas, que 
se conhecem desde 1819 graças ao arqui teto Fr.-G. Gau e de que possuímos 
hoje uma bela série remontando aos primeiros textos do século 11 a.C., a sua 
decifração continua a ser muito incompleta: 
Os signos [do alfabeto] são em número de vinte e tres: trata-se de um alfabeto 
possuindo todavia alguns biHteros, mais precisamente quatro signos vocálicos ~-·· 
(a. e, i, o), quinze signos consonâmicos e quatro s ignos silábicos (ne, se, r;.' 
to); é necessário acrescentar-lhe um "separador" (dois pontos sobrepostos, 
às vezes três), que é de maneira geral inserido entre várias palavras. No caso 
particular das inscrições funerárias, tornava-se possível identificar partes 
do texto onde se invocam as divindades lsis e Osíris, onde se nomeiam o 
defunto e os seus parentes, onde se pronunciam fórmulas de "benção". Se 
recolhemos assim os nomes das pessoas, dos lugares, das divindades, dos 
títulos. o valor semântico das inscrições escapa-nos a partir do momento em 
que passamos a textos mais longos, textos designados "históricos". Podemos 
apenas reconhecer, graças ao "separador", as diferentes palavras e desconfiar da · 
presença de uma segmentação do texto ou de grupos de palavras. seg1nentos 
de texto qu~ foram designados "stiches", designação não convencional, 
que não permite definir a natureza da estm tura gramatical assim posta em 
evidência. Q. Leclant; "Le déffrichemem de l'écriture méro'ítique: état actuel 
de la question", in Le peuplement de I'Egypre ancienne et le déchiffrernent clel'icriwre 
méronique, Paris, Unesco, 1978, p. 112) 
A emergência laboriosa de um Estado soberano 
A comparação entre dados arqueológicos, os textos gregos e aquilo 
que conhecemos da história do Egito permite contudo esclarecer já os longos 
- 77 -
percursos que levaram à emergência do Estado kushítico. Os arqueólogos 
puseram em evidência os restos materiais - túmulos, cerâmicas, objetos em 
cobre - pertencendo a uma cultura dita do "grupo Pt (o grupo cronológico 
mais antigo) ele que os mais antigos exemplares, datados do IV milênio, são 
contemporâneos da primeira dinastia dos faraós. Estes objetos exprimem 
criações locais, ao mesmo tempo que manifestam uma influência do Egito 
pré-dinástico e faraônico. Thdo sugere a existência de correntes comerciais 
~rrastando marfim e peles para norte, utensílios de cobre e diversos produtos 
artesanais para sul. Mas desde a primeira dinastia, um corte político 
materializado por wna linha de fortes cortou o Egito dos países situados a 
sul da primeira catarata. As relações comerciais continuaram, apesar disso, 
vistO o Egito ter uma necessidade imperiosa de produtos raros e preciosos 
vindos do sul: recursos minerais, em particular o ouro do vale do Nilo e, para 
leste, de Wawat; incenso, marfim, óleos, ébano, peles de leopardo, penas de 
avestruz. Estas riquezas justificavam veleidades expansionistas de que são 
testemunhas as expedições militares dirigidas por Khasekhem, um rei da li 
dinastia, e Snefru, o fundador da IV dinastia, conhecido por ter trazido do 
"país dos núbios" 7 mil prisioneiros e 200 mil cabeças de gado. 
O trabalho arqueológico identificou também uma cultura do "grupo 
. C" (a existência do "grupo B" está ainda sujeita a muitas controvérsias), 
datando de cerca de -2240 até o século XVI a.C. e cuja área de extensão ia, ao 
que parece, do sul do Egito até a segunda catarata. Percebida por uns como o 
desenvolvimento da cultura do "grupo A", é ela interpretada por outros como 
o resultado de uma renovação de populações em conseqtiência de imigrações 
provenientes, segundo as escolas, de leste ou de oeste do vale do Nilo. Se as 
relações comerciais com o Egito continuaram, parece que a pressão da Núbia 
se tornou cada vez mais forte para o seu vizinho do norte: os textos egípcios 
evocam muito freqüentemente os países núbios sob a alcunha de "Kush 
abjeto"; os fortes construídos pelos egípcios receberam nomes significativos 
tais como "repelir as tribos", "repelir os inus", "repelir os mezaiu", "dominar 
os desertos". Não é impossível que faraós "usurpadores" ou "legítimos" 
tenham vindo da Núbia; Mentuhotep 111, fundador da XI dinastia, era 
provavelmente negro; Amenemhant, fundador da XI! dinastia (-1991/-1786), 
parece ter vindo também da Núbia. Foi nos fi nais do lJl ou nos princípios do 
11 milênio que o nome de Kush se tomou relativamente comum nos textos 
do Egito para designar verossimilmente uma entidade política que tinha todas 
as razões de recear. Os faraós desta dinastia, sobretudo Sesóstris I e Sesóstris 
lll, multiplicaram as campanhas para o sul. levando a fronteira para Semna, 
não longe da 2• catarata, onde Sesóstris lii mandou levantar uma esteJa 
destinada a impedir a passagem das gentes do sul, exceto "aqueles núbios 
que viessem para comerciar em Iken [cidade situada a norte de Semna] ou 
para qualquer outra atividade legítima que pudesse ser tratada com eles". É 
- 78 -
' .... ,. 
com a invasão dos hícsos e a ocupação do Egito por estes guerreiros vindos 
da Ásia (-1785/-1580) que se obtêm as provas mais precisas da existência 
de um reino de Kush do qual Elefantina seria a fronteira ao norte. A sua 
capital era provavelmente Kerma, a montante da 3• catarata, onde, no sitio de 
Dufufa oeste, a arqueologia revelou o que parece realmente ser a residência 
de uma dinastia principesca local: numa sepultura, foram encontrados os 
restos de um príncipe que tinha sido enterrado deitado para o lado direito 
cercado pelos objetosusuais e rituais e acompanhado por 200 a 300 pessoas 
-exclusivamente mulheres e crianças - que, essas, tinham sido enterradas 
vivas. A força do rei parece assegu.rada pelo fato de, nos princípios do século 
XVI a.C., um mensageiro do rei dos hícsos, Apofls, ter solicitado ao "príncipe 
de Kush" ajuda militar contra o rei egípcio. 
O restabelecimento da autoridade dos faraós levada a cabo pela XVIII 
dinastia e mais particularmente por Thtmés I (-1530/-1520), teve como efeito a 
submissão de Kush ao Egito. Colocado sob a autoridade de um "Governador dos 
países do sul" - também chamado "filho do re.i" ou "filho kushítico do rei" - Kush 
foi dividido em dois subconjuntos: Wawat, do alto Egito à 2• catarata, e Kush, entie 
as 2• e a 4• cataratas. Os egípcios organizaram aí uma exploração sistemática de 
produtos de caça e de coleta e, mais ainda, dos recursos minerais (ouro, hematita, 
turquesa, ametista ... ) tudo isto recuperado sob a forma de imposto. Paralelamente 
aos funcionários nomeados pelo faraó, os egipdos tiveram a habilidade de instaurar 
uma "administração indireta", associando os chefes locais ao exercício e aos 
ctividendos do poder, e uma severa "politica de reféns" obrigando estes d 1efes a 
enviar os seus filhos à corte dos faraós para aí ser educados. Houve, desta forma, 
uma "egiptização" da Núbia cuja dimensão, profundidade e duração estão ainda em 
discussão. SemeU1ante política tinha contudo como efeito implicar cada vez mais 
os países kushíticos nos negócios egípcios, devido ao fato de que as rivalidades da 
corte e os conflitos pelo poder solicitavam cada vez mais os funcionários egípcios 
da Núbia e os príncipes locais. 
Estes conseguiram até tomar o poder no Egito em condições obscuras 
para fundar a XXV dinastia, "etíope" ou "sudanesa", mais precisamente 
kushítica (de cerca -750 a -663), cujos primeiros reis são desconhecidos e os 
seus sucessores conhecidos apenas de nome: Alara e Kashta. A partir de uma 
leitura incorreta dos signos hieroglíficos representando o nome do primeiro 
rei, a respeito do qual existem informações relativamente precisas, acreditou-
se durante muito tempo que esta dinastia "etíope" saíra de egípcios que 
teriam fugido de Tebas para se refugiar no sul. De fato, o famoso "Piankhy" 
dos egiptólogos deve ser lido "Peye", antropônimo tipicamente meroítico: 
simultaneamente rei conquistador e administrador, foi ele que tentou integrar 
ritualmente as duas partes do novo Estado (Kush e Egito) e de fundamentar 
na religião a legitimidade da nova dinastia mandando gravar esta proclamação: 
"Amon de Napata fez-me soberano da totalidade do povo.[ ... ] Amon de 
- 79-
Tebas nomeou-me soberano do Egito [ ... ) Os deuses fazem um rei, o povo 
faz um rei, mas foi Amon que me fez". A uníficação efetiva do reino sob a 
autoridade exclusiva dos kushlticos foi contudo obra de Shabaka, irmão de 
Peye, proclamado rei por volta de -710 e considerado como o fundador da 
dinastia por ter eliminado pela força todas as veleidades de contestação e 
lançado uma grande polltica exterior destinada a conter a força dos assírios. 
O "fator oriental" ia de resto pesar sobre o destino da dinastia, pois a invasão 
dos assírios e a tomada de Tebas pelas tropas de Assurbanipal em -663 
puseram fim à XXV dinastia. 
O refluxo obrigatório dos ku~hlticos para a sua base meridional 
constitui uma cesura muito duradoura em toda a história do vale do Nilo: 
enquanto o Egito, contido a sul por um Estado poderoso, se tornava cada vez 
mais mediterrânico, Kush, apesar das referências insistentes aos slmbolos 
pollticos e rituaís do Egito faraônico, voltava a encontrar a plenitude do seu. 
gênio africano. Esta evolução seria ainda acelerada pela expedição organizada 
em -591 por Psamético li do Egito que acabou com a conquista provisória de 
Napata. Nos finais do século VI, os persas ameaçaram por sua vez Napata, sem 
que se saiba se uma parte da Núbia foi realmente submetida aos persas, como 
proclamavam inscrições numa estátua à glólia de Dario. O que é certo é que, a 
partir desta época, o exército persa contou nas suas fileiras com contingentes 
núbios, o que ia servir de suporte histórico ao mito muito duradouro da "força 
negra" (ten.-coronel Mangin, 1910). Para garantir a segurança da sua capital, 
os kushíticos começaram nos princípios do século VI a.C. a transferi-la para 
Mero é, a jusante da 6• ~atai ata, à dist:l.ncia respeitável - levando em conta os 
meios de comunicação da época- de cerca de 1100 km de Elefantina: 
A partir de ElefantinA, subindo, moram Já etlopes; moram numa metade da 
ilha, habitando os egípcios na outra. Esta ilha é seguida por um grande lago, 
em volta do qual circulam etíopes nômades; depois de o ter atravessado, 
vocês alcançar5o o curso do Nilo, que se lança neste lago. Vocês abandonar5o 
o vosso barco e caminharão ao longo do rio durante quarenta dias; porque 
nestas partes do Nilo emergem rochas agudas, e há muitos recifes ~ flor da 
água, através dos quais a navegação é imposslvel. Depois de t er atravessado 
durante quarenta dias esta região, tomarão lugar em outra embarcâçAo e 
navegarão durante doze dias no termo dos quals vocês chegarão a urna grande 
cidade chamada Meroé. Esta cidade é. diz-se, a metrópole dos outros e dopes. 
(Heródoto, Histórias, 11, 29) 
De fato, esta distância desencorajou e comprometeu todas as veleidades 
de conquista e nenhuma invasão do norte conseguiu tornar-se senhora da nova 
capital. ·Mas considerações outras, além das estratégicas, entraram na decisão 
de colocar a capital muito maís para sul. Do ponto de vista do lugar e dos 
recursos econômicos, Meroé estava muito acima de Napata. As possibilidades 
de extensão da capital eram muito mais numerosas. Além disso Meroé situava-
- 80-
se logo a norte da zona atingida pelas chuvas sazonais e se beneficiava de 
um abastecimento em víveres mais certo do que o registrado em Napata. 
A sua posição tornava-a uma encruzilhada obrigatória das trocas regionais 
e internacionais. Enfim, florestas relativamente numerosas garantiam um 
abastecimento de lenha suficiente para o trabalho do ferro. A mudança de 
capital não foi contudo brutal e a necrópole de Nuri em Napata continuou a 
receber as sepulturas reaís até o fim do século III a.C .. Todavia, levando em conta 
0 interesse econômico preexistente de Kush, os senhores sucessivos do Egito 
não renunciaram a acariciar o sonho de aí exercer a sua hegemonia. De fato, 
as trocas culturais são provadas até o século I a.C., a julgar por exemplo pelo 
recurso à Hngua das inscrições reais que era a das elites polfticas. Além disso, 
efeito de uma estratégia deliberada ou das incertezas nas regiões fronteiriças, 
os exércitos e os súditos de Kush continuavam a flagelar as províncias e 
distritos meridionais do Eg.ito. Entre as expedições e tentativas de conquista 
de Meroé podem reter-se os projetos de Carnbises e a expedição de Petrônius. 
Imediatamente após ter conquistado o Egito ( -525), o rei da Pérsia Cambises 
ambicionou apoderar-se de Meroé para onde enviou espiões para conhecerem 
a situação. do pais. A resposta do rei de Meroé aos espiões carregados de 
presentes mostra que não se deixava enganar acerca das intenções dos seus 
vizinhos do norte: 
O edope, que se tinha dado conta de que eles [os ictiófagos]tinham chegado 
como espiões, mandou-lhes dar esta resposta: Não, o rei dos persas nlio vos 
enviou c:u-rpg•<ln• dP. pre.oenteo pnrque atribui uma grande imponânda em se 
tornar meu convidado; vós, n~o diteis a verdade (porque vi estes para espionar 
nos meus Estados); e ele não é homem justo. Se fosse justo, nunca teria com 
efeito desejado um pais outro que o seu e não reduziria à servidão homens 
dos quais não recebeu nenhuma injúria. Mas, agora, entregai-lhe este arco, 
e quando lho entregardes dize!: O rei dos etíopes dá ao rei dos persas-este 
conselho: quando os persas retesarem tão facilmentecomo eu faço, arcos tão 
grandes corno este, podem entAo avançar com forças superiores contra os 
"eúopes longevos", mas, at~ este momento, que saiba agradecer aos deuses 
por n5o meter no espírito dos filhos dos etíopes a idéia de acrescentar ao seu 
próprio pais a posse de outro território. (Her6doto, 1-listoires, 11121) 
No que se refere à expedição punitiva do prefeito romano Petrônius 
contra "os etíopes" da "raínha Candãcia" (-23), é ela descrita por Estrabão 
como um ato de vingança contra "etíopes", provavelmente nômades, que 
tinham atacado a Tebaida e levado como troféus estátuas do imperador Augusto. 
Tendo-se tornado o senhor de Napata, este "mandou arrasar a cidade de alto a 
baíxo e reduziu todos os habitantes à escravatura. Isto feito, voltou pelo mesmo 
caminho com todas as suas presas tendo considerado que mais adiante o pais 
devia ser impraticável para o exército". A crônica polltica de Kush cor1tinua 
a ser mal conhecida no que se refere aos longos séculos que vão da xxv• 
- 81 -
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dinastia ao desmoronamento do reino sob os golpes destrutores de Axum 
ou sob o efeito de uma decomposição interna. Está-se em contrapartida um 
pou~o m~lhor informado a respeito dos particu larismos e das evoluções não 
ocastonats das estruturas políticas e econômicas do reino. 
Meroé, um reino africano 
. Que Meroé fosse um reino africano vê-se muito bem em primeiro lugar 
de~zdo à sua organização. Além das inscrições meroíticas, sempre diflceis 
de Interpretar mesmo quando utilizam signos hierogllficos, foi sem dúvida 
Estrabão que nos deixou as indicações mais preciosas a este respeito. 
Ven:os assim pois, bem definidas a parti r da época mais antiga, duas 
caracterlsucas que voltaremos a encontrar depois em muitos reinos africanos, 
no que se refere à maneira de designar o soberano assim como à natureza da 
realeza e~ maneiras. de assegurar o controle do poder real. Era por eleição 
que se deszgnava o ret, o que surpreendia todos os observadores estrangeiros 
tal como Heródoto, o primeiro a ter dado conta desta particularidade: 
Os etfopes siío, ao que parece, os homens mais altos e mais belos do mundo. 
Certos costumes diferenciam-nos dos outros homens, em particular a escolha 
dos reis, jlorque eles designam sempre como rei o maior e o mais forte em 
proporção com a sua estatura. 
• . Estas indicações são confirmadas por várias inscrições em hieróglifos 
egtpctos em honra de alguns reis de Meroé, nomeadamente Peye (-751/-716) 
e Nastasen (-335/-31 0). Antes de ser eleito, o rei vivia com os seus "irmãos 
reai~"· Eram os chefes militares e os altos dignitários políticos - em número 
de vmt~ e quatr~ s: acreditarmos numa este la do rei As peita (-593/-568) -que 
procedram à elerçao, dando-se preferência aos "irmãos" do rei defunto antes 
~ue o poder passasse à geração seguinte. A partir do século VI a.C. a eleição 
unha lugar e_m Meroé, depois o rei, após uma longa procissão em direção 
ao norte, fazta-se consagrar definitivamente no pal:icio e no templo real de 
Napa~a. Pare<;e também, lendo a insistência com a qual Aspelta proclamou ter 
rece~t~o os s~us direitos heredi tádos de sucessão pelas mulheres, que a filiação 
m~trthnear un.ha ascendência sobre a filiação patrilinear. De maneira geral, as 
ramhas e as pnncesas ocupavam um lugar central no sistema monárquico. Os 
autores gregos e, na sua esteira. o Novo 1estarnento, descrevem-nas sob 0 nome 
de "Candácias", deformação da palavra meróitica ktke ou kdke (rainha mãe), o 
papel destas m~lheres reais foi a principio Indireto: educação dos príncipes, às 
vezes até uma tdade relativamente avançada; participação ativa na escolha do 
rei e na cerimônia do coroamento; conselheiras avisadas, e ouvidas pelo marido 
o~ pelo filh~; _adoção pela rainha mãe viva da primeira esposa de seu filho, 0 
ret em exerctczo. O seu papel na gestão dos negócios de Estado tornava-se em 
seguida mais direto com a instituição de uma espécie de regência em proveito 
-82-
da rainha mãe. Semelhante sistema podia levar a uma tomada do poder pura e 
simples pelas mulheres, o que aconteceu efetivamente entre o século 11 a.C. e 
o século primeiro da nossa era com rainhas tais como Shanakdakhete (-170/ 
-160), Amanichakêtê (segunda metade do primeiro século a.C.) e Amanitêrê 
(ou Amamarit, esposa do rei Natakamani -20/ + 15). Amanichakêtê é a famosa 
"Candácia" descrita por Estrabão e que opOs uma viva resistência à expedição 
punitiva do general romano Petrônius em -23: "Entre os fugitivos acham-se 
os generais da rainha Candácia, esta mulher de alma viril, a quem uma ferida 
recebida em combate tinha feito perder um olho e que nos nossos dias exercia 
o poder supremo na Etiópia". No que se refere aAmanitêrê, ela é a "Candácia" 
evocada pelos Atos dos Apóstolos no Novo Testamento. 
Da<:umento 12: Um exemplo de reglcfdio sagrado 
Mas o mais desconcertanle de tudo é o que se passa com a morte dos reis. Com 
efeito, em Meroé, os sacerdotes que se ocupam do culto e das honras divinas, visto 
pertencerem ao grau mais importante e mais poderoso, enviam, quando tal lhes 
parece oportuno, um mensageiro ao rei para lhe ordenar que morra. Tal é, com 
efeito, dizem eles, o oráculo pronundado pelos deuses e a ordem dos Imortais nao 
deve, sob nenhum pretexto, ser desprezada por uma á! atura mortal. E acompanham 
esta mensagem com outros argumentos, capazes de ser acolhidos sem reservas 
por uma natureza educada conforme os costumes antigos e diffcels de eliminar. e 
despojada de argumentos a opor a ordens cuja necessidade se nao impõe. 
Assim pois, nos tempos antigos, os reis obedeciam aos sacerdotes, não porque 
tinham sido vencidos pelas armas nem pela violência, mas porque precisamente o 
seu medo supersticioso prevalecia sobre a sua faculdade de raciocinar. Contudo, 
sob o reino de PtolOmeu li, o rei dos ~!Iopes Ergom~ne, que tinha recebido uma 
educaçllo grega e estudado filosofia, ousou, sendo o primeiro, desprezar esta 
maneira de fazer. Tendo, com efeito, tom&do uma resoluç:lo digna da realeza 
penetrou com soldados na parte proibida onde se encontrava o templo de ouro 
dos etlopes, trucidou todos os sacerdotes e, após ter abolido este uso, governou 
conforme a sua própria vontade. 
Fome: Diodoro de Slcllia, Bíb/iothêque histor/que. livro 111, V1, trod~ão de 81biane Bommelotr, Paris, los 
Bolles l ettres, t 989. 
Meroé foi também o primeiro reino assentando nos princlpios da realeza 
sagrada: identificação entre a integridade física do rei e a integridade do reino, 
assimilação da beleza flsica e das qualidades morais do rei à prosperidade e à 
glória do rein o; realização de cerimOnias rituais reatualizando a coroação do rei 
e destinadas a rejuvenescer o rei e o seu reino; organização de uma execução 
ritual. mais freqüentemente sob a forma de suiddio, caso estas prescrições 
não fossem respeitadas ou se o reino acumulasse catástrofes ou todas as 
espécies de pragas (documento 12). Este sistema dava aos sacerdotes um poder 
enorme que "Ergamênés", um rei com nome helenizado, ~ontemporâneo de 
Ptolomeu IJ Filadelfo (rei de -285 a -246) e conhecido dos gregos como um 
amigo dos filósofos, mas cuja identidade se conserva obscura (Arkakamani, 
Arnek.hamani ou Arcemani?), procurou desmantelar. As tradições e os 
costumes religiosos mais antigamente criados fornecem o suporte deste tipo 
- 83 -
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de governo. Mas os reis e a aristocracia de Meroé estavam atentos a todos os 
recursos religiosos suplementares que lhes podiam chegar do estrangeiro. Foi 
assim que acrescentaram sucessivamente à sua própria religião as crenças que 
eles consideravam como sendo as mais eficazes professadas por seus vizinhos: 
primeiro as do Egito faraônico, depois a dos deuses gregos e finalmente, talvez 
introduzida pela pequena e ativa comunidade judia instalada em Elefantina 
a partir do século V a.C., o cristianismo, na época de "Candácia"Amanitêrê 
(documento 13). 
Documento 13: Os princípios do cristianismo em Meroé 
E o anjo do Senhor falou a Filipe, dizendo: Levanta-te e vai para a banda do sul, ao 
caminho que desce de Jerusalém para Gaza. que está deserta. E levantou-se. e foi; e 
eis que um homem etlope, eunuco, mordomo-mor de Candáda, rainha dos etiopes, 
o qual era superintendente de todos os seus tesouros, e tinham ido a Jerusalém 
para adoração, regressava, e assentado no seu carro, lia o profeta lsafas. E disse o 
espfrito a Filipe: Chega-te e ajunta-te a esse carro. E, correndo Filipe, ouviu que lia 
o profeta lsafas, e disse: Entendes tu o que lês? E ele disse: Como poderei entender, 
se alguém me não ensinar? E rogou a Filipe que subisse e com ele se assentasse. E 
o lugar da escritura que lia era este: foi levado como a ovelha para o matadouro, 
e, como está mudo o cordeiro diante do que o tosquia, assim não abriu a sua boca. 
Na sua humilhação, foi tirado o seu julgamento; e quem con tará à sua geração? 
Porque a sua vida é tirada da terra. E, respondendo o eunuco a Filipe, disse: rogo-te, 
de quem diz isto o profeta? De si mesmo, ou de algum outro? Entlio Filipe, abrindo 
a boca, e começando nesta escritura, lhe anunciou Jesus. E indo eles caminhando, 
chegaram ao pé de alguma água, e disse o eunuco: Eis aqui água; que impede que 
eu seja batizado? E disse Filipe: é lfcito, se crês de todo o coração. E, rP<rnntlentlo ele. 
disse: creio que Jesus Cristo é o Filho de Deus. E mandou parar o carro, e desceram 
ambos à água, tanto Filipe como o eunuco, e o batizou. E quando safram da água o 
Esplrito do senhor arrebatou a Filipe, e não viu mais o eunuco. jubiloso, continuou o 
seu caminho. E Filipe se achou em Azote e, indo passando, anunciava o Evangelho 
em todas as cidades, até que chegou a Cesárea. 
Fontes: Actos dos Apóstolos, VIII 26-39, traduçao de Joao Ferreira de Almeida. Lisboa • Depósito das 
Escrituras Sag(adas, 1968. 
A tentativa de "Ergamênés" integrava, apesar de tudo, um projeto mais 
amplo remontando pelo menos ao reino de Aspelta (-593/-568) e visando cons-
tru ir uma máquina administrativa que fosse o sustentáculo da continuidade 
do Estado. Uma esteJa deste rei enumera com efeito titules militares e civis 
(chefe do tesouro, ministro da justíça, chefe dos celei ros, chefe dos arquivos, 
primeiro escriba de Kush ajudado por numerosos adjuntos) evocando a exis-
tência de um aparelho administrativo re lativamente elaborado. No plano local, 
foi também necessário organizar estruturas respondendo aos particularismos 
da geografia flsica e humana do reino: uma grande extensão, que variou com 
o tempo; extensão extrema ao longo do vale do Nilo, da 1 • catarata ao sul de 
Senar; a integração constante de povos nubai do Kordofã, na margem esquerda 
do Nilo, povos nômades situados nas instalações orientais do reino, fugitivos 
do Egito cujo prímeiro testemunho nos foi deixado por Heródoto: 
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A partir desta cidade [Meroé], vocês alcançarão por barco o país dos trânsfugas 
{automoles], em tanto outro tempo como aquele que tiverdes gasto para vir 
de Elefantina~ metrópole dos etfopes {Meroé]. Estes trânsfugas têm como 
nome Asmach, nome que, traduzidq em Hngua grega, significa "aqueles 
que se instalam à mão esquerda do rei'' . Eram vinte e quatro mirfades de 
egípcios da classe dos guerreiros, que deser!aram para os etlopes pela razão 
que se segue. Sob o reino de Psamético (Psamético 11, -594/-558), tinham 
sido instalados postos militares na cidade de Elefantina em face dos etíopes, 
ouuo em Dafnae Pelusiana em face dos árabes e dos assírios, muro em Meroé 
em face da Ubia. { ... ]. Os egípcios em questão tinham estado de guarnição 
durante 1rês anos e ninguém os substituía no seu posto; discutiram entre 
eles e de comum acordo, abandonaram todos o serviço de Psamético pela 
Etiópia. Informado, Psamético lançou-se em sua perseguição: quando os 
alcançou dirigiu-lhes um milhar de súplicas, exercendo pressão para que não 
abandonassem os deuses da sua pátria, os seus filhos e as suas mulheres; mas 
um deles, mostrando a sua virilidade, respondeu que em qualquer parte onde 
dispusessem daquilo, teriam filhos e mulheres. Quandochegaran1 à Etiópia, 
confiaram-se ao rei dos etfopes. E este recompensou-os da seguinte maneira: 
alguns etfopes tinham entrado em conflito com ele: convidou os Uânsfugas 
a expulsá-los e a ocupar o seu país. E logo que os trânsfugas se encontraram 
instalados na Etiópia, os e dopes, adotando os costumes egfpcios, tornaram-se 
mais civiliz.ados. (Heródoto, Histoires, ll, 30) 
A lentidão das comunicações contribuiu para assegurar uma larga 
autonomia às diferentes partes do reino. As fontes gregas e latinas evocam 
assim a existência, na "ilha de Meroé" de "reis" e de "tiranos" submetidos às 
"Candácias": estes títulos parecem indicar que os chefes das antigas unidades 
políticas integradas em Meroé foram mantidos para fins da administração local e 
que constituíam um elo essencial na cobrança dos impostos. No norte do reino, 
região estrategicamente importante em virtude da sua posição em relação ao 
Egito, a direção dos negócios cabia a um funcionário especial (Pqr, Pakar) que era 
certamente um filho do rei reinante e um dos herdeiros possiveis do trono. 
A posição do reino e os seus recursos próprios fizeram de Meroé um 
intermediário nos negócios internacionais da Antiguidade. Apesar da seca 
e da raridade das terras cultivadas, a agricultura ocupava a maior parte da 
população, fornecendo ao mesmo tempo viveres (trigo, centeio e sobretudo 
sorgo completados pelas uvas assim como pelas lentilhas, abóboras, melões 
e pepinos) e o algodão, matéria prima de wn dos artesanatos mais ativos. 
A adoção da irrigação foi precoce, atestada desde os fins do século XV a.C. 
e utilizava em primeiro lugar o kole, máquina acionada pelo homem e cuja 
importância se vê pelo número de topônimos formados a partir desta palavra, 
e depois a saqia, acionada principalmente pelo búfalo. No coração do reino, 
a "ilha de Meroé" era preferencialmente especializada na criação de gado. A 
agricultura era organizada com base nas comunidades aldeãs, o que não exclui 
- 85-
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o trabalho dos escravos nas terras do rei, dos dignitários político-militares e 
dos templos. A arqueologia forneceu provas de um grande desenvolvimento 
do artesanato: pedreiros e profissões ligadas à construção, cuja obra se vê no 
número de sítios u(banos exumados até agora; trabalho do ferro que levou 
a qualificar Meroé de "Birmingham da África antiga" (A.H. Sayce, 1911); 
joalheria que deu jóias em ouro notáveis, reservadas às rainhas e às princesas; 
cerâmica feira à mão pelas mulheres ou no torno pelos homens, trabalhando 
as primeiras para as necessidades domésticas, os segundos para o mercado e 
as classes abastadas da sociedade. 
Às mercadorias criadas pelos artesãos, acrescentavam-se os p(odutos 
da caça e da coleta conhecidos desde os tempos mais recuados (marfim, peles 
ele leopardo, plumas de avestruz., ébano, pedras preciosas). para assegurar 
vigorosas correntes de troca. Um dos produtos mais procurados era o ouro, 
extraído principalmente de territórios situados entre o Nilo e o mar Vermelho 
e do qual Meroé produziu cerca de 1600 toneladas durante a Antigüidade. O 
comércio punha o reino de Meroé em relações contínuas com o Egito, seu 
parceiro principal, e com o mar Vermelho e os paises situados para além dele, 
mas também com o Kordofã, o Darfur e, pelo vale do Nilo, com os países da 
África profunda. É poss{vel que o camelo, cuja presença no primeiro século a.C. 
é provada por uma peça de bronz.e proveniente do túmulo do rei Arikankharer 
( -25/-15), tenha contribuído muito cedo para o desenvolvimento destas trocas. 
Fonte de riqueu para o reino, o comércio exterior trouxe-lhe também uma 
dA~ c~ usas estruturais da sua fragilidade . Era-lhe, com efeito,constnntcmcntc 
necessário controlar os povos nômades que ameaçavam a segurança das 
estradas comerciais: nobas, a ocidente, blemmyes (bedja?), a leste. Para mais, 
a riqueza material do reino assentava em grande parte na procura exterior. Do 
primeiro ao século IIl da nossa era, o reino não cessou de declinar, conseqüência 
simultânea da evolução do mundo mediterrâneo e da audácia dos povos 
nômades. A eliminação definitiva de Meroé perante a hegemonia ascendente 
de Axum vem precisamente da incapacidade do primeiro em conter os povos 
nômades dos quais o segundo conseguiu tornar-se senhor. 
2. Axum 
O nome de Axum - nome do reino e de sua capital -aparece nas fontes 
escritas nos princípios da era cristã: primeiro na Geografia de Cláudio Ptolomeu 
(século 11), depois nas Kephalaia do persa Mani (fim do século Ill), enfim no 
Périplo do mar Eritreu, cuja data é muito discutida (entre os séculos I e 111). A 
emergência de Axurn deve estar provavelmente relacionada às evoluções do 
negócio internacional através do mar Vermelho. É significativo que as fomes 
escritas antigas, muito atentas às atividades comerciais, assinalem a existência 
e o dinamismo do porto de Adulis (situado a 50 km do porto atual de Massua) 
muito antes da aparição nos textos do nome de Axum. Pllnio, o Velho, (23/79) 
- 86 -
descreve-o como "o maior porto dos trogloditas e também dos et!opes". Do 
século lll ao VI, no momento da sua maior prosperidade, Axum controlava 
com o estreito de Bab el-Mandeb uma das três encruzilhadas comerciais mais 
importantes do mundo antigo (com os estreitos de Málaca e de Gibraltar) 
e impunha-se como intermediário obrigatório nas trocas entre os países 
do Mediterrãneo por um lado e, pelo outro, os pa!ses da Ásia oriental e da 
Azânia. 
Uma exceção historiográfica? 
Axum é, sem a m!nima dúvida, o primeiro Es tado africano a respeito 
do qual possuímos fontes muito variadas e complementares, mesmo se a sua 
interpretação não deixa de suscitar intermináveis interrogações e discussões. 
É, além disso, notável que as mais ricas destas fontes sejam de origem interna. 
Trata-se, em primeiro lugar, de pequenos objetos de interesse arqueológico e 
sobretudo destas ru!nas impressionantes- edifícios reais, religiosos e outros, 
sempre de dimensões imponentes, túmulos e "casas" funerárias. esteJas das 
quais a mais alta, ultrapassando 33 metros, inclui nove andares, bases maciças 
de tronos hoje desaparecidos- sobre as quais há vários séculos se tinha cha-
mado a atenção. Já em 1524. o padre Francisco Álvares descreveu com minúcia 
"a muito grande cidade de Aquaxumo ... vári~s pedras levantadas e outras pelo 
chão, muito grandes e muito belas, e decoradas com belos desenhos". Vários 
viajantes do século XVIll deram por sua vez conta de "agulhas piramidaiS." 
e de "obeliscos" que os arqueólogos inventariariam em número ainda mats 
elevado. Estes diversos monumentos cobrem, na costa eritréia e ao norte da 
Etiópia atUal, uma superflcie de 300 km de comprime?to e 160 km de largo, 
correspondendo, no geral, à parte central do reino. E também a parte que 
reône um certo número de recursos propícios à concentração dos homens e 
à construção de ediflcios duradouros: água em primeiro lugar (may) presente 
em numerosos topônimos de Ax.um (May-Abagat, May-Hedja, May-Laylaha, 
May-Malahso, May·Qoho ... ), a pedra e a madeira em seguida. 
As inscrições gravadas na pedra constituem outra fonte particularmente 
fecunda . As mais antigas, utilizando uma escrita sul-arábica, remontam 
ao período "pré-axumita" (séculos V-I a.C.) . As mais numerosas incluem 
inscrições à glória de alguns reis e atribu!das a Ezana (século IV), Kelab e um 
dos seus filhos (século VI), e textos de natureza jur!dica ou religiosa. Alguns 
destes textos eram em escrita e língua gregas, a maior parte em Ungua gueze -
Jlngua oficial e usual no reino, mais ou menos a partir do século IV -, utiliz.ando 
às vezes uma escrita sul-arábica, mais freqüentemente a escrita edope cujos 
caracteres aparecem a partir do século li, para se fixar definitivamente dois 
séculos mais tarde. Foi também no século IV que começou a tradução da Bíblia 
e de outros textos religiosos cristãos do grego para o guez.e. Acham-se t~bém 
inscrições num outro tipo de fontes: as moedas. Cunhadas a partir do reino 
- 87 -
I I 
de Endybis (segunda metade do século 111) utilizando o modelo das moedas 
bizantinas, estas moedas em ouro, prata e na maior parte dos casos bronze 
fornecem a lista mais longa dos nomes de reis axumitas. E são igualmente 
muito instrutivas para a história cultural do reino. As legendas ai foram 
escritas primeiro em grego, depois em escrita etlope. Os slmbolos ut.ilizados 
foram primeiro os de uma religião local (dísco sobre crescente, sim bolo lunar 
associado ao deus Astar) depois a cruz cristã. 
Enfim, os textos particularmente numerosos provêm simultaneamente 
do "interior" e do "exteriorn. "Fontes externas", a longa série de textos gregos 
de Her6doto (século V a.C.) a Cosmas Indicopleustes (século VI d.C.) nem por 
isso é menos fecunda para o trabalho do historiador. Com efeito, não nos revela 
apenas a lógica, as maneiras de fazer e os resultados de uma visão externa da 
história axumita. Incluem também a transcrição pura e simples de numerosas 
tradições locais e de inscrições, algumas das quais desapareceram. É assim 
que a célebre inscrição de Adulis relatando as expedições de um rei de Axum, 
datada do século li ou do século 111 e conhecida sob o nome de Monumentum 
Adulitanum, foi recopiada no século VI por Cosmas lndicopleustes e reproduzida 
na sua Topografia Cristã. De importância crucial, sobretudo pela possibilidade 
que abrem à datação de certos acontecimentos, estes textos revelam-se de 
interpretação difícil, a partir do momento em que se pretende extrair deles os 
elementos de uma geografia humana do reino de Axum. Os etnônimos são na 
maior pane das vezes vagos e sugestivos, em particular aqueles que remetem 
para as práticas alimenrares dos povos desta regi:ío e que em:uulrrunos ua 
maior parte dos autores gregos, Her6doto, Agatarquide, Diodoro de Sicília, 
Eslrabão ou Artemidore' agridófagos, quelenófagos, elefant6fagos, hil6fagos, 
ictiófagos, crcófagos, moscófagos, rizófagos, espermatófagos. Outros, tais como 
os trogloditas mencionados por Her6doto ou os asacae, caçadores de elefantes, 
de Pllnio, o Velho, são difíceis de localizar. 
A longa lista triunfal, que dá o Monumentum Adulitanum, dos povos 
combatidos e vencidos por Axum, não é menos dificil de explorar na medida em 
que, evidentemente, estes emónimos não correspondem a nenhum povo hoje 
conhecido. Parece mesmo que até o século VI estes textos fazem a distinção 
entre "axumitas" e "etíopes", designando os primeiros os prlncipes e súditos 
do reino de Axum, ao passo que a Etiópia se referia a um território mais vasto, 
transbordando deste reino para norte e para sul e integrando populações não 
controladas ou mal controladas por Axum. Os textos escritos ellopes (no 
senlido atual desta palavra) são demasiado tardios para ser inteiramente 
fiáveis. Assim, o Tarik Negaste (A história dos reis) e o Kebra Negaste (A glória dos 
reis) redigidos no século XIV aparecem - entre outras características - como 
tentativas de legitimação histórica dos reis axumitas depois et!opes por via 
do estabelecimento de fÜiações, hoje consideradas como fictlclas, entre eles 
por um lado, e, pelo outro, a rainha deSabá e o re i Salomão. Estas incertezas 
- 88-
continuam a ser contudo menores e Axum é um dos primeiros Estados africanos 
conhecidos. 
A crônica triunfante da construção do Estado 
se 0 período indo do século V ao I a.C. chamado às vezes "pré-axumita" 
está ainda velado pela obscuridade, entra-se num terreno cada vez melhor 
conhecido a partir do começo da era cristã. Mais ou menos entre o século I e 
0 século VI, a mobilização de formasdiversas de construção do Estado andou 
de par com a elaboração de uma polltica exterior muito ativa num espaço 
geopolítico muito amplo englobando, de um lado e outro do mar Vermelho, 
a África e a Ásia, e que é possível representar como um arranjo complexo 
de cfrculos concêntricos dos quais o primeiro, o dos vizinhos imediatos, 
incluía inimigos potenciais que era preferível submeter. O segundo, inclula as 
potências do momento- o Egito, o império persa, o império romano, Bizâncio, 
a Cristandade -, um reservatório de aliados. 
Os processos internos e as estruturas do Estado são, em virtude da 
ausência ou do silêncio das fontes, os aspectos menos conhecidos desta 
evolução de muito longa duração. Ninguém encontrou, fora da lenda, 
narrativa relativa a algum herói fundador, instaurando uma continuidade 
entre o período "pré-estatal" e um período "estatal". De acordo com a lenda, 
a serpente" Arwe", objeto de um culto pré-axumita, teria sido também "Arwe 
Négus", o primeiro reí reinante, pai da rainha deSabá. A existência de uma 
linhagem de reis controlando diretamente um território de limites geográticos 
relativamente estáveis e apoiando-se numa legitimidade reconhecida autoriza, 
sem dúvida, a falar-se de reino, mesmo se o seu modo de funcionamento 
continua a ser largamente hipotético. A línhagem real dava ao Estado não só 
o rei, mas também os dignitários principais: membros do uconselho real H ou 
de uma estrutura restrita equivalente, participando na definição da polltica do 
reino, na tomada de decisões e na designação, se tal fosse necessário, de um 
regente. Alguns propõem também que se aplique a este "reino" o conceito 
de "império", como sugerem as fontes gregas. Estas reservam ao soberano 
de Axum o título de basileus (rei) e distribuem aos hierarcas que dependem 
dele títulos tais como "arcontes", "etnarcas" e "tiranos". Mas o termo axumita 
aplicado a uns e a outros era "négus", dado tanto a certos dignitários, tais 
como os chefes do exército, como aos dirigentes das unidades pollticas mais 
restritas- reinos submetidos a Axum, assim como "tribos" e povos diversos, 
"cidades-Estado" tal corno Adulis, principados e/ou populações sem chefe às 
quais o soberano de Axum decidia impor um. Assim, os chefes das "tribos" 
bedja, que controlavam cada um de 200 a 275 homens adultos- ou seja 1.000 
a 1.500 indivíduos - , viam-se outorgar o mesmo titulo de négus. Todavia, certas 
fontes árabes pré-isHhnicas reservam o titulo de mlk' (rei) ao soberano de Axum. 
Deve se tirar a partir desta situação a conclusão de que, a partir desta 'época, 
- 89-
'• 
o rei de Axum era já o todo-poderoso négus negast (rei dos reis) coroando um 
edificio de estrutura "imperial"? De fato, nos territórios onde o "rei" podia 
intervir diretamente, o Estado funcionava como um "reino tributário" no qual 
o reconhecimento da autoridade suprema cabia ao négus negast: a submissão 
só se manifestava em certas ocasiões, nomeadamente quando se registrava a 
entrega anual do tributo e quando se levantavam tropas para a guerra. 
As guerras travadas pelos reis de Axum eram de dois tipos diferentes: 
"guerra de conquista". na qual os vencidos e.ram reduzidos ao estado de objetos 
dos quais o vencedor podia dispor à sua vontade, e "guerra de pacificação", 
consistindo em voltar a impor a submissão aos "vassalos" e "dependentes" que 
tivessem aftrmado ou manifestado de maneira excessiva a sua autonomia ou 
a sua independência, estando entendido que entre estes dois tipos extremos 
as situações intermediárias eram muito numerosas. Estas duas lógicas são 
claramente trazidas à luz pela inscrição relatando a campanha levada a cabo 
no século IV por Ezana, nas fronteiras ocidentais de Axum, contra os nobas e 
os kasu, que parecem ter sido tributários de Kush e talvez já de Axum: 
Pela força do Senhor do céu que me deu a realeza, o Senhor do universo em 
que acredito, Eu, o rei que não foi vencido, que nenhum inimigo se ponha 
diante de mim e que nenhum inimigo me siga. Pela força do Senhor do 
universo, fiz guerra aos nobas, quando as tribos dos nobas se revoltaram, 
quando se revoltaram e se gabaram e disseram: "ele nllo passará pelo Thkkazl" 
[ ... ] Então declarei-lhes guerra e pus-me a caminho, pela força do Senhor da 
terra, e combati no Takkaz.i. em face de Temalk~. e eles fugiram sem parar, 
persegui os fugitivos durante vinte e três dias, matando, fazendo prisioneiros e 
capturando despojos em toda a pane onde parava, enquanto as minhas tropas 
que saiam regressavam com prisioneiros e despojos, e eu queimava as cidades 
de pedra e aquelas que eram de palha, as minhas tropas pilhavam o seu t.rigo, 
o sey bronze, o seu ferro e destrufam os !dolos em suas casas, e os armaz.éns 
de trigo e de algodão; elas atiravam pessoas ao rio Seda, muitos pereceram 
na tgua, n§o se sabe o número, enquanto elas afundavam com seus barcos 
cheios de uma multidão de pessoas, de mulheres e de crianças. (AJ. Orewes 
e R. Schneider, Origine t f dévtloppmrnt dt l'kriture lthiopitnnt jUJtju'd /'ipo<Jur dts 
inscriptioru r<>yales d'Axoum, Annales d'Ethiopie, XIV, 1987, pp. 43-69) 
É necessário salientar que estas guerras participavam diretamente 
na prosperidade econômica do Estado. Quer tenham se beneficiado de um 
privilégio de "exclusivo comercial" ou que a sua fortuna fosse o produto de 
herança principesca uu de guerras estatais de pacificação ou de conquista, os reis 
e os dignitários de Axum encontravam nestas guerras o meio de aumentar a sua 
fortuna material e a sua capacidade de participação no negócio internacional. Se 
os rebanhos acumulados por ocasião das guerras eram dificilmente negociáveis, 
já não acontecia o mesmo com as pessoas, que se tornavam mercadorias de 
tráfico. Mais globalmente, o tributo pago pelos Estados e pelos povos vencidos 
- 90-
era na maior parte dos casos convertido em mercadorias destinadas ao comércio 
internacional. 
No plano da "política estrangeira", os reis de Axum organizaram a partir 
do século I uma polltica continua de expansão que iria fazer do reino uma 
das potências "mundiais" desde os primeiros séculos da era cristã. A partir 
do século III - ou seja, a partir do momento em que as fontes se tomaram 
disponíveis-, vê-se Axum lançar-se numa "polhica árabe" muito ativa e muito 
complexa, feita de uma sucessão de guerras e de alianças facilitadas pela 
divisão da Arábia em três Estados rivais: Saba, Hadramawt e Himyar. Com 
efeito, as inscrições encontradas no sul da Arábia, do século IIJ (uma vintena 
no total), evocam freqüentemente as invasões e a presença dos Aksuman 
(axumitas) e dos Ahbashan (abissfnios). A persistência destas guerras 
exteriores é confirmada pelo Monumentum Adulitanwn, e por inscrições gravadas 
numa estela e no trono de um rei guerreiro, senhor de um grande exérci to 
terrestre e de uma poderosa marinha de guerra, cuja identidade continua a ser 
desafortunadamente desconhecida: 
'Jbdos estes povos, primeiro e único dos reis que me precederam, submeti-
os: é por Isso que dedico reconheclmemo nos mais Importantes dos meus 
deuses, a A rés, que me engendrou e graças ao qual submeti ao meu poder 
todos os povos que são vizinhos do meu país, do lado do Oriente até à terra 
do incenso, do lado do Ocidente até aos territórios da Etiópia e de Kasu, a 
uns indo ao seu território e vencendo-os eu próprio, enviando aos outros 
os meus exércitos, e, tendo estabelecido a paz no universo imeiro que me 
está submetido, desci até Adulis para oferecer sacrlflcios a Zeus e a Arés, 
e também a Poseidon, a fim de que proteja os meus marinheiros; tendo 
reunido todos os meus exércitos para fazer um só, acampei neste lugar e fiz 
dom deste trono a Arés no vigésimo sétimo ano do meu reino. (W. Wolska-
Conus, ed., Cosmas lndie<>pltustts. Topogrophit Chrltitnnt. UVTo li, 63, Paris, Le 
Cerf, v. I, 1968, pp. 376-78) 
Redigidas por volta de 240 d.C., os Kepltalalado persa Mani confirmam 
a força de Axum: "Há quatro grandes reinos no mundo: o primeiro é o reino 
da Babilônia e da Pérsia; o segundo é o império wmano, o terceiro é o reino 
dos Axumitas; o quarto é o reino de Silis (China?]". Os sucessores deste rei 
guerreiro prosseguiram a mesma polftica, como indica a titulação de Ezana, o 
rei melhor conhecido do século IV: "Pela força do senhor do céu, que, no céu 
como na terra, é vitorioso por mim, eu Ezana, ftlho de Ella-Amida, o homem 
de Halen, rei de Axum, de Himyar, de Raydan, deSabá, de Sahlen, de Seyamo, 
dos bega, dos kasu, rei dos reis, filho de Ella-Amida, que não foi vencido pelo 
inimigo". Se não dispomos de fontes sul-arábicas confirmando a continuidade 
da submissão da Arábia, sabe-se, ern contrapartida, que Ezana guerreou sem 
descanso nas fronteil·as do leste e do sudeste contra os bedja, povo nômade 
independente vivendo nos confins de Axum, da Núbia e do Egito, e contra 
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os noba e os kasu, sujeitos rebelados contra o rei axumita. Não se conhece a 
evolução da força de Axum após a mone de Ezana, que se verificou em meados 
do século IV. A Expositio Totius Mundi et Gentium, redigida nesta época, continua 
a louvar a força e as qualidades militares dos axumitas. Mas parece que os 
territórios periféricos sujeitos a Axum tinham começado então a libertar-se. 
Himyar, na Arábia, deve ter sido um dos primeiros a lançar-se nesta via a 
partir do século IV, inaugurando um processo que se deve ter prolongado no 
século seguinte. Foi necessário esperar o século VI para que, sob a impulsão 
de Ellatzabaas ou Kaleb, bem conhecido graças a várias inscrições em Hngua 
gueze e pelas crônicas históricas gregas de João Malaias e de Procópio, Axum 
procurasse recuperar a sua antiga força. Tornada cristã, Axum guerreou de novo 
contra Hyrniar que, tendo adotado a religião judia, perseguia os seus súditos 
cristãos. Esta política recebeu o apoio do patriarca de Alexandria e, sobretudo, 
de Roma, que deu a Ellatzabaas um apoio logístico no decurso das campanhas 
contra Himyar. Depois da sua vitória de 518, os axumitas apressaram-se a 
instalar no trono de Himyar primeiro um nativo cristão, depois um ablsslnio, 
Abraha. Himyar devia manter-se sob o controle de Axilm até a sua conquista 
pelos persas em 572. Esta força recuperada valeu a Axurn outras simpatias, em 
particular a de Bizâncio, cujo imperador Justiniano (527-565), ansioso face às 
ambições da Pérsia, enviou várias embaixadas à corte do reino africano. 
Uma civilização próspera e brilhante 
Os fervllhamemos, os fluxos e refluxos desta história político-militar 
contrastam com os movimentos muito mais lentos de uma prosperidade 
em crescimento contínuo e de mutações culturais chamadas a marcar muito 
duradouramente o futuro do Chifre da África. 
A própria natureza das fontes disponíveis e o controle apertado do 
comércio por parte do Estado determinaram que as trocas internacionais 
e interiores representassem o aspecto que é de longe o mais conhecido da 
economia de Axum. Esta não era, contudo, urna "economia de trânsito". 
Tudo se passa como se as trocas, cujos principais beneficiários eram o rei e os 
dignitários do reino, dependessem das atividades de caça e de coleta, ao passo 
que a economia de produção servia quase exclusivamente para a subsistência 
das pessoas. Üs raros dados disponíveis a respeito do regime alimentar (bolos 
folhados de trigo e carne, acompanhados por mel, manteiga, vinho. cerveja e 
hidromel) referem-se sem dúvida às categorias sociais dirigentes mais do que 
à massa do povo. A .agricultura conhecida através de algumas inscrições, era 
praticada em terraços instalados nos flancos das colinas. Utilizavam charruas 
puxadas por bois e a irrigação para produzir trigo e outros cereais, assim como 
vinho. Ao lado dos bovinos, os camponeses axumitas criavam carneiros, cabras, 
mulas e burros. Os elefantes, que eles tinham conseguido domesticar, serviam 
unicamente à corte real. Do artesanato, não se conhece mais do que o trabalho 
- 92-
dos canteiros, dos pedreiros e dos carpinteiros, cujas construções gigantescas 
sobreviveram até agora, assim como o dos ceramistas. homens ou mulheres, 
de que a arqueologia exumou restos muito numerosos: taças e tigelas, pratos, 
marmitas, cântaros, jarros, nos quais aparecem decorações mais ou menos a 
partir do século VI. 
Em virtude da sua posição, Axum ocupava um lugar central como ponto 
de passagem ou como parceiro integral nas trocas entre o impérío romano e, 
pelo mar Vermelho, os países da Ásia e da Azânia. Este comércio apoiava-se 
numa rede de cidades onde podemos distinguir três níveis simultaneamente: 
Axum, capital política e econômica; Adulis porto do reino e empório do negócio 
internacional; entre os dois, as cidades situadas nas extremidades do planalto 
e servindo de escala. O Périplo do mar Eritreu descreve Adulis como "um porto 
criado em virtude da lei. .. [É] uma aldeia de assaz grande extensão, de onde há 
três dias de viagem até Koloé, uma cidade do interior e o primeiro mercado do 
marfim. Deste lugar à cidade do povo chamadoAuxomitoi (Axumitas), há ainda 
cinco dias de viagem. É lá que chega todo o marfim provindo do pais para lá 
do Nilo através da região chamada Kyneios (Senar) que da f segue para Adulis. 
Quase todos os elefantes e os rinocerontes abatidos vivem no interior, se bem 
que de tempos a tempos, sejam caçados na própria costa nas proximidades 
de Adulis". É também o Périplo do mar Eritreu que nos informa a respeito das 
mercadorias trocadas: 
Imponam-se nestes lugares estofos sem preparo fabricados no Egito pelos 
bárbaros; vestuários de Arsinoe [cidade do cgíto, próxima à atual Suez]; 
mantas de qualidade medíocre tintas em diversas cores; cobertores de linho 
com franja dupla; numerosos artigos de cristal, outros de murano feitos 
em Diospolis [Tebas?]; latão utilizado como ornamento e em fragmentos 
em lugar de moeda; folhas de cobre para fazer utensflios de cozinha e que 
se cortam em pulseiras e argolas de tornozelo para as mulheres; ferro 
com que se fazem lanças empregadas contra os elefantes e outros animais 
selvagens e nas suas guerras. [ ... ].Assim também na região de Ariaca [golfo 
de Gambay, na fndia] , do outro lado deste mar, obtêm-se ferro indiano, aço 
e tecido de algodão indianos, pano largo chamado monaca e aquele a que 
se chama sagmatogêneo, cintos, vestuários de couro, tecido de cor malva, 
alguma musselina e laca de cor. Destas regiões exportam·se marfim, casco 
de tartaruga e corno de rinoceronte. A maior pane daquilo que af se traz é 
levado para este mercado de janeiro a setembro, quer dizer de Tybl a Tote, 
mas às vexes lançam-se ao mar por volta de setembro. (R. Mauny, "Le Périph' 
de la mer Erythrée et le probleme du commerce romain en Afrique au sud 
dulimes",]ournal dela Socihi des africanistes, 38, 1968, pp. 19-34} 
A esta lista, confirmada pelas escavações arqueológicas de Axum, Adulis 
e Matara, é necessário acrescentar os produtos alimentares: importação de 
azeite e de vinho de Laodiceia (Síria) e da Itália, de cereais, de vinho e.de suco 
- 93-
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de uva do Egito, de trigo, de arroz. de m ilhete (eleusint africana), de cana-de-
açúcar e de ó leo de gergelim da Índia; exportação de trigo de Axum. As cidades 
axumitas mais importantes abrigavam pequenas comunidades de comerciantes 
estrangeiros: romanos e bizantinos, assim como árabes e indianos. Enxertavam-
se nestas redes as trocas a longa distância africanas, em particular o comércio 
do ouro de Sassou ("nas paragens do qual se encontra a nascente do Nilo") que 
Cosmas lndicopleustes descreveu no século VI, recorrendo talvez ao mesmo 
tipo de narrativas mais ou menos lendárias nas quais Her6doto encontrara 
a famosa descrição do "comércio mudo", feito pelos cartagineses na África 
ocidental: 
De dois em dois anos,o rei dos axumitas, por in1erm~dio do chefe de Agaw 
envia os seus homens para o comércio do ouro. Muitos outros comercian1es 
se juntam a eles. de maneira que são mais de quinhentos. Levam bois, pedras 
de sal e ferro. Chegados per!o do pafs, param ali mesmo. Empilhando uma 
quantidade de arbustos espinhosos, cons!roem uma grande ce rca e mantém-
se no ln!erior; abatem os seus hois, conam·nos em pedaços e expõem a 
carne sobre os arbustos assim como as pedras de sal ~ o ferro. Chegam 
então os lndJgenas trazendo as pepi1as de ouro, grandes como grãos de 
feijão, e que se chamam tagkhara; põem uma ou duas, ou mais em cima dos 
pedaços de carne que lhes agradam, em cima dos blocos de sal ou em cima 
do ferro, e põem-se de lado. O proprietário do boi aproxima-se, e, se está 
satisfeito, recupera o ouro; o indígena por sua vez, sobrev~m e leva a came, 
as pedras de sal ou o ferro: inversameme, se o vendedor nfo está satlsfeito, 
deixa o ouro; então o outro, vendo que o vendedor n~o o recuperou, regressa; 
e emAo ou acrescenta ouro, ou então pega no que lhe pertence e afasta-se. 
(W. Wolska·Conus(ed.), Cosmas lndicopf•ums. Topogrophie Chrl!ienn<, Livro 11, 
51·52, Paris, Le Cerf, vol.l, 1968, pp. 360·62) 
Com um enraizamento profundamente africano, a cultura axumlta 
revela muito cedo um autêntico cosmopolitismo. Nos restos materiais dos 
periodos "pré-axumitas" dominam empréstimos à civilização meroltica e 
particularismos locais, tanto do ponto de vista da arquitetura, da escultura, 
da cerâmica, como no domínio das crenças e das práticas religiosas, coisas 
que Axum herdou, conservadas ou enriquecidas, conforme os casos. As 
influências estrangeiras, já presentes no per lodo "pré-axumita", sobretudo 
provenientes da Arábia do sul, tornam-se mais evidentes a partir do século 
l1l mais ou menos. A Hngua grega era utilizada, tal como o gueze, como 
Hngua da monarquia, e muitos re.is, entre os quais Zoscalés (século I) e 
Ezana (século IV), falavam e escreviam grego. No que se refere à escrita, que 
Axum transmitiu à Etiópia, ela tomou alguns dos seus prindpios e dos seus 
elementos tanto à Arábia do sul como à india. Mas Axum não se contentou 
em receber as influências estrangeiras; a sua cultura também irradiou para 
ambos os hidos do mar Vermelho, mesmo se este aspecto tem sido pouco 
-94-
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estudado até agora. Foi avançada a hipótese, por exemplo, segundo a qual 0 
criador da escrita armênia, Mesrop Mashtotz, teria utilizado a escrita axumita 
vocalizada para inventar a sua. 
Foi no plano religioso que estas trocas atingiram o alcance mais 
duradouro. Os cultos pré-axumitas prolongaram-se muito além das mutações 
religiosas operadas no principio da era cristã. Estes cultos assentavam num 
vigoroso politeísmo no qual emergem vários deuses aos quais os axumitas 
sacrificavam animais domésticos (bois, vacas e ovelhas): Astar, divindade 
cósmica, cujo culto fo i muito popular; Beber e Meder, divindades ctônicasl 
freqüentemente associadas uma à outra; Mahren, d ivindade étnica e dinástica 
dos axumitas, também venerada como deus d~ guerra. Cultos egípcio-
meroíticos entraram muito cedo na região, como mostram algumas referências 
a objetos servindo para o culto dos deuses egípcios como Hantor, Ptah e 
Hórus. Desde o princípio do período axumita, poderosas influências religiosas 
penetraram no país. As mais visíveis foram gregas. Os axumitas adotaram 
certos deuses gregos dos quais não possuíam o equivalente: assim Poseidon, 
deus dos Mares, tornou-se muito popular em Adulis e em toda a costa do 
mar Vermelho. Mas outros deuses gregos foram assimilados a deuses pré-
axumitas, sendo o exemplo mais surpreendente a associação de Mahren com 
o grego Ares, o deus da guerra. Com a Arábia do sul. as trocas religiosas eram 
intensas e remontavam às épocas mais antigas. Da Arábia veio o judaísmo que 
foi associado durante algum tempo, como indica o Tarik Negaste (História dos 
reis), ao grupo dirlgeme. Até se encontraram em Axum estátuas de Buda que 
indicam menos uma conversão dos axumitas ao budismo do que a presença 
dos comerciantes indianos na capital do reino. 
Nesta perspectiva, a penetração do cristianismo no reino não é de molde 
a surpreender. Data, aproximadamente, dos anos 330-360 correspondendo 
ao reino de Ezana. De acordo com as tradições reais registradas no Tarik 
Negaste, a glória desta iniciativa caberia a Frumêncio, um cristão de Tiro que, 
no regresso de uma viagem à Índia, parou em Axum e conseguiu introduzir-
se na corte na época de Ella-Amida. Nomeado conselheiro do rei e preceptor 
dos seus filhos, teria tido uma grande influência sobre Ezana. Tendo partido 
para Alexandria, Frumêncio fez-se consagrar bispo e voltou a Axum onde 
batizou o primeiro rei cristão de Axum. Ezana. Mais do que a iniciativa de 
um só homem, a cristianização de Axum inscreve-se na história muito mais 
ampla das trocas comerciais e culturais entre esse reino africano e Bizâncio/ 
Constantinopla. O reino de Constantino, o Grande (imperador de 306 a 33 7), 
é contemporâneo do rei axumita Ella-Amida. Este e uma parte da sua corte 
parecem ter sido sensíveis às querelas doutrinais dividindo os cristãos nesta 
época e à exaltação do cristianismo na esteira do Concílio de Nicéia (325). 
O batismo de Ezana não foi mais do que um momento - sem dúvida o mais 
espetacular, de um processo de cristianização mais lento, que não se verificou 
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sem suscitar grandes resistências. A comparaç11o das versões gregas e guezes 
das inscrições reais, quando as dua~ existem, é muito instrutiva a este respeito. 
Possuímos uma do reino de Ezana, datada de mais ou menos 350, exaltando a 
vitória deste rei sobre os boba e os kasu da Núbia. O texto grego, visivelmente 
destinado a impressionar favoravelmente os visitantes estrangeiros, exalta 
Ezana coíno "servidor de Cristo", e põe em evidência um apego sem falhas ao 
cris tianismo. Em contrapartida o texto gueze, destinado ao povo de Axum, 
referia-se unicamente ao monoteísmo. De resto, um dos conceitos designando 
o deus dos cristãos - Egziabher (deus Beher) -estabelecia uma continuidade 
expHcita entre o novo deus e a antiga divindade crônica Beher. 
Podem se fazer observações análogas a respeito da difusão do cristia-
nismo no reino. As tradições reais e monásticas etíopes atribuem-na a "nove 
santos" (Teseatu Kidttsall) - Afsé, Alef, Aragawi, Gari ma, Guba, Liqanos, Pan-
talewon, Sehma, Yimaata - que teriam vindo de "Roma•. Também aqui se 
trata de uma narrativa de fundação, na qual se apóiam as diferentes ordens 
monásticas etíopes declarando descender destes "nove santos". Houve certa-
mente um afluxo para Axum de monges monofisistas fugindo às perseguições 
de que eram vitimas na Síria e que se ilustraram depois pelo seu proselitismo. 
Mas a propagação do cristianismo deveu também muito à ação combinada dos 
prelados e religiosos axumitas e dos prlncipes que, a partir do século IV. procu-
raram materializar a ocupação do território construindo igrejas e encontraram 
na distribuição de terras às ordens monásticas um meio cômodo de tomar 
efetivamente posse dos territórios submetidos à sua autoridade. 
Estas evoluções contrastadas, de Meroé a Axum, iam revelar-se de um 
efeito duradouro na formação de espaços politicos na África A desaparição 
do reino de Meroé acabou por consagrar a cesura inaugurada no século Vil 
a.C. com a queda no Egito da XXV dinastia e opondo um Egito cada vez mais 
mediterrânico e uma Núbía cada vez mais africana. Nos países situados mais 
a sul do seu território, o Egito via apenas, a partir de então, reservatórios de 
mercadorias e postos fronteiriços destinados a serem neutralizados, ou então 
conquistados. Se Meroé desapareceu do mapa político africano, persistiu na 
memória, nas instituições políticas e nas culturas materiais do continentenegro. Devemos ver nas tradições de origem de alguns povos oeste-africanos e 
centro-africanos que evocam homens vindos de leste uma referência à herança 
meroltica e considerar a presença, em algumas regiões da África, de práticas 
registradas pela primeira vez em Meroé (realeza sagrada, técnica da cera 
perdida, trabalho do ferro) como uma influência direta deste reino? Podemos 
também satisfazer-nos em considerar que estes parentescos remetem para um 
fundo cultural comum. Com Axum enfim, novo centro de gravidade polltica 
destes períodos antigos, a África possula em seu "chifre" a base de um dos 
seus espaços pollticos mais duradouros. 
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NOTAS 
1 Abrange várias es~es de peixes fluviais europeus que lembram bagres de :igua doce 
(Nota do Revisor da Tradução). 
2 De Chthonia que, em grego, significa "da terra· (N. R. da T). 
- 97 -
1-
LEITURAS COMPLEMENTARES 
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O conhecimento adquirido: uma outra África a redescobrir 
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