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1 FUPAC - MARIANA 2 iii FUNDAÇÃO PRESIDENTE ANTÔNIO CARLOS (COORDENADORA) DIREITO: ATUALIDADES E ENSINO 1ª Edição MARIANA, FUPAC-MARIANA 2016 iv Ficha catalográfica * A revisão textual é de responsabilidade dos autores de cada ensaio ou artigo do livro. DIREITO: ATUALIDADES E ENSINO Fundação Presidente Antônio Carlos (coordenadora). Direito: atualidades e ensino. 1 edição. Mariana: FUPAC-MARIANA, 2016. 432 p. ISBN: 978-85-98974-19-4 Coletânea de textos do 3º Concurso de Ensaios Acadêmicos da Faculdade Presidente Antônio Carlos de Mariana e de artigos científicos dos professores da instituição. Capa e diagramação: Magna Campos 1. Direito. 2. Atualidades Jurídicas. 2. Ensino Jurídico. 4. Direito: contemporaneidade e ensino. v Autores Adrielly Coelho Alessandra Sayonária Amanda Fonseca Ana Cláudia Macedo André Luis Pereira Aparecido José dos Santos Ferreira Camilla Coelho Quirino Carlos Randel Crepalde Mafra Daiane Estevam Déborah Cristina de Fátima Moutinho Emanuelle Cerceaux Fabiano César Rebuzzi Guzzo Flávia Regina Gonçalves Viana Israel Quirino Joana DArc Aparecida de Oliveira José Carlos Henriques Magna Campos Michele Aparecida Gomes Guimarães Nilson Gonçalves do Nascimento Nordeci Gomes da Silva Patrícia Margarida da Mapa Raphael Furtado Carminate René Dentz Ricardo José de Carvalho Rodrigo Ferreira Shirlene de Oliveira Sales Waldir Araújo Carvalho Yasser Jamil vi Prefácio Presenciei desde a criação, toda história de nossa instituição de ensino superior, degrau por degrau, por meio da construção coletiva de um projeto de futuro, por isso, honra-me profundamente, como diretora e acadêmica, prefaciar a 3ª edição da coletânea de artigos e ensaios acadêmicos de nossos alunos-colegas e professores. Ao ler cada texto, tive várias sensações e impressões, porém, o que mais me marcou foi a certeza de que a cada edição todos os envolvidos estão produzindo melhor e com mais qualidade. Esse é fruto da evolução e do compromisso com a educação de qualidade e excelência, que é meta primordial de nossa instituição. Esta edição trata de vários temas atuais que perpassam pela tragédia de Mariana, a pílula da cura do câncer, o novo código de processo civil, a deserdação, os direitos fundamentais, a omissão do Estado no caso da dengue no Brasil, dentre outros que estão e fazem parte do cotidiano dos cidadãos, fazendo com que cada um tenha uma função social, cívica e educativa. Ao formarmos cidadãos, temos de procurar fazer com que cada um possa, ao longo de sua vida acadêmica, ter oportunidades múltiplas para alcançarem seus ideais, abrindo assim os horizontes, para um futuro melhor e mais promissor. Esperamos que nesta edição possamos ampliar os conhecimentos, os conceitos, os conteúdos e discutir questões de ensino, abrindo o horizonte intelectual de cada um de nossos alunos. vii Cumprimento a todos que ajudaram a confeccionar esta edição, com votos de continuidade do fazer científico, para alçar novas conquistas no ensino e aprendizagem do conhecimento jurídico. Crovymara Elias Batalha Diretora da Faculdade Presidente Antônio Carlos de Mariana viii da palavra / fonema ou morfema // cesura Ou censura /// dialogar : toda palavra sabe a liberdade que sente no peito que a expressa e o venenoso silêncio na boca que a esconde : deixem-na bradar ! (Gabriel Bicalho In: Ad referendum) ix TRAGÉDIA DE MARIANA: PARA ALÉM DAS PERDAS VISÍVEIS 15 Israel Quirino Introdução 15 2. A burocracia de um Estado ausente 20 3. Homens de Ferro (ou nem tanto) 27 4. Qualquer visão de futuro 29 5. Das perdas imateriais 33 6. Órfãos de si mesmos 40 7. Sem voz e sem vez 48 Considerações Finais 54 Referências: 56 FOSFOETANOLAMINA: A MILAGROSA PÍLULA DO CÂNCER (ILUSÃO DA CURA E O CASUÍSMO DA LEI FEDERAL 13.269 DE 13 DE ABRIL DE 2016) 60 Israel Quirino e Camilla Coelho Quirino Introdução: 60 2. Enquanto há vida há esperança 62 3. Um mercado promissor 63 4. O milagroso caso da fosfoetanolamina 65 5. Pacientes terminais e cobaias humanas 69 6. A pesquisa em seres humanos 72 7. O casuísmo da Lei Federal 13.269 de 13 de abril de 2016 76 8. A Lei 13.269 e seu alcance prático: 80 Considerações Finais: 83 Referências: 84 A INTRODUÇÃO DO GÊNERO TEXTUAL ENSAIO ACADÊMICO COMO ATIVIDADE DE ESCRITA NA FACULDADE PRESIDENTE ANTÔNIO CARLOS DE MARIANA: ESTUDO DE CASO 86 Magna Campos Introdução: 86 2. As fronteiras do gênero textual ensaio acadêmico: fronteiras 90 2.1 Ensaio acadêmico versus ensaio científico 91 2.2 Ensaio filosófico e literário versus ensaio acadêmico 96 2.4 Características da linguagem do ensaio acadêmico 110 2.5 A estrutura do gênero ensaio acadêmico 112 3. O trabalho com o gênero ensaio acadêmico na FUPAC-Mariana 116 x 3.1 O surgimento e justificativa da proposta 116 3.2 O trabalho da monitoria de Língua Portuguesa e a seleção dos entrevistados 122 3.3 A experiência de escrita dos graduandos: entrevista com um grupo de “alunos-ensaístas” 124 3.3.1 Contexto: 124 3.3.2 O que as entrevistas revelam: 125 Considerações finais: 145 Referências bibliográficas: 147 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS INFRACONSTITUCIONAIS E ASPECTOS DA LEI 11.101/2005 154 Michele Aparecida Gomes Guimarães e Nilson Gonçalves do Nascimento Introdução 154 2. Princípios constitucionais e infraconstitucionais e a empresa 155 2.1-Alguns aspectos da Lei 11.101/2005 161 Conclusão 171 Referência 174 A TUTELA DO HIPOSSUFICIENTE NA NOVA AXIOLOGIA PROCESSUAL DA LEI Nº 13.105/2015 (“NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL”) 176 Carlos Randel Crepalde Mafra; Fabiano César Rebuzzi Guzzo e Waldir Araújo Carvalho Introdução 176 2. Prioridade de tramitação 179 3. Jurisprudência defensiva, “litigantes débeis” e instrumentos de paridade 181 4. O aperfeiçoamento da gratuidade judiciária 192 5. As “defesas públicas” e os atos processuais 195 6. Alimentos e interdição 201 Conclusões 211 Bibliografia 212 BREVES APONTAMENTOS SOBRE A DESERDAÇÃO 214 Raphael Furtado Carminate Considerações gerais 214 2. Causas de deserdação 222 xi 2.1. Causas de deserdação dos descendentes pelos ascendentes 222 a. Causas de indignidade 224 b. Ofensa física 230 c. Injúria grave 230 d. Relações ilícitas com a madrasta ou padrasto 231 e. Desamparo do ascendente em alienação mental ou grave enfermidade 232 2.2. Causas de deserdação dos ascendentes pelos descendentes 234 a. Relações ilícitas com a mulher ou companheira do filho ou a do neto, ou com o marido ou companheiro da filha ou o da neta 235 b. Desamparo do filho ou neto com deficiência mental ou grave enfermidade 236 2.3. Deserdação do cônjuge e do companheiro 237 3. Notas conclusivas 239 Referências 240 O RESULTADO DA EVOLUÇÃO DO DIREITO DO TRABALHO E SUA INTERAÇÃO COM OS PRINCÍPIOS TRABALHISTAS FUNDAMENTAIS 243 Michele Aparecida Gomes Guimarães e Shirlene de Oliveira Sales Introdução 243 2. Evolução histórica do trabalho 245 2.1 Escravidão 245 2.2 Servidão 246 2.2 Corporaçõesde Ofício 247 2.3 Revolução Industrial 249 3. Princípios fundamentais do direito do trabalho 256 3.1 Princípio da Proteção 258 3.2 Princípio da Irrenunciabilidade de Direitos 260 3.3 Princípio da Primazia da Realidade 260 3.4 Princípio da Continuidade da Relação de Emprego 261 3.5 Princípio da Inalterabilidade Contratual Lesiva 263 3.6 Princípio da Intangibilidade salarial 264 Conclusão 266 Referências 267 A CONTRIBUIÇÃO DA PSICANÁLISE AO DIREITO PENAL 269 René Dentz e Flávia Regina Gonçalves Viana Introdução 269 2. Direito e Personalidade 272 xii 3. O Dito e o Não-Dito 276 4. Violência e Alteridade 279 Conclusão 283 Referências: 284 REUNIÃO DE PROCESSOS E PRERROGATIVA DE FORO: ACERCA DE UMA CONTROVÉRSIA NO PROCESSO PENAL 287 Rodrigo Ferreira e José Carlos Henriques Ponto de partida para a compreensão do problema 287 2. Jurisdição: o direito, concretamente, dito pelo Estado 290 3. Competência: repartição funcional do exercício da jurisdição 295 4. Definição do Juízo Competente, em matéria penal 297 5. Concurso de Pessoas e Foro Privativo 303 5.1 Apresentando a controvérsia 303 5.2 Duas autoridades com foro privativo definido na Constituição da República 306 6. Incompetência Absoluta e Princípio do Juiz Natural 309 7. Supremacia Constitucional 313 Referências 318 A EVOLUÇÃO DA PENA E MOMENTOS FILOSÓFICOS 321 René Dentz e Alessandra Sayonária Introdução 321 2. A visão utilitarista da pena 322 3. Vigiar e Punir – Michael Foucault 324 4. A Pena e a Psicanálise 333 Conclusão 338 Referências 339 ESCRITA ACADÊMICA: DE DOM A HABILIDADE CONSTRUÍDA 345 Magna Campos Introdução: 345 2. De dom à habilidade construída 348 Considerações finais: 358 xiii DIREITOS FUNDAMENTAIS PERANTE A SOCIEDADE CIVIL 360 Déborah Cristina de Fátima Moutinho, Patrícia Margarida da Mapa e Aparecido José dos Santos Ferreira Introdução 360 2. (In)Constitucionalidade do "rolezinho" 362 3- Direitos fundamentais 365 4- Direitos humanos 367 5. Eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas 370 6. Racismo e discriminação 371 7. Crime 373 Conclusão 374 Referências Bibliográficas 376 RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO POR OMISSÃO EM RAZÃO DOS CASOS DE DENGUE NO BRASIL 378 Joana DArc Aparecida de Oliveira e Michele Aparecida Gomes Guimarães Introdução 378 2. Dengue: sintomas e epidemia 380 3. Cenário e análise da situação epidemiológica da dengue no Brasil 384 3 -Omissão e responsabilidade civil do poder público diante da epidemia de dengue 390 Conclusão 392 Referências bibliográficas 394 IMPLICAÇÕES ACERCA DA EXECUÇÃO PROVISÓRIA DA PENA 396 Nordeci Gomes da Silva, Ricardo José de Carvalho e Aparecido José Introdução 396 2. O habeas corpus 398 3. O Duplo Grau de Jurisdição 400 4. Duração Razoável do Processo 401 5. Princípio da Segurança Jurídica 402 6. Divergências à decisão do HC 126.293 402 7. O HC de 2009 e os pontos controvertidos à decisão de 2016 406 8. Princípio da presunção da inocência versus princípio da culpabilidade 407 Considerações finais 410 Referências Bibliográficas: 411 xiv EM DIA COM A DEMOCRACIA: O DIREITO E A RACIONALIDADE DISCURSIVA EM JURGEN HABERMAS 414 Adrielly Coelho, Amanda Fonseca, Ana Cláudia Macedo, André Luis Pereira, Daiane Estevam, Emanuelle Cerceaux, Yasser Jamil e René Dentz Introdução 414 2. Democracia e Argumentação 415 3. Mundo da Vida e Agir Comunicativo 422 4. Sistema Jurídico, Político e Democracia 424 5. Direito e Política 426 Considerações finais 429 Referências 430 ARTIGOS TRAGÉDIA DE MARIANA: PARA ALÉM DAS PERDAS VISÍVEIS Israel Quirino1 Com a chave na mão quer abrir a porta, não existe porta; quer morrer no mar, mas o mar secou; quer ir para Minas, Minas não há mais. José, e agora? (Carlos Drummond de Andrade) Meninos, eu vi. (Gonçalves Dias) Resumo: Discute-se nesta incursão as consequências imateriais do rompimento da Barragem de Fundão em Mariana – MG., ocorrida em novembro de 2015. Circundando as responsabilidades empresariais e governamentais acerca do sinistro, é possível ponderar que, além as perdas visíveis, que têm chamado a atenção da mídia e das autoridades e dos danos ambientais imensuráveis, o acidente produz impacto relevante na economia local e regional e ao promover o desterro de centenas de famílias fragmenta histórias de vida entrelaçadas na convivência do lugar, na sucessão do pertencimento à terra, à cultura, ao modo de vida. São danos irreparáveis, para além das perdas visíveis. Palavras-chave: Barragem de Fundão. Identidade. Danos Imateriais. Samarco. Mariana. Introdução Tendo, ou não tendo, havido um toque de sirene alertando a população da ocorrência do sinistro, o que se 1 Advogado, Professor de Direito Constitucional da FUPAC – Mariana. observa e que o desastre do rompimento da barragem de Fundão em Mariana – MG., ocorrido em cinco de novembro de 2015, despertou o Brasil e o mundo para uma realidade que até então pertencia à Bento Rodrigues e às outras dezenas de comunidades que, em situação semelhante, convivem com as grandes barragens de rejeito da mineração. Colhendo a experiência vivida junto ao comando de operações de socorro às vitimas da barragem em Mariana, nos primeiros dias do mês de novembro, colecionamos anotações e sentimentos que retratam, para além do sensacionalismo da imprensa e do frio agir das autoridades, o sofrimento de uma gente que se fez pela mineração, numa relação, não de dependência, mas uma simbiose de histórias abruptamente rompidas (ou interrompidas) e que tentam se reconstruir, por ora, sem aparente expectativa de êxito. Pode soar incompreensível, talvez, a ouvidos estranhos, a fala de um morador que após perder tudo, literalmente tudo, exclama indignado: Não. Fechar a Samarco não pode não (morador de Bento Rodrigues, na manhã de seis de novembro de 2015). Como entender alguém que, na condição de flagelado, despojado de bens materiais e da sua dignidade, insiste em defender a empresa que, supostamente, teria sido a causadora da sua plena ruína? Mas essa cena, e outras semelhantes, se repetiram em um cenário onde a consternação era maior que a revolta e lições de força e superação vinham de corpos aparentemente frágeis, numa lógica imprópria que parece contrariar a razão, o direito ou as convenções sociais. Não se tem por norte discutir aqui culpas ou responsabilidades. Por preceitos legais, há a dimensão segura da responsabilidade objetiva do agente, ao mesmo tempo em que há instrumentos legais possíveis de se mensurar a culpabilidade dos envolvidos, desde a concessão das licenças, a fiscalização e a intervenção na área do sinistro, as responsabilidades civis, ambientais e criminais. Não se pode, todavia, deixar passar ao longe a ausência do Estado a mediar as relações sociais que se travaram ao longo de mais de trinta anos de convivência morador-empresa, diante de uma situação de risco crescente que se formou entre a atividade mineradora e o povoado do entorno desde o final da década de 1970. Abruptamente desperto o Estado, em todos os seus poderes, após a fatídica ocorrência, ergue-se como defensor de direitos, mas movimenta-se por labirintos jurídicos sobrepostos (Justiça Federal, Estadual, Promotorias das mais diversas, Ministérios, Secretarias) e dezenas de agentes sem o traquejo adequado a lidar com pessoas e emoções. Na sua missão fiscalizadora,pelas autoridades envolvidas no episódio, o Estado atém-se nas sanções – administrativas e reparadoras – a dimensão de que se faz justiça com mão de ferro (sem perder o trocadilho), quando se sabe que nenhuma reparação civil ou punição de qualquer natureza, serão suficientemente compensatórias ao que houve naquele entardecer de cinco de novembro de 2015 para a história pessoal dessa gente, para este grupo social que perdeu (e vem perdendo) muito mais do que bens materiais. Nesse artigo se analisa, em primeiro plano, a relação histórica da região central de Minas Gerais com a mineração e sua dependência econômica a esse segmento industrial. Ainda neste ângulo, pretende-se discutir a omissão dos organismos de Estado com relação ao risco da barragem, o que demonstra certa leniência dos governos para com o segmento, em detrimento das pessoas que possam ser afetadas. Por fim, analisa as eventuais perdas imateriais a serem suportadas por essa gente, que escreve parte da história de Minas Gerais com suas histórias pessoais que ora se perdem na lama e no tempo, e tentam se reconstruir física e emocionalmente dos laços rompidos, diante de um cenário de fluidez de relações que se entrelaçam em novos cenários, em uma presente sensação de “nunca mais”. O presente desses refugiados dentro da própria cidade, modificado, constrói um futuro incerto sobre outras premissas e que insiste em apagar o passado vivido na vila bucólica, soterrada pela lama. Por se tratar de uma análise de fatos que tem como técnica de coleta de dados a observação e a oitiva de depoimentos colhidos no cenário da ocorrência, tomamos o cuidado de sermos o mais técnico possível, embora se saiba das dificuldades em se manter incólume às emoções tão afloradas que, querendo ou não, acabam por afetar nosso estudo. Valemo-nos, ainda, de um suporte bibliográfico, especificamente no que se refere à literatura sociológica acerca das identidades em Zygmunt Bauman e da formação de grupos sociais em Max Weber e Boaventura de Souza Santos, com propósito de fundamentar a discussão e o alcance das perdas imateriais a que ficou sujeita a população exposta, após a devastação de seu local de convivência. Não temos a pretensão de esgotar a discussão em torno do tema, pelo fato de ser uma realidade que se amolda dia após dia, demonstrando outros ângulos de análise e pontos de estudo e discussão diversificados e abrangentes. 2. A burocracia de um Estado ausente Dois meses após o rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, e o mundo todo já tendo tomado conhecimento das dimensões da tragédia, a página oficial do Departamento Nacional da Produção Mineral (DNPM) que contém o Programa Nacional de Segurança de Barragens (PNSB) ainda situa como “normal” a situação das barragens da Samarco em Mariana (DNPM, 2014). Isso se dá pelo fato de que os dados ali constantes têm data-base de abril de 2014 (!), portanto, são informações não confiáveis, embora oficiais e retratam, a nosso sentir, certo descaso do organismo responsável pela fiscalização das barragens de mineração em todo o país em informar ao publico interessado a real condição desses arranjos. Os dados que estão disponíveis no endereço eletrônico do DNPM não refletem a realidade da informação a que o órgão fiscalizador deveria dispor ao povo brasileiro. E se estamos falando de um segmento crucial para as divisas nacionais e principal carro-chefe da economia de Minas Gerais, a terceira economia do país, qual a confiabilidade desta gestão fiscalizadora? A extração de minério de ferro na região central de Minas Gerais remonta aos estudos de Eschwege, já na primeira década do século XVIII, como opção ao declínio da mineração aurífera (QUIRINO, 1986). Não obstante, o ciclo do ferro nas cidades do centro mineiro adquiriu intenso vigor e provocou explosão de crescimento econômico no quarto final do século XX, quando se instalaram na região de Mariana e Ouro Preto as grandes mineradoras Vale e Samarco, atualmente responsáveis pela maior parte da produção mineral da região, grandes geradoras de empregos e propulsoras da economia regional. Ainda que se possa ter, como pano de fundo das facilidades das concessões de exploração mineral no Brasil, o privilégio que se dá ao capital em detrimento das pessoas, das culturas e do patrimônio ambiental, não se pode negar a influência da mineração na composição do PIB local e regional e do seu expressivo peso na balança comercial do estado e do país. Disso, pode-se dizer também que os municípios da região, sem muitas opções de desenvolvimento econômico e por comodidade na administração fiscal de outras fontes de renda, vivem quase que como comensais da mineração, numa relação de dependência que se traduz em tolerância ou leniência com seus desvios (CARVALHO; SILVA; CURI; FLORES, 2012). Embora a Constituição Federal de 1988 tenha definido como de competência comum aos três entes de estado a fiscalização da exploração dos recursos hídricos e minerais em seu território, o cumprimento do disposto no artigo 23, XI da Carta Constitucional, no âmbito das administrações municipais tornou-se um daqueles dispositivos que soam mais preceituais que efetivos. Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: [...] XI - registrar, acompanhar e fiscalizar as concessões de direitos de pesquisa e exploração de recursos hídricos e minerais em seus territórios (BRASIL, 1988); Sem um quadro técnico especifico (ou qualificado para tal) e sem uma legislação local adequada, os municípios mineradores cuidam, não raro, de expedir Declarações de Conformidade, sem muito conhecimento dos empreendimentos que certifica ou, ávidos por uma parcela a mais de recursos nos cofres minguados, acabam por delegar ao Estado-membro ou a União o dever de fiscalização das mineradoras, lavras, pilhas de rejeitos e barragens. Por outro lado, a concentração tributária no Governo Federal impede que os municípios invistam em estruturas ficais eficientes, caminhando as administrações municipais a reboque da ação fiscalizadora federal e, por vezes, desconhecendo os meandros jurídico-legais da atividade que abrigam em seu território. Sobre barragens, desde 2010 a União Federal avocou para si a responsabilidade da fiscalização, não sem antes de ter contado, apenas neste milênio, e só em Minas Gerais, três grandes episódios danosos envolvendo depósitos de rejeitos de mineração: Macacos em 2001; Cataguases em 2003 e Miraí em 2007, todos com danos sócio-ambientais incalculáveis. Ao editar a Lei Federal 12.334 de 20 de setembro de 2010 e instituir a Política Nacional de Segurança de Barragens, o legislador outorgou o dever de fiscalização a uma plêiade de órgãos federais de ação governamental: Art. 5o A fiscalização da segurança de barragens caberá, sem prejuízo das ações fiscalizatórias dos órgãos ambientais integrantes do Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama): I - à entidade que outorgou o direito de uso dos recursos hídricos, observado o domínio do corpo hídrico, quando o objeto for de acumulação de água, exceto para fins de aproveitamento hidrelétrico; II - à entidade que concedeu ou autorizou o uso do potencial hidráulico, quando se tratar de uso preponderante para fins de geração hidrelétrica; III - à entidade outorgante de direitos minerários para fins de disposição final ou temporária de rejeitos;IV - à entidade que forneceu a licença ambiental de instalação e operação para fins de disposição de resíduos industriais (BRASIL, 2010). Assim, por força de lei, o DNPM, responsável pela outorga dos direitos minerários, é a responsável pela fiscalização das instalações dos rejeitos da mineração e, por evidente a ação fiscalizadora não pode se resumir a um ato posterior ao sinistro de alçada punitiva, quando se sabe que a tutela preventiva é muito mais eficiente e desejada. Diante da aplicação de multas vultosas (ou nem tanto) pelos organismos de fiscalização e controle, tem-se a falsa sensação de que a justiça foi feita ou os danos reparados. Danos ambientais exigem ações reparadoras sim, e isso se torna visível quando se visita o cenário da catástrofe na região de Bento Rodrigues, mas não apenas isso. O sistema de autorização-fiscalização deve privilegiar a prevenção, já que o recolhimento das multas não restabelece, per si, o status quo ante da natureza afetada, as vidas ou as identidades perdidas em caso de sinistros. Ainda que se admita o caráter pedagógico da sanção pecuniária, bem o sabemos que os resultados deste aprendizado não são os desejados. A indústria de multas, que não raro tem servido mais para fomentar a corrupção, é falha enquanto instrumento de prevenção e educação. A ação fiscalizadora presente, esta pode, efetivamente, contribuir na construção de uma consciência ambientalmente sustentável. Não fugindo ao seu dever legal, o Departamento Nacional de Produção Mineral informa em sua página oficial na rede mundial de computadores a sua gigantesca missão institucional, que, fatalmente, aparenta ser incompatível com a estrutura do órgão: Compete ao Departamento Nacional de Produção Mineral - DNPM, no âmbito de suas atribuições, fiscalizar a pesquisa e a lavra para o aproveitamento mineral, bem como as estruturas decorrentes destas atividades, nos Títulos Minerários, concedidos por ela e pelo Ministério de Minas e Energia (MME). Todavia com a promulgação da Lei Nº 12.334, de 20 de setembro de 2010, que estabelece a Política Nacional de Segurança de Barragens destinadas à acumulação de água para quaisquer usos, à disposição final ou temporária de rejeitos e à acumulação de resíduos industriais e cria o Sistema Nacional de Informações sobre Segurança de Barragens, esta Autarquia assume também a atribuição de fiscalizar a implementação dos Planos de Segurança das barragens de mineração a serem elaborados pelos empreendedores, conforme previsto na referida Lei (DNPM, 2015. s.p., on line). Grifamos. Se assim o é, diante do rompimento da barragem de Fundão, em Mariana – MG., ainda que se tenha por definição legal a responsabilidade objetiva da empresa que operava a instalação, não se pode deixar de debitar importante parcela de responsabilidade solidária aos governos, nos seus três níveis e, mais especificamente ao DNPM por culpa in vigilando (ou corresponsabilidade), já que não apenas outorgou a concessão da lavra minerária mas tem, por definição legal, a missão de exercer a fiscalização de maneira a garantir a segurança da barragem de rejeitos. Portanto, há responsáveis e culpados a serem nominados. O relatório publicado pelo DNPM em sua página oficial, tendo por base o mês de abril de 2014, indica que a barragem de Fundão (a que rompeu e provocou o maior dano ambiental da história do Brasil), apresenta baixo risco, embora se considere de potencial elevado para os danos associados em caso de rompimento (DNPM, 2014). No mesmo teor a informação se refere também às outras duas barragens na região do sinistro: Santarém e Germano, ambas autorizadas e fiscalizadas (?) pelo DNPM. A quem essas (des) informações são dirigidas? Não é crível que o Estado Brasileiro se finja de “bom moço” ao se mostrar enérgico com ações punitivas, enquanto negligencia, não somente a atividade economicamente viável que põe o Brasil na seleta lista dos países exportadores de minério, mas olvida o destino de parcela do seu povo que vive sob o risco da mineração. Visivelmente desaparelhado, o Estado brasileiro, mesmo que promova adequações legislativas relevantes, sem o exercício eficiente do poder fiscalizador não haverá expectativas de melhora. 3. Homens de Ferro (ou nem tanto) O estudo que aqui se apresenta tenta entender o cenário social-empresarial existente na comunidade de Bento Rodrigues para discutir a responsabilidade do Estado para com essa gente e, por fim, relatar as perdas invisíveis que, certamente, passarão ao largo das pericias ambientais e de engenharia que acaso venham a ser realizadas no local. Com gente é diferente, como diz a poesia de Geraldo Vandré. O poeta Carlos Drummond de Andrade, nascido em Itabira – MG., pólo minerador e berço da Companhia Vale do Rio Doce, escreveu um dia que a mineração dá ao sua torrão-nataI noventa por cento de ferro nas calçadas e ao homem que ali vive oitenta por cento de ferro nas almas (ANDRADE, 2003). Essa íntima relação da mineração com o povo que vive dela e em torno dela, criou uma convivência que extrapola os sentidos econômicos do ciclo minerário. Inintelígivel para quem vem das planícies agrárias, dos pampas ou das grandes pastagens, essa atividade de tirar da terra o que não se plantou, é característica dessa gente, do homem de ferro, do povo da mineração que com ela se identifica. Com suas vidas dilaceradas pelo sinistro, moradores de Bento Rodrigues expressavam reações diferentes dos demais atingidos. Paracatu de Baixo, Pedras, Borba e outras pequenas localidades afetadas, povoados agrícolas, à jusante do Rio Gualaxo do Norte por onde escoou o fluxo de lama, distantes a cerca de 40 quilômetros da planta minerária, sofrendo a mesma diáspora interpretam e reagem de maneira diversa ao fenômeno migratório. Igualmente desabrigados pela mesma torrente de lama que extrapolou a calha do Rio Gualaxo do Norte provocando a perda de propriedades inteiras, animais de criação e outros bens materiais, os moradores das comunidades rurais distantes da mineradora não mantinham com ela relações de, como dizer, afetividade, a ponto de sentir duplo sofrimento pela ocorrência. Vidas humanas só se perderam em Bento Rodrigues, primeiro povoado atingido e onde o sentimento de desolação talvez seja mais evidente. É quase que uma relação de orfandade de moradores que mantinham com a mineradora uma convivência muito próxima. Nas demais comunidades afetadas se lamentam as perdas materiais, ambientais e imateriais de maneira menos “emocionalizada”. No calor da ocorrência, circulando entre dezenas de flagelados pelo evento sinistro que solapou, em questão de minutos, o centenário distrito de Bento Rodrigues, é possível encontrar, no olhar desolado das pessoas, um sentimento de tristeza, mas também algo que só se sente quando se vive neste meio. Há uma evidente ruptura de vínculos entre pessoas e suas vidas cotidianas, algo que se percebe, se sente, muito mais do que se documenta. Enquanto as lentes das câmeras de televisão de dispuseram a gravar a onda de lama levando casas, arrasando pastagens, destruindo lavouras e matando animais e rios, dezenas de moradores daquela paisagem devastada nos dedicavam olhares vazios, transtornados, quiçá curiosos, mas todos com a mesma névoa de tristeza. Uma inominável sensação de impotência que nos acudiu a todos em diferentes graus de intensidade. 4. Qualquer visão de futuro Podeser que o desastre ambiental ocorrido na barragem de Fundão, da mineradora Samarco, tenha por consequência o encerramento de uma etapa do ciclo econômico minerador do município de Mariana, em Minas Gerais. O fim da mineração nesse canto do país serviu de palavra de ordem a alguns dos movimentos que manifestaram sua indignação diante do mar de lama que sufocou o vale do Rio Doce. De outro lado, o morador, mais sensato, olhando o entorno edificado em trezentos e vinte anos de atividade mineradora, pensou em reconstruir, de outro modo, por outros caminhos, a convivência com a mineração. Duas manifestações de rua na cidade de Mariana – MG., em curto intervalo de tempo após o sinistro, apresentaram visões opostas sobre o mesmo tema. É admissível que algumas opiniões, colhidas no calor da ocorrência, possam traduzir sentimentos que, em um segundo momento, sopesando fatores sociais, econômicos e de sobrevivência da própria atividade minerária na região, não se sustentariam. Por outro lado, é salutar a afirmativa de que o desastre de Bento Rodrigues possa sim, significar o encerramento de um ciclo econômico predatório, inescrupuloso e inseguro, que exibiu todo o seu potencial destrutivo naquela tarde de cinco de novembro de 2015, fazendo surgir, do seu rastro de destruição, um novo olhar sobre esta atividade, que empresta seu nome ao Estado de Minas Gerais e é a locomotiva do desenvolvimento econômico das cidades do quadrilátero ferrífero. Uma nova forma de relacionamento entre governos, segmentos econômicos, população e natureza, de maneira mais solidária, comprometida e responsável. Em uma visão otimista, pode-se acreditar que da hecatombe que tragou Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo em Mariana – MG., floresçam técnicas de operação de lavra e beneficiamento mineral que assegurem para Minas Gerais e para o pais, um novo paradigma de mineração sustentável, desenvolvendo formas adequadas de deposição de rejeitos que propiciem melhor aproveitamento do minério processado, segurança no descarte dos estéreis, redução do volume de rejeitos e, quem sabe, utilização econômica dos restos inertes em outras atividades, minimizando os impactos negativos da extração mineral para a humanidade. Não é mais uma quimera, mas, talvez, uma realidade incômoda, que permanece desenhada nas margens engolidas do Rio Gualaxo do Norte, sangrando pelas veias do Rio do Carmo, escorrendo pelo vale do Rio Doce até derramar no oceano como uma hemorragia de lama que chamou a atenção do mundo para esse tipo de negócio. As grandes catástrofes conduzem a discussões proveitosas quanto ao futuro do segmento afetado, de maneira que, espera-se, possa a tragédia de Mariana servir de pauta aos estudos futuros de segurança de barragens e deposição de rejeitos da mineração. A menos que a mineradora Samarco e suas proprietárias, as gigantes Vale e BHP Billiton, queiram conviver ad aeternum com o fantasma da cidade morta que aflora do bucólico povoado de Bento Rodrigues, como uma nova Pompéia. As ruínas da vila se perpetuam na lama, são como vísceras abertas do descuido reiterado do agente causador do dano e da culpa omissiva de quem deveria fiscalizá-lo e não o fez como devia. Não obstante, há esperança de dias melhores a emergir da catástrofe, pois, conforme nos ensina Jacobi (2003, s.p.) Os grandes acidentes envolvendo usinas nucleares e contaminações tóxicas de grandes proporções, como os casos de Three-Mile Island, nos EUA, em 1979, Love Canal no Alasca, Bhopal, na Índia, em 1984 e Chernobyl, na época, União Soviética, em 1986, estimularam o debate público e científico sobre a questão dos riscos nas sociedades contemporâneas. Inicia-se uma mudança de escala na análise dos problemas ambientais, tornados mais freqüentes, os quais pela sua própria natureza tornam-se mais difíceis de serem previstos e assimilados como parte da realidade global. Todavia, há que se sopesar a necessidade de investimentos para retomada da atividade minerária naquele local, ao mesmo tempo em que se requer pesadas somas de gastos para recuperação dos danos causados, individuais, coletivos e difusos. Embora seja lastimável, do ponto de vista ambiental e social, sem mascarar a realidade, todos sabemos que o desfecho da situação, qualquer que seja o cenário futuro, tem que ser equacionado do ponto de vista econômico. 5. Das perdas imateriais O Circuito Turístico da Estrada Real que passa pela região central de Minas Gerais, especificamente no trecho de estrada tropeira que liga a sede do Município de Mariana ao distrito de Santa Rita Durão (antiga Cata Preta do Inficionado, no mesmo município), tinha em Bento Rodrigues um marco diferenciado. Com duas capelas com traços arquitetônicos coloniais, a de São Bento, totalmente destruída pela onda de lama e a de Nossa Senhora das Mercês, edificada na parte alta do povoado, Bento Rodrigues se situava entre o histórico povoado de Camargos e o distrito de Santa Rita Durão, no sopé da serra do Caraça. Com edificações do período rural do Ciclo do Ouro Mineiro, logo na entrada do povoado se destacava uma cerca feita de lajões de pedra, marcando a presença do homem minerador naquelas paragens, já nos primórdios do Século XVIII. A rústica edificação continuava contornando os terrenos próximos da Igreja de São Bento, templo do qual restam apenas os alicerces e uma lápide, em mármore, de alguém que, por ironia, fora sepultado duas vezes. Em Camargos, antigo sítio minerador ao logo do Rio Gualaxo do Norte, a cerca de dez quilômetros da área da barragem, está a igreja de Nossa Senhora da Conceição, obra inserida no PAC das Cidades Históricas, pela sua importância na arte e arquitetura coloniais. Juntos do distrito de Santa Rita Durão, que também abriga importante acervo arquitetônico barroco e rica paisagem natural, Bento Rodrigues e Camargos completam o circuito do pólo minerador de Mariana, identificado pela Prefeitura local como integrantes do Projeto Estrada-Parque Caminhos da Mineração. A moldura de montanhas e vales e a vista da Serra do Caraça ao fundo, delimitam o cenário minerador de trezentos anos, onde o ouro deu lugar à bauxita e por último ao ferro. Apropriando-se dessa paisagem natural e valendo dos fazeres e saberes da cultura local, a Prefeitura de Mariana pretendia oferecer à visitação turística um circuito histórico-cultural no eixo minerador, em um projeto denominado Estrada-Parque Caminhos da Mineração, explorando como produto cultural o cenário e a arte mineradora de três séculos que ali se desenvolvem. O projeto foi apresentado no ano de 2014 ao SEBRAE, dentro do programa Prefeito Empreendedor, sendo um dos finalistas nacionais, pelo potencial que apresentava de novidade, gestão social e desenvolvimento local em alternativa a mineração industrial (SEBRAE, 2014). O projeto Caminhos da Mineração inicialmente terá impacto em três comunidades (Santa Rita Durão; Bento Rodrigues e Camargos) a um contingente de aproximadamente três mil pessoas. Não obstante, o público-alvo do projeto são os jovens que terão oportunidade de se profissionalizarem nas oficinas de restauro (cantaria, carpintaria e marcenaria) que serão implantadas no local. Os três lugarejos passarão por intervenções construtivas de restauro de seus antigos sobrados e será convertido em uma oficina ao ar livre para aprendizado supervisionado. O propósito é recriar uma profissão que não mais existe,a de oficial restaurador. Em momento concomitante teremos a escola de formação de mão de obra para o turismo, esse propósito poderá alcançar toda a comunidade que poderá transformar sua casa, seu pequeno negócio ou sua habilidade e talento em um produto a ser comercializado. Será uma forma de geração de renda, sem necessariamente criar emprego. O morador poderá ser um microempreendedor voltado para atender as demandas locais e dos visitantes. Oportunamente as escolas de formação de mão de obra do turismo poderão receber interessados das comunidades vizinhas e até de outras cidades. A expectativa é que Santa Rita Durão, Bento Rodrigues e Camargos possa se valer da sua paisagem natural, sua cultura e história como produto a ser explorado economicamente e de maneira sustentável (SEBRAE, 2014 p. 14). A primeira perda imaterial da população atingida, talvez seja a expectativa de futuro, já que ações para implantação do projeto da Estrada-Parque vinham se desenvolvendo a contento, despertando nas comunidades o sentimento de pertencimento e de valorização da cultura local enquanto instrumento de preservação da identidade local e de geração de renda. No entanto, é necessário dar uma oportunidade ao homem de aprender com seu próprio erro. Assim, qualquer que seja o futuro da mineração na cidade de Mariana haverá, sempre, uma ferida não cicatrizada no local onde fora, um dia a comunidade de Bento Rodrigues, primeira povoação a ser afetada pela avalanche de lama. Ao contrário do ciclo do ouro, que edificou cidade e vilas pelo interior das Minas Gerais, a mineração de ferro varreu do mapa uma dessas comunidades. Por ora, não se ressente apenas as vidas ali perdidas, algumas sepultadas para sempre no manto do desaparecimento, tendo por túmulo a incerteza e a vastidão do vale do Rio Doce, mas também as outras vidas, que continuaram sua história alhures e arrastam consigo a ruptura abrupta de seus vínculos. Ontem teve uma missa ai. Mas eu só cantei. Eu acostumava a acompanhar o coral lá na igreja com meu violão. Mas ele perdeu lá no barro. Aí eu não pude tocar na missa. (morador de Bento Rodrigues, abrigado no Hotel Providência em Mariana. Em 10 de novembro de 2015). Ainda que seja possível recuperar todos os danos ambientais visíveis, promova-se o repovoamento dos rios e cursos d’água atingidos, se indenize a população afetada e se cumpra todas as sanções impostas pelos órgãos de Estado encarregados da fiscalização da indústria extrativa mineral, haverá, para sempre, a fragmentação de entrelaços familiares, afetivos e culturais impossíveis de serem restabelecidos. Meu filho tava dentro de uma máquina, dessas que tem vidro e fecha. Será que tem um tipo assim de eletroímã que pode passar em cima do barro e ver onde ele está? A máquina é grande. Ele pode estar vivo dentro da máquina, não pode? (Pai de trabalhador desaparecido. Em 10 de novembro de 2015, cinco dias depois do acidente). Ocorreu ali a perda da identidade espaço-cultural daquela população, uma descontinuidade no processo histórico de construção do individuo integrante de um grupo social, provocando uma diáspora, uma migração forçada, não planejada e sem retorno possível, o que fatalmente haverá de impactar a vida futura dessas pessoas. A minha galinha havia chocado seis pintinhos, moço. Tinha dois do pescoço-pelado (moradora de Bento Rodrigues, em 06 de novembro de 2015). Tô com saudade de aguar minha horta (moradora de Bento Rodrigues, em 09 de novembro de 2015). O direito à identidade sócio-cultural e à convivência no seu meio ambiente natural ou artificial são matizes que compõem um grupo social, na gama dos direitos coletivos, mas que também afeta a individualidade de cada cidadão exposto, o que os torna direitos individuais homogêneos, e que não são incluídos naqueles levantamentos de perdas materiais ou ambientais. Quando muito serão tratados no grupo dos danos morais, dada a impossibilidade de serem restaurados. Tais direitos, enquanto componentes da esfera individual, não são expressos no elenco dos direitos fundamentais enumerados na Constituição Federal de 1988, mas permeiam toda a garantia jurídica da dignidade da pessoa humana (art. 1º. III), do direito ao meio ambiente equilibrado (art. 225) ou da proteção do Estado ao patrimônio imaterial (art. 216), sendo, portanto, objeto da tutela legal (BRASIL, 1988). O que se percebe é que, tecnicamente, há certa dificuldade em quantificar danos ambientais e neles inserir as perdas do ambiente humano. Aquele espaço da natureza que fora modificado para oferecer meios seguros à sobrevivência do homem, a relação homem-espaço essencial ao desenvolvimento da vida digna. Visto por esse ângulo, podemos afirmar que as perdas imateriais são maiores que a perda da ambiência urbana edificada, ruas ou casas. Perdeu-se a essência da vida que fazia a vila, o povoado. A atividade mineradora, que nominou embrionariamente o estado de Minas Gerais, é desenvolvida na região desde os dias finais do Século XVII, sendo responsável pela pujança arquitetônica e cultural das cidades históricas de Minas. Não é difícil imaginar que exista, em torno das cidades mineradoras, uma sociologia típica, edificando nuances de identidade própria, cultura singular e laços sociais regionalizados constituídos em torno da atividade econômica (FREYRE, 2004). [...] mesmo estando quase ilhados em Águas Claras, sem condições para que os funcionários "de fora" conseguissem chegar até aqui, a Escola Municipal de Águas Claras esteve funcionando rotineiramente a partir do dia 19 de novembro com os funcionários locais (morador do Distrito de Águas Claras, margem esquerda do Rio Gualaxo. Trinta dias depois da tragédia). Sem dúvida o acidente em Mariana põe em xeque uma atividade que sustenta a economia de uma vasta região do Estado de Minas Gerais, sendo preponderante no quadrilátero ferrífero e que vai se estendo a regiões da Serra do Espinhaço, na proporção centro-norte do estado. Sendo uma atividade de relevância para as finanças nacionais, torna-se, pois, necessário que se discuta, em profundidade, soluções para seus impactos socioambientais. 6. Órfãos de si mesmos A questão de identidade não se resume apenas a um nome ou filiação. Embora se tenha preocupação imediata com a perda de documentos de identificação civil, percebe- se no diálogo com atingidos que há, como pano de fundo da individualidade de cada um, uma referência ao outro, o que torna a pessoa não uma singularidade, mas uma peça de um mosaico que se desfez. Isso para dizer que a pessoa é um ser em si, mas também um ser que se reconhece em relação a outro ser. Um animal social que constrói a sua identidade na convivência com outros da mesma espécie. [...] toda identidade humana implica não apenas uma certa permanência através do tempo (o que Paul Ricoeur chama de mesmice), mas também um aspecto auto-referencial; a identidade deve se enunciar, se reiterar, para ser ("Eu sou eu mesmo"). Essa reiteração, nós a chamamos — também utilizando Ricoeur — de ipseidade. Finalmente temos um terceiro patamar, no qual a identidade interpreta a si própria, se discute, quer se modificar, se projeta de tal ou qual maneira rumo ao futuro. Esse patamar é o da auto-reflexividade, que constitui um redobramento da auto- referencialidade (DEBRUN, 1990 s.p.). A identidade dos moradores de uma determinada comunidade,embora se preserve e se evidencie nos valores individuais, é um processo de formação humana coletiva, estabelecida ao longo da vida, por laços se formam em relações de vizinhança e convivência, não apenas entre pessoas, mas com lugares e rotinas, de maneira a constituir uma espécie de habitat que agrega ambientes físicos e emocionais (WEBER,1973). Uma integração a que chamamos pertencimento. A ruptura brusca dos laços que nos ligam aos ambientes de convivência não só expõe a uma diáspora forçando a locomoção para alhures, como também destrói relações de pertencimento, vinculação do homem a um tempo e espaço físico e emocional e a outras pessoas do seu grupo de convívio, elementos que compõem a sua identidade natural até então despercebida. Pertencimento é o sentimento de vinculação a um grupo, um liame afetivo-social que nos identifica em nosso ambiente de convivência e nos diferencia de outros agrupamentos de indivíduos. Embora únicos em sua individualidade cada membro do grupo é reconhecido pelas práticas da sua comunidade, pelos valores que prezam entre si, pelos laços de relacionamento que perpetuam a ponto de construírem fronteiras imaginárias a outros grupos inseridos num mesmo território geopolítico (SANTOS, 1994). Enfim, somos únicos quando somos agrupados e precisamos do agrupamento para evidenciar nossa individualidade, o que torna a identidade algo relativizado, a identificação existe em relação ao outro. E todos nos sentimos pertencentes a um grupo, pois parte de nossos predicativos evidencia a integração com o ambiente social onde vivemos. A pertença ao grupo se faz não somente desenhada por vínculos de parentesco, mas por orientações coletivas de sobrevivência, proteção, medos e aspirações e até mesmo a partilha de um destino comum, numa espécie de solidariedade inata, uma pacto de adesão. O sentimento de comunidade se estabelece na convivência e na partilha (ou compartilhamento) de experiências, se fortalece nas práticas sociais que se transformam em costumes e asseguram ao grupo certa perenidade, segurança e confiança, independente dos laços sanguíneos e, acabam por construir valores coletivos que se individualizam, edificando uma memória comum do grupo que se reproduz em cada indivíduo (WEBER, 1973). Essa identidade de grupo, ou pertencimento, evidencia uma cota de participação do indivíduo no seu meio, como parte identificada do grupo e capaz de dar a sua contribuição. Inserido noutro ambiente social o indivíduo se descontextualiza, tem fragilizado os seus vínculos de pertencimento e forçosamente estabelece novos relacionamentos de maneira a proporcionar a sua inserção, criando uma identidade adaptada (ou adaptável) à nova situação viabilizando a sobrevivência no novo ambiente (SANTOS, 1994). A identidade-coletiva então só é sentida quando da sua perda e a exposição do indivíduo a outro ambiente que, embora possa aparentar (ou tentar) ser acolhedor, não reflete a sua real convivência, provocando uma situação de estranheza, exclusão, deslocamento e ausência de identificação com outros lugares e situações (BAUMAN, 2005). A casa é boa, mas não é como a casa da gente né? Os vizinhos são outros, não tem a horta (moradora de Bento Rodrigues abrigada em uma casa na cidade de Mariana, às vésperas do Natal de 2015). A adaptação a outros formatos de relações humanas e sociais torna-se um processo penoso de intenso sofrimento dada a irreversibilidade do cenário que se desenha para futuro. Embora todos os moradores tenham, no distrito-sede de Mariana, a referência por serviços e atendimento de suas demandas pessoais, não sendo, portanto, um ambiente totalmente estranho, a possibilidade de passar a viver, em caráter permanente, na cidade, expõe os atingidos a uma novidade indesejada pela ausência de possibilidade de retorno à suas origens. Lá no hotel eles me tratam muito bem. Cama limpinha e banheiro no quarto. Tudo muito bom. A comida e boa. Mas eu queria mesmo era comer num prato. Que fosse angu com feijão, mas num prato (moradora de Paracatu queixosa de receber a refeição em um recipiente descartável. Em 14 de novembro de 2015). A convivência nos novos ambientes urbanos para onde foram deslocadas as famílias atingidas torna-se essencialmente traumática, não apenas pelos novos medos da vida na cidade, outros riscos e exigências a que estão expostas, acentuados pela ideia de insegurança e precariedade da situação do abrigo nas moradias locadas pela mineradora. Não que as casas sejam inseguras ou precárias, mas a situação de flagelado que se arrasta indefinidamente é acentuadamente incômoda. Soma-se a isso a fragilidade e vulnerabilidade sem precedentes do indivíduo, que passa a viver, a partir de agora, em um ambiente diverso, desprovido da proteção que os antigos vínculos lhe garantiam na comunidade que não mais existe (BAUMAN, 2009) e para onde não há meios de voltar. A sensação do rompimento dos liames sócio- afetivos-ambientais causada pelo perecimento da localidade de Bento Rodrigues, em especial, expõe seus antigos moradores a uma situação de refugiado dentro da cidade onde moram, que se transformou em uma espécie de abrigo temporário ou um deslocamento forçado, embora se saiba que a situação é irreversível. Tal perda de referência afetivo-emocional se traduz em uma angústia de ausência de futuro (e de passado), pela falta de localização geográfica e de pertencimento a uma sociedade formada por relações sociais e ambientais que se formaram entre pessoas e lugares. O sofrimento dos adultos é marcante e expresso em suas queixas. No trato com as crianças em idade escolar, houve, por parte da Secretaria de Educação de Mariana, a determinação de que as crianças permaneceriam nas mesmas turmas e com os mesmos professores, embora abrigados em outro espaço educacional. Não obstante a preocupação dos pedagogos na manutenção dos grupos sociais e preservação das relações de afetividade talhadas na convivência escolar entre as pessoas, o mesmo não se deu com referência ao ambiente da escola para onde foram deslocados. Os meninos mudaram muito. O comportamento. Até mesmo o respeito com a gente. As salas são muito grandes, tudo é muito longe dentro da escola e eles ficam muito dispersos correndo pelos corredores. Não obedecem mais a gente não (servidora da escola de Bento Rodrigues, em referência à adaptação dos alunos às novas instalações da escola). As crianças não se adaptaram às novas instalações (maiores e mais confortáveis) e não se identificaram com os novos espaços de ambientação, aprendizado e convivência, embora mantidas as mesmas turmas e professores. Em um ambiente estranho tentam estabelecer novos padrões de comportamento para os novos espaços. É consenso entre os educadores que não fosse a proximidade do término do semestre letivo, o prejuízo ao processo pedagógico seria considerável. A solução parece estar, não na inclusão do atingido ao cenário social da cidade, mas na sua proteção aos novos ambientes, em um processo clássico de exclusão para preservação. Temos que arranjar um lugar, um espaço menor para esses meninos possam continuar estudando. A Escola Dom Luciano é grande demais para eles (professora da escola de Bento Rodrigues, em novembro de 2015. O novo ambiente escolar ameaça a preservação da integridade do grupo social). Conforme Santos, (1994 p.31), “sabemos hoje que as identidades culturais não sãorígidas nem, muito menos, imutáveis. São resultados sempre transitórios e fugazes de processos de identificação”. Nesse cenário de descontextualização das origens, há um receio subjacente entre os educadores, que militam nas escolas de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, de que as crianças, expostas a um novo ambiente, desenvolvam personalidades outras, identidades alternativas sedimentadas sobre novos valores da cidade, em detrimento daquela forma e convivência que desfrutavam no povoado de onde vieram. Por outro lado há a dicotomia de que seria emancipador possibilitar a essas crianças (e às suas famílias) desenvolver outro ambiente sócio-cultural, sem se tornar refugiado dentro da própria cidade, no processo próprio de ambientação à nova realidade. Isso a contrassenso da expectativa semeada pelas autoridades locais de que novas vilas serão construídas, garantindo o retorno futuro dessas crianças às comunidades bucólicas originárias. 7. Sem voz e sem vez No universo das relações sociais a perda das origens trouxe como resultado a afonia da população afetada. O realce à perda da identidade é reforçado nas diversas reuniões que se convocam moradores para discussão da situação dos atingidos, onde o debate é direcionado ou intermediado por autoridades, grupos moderadores da mineradora ou segmentos sociais organizados, em que pouco se dá voz ao indivíduo. Inicialmente habituados a traçarem seus destinos e resolverem suas questões, os atingidos sumariamente são confinados em grupos de iguais, em situação de fragilidade e homogeneidade incômoda, com pautas conduzidas pelas autoridades que assumiram a coordenação fático-jurídica da catástrofe o homem- cidadão desaparece no universo de discussões e debates que não faz parte do seu cotidiano. Os interesses do indivíduo-cidadão e suas intimidades familiares passaram a ser discutidos pelos grupos de mobilização, entidades públicas, advogados, autoridades e organizações sociais, alguns com alto grau de politização e objetivos além daqueles que compõem o foco da discussão. Ao se buscar consensos de decisões coletivas, pulveriza a ideia da singularidade das demandas, subtraindo do atingido o domínio e controle da própria vida. Estão falando de tudo aí. Mas o barro que ficou lá tornou meu terreno infértil. Não dá para plantar nada. Não tenho pasto pro gado que continua bebendo água barrenta, estou sem luz, perdendo a produção de queijo e o povo fica aí discutindo bobeira (morador do subdistrito de Pedras, ao abandonar a reunião convocada com os moradores em 12 de janeiro de 2016, mais de dois meses depois da tragédia). É natural que o cenário da catástrofe, que alcança dezenas de municípios e atinge direitos difusos dos mais diversos, atraia olhares de organizações sociais que militam nessas áreas e evocam debates calorosos em torno de questões que, não necessariamente, fazem parte da rotina dos moradores afetados. Discussões intermináveis em ambientes de debates alheios aos interesses individuais dispersam a participação. Posições radicalizadas ou propostas mais abstratas fogem da compreensão do morador afetado e o afasta da discussão. Dando dimensão difusa à ocorrência passa-se a se discutir em outras searas do direito, não necessariamente privilegiando a situação particular do afetado e sua rotina de vida duramente afetada. A condição de afônico incomoda e tem causado desentendimentos dentro dos próprios grupos de atingidos e suas pretensas lideranças. Inicialmente houve, pela comoção social, uma superproteção dos afetados, com excesso de medidas compensatórias e caritativas, donativos e monitoramento da mídia, com ampla exposição de pessoas simples, acostumadas ao convívio em grupos reduzidos, que de uma hora para outra foram alçadas à condição de personagens de telejornais e entrevistados pela imprensa. O assédio aos estudantes, por exemplo, chegou a ser questionado pelos profissionais da educação que não viam meios de cumprir a jornada escolar das crianças que eram abordadas frequentemente pela imprensa ou por voluntários de serviços sociais ofertados aos atingidos, numa perniciosa quebra de rotina. A tutela da mineradora para com as famílias envolveu não somente o abrigo temporário em hotéis (posteriormente em moradias permanentes), mas também a guarnição das casas locadas, mobiliário, fornecimento de alimentos e acompanhamento sócio-psicológico. Abrigados em moradias alugadas pela mineradora passaram a receber auxílio financeiro (pactuado em juízo em uma ação judicial no final de dezembro de 2015) além do fornecimento de uma cesta de alimentos por família, envolvendo legumes e verduras. A vida aqui [na cidade de Mariana] é muito cara. Um molho de couve de quatro folhas custa dois reais. Lá no Bento a gente plantava e não tinha essa despesa (morador de Bento Rodrigues, nos primeiros dias de dezembro de 2015). A proposta inicial de socorro e solidariedade foi suplantada por um conjunto de exigências das autoridades e a ampla exposição midiática provocou uma avalanche de ajuda humanitária que superou as necessidades e c criou uma forma de vida artificial, diversa daquela que se vivia antes da tragédia. Evidente que se trata de pessoas que proviam por seus meios o seu próprio sustento, que administravam seus interesses e de suas famílias com poderes de escolha e de iniciativa, dentro de possibilidades econômicas peculiares e que, a partir da ocorrência do rompimento da barragem, perderam não apenas pertences materiais, mas horizontes e perspectivas, além do controle sobre o próprio destino. Tal situação estabeleceu um conflito que afeta a relação do indivíduo consigo mesmo e o expõe a uma posição de impotência, já que vem perdendo o protagonismo na condução da sua própria vida. Noutro lado vem criando vínculos de dependência antes inexistentes para com a mineradora, os movimentos sociais, igrejas, lideranças e autoridades, afetando até mesmo os valores e a dignidade das famílias. Meu pai não trabalha, não. Ele recebe da Samarco e tem uma cesta básica (filho de morador de Bento Rodrigues, sobre a atividade profissional do provedor da família). Sem atividade produtiva, o ócio de alguns assistidos confinados em ambientes inadequados aos seus hábitos e modos de vida, vem gerando uma nova situação de vida, incômoda, em prejuízo aos valores apreendidos e cultuados na vida pacata das vilas atingidas. Os botecos têm sido o ponto de encontro dessas pessoas. Eles perderam tudo e agora estão perdendo a dignidade (morador de Mariana, referindo-se aos atingidos abrigados nos hotéis da cidade que sem ter o que fazer perambulam pelas ruas em pequenos grupos). É indubitável que a tal situação sucumbem, também, os indiretamente afetados, tais como empregados da mineradora, que tiveram sua atividade profissional suspensa, ou das empreiteiras que romperam seus contratos com o segmento minerário e contribuem para aumentar o contingente de desocupados, provocando outra leva de preocupações sociais. Assim, o rastro destrutivo da lama pode ser visto em imagens das mais diversas, do leito morto do Rio Gualaxo do Norte à calha do Rio Doce, estendendo-se até o oceano. O rastro de destruição moral da catástrofe, no entanto, só pode ser percebido de perto, quando se tem olhar para o sofrimento das famílias privadas do seu convívio e da proteção do local onde viviam, das nuances do território físico, geográficoe social de onde foram deslocadas. Ainda que se construa uma “nova Bento Rodrigues” a identidade do seu povo, como um cristal quebrado, foi duramente afetada e dificilmente será resgatada à integridade anterior à tragédia. E quanto mais tempo perdurar a situação de indefinição quanto ao seu destino, pior será a reconstrução do tecido social destruído, já que a demora acaba por fortalecer vínculos de dependência e reforça a perda da autonomia e do protagonismo individual. Considerações Finais A Tragédia de Mariana, como vem sendo tratado o rompimento da Barragem de Fundão, está longe de um desfecho conclusivo. Digladiam autoridades ambientais, judiciárias, movimentos sociais, mídia, advogados, e toda uma horda de espertalhões, oportunistas, lideranças e afetados na busca de culpados, identificação de responsáveis, indenizações, respostas. A esperança de uma solução rápida parece ter-se embrenhado na densa camada de lama. Prognósticos dos mais diversos vêm sendo feitos, em um exercício de futurologia, acerca do período de tempo necessário para que a natureza, com ou sem a interferência humana, se recupere ao longo da calha do Rio Doce e dos seus contribuintes, o Rio do Carmo e o Rio Gualaxo do Norte. Dificilmente se pode estabelecer um prazo de expiação dos danos individuais, coletivos ou difusos. Ronda o episódio a tendência de judicialização de conflitos, que arrasta à morosidade dos tribunais celeumas intermináveis, que se emaranham nos rituais das Cortes Processuais, com seus remédios e recursos infindáveis e soluções a perder de vista. Uma grande parcela da população, que não foi diretamente atingida pela lama, corre o risco de se ver privada de serviços públicos essenciais, pela acentuada queda da arrecadação municipal e declínio visível da economia na cidade. Noutra ponta há os interesses econômicos e tributários que se enfileiram. Acionistas, empregados, agentes públicos, consumidores, prestadores de serviço, todos agônicos, esperam por um termo. Há uma ansiedade crescente quanto à previsão de retorno à normalidade. A produção e circulação de riquezas na região foram atingidas e inquietam a prestação de serviços públicos, comprometem iniciativas periféricas, reduz oportunidades. Urge por uma solução! Entretanto, por mais otimista que se possa ser, é quase certo que a proposta, até então levada a efeito, da busca pelo entendimento, se exitosa não alcançará a todos os nuances da tragédia. A diversidade de direitos afetados, a pluralidade de atores envolvidos e os inúmeros interesses que se entrelaçam, para além dos direitos dos moradores atingidos, tornam cada vez mais distante a tabulação de um consenso que seja satisfatório a todos. A reparação dos danos, de maneira restaurativa ou compensatória, ou mesmo pela reconstrução das vilas afetadas, em nenhuma hipótese reconstruirá ou recuperará as identidades perdidas, as histórias de vida interrompidas ou que se sucumbiram na avalanche de rejeitos. Não a para onde voltar. Eis a certeza. A única, por enquanto. Todo o resto são quimeras, conjecturas, promessas. Haveremos de contar com a capacidade do homem em adaptar-se às realidades imutáveis, buscando encontrar no horizonte da lei o discurso do entendimento para a recomposição do cenário afetado, seja urbano, político, afetivo, social, econômico ou ambiental, sem extremismos ou exageros. À memória dos que se foram! À memória que se foi, daqueles que ficaram! Referências: ANDRADE, Carlos Drummond de. José. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003. ANDRADE, Carlos Drummond de. Confidências do Itabirano. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003. BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Entrevista a Benedetto Vecchi. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Jorge Zahar Editor. Rio de Janeiro. 2005 BAUMAN, Zygmunt. Confiança e Medo na Cidade. Trad. Eliana Aguiar. Jorge Zahar Editor. Rio de Janeiro. 2009 BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil – 1988 – Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Cons tituicao.htm> Acesso em 26 set. 2015. BRASIL, Lei Federal 12.334 de 20 de setembro de 2010. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007- 2010/2010/Lei/L12334.htm> Acesso em 13 Jan. 2016 BRASIL, Departamento Nacional de Produção Mineral, 2014. <http://www.dnpm.gov.br/assuntos/barragens/arquivos- barragens/cadastro-nacional-de-barragens-de-mineracao- dentro-da-pnsb> Acesso em 12 jan. 2016 BRASIL, Departamento Nacional de Produção Mineral, 2015. Disponível em <http://www.dnpm.gov.br/assuntos/barragens> Acesso em 13 Jan. 2016 CARVALHO, Celso Guimarães; SILVA, José Margarida da; CURI, Adilson; FLORES, José Cruz do Carmo. A dependência da arrecadação do município de Ouro Preto do setor mineral. Revista Escola de Minas. RBC editoração eletrônica. Ouro Preto, MG. 2012. DEBRUN, Michel. A identidade nacional brasileira. Estudos avançados. Volume 4 nº. 8 São Paulo Jan./Apr. 1990 disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid= S0103-40141990000100004&lang=pt> Acesso em 16 jan. 2016 DIAS, Gonçalves. I Juca Pirama. Disponível em <http://www.biblio.com.br/defaultz.asp?link=http://www .biblio.com.br/conteudo/GoncalvesDias/IJucaPirama.htm > Acesso em 13 jan. 2016 FREYRE, Gilberto. Casa-grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 49ª Ed. São Paulo: Global, 2004. JACOBI, Pedro Educação ambiental, cidadania e sustentabilidade. Cadernos de Pesquisa nº.118 São Paulo Mar. 2003. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid= S0100-15742003000100008&lang=pt> acesso em 12 dez. 2015 QUIRINO, Israel. Galerias. 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São Paulo: Biblioteca Universitária, 1973 FOSFOETANOLAMINA: A MILAGROSA PÍLULA DO CÂNCER (ILUSÃO DA CURA E O CASUÍSMO DA LEI FEDERAL 13.269 DE 13 DE ABRIL DE 2016)1 Israel Quirino2 Camilla Coelho Quirino3 Resumo: Em abril de 2016, em meio a um turbilhão de eventos político- econômicos e afundados em uma onda de surtos de dengue, zika, chikungunya e H1N1 o Governo Federal, em tramitação recorde discute, aprova nas duas casas legislativas e sanciona uma lei que permite o uso da substância fostoetanolamina, droga milagrosa que mereceu da mídia a alcunha de “pílula do câncer”. Dirigida a um público extremamente fragilizado pela perversidade de uma doença cuja possibilidade de cura é rarefeita, abre-se um mercado promissor para comércio de um fármaco quecarece de estudos conclusivos de eficácia e mapeamento seguro de seus efeitos colaterais e ignora a função e competência da agência reguladora do setor, a ANVISA. Palavras-chave: Pílula do Câncer; Fosfoetanolamina; Lei 13.269/2016 Introdução: O presente trabalho discute as incertezas que pairam acerca dos efeitos realmente curativos da fosfoetanolamina na cura das neoplasias malignas, a ponto de ter merecido da mídia a alcunha de “pílula do câncer”. 1 Publicado originalmente na Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 21, n. 4682, 26 abr. 2016. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/48374> 2 Advogado, Professor de Direito Constitucional da FUPAC – Mariana 3 Acadêmica do Curso de Jornalismo da FUMEC – Belo Horizonte. Pretende-se abordar a ausência de estudos conclusivos acerca da eficácia da substância, que diante do apelo dramático do paciente que busca a cura de uma patologia que se sabe de cura difícil, e da enganosa propaganda que se constrói sobre seus efeitos curativos, acaba por expor o paciente aos efeitos desconhecidos da droga (benefícios e malefícios não mapeados) ou à insegurança dos médicos quanto ao ponto de se prescrevê- la em grande escala. No mesmo diapasão discute-se a responsabilidade das Casas Legislativas Federais em fazer sobrepor a decisão política aos conhecimentos técnicos científicos da ANVISA e das entidades médicas e oncológicas que desacreditam (ou alimentam incerteza) quanto ao poder curativo da substância. A mídia, na ânsia de informar acaba por construir um universo de esperanças sobre um a pesquisa científica inconclusa fomenta um mercado gigantesco de medidas judiciais, que por sua vez acaba por oferecer à pesquisa dezenas de milhares de cobaias humanas que de bom grado se submeterão ao uso do fármaco diante da promessa (ou esperança) da cura. Por outro lado, a lei, recentemente aprovada sem o aprofundamento da discussão, por seu termo, contribui para abertura de um mercado extremamente promissor de royalties sobre a substância patenteada, embora desconheçam seus reais efeitos clínicos e curativos. 2. Enquanto há vida há esperança Para os profissionais que trabalham com pacientes portadores de doenças terminais, são facilmente identificáveis e conhecidos os cinco estágios da doença, descritos pela psiquiatra suíça Elizabeth Kübler-Ross (1969). Segundo a pesquisadora, em seus estudos de tanatologia apresentados na obra “Sobre a Morte e o Morrer” (1969), a descoberta de uma doença incurável leva o paciente a cinco estágios emocionais: a negação; a raiva; a negociação; a depressão e, por fim, a aceitação. Tais estágios do epílogo da vida foram discutidos de maneira crítica pelo cinema na obra Antes de Partir (The Bucket List) do cineasta Rob Reiner (2007), onde os personagens centrais da trama Carter Chambers (Morgan Freeman) e Edward Cole (Jack Nicholson), compartilham os períodos finais de tratamento de doenças terminais. Apesar de sua seriedade, o tema é abordado de maneira bem humorada, com dois personagens em conflito: um pobre, negro e sábio (Freeman) e um rico, branco e fútil (Nicholson) que convivem com a certeza da morte próxima e discutem valores da vida em sua fase final. Cientes que as incertezas do final da vida afeta a todos indistintamente, ambos elaboram uma “lista de desejos” e resolvem realizá-la antes da partida. Longe das ribaltas da arte, porém, a angústia que se abate sobre portadores de doenças denominadas terminais ou incuráveis vai além do Modelo de Küber-Ross, levando o paciente e sua família a enveredar por caminhos da esperança (ou do desespero) em busca da cura ou alívio ou mecanismo de enganar o espírito e antecipar o estágio de aceitação da morte iminente. Neste estágio, do dogmatismo ingênuo ou da última esperança, não descrito pela Doutora Kübler-Ross, o paciente acredita em qualquer coisa e tomará qualquer atitude para alivio dos sofrimentos e busca da cura que se sabe incerta. O prolongamento da vida ou a eliminação dos incômodos da doença expõe ao enfermo e à sua família a uma situação de fragilidade emocional, susceptível a qualquer promessa de alívio. Diante da certeza da morte vale à pena investir em qualquer fagulha de esperança, uma vez que nada se tem a perder. 3. Um mercado promissor Ao contrário do paciente, no entanto, que nada tem a perder, laboratórios que fabricam medicamentos muito tem a ganhar. E aí que reside a discussão ética que se propõe neste ensaio. Alimentando a esperança de dezena de milhares e pacientes cancerígenos o Brasil, por meio da Lei Federal 13.269/2016, liberou o consumo da substância fosfoetanolamina, supostamente uma droga sintética capaz de curar o câncer. Concebida no calor de uma discussão ética-jurídica- científica ainda não conclusa, a aprovação da norma resulta em um típico casuísmo emocional, no qual sucumbiu o Congresso Nacional, ao arrepio dos instrumentos que orientam a liberação do comércio de drogas e medicamentos e, até mesmo, desautorizando a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), cuja competência legal encontra-se expressa no artigo 8º da lei 9.782/1999: Art. 8º Incumbe à Agência, respeitada a legislação em vigor, regulamentar, controlar e fiscalizar os produtos e serviços que envolvam risco à saúde pública. § 1º Consideram-se bens e produtos submetidos ao controle e fiscalização sanitária pela Agência: I - medicamentos de uso humano, suas substâncias ativas e demais insumos, processos e tecnologias; Não é, no entanto, a primeira vez que o Congresso Nacional enfrenta a ANVISA e contraria suas decisões técnicas. Em setembro de 2014, por meio do Decreto Legislativo 273 foi liberada a fabricação, a prescrição e venda do inibidor de apetite sibutramina, considerado pela ANVISA uma substância nociva à saúde desde 2011 (Resolução RDC 52 da ANVISA). 4. O milagroso caso da fosfoetanolamina A fosfoetanolamina é um composto orgânico, presente nos organismos de mamíferos e que participam da composição estrutural das células. Os primeiros estudos dessa substância foram iniciados em 1936 pelo cientista Edgar Laurence Outhouse, do Departamento de Pesquisas Médicas do Instituto Banting da Universidade de Toronto, Canadá. A versão sintética da substância começou a ser estudada nos anos 1970. No entanto o seu uso como droga de enfrentamento ao câncer vem sendo estudado no Brasil pelos Professores Gilberto Orivaldo Chierice, Salvador Claro Neto, Antônio José Reimer, Sandra Vasconcellos Al-Asfour, Renato Meneguelo e Marcos Vinicius de Almeida, que estudaram, sintetizaram, registraram e testaram um novo composto de fosfoetanolamina capaz de marcar células tumorais, permitindo ao organismo humano detectar e combater estes tumores. A partir de resultados preliminares considerados animadores em alguns modelos experimentais em linhagens celulares de câncer e em animais, os pesquisadores decidiram “testar” a substância em seres humanos, quanto teve início o uso em alguns pacientes portadores de neoplasias na região da cidade de São Carlos-SP. A fórmula dos cientistas brasileiros está protegida pela lei de patentes e, desde o final da década de 1980, por atuação do professor Orivaldo Chierice, vinha sendo fabricada e distribuída pelo Instituto de Química de São Carlos, unidade da USP a pacientes cancerosos, mesmo ante a ausência de laudos conclusivos sobre a eficácia
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