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47 Psicologia & Sociedade; 16 (2): 47-58; maio/ago.2004 INTRODU˙ˆO Quantos dentre nós, em meio às ativida- des corriqueiras, nos deparamos com a figura de um morador de rua? Considerando que eles habi- tam com freqüŒncia vÆrios logradouros pœblicos, Ø pertinente ponderar que todos nós jÆ interagimos com essas pessoas. Contudo, se refletirmos sobre a qualidade destas interaçıes, observaremos que comumente nós as olhamos amedrontados, de soslaio, com uma expressªo de constrangimento. Alguns as vŒem como perigosas, apressam o passo. Outros logo as consideram vagabundas e que ali estªo por nªo quererem trabalhar, olhando-as com hostilidade. Muitos atravessam a rua com receio de serem abor- dados por pedido de esmola, ou mesmo por prØ- conceberem que sªo pessoas sujas e mal cheirosas. HÆ tambØm aqueles que delas sentem pena e olham-nas com comoçªo ou piedade. Enfim, Ø co- mum negligenciarmos involuntariamente o conta- to com elas. Habituados com suas presenças, pare- ce que estamos dessensibilizados em relaçªo à sua condiçªo (sub) humana. Em atitude mais violen- ta, alguns chegam a xingÆ-las e atØ mesmo agredi- las ou queimÆ-las, como em alguns lamentÆveis casos noticiados pela imprensa. Observa-se, assim, a existŒncia de repre- sentaçıes sociais pejorativas, em relaçªo à popula- çªo em situaçªo de rua, que se materializam nas relaçıes sociais. Vagabundo, preguiçoso, bŒbado, sujo, perigoso, coitado, mendigo... Sªo designa- çıes comuns dirigidas às pessoas em situaçªo de rua. Estes conteœdos interferem na constituiçªo da identidade destas pessoas: Ø conhecimento so- cialmente compartilhado e utilizado como suporte para a construçªo de suas identidades pessoais. QUEM VOC˚S PENSAM QUE (ELAS) SˆO? REPRESENTA˙ÕES SOBRE AS PESSOAS EM SITUA˙ˆO DE RUA*. Ricardo Mendes Mattos Ricardo Franklin Ferreira Universidade Sªo Marcos RESUMO: No ponto de encontro entre o conceito de identidade como metamorfose humana e a catego- ria ideologia como forma de reproduzir relaçıes sociais de dominaçªo, o presente artigo discute a tipificaçªo das pessoas em situaçªo de rua como vagabundas, sujas, loucas, perigosas e coitadas. Tal conhecimento socialmente compartilhado acaba por legitimar a violŒncia física contra estas pessoas, bem como servir de referŒncia para a constituiçªo de suas identidades pessoais. Face a este universo simbólico perverso que as acomete, sªo analisados a loucura (como fuga da realidade), o suicídio (como consumaçªo material da morte simbólica em curso) e a resistŒncia, a partir da transformaçªo social (opondo-se a esta ideologia atravØs da luta pelos seus direitos), como formas das pessoas em situaçªo de rua elaborarem estas representaçıes oriundas de suas condiçıes sociais. PALAVRAS-CHAVE: psicologia social; situaçªo de rua; identidade; ideologia; representaçªo social. WHO DO YOU THINK THEY ARE? REPRESENTATIONS ABOUT HOMELESS PEOPLE. ABSTRACT: In the rendezvous of the concept of identity as cause of the human metamorphose and the category of ideology as a way to reproduce social domination, the present article discusses the labeling of the homeless people as vagabonds, dirty people, crazy persons, dangerous or poor. This feeling shared for many ends up to legitimate the physical violence against this people, as well as a bad reference in the constitution of their personal identities. Besides this perverse symbolic universe which theyre submitted, are analyzed the madness- as escape from reality, the suicide as the material consummation of the symbolic death, and the resistance against the social transformation- as an opponent to this labeling through the fight for their rights. KEY-WORDS: social psychology; homelessness; identity; ideology; social representations. 48 Mattos, R.M.; Ferreira, R.F. Quem vocŒs pensam que (elas) sªo? Representaçıes sobre as pessoas em situaçªo de rua Trata-se de conteœdos simbólicos de cunho ideoló- gico, na medida em que favorecem a cristalizaçªo de relaçıes de exploraçªo e dominaçªo (GUARESCHI, 1996, 2002). Guareschi (1996) faz alusªo a algumas es- tratØgias de operaçªo da ideologia, dentre elas a rotulaçªo ou estigmatizaçªo (p. 90). Uma das formas possíveis de se entender este mecanismo Ø a partir do conceito de esquemas tipificadores (BERGER e LUCKMANN, 1985). Estes constituem um conhecimento socialmente compartilhado do qual lançamos mªo para apreender o outro nas interaçıes sociais. Segundo os autores, estes es- quemas pressupıem uma anonimidade inicial, na medida em que se trata de um prØ-conceito para apreender o outro, que precede e modela a interaçªo com ele. Ao serem transmitidos para as geraçıes seguintes, estes conteœdos, como qual- quer institucionalizaçªo, acabam por ser revesti- dos de um carÆter a-histórico, surgindo como cons- truçıes simbólicas dadas, inalterÆveis e eviden- tes (BERGER e LUCKMANN, 1985, p. 85). O Æpice da tipificaçªo Ø a completa apreensªo da pessoa como um tipo, somente pelos aspectos rotulados, negando sua humanidade e a transformaçªo a ela inerente. A identidade como metamorfose (CIAMPA, 1990), entendida como uma construçªo ininterrupta a partir das relaçıes sociais em um contexto histórico determinado, surge assim sob a aparŒncia de uma identidade reificada (BERGER e LUCKMANN, 1985, p. 126), manipulada pelas tipificaçıes externas à pessoa e que, por sua vez, atrofiam sua possibilidade de autonomia. A relaçªo da ideologia com a identidade (CIAMPA, 1977) ou das representaçıes sociais com a subjetividade (FURTADO e GONZALEZ REY, 2002) nªo sªo investigaçıes simples, nem tampouco recentes. Sabe-se que a construçªo da identidade estÆ vinculada à totalidade das rela- çıes sociais, recortada pelo conhecimento social- mente compartilhado e mediado por outrem (CIAMPA, 1990; BERGER e LUCKMANN, 1985). Assim, qualquer estudo sobre a identidade de uma pessoa deve ser precedido do conhecimento das representaçıes sociais sobre a categoria na qual estÆ inserida. Compreendemos representaçªo social, nes- te trabalho, como a categoria definida por Jodelet (2001), ou seja, uma forma de conhecimento, social- mente elaborada e partilhada com um objetivo prÆtico, e que contribui para a construçªo de uma realidade co- mum a um conjunto social. Igualmen- te designada como saber de senso co- mum ou ainda saber ingŒnuo, natu- ral, esta forma de conhecimento Ø di- ferenciada, entre outras, do conheci- mento científico (p. 22). As representaçıes sociais organizam as con- dutas e as comunicaçıes sociais e intervŒm na di- fusªo e na assimilaçªo dos conhecimentos, alØm de participar na definiçªo das identidades pesso- ais e sociais. Para Moscovici (1978), sªo referŒncias que circulam, cruzam-se e se cristalizam incessante- mente atravØs de uma fala, um gesto, um encon- tro, em nosso universo cotidiano (p. 41). AlØm disso, para Moscovici (2003), elas convencionalizam os objetos e pessoas e, alØm de darem a eles uma forma definitiva, transformam- nos em modelos de determinado tipo que passam a ser partilhados pelas pessoas na construçªo de suas realidades. Neste trabalho, as representaçıes sociais como modelos compartilhados pelas pessoas em suas relaçıes cotidianas, conforme a concepçªo de Moscovici (2003), assemelha-se ao que entende- mos como esquemas tipificadores, propostos por Berger e Luckmann (1985). Assim, a proposiçªo aqui discutida Ø cla- ra: as representaçıes sociais sobre as pessoas em situaçªo de rua reforçam a construçªo de identi- dades articuladas com valores negativamente afir- mados. Neste caso específico, as representaçıes sociais podem ser consideradas ideológicas, pois re-produzem e cristalizam relaçıes concretas de dominaçªo (OLIVEIRA e WERBA, 2002). Em contrapartida, consideramos que as mesmas repre- sentaçıes contŒm em si o germe de sua superaçªo, podendo servir como referŒncias para o ingressodas pessoas em situaçªo de rua no campo da rei- vindicaçªo pelos seus direitos, constituindo, por conseguinte, identidades mais críticas e autôno- mas. A partir desse contexto, o objetivo deste artigo Ø traçar um breve esboço sobre como as re- presentaçıes sociais acerca de pessoas em situa- çªo de rua repercutem na construçªo de suas iden- tidades. Para tanto, foram referenciados alguns de- poimentos de ex-moradores de rua que tiveram suas histórias de vida analisadas por Mattos (2003), em sua pesquisa sobre a identidade das pessoas em situaçªo de rua. Utilizamos tambØm nossa experi- Œncia e participaçªo em alguns movimentos soci- ais articulados pela populaçªo em situaçªo de rua, alØm de duas publicaçıes sobre este contingente: o Jornal O Trecheiro: notícias do povo da rua (em suas ediçıes n” 98, 105 e 108) e a Revista 49 Psicologia & Sociedade; 16 (2): 47-58; maio/ago.2004 Boca de Rua (especificamente os n”s 0, 1, 2 e 3). A publicaçªo mensal do jornal O Trecheiro: notícias do povo da rua constitui um excelente meio de comunicaçªo realizado com e para a populaçªo em situaçªo de rua da cidade de Sªo Paulo. O Trecheiro Ø editado pela Rederua (www.rederua.org.br) com o intuito de dar vez e voz ao povo da rua, sendo um instrumento de comunicaçªo dos acontecimentos vivenciados nas ruas paulistanas. Possui uma linha editorial calcada na denœncia e discussªo de estratØgias para a assistŒncia à populaçªo em situaçªo de rua. Destacamos, em nossa anÆlise, os relatos de diversas pessoas em situaçªo de rua que compıem o espaço denominado Vida no trecho. A Revista Boca de Rua possui toda sua linha editorial, matØrias e reportagens realizadas pelas próprias pessoas em situaçªo de rua de Por- to Alegre. Este projeto segue a mesma linha de iniciativas similares organizadas pela INSP, uma Rede Internacional de Jornais de Rua, abarcan- do, alØm de instrumento de conhecimento e di- vulgaçªo dos acontecimentos da rua, a venda da revista como uma fonte de renda para este con- tingente. Concentramos nossa anÆlise em algu- mas passagens do jornal que deflagram a postura crítica de seus realizadores sobre a vida nas ruas. Assim, a partir dos depoimentos de pesso- as em situaçªo de rua, a presente exposiçªo discu- te algumas tipificaçıes comumente infligidas às pessoas em situaçªo de rua e aponta alguns de seus efeitos na constituiçªo de suas identidades. PESSOA EM SITUA˙ˆO DE RUA COMO VAGABUNDA O trabalho (entendido em seu sentido pro- dutivo de venda de força de trabalho e extraçªo da mais-valia) constitui uma das categorias res- ponsÆveis pela coesªo da sociedade atual (ENRIQUEZ, 1999; TOSTA, 2000), alØm de confe- rir ao indivíduo dignidade pessoal (VIEIRA, BE- ZERRA e ROSA, 1992). Dessa forma, o trabalho surge como fator primordial para a pessoa, por dois aspectos: provØm a subsistŒncia física por meio dos rendimentos auferidos; e sustenta a subsistŒncia simbólica, dada a importância do trabalho (ou identidade profissional) na constituiçªo da identi- dade pessoal (JACQUES, s.d.; BAPTISTA, 2002). Releva-se ainda o fato de que o emprego formal e o registro em carteira servem como legitimadores da identidade de trabalhador (embora quase a meta- de dos trabalhadores atue no mercado informal). Desprovidas desta referŒncia, as pessoas em situa- çªo de rua, apesar de desenvolverem atividades informais, sªo, sob a ótica do trabalho, freqüentemente consideradas como improdutivas, inœteis, preguiçosas e vagabundas. Segundo Di Flora (1987), a populaçªo em situaçªo de rua Ø assim estigmatizada, pois escancara as contradiçıes bÆsicas do modo capi- talista de produçªo: a falÆcia de que todos possu- em iguais oportunidades e a evidŒncia de que, embora a produçªo seja social, a apropriaçªo dos ganhos Ø sempre individual, sendo as pessoas em situaçªo de rua testemunhas vivas de que a explo- raçªo e a desigualdade estªo no cerne deste modo de produçªo. Neste sentido, estas contradiçıes sªo sola- padas a partir de um mecanismo denominado culpabilizaçªo (GUARESCHI, 1999). Este meca- nismo Ø considerado como uma legitimaçªo ideo- lógica que suporta a criaçªo e reproduçªo das re- laçıes de exploraçªo e dominaçªo no capitalismo. Frente à (pseudo) igualdade e à competitividade inerente ao ideal liberal, qualquer problemÆtica que envolva a inserçªo do indivíduo no sistema produ- tivo Ø alvo de um reducionismo que o descontextualiza da sociedade e transfere-lhe a culpa e responsabilidade por sua condiçªo. Para Di Flora (1987), esta culpabilizaçªo advØm de um radical psicologismo, quando as causas sªo consideradas como individuais. Em funçªo disso, a pessoa sem emprego formal Ø rotulada como anormal ou desviante, ou seja, a culpa da au- sŒncia de trabalho recai sobre a própria vítima. Assim, ocorre a tipificaçªo do indivíduo em situaçªo de rua como vagabundo, incapaz e sujeito que nªo quer trabalhar (DOMINGUES JR., 1998, p. 14), pela sociedade no geral e atØ por ou- tras pessoas em situaçªo de rua. Aos cidadªos que reproduzem estes estereótipos, o depoimento de JosØ pode ajudÆ-los a repensar nos valores que possu- em acerca da populaçªo em situaçªo de rua: O pessoal que estÆ aqui nªo Ø por falta de capacida- de. Nªo Ø nossa culpa. Eles acham que nªo temos aparŒncia, mas nªo temos como nos cuidar (TRECHEIRO, Ano X, n” 98, p. 03). PESSOA EM SITUA˙ˆO DE RUA COMO LOUCA Como se nªo bastasse a corriqueira deno- minaçªo das pessoas em situaçªo de rua como va- gabundas, hÆ tambØm o discurso psiquiÆtrico, segundo denominaçªo de Stoffels (1977), que as identificas como doentes mentais, loucas e desviantes sociais. Este conteœdo, difundido no senso comum, assume que a mendicância pode ser considerada, de modo geral, como gŒnese e pro- duto de distœrbios de personalidade, doenças men- 50 Mattos, R.M.; Ferreira, R.F. Quem vocŒs pensam que (elas) sªo? Representaçıes sobre as pessoas em situaçªo de rua tais ou psicopatia... (p. 262). Permeado pelo critØrio psiquiÆtrico de pa- tologia como sinônimo de anormalidade, em contraposiçªo aos indivíduos considerados nor- mais, muitas vezes as pessoas em situaçªo de rua sªo vistas como loucas ou casos de internaçªo. A caracterizaçªo das pessoas em situaçªo de rua como anormais, carrega em si a comparaçªo com uma normalidade vista como forma legítima de vida na sociedade. Assim, o diferente passa a ser objeto de estranhamento e repulsa. A dicotomia normal versus anormal homogeneíza as dife- renças com o intuito de manter todos na linha, re-produzir uma dada ordem social. Ora, se morar em uma residŒncia fixa, trabalhar formalmente e constituir família sªo padrıes sociais que caracte- rizam os indivíduos normais, logo, sem residŒn- cia fixa, sem família e trabalho formal, as pessoas em situaçªo de rua sªo alvos de investidas ideoló- gicas que acentuam suas anormalidades. Assim Ø que o discurso psiquiÆtrico asso- cia a populaçªo de rua à doença mental caracteri- zando-a pelos desajustamentos sociais, psicopatias e distœrbios de personalidade (STOFFELS, 1977, p. 262). PESSOA EM SITUA˙ˆO DE RUA COMO SUJA Magni (1994) oferece respaldo para a dis- cussªo sobre a tipificaçªo das pessoas em situaçªo de rua associadas à sujeira e ao contÆgio de doen- ças fato que subverte e afronta nossos hÆbitos de higiene e preservaçªo da saœde. Segundo a auto- ra, a clÆssica descriçªo dessas pessoas como ar- quØtipo do fedor Ø um exemplo claro desta estigmatizaçªo: O estereótipo do nômade urbano Ø clÆssico: roupa esfarrapada, pele encardida com dermatoses, às vezes abrindo em feridas, corpo marcado por cicatrizes; unhas das mªos e dos pØs enegrecidas, compridas e, por vezes, deformadas; dentes em parte caídos, em parte cariados; cabelos ensebados, olhos congestionados, etc. Sªo signos genØricos que contam a trajetória so- cial e tornam evidenteque o indiví- duo faz parte da populaçªo pobre que habita as ruas (p. 134). Sempre que nos referimos a essas pessoas, Ø comum automaticamente ocorrer a associaçªo com a difundida figura de um indivíduo sujo, mal- trapilho e aparŒncia sórdida. Nesse caso, estamos utilizando o discurso higienista que rotula e pro- paga o estigma do morador de rua sempre associa- do à sujeira que deve ser jogada para debaixo do tapete. Entretanto, o que nos deixa perplexos, e deve ser ressaltado, Ø que a grande maioria dos indivíduos que habitam as ruas nªo compartilha destes atributos. Nesse sentido, Sposati (1995) ressalta a constante demanda dos cidadªos em solicitar a remoçªo de moradores de rua que estªo localiza- dos perto de suas residŒncias. Assim, realiza-se um trabalho baseado no modelo filantrópico higiŒni- co ou concepçªo assØptica na qual a orienta- çªo do trabalho Ø segregar, esconder, higienizar (p. 90). O lema Ø: vamos recolher as pessoas, va- mos dar banho, vamos tirar a sujeira (p. 89). PESSOA EM SITUA˙ˆO DE RUA COMO PERIGOSA Ao analisar os discursos ideológicos que rotulam as pessoas em situaçªo de rua, Stoffels (1977) aponta o discurso jurídico e crimi- nológico que as apreende como perigosas e cri- minosas, sucessivamente (p. 38). Nesse sentido, vejamos o depoimento de Jorge, um ex-morador de rua (MATTOS, 2003): Elas tinham medo de chegar e se apro- ximar. Eu acho que esse Ø o maior erro do povo brasileiro... ter esse medo. Entªo eu acho que deveriam de ser cortadas essas barreira... Elas ficam com medo, como se a pessoa... vocŒ dar um choque se ela fosse falar com ela. Porque ninguØm mata, eu posso conversar com determinada pessoa sem pegar uma doença e nem nada... (p. 42). Relata o medo das pessoas que passavam na praça de conhecer e conversar com as pessoas em situaçªo de rua. Este medo talvez esteja relaci- onado ao estigma do morador de rua como um criminoso em potencial, que pode assaltar, pedir esmola ou violentar quem quer que atravesse o seu caminho. As pessoas, ainda segundo Jorge, pen- sam que vªo levar um choque aproximando-se dos cidadªos em situaçªo de rua. De fato, levarªo um choque: o choque da desigualdade e desumanizaçªo do homem no seio da sociedade brasileira. Trata-se da vinculaçªo mais geral da po- breza com a violŒncia e a delinqüŒncia, o que vem a favorecer que todos os cidadªos enxerguem o morador de rua como socialmente ameaçador e um criminoso em potencial. 51 Psicologia & Sociedade; 16 (2): 47-58; maio/ago.2004 PESSOA EM SITUA˙ˆO DE RUA COMO COITADINHA Por fim, apesar de nªo dispormos de da- dos na literatura, a partir de contatos que se de- ram com pessoas em situaçªo de rua, durante o levantamento de dados da pesquisa de Mattos (2003), identificamos um outro tipo de discurso que permeia as relaçıes entre essas pessoas e os domiciliados - um discurso que denominamos de discurso religioso, que contØm uma visªo sobre as pessoas em situaçªo de rua como aquelas dig- nas de piedade. É uma concepçªo que procura explicar a situaçªo de rua como uma oportunidade de expia- çªo de erros cometidos em vidas passadas, ou seja, como um modo de vida de sofrimento que pode levar à salvaçªo pessoal. Assim, a situaçªo de rua passa a ser vista como uma condiçªo de regene- raçªo da alma. Mesmo existindo uma sincera pie- dade, o aspecto pernicioso que atua subjacente a esta concepçªo Ø o de contribuir para a constru- çªo da identidade do indivíduo em situaçªo de rua como alguØm inferior e digno de pena por suas mazelas, alØm de ser uma crença que dificulta a criaçªo de possibilidades para estes indivíduos con- quistarem suas saídas das ruas. É uma visªo que favorece açıes meramente assistencialistas e pali- ativas, o que, provavelmente, tende a manter o pro- blema. DA TIPIFICA˙ˆO À VIOL˚NCIA F˝SICA O conjunto destas tipificaçıes suscita nos cidadªos domiciliados açıes que trafegam no ex- tremo da total indiferença chegando atØ à repulsa e à violŒncia física. O contato corriqueiro com pessoas em si- tuaçªo de rua, que no início gerava espanto e in- dignaçªo, vai gradualmente levando a uma dessensibilizaçªo para com sua condiçªo social. De tªo acostumados com suas mazelas, mesmo que involuntariamente, jÆ nªo mais reparamos suas presenças. Trata-se da disseminaçªo da indiferen- ça que denota uma naturalizaçªo do fenômeno pelos indivíduos sedentÆrios: as coisas sªo mes- mo assim. O que posso fazer? exclamam. Assim, reproduzem uma visªo que propaga a situaçªo de rua como definitiva, imutÆvel, defronte à qual os sujeitos históricos, que constroem a realidade so- cial, nada podem fazer. Nascimento (2000) relata que, subjacente à indiferença, pode estar atuando a desconsideraçªo do outro da rua como igual, como se fosse de outra espØcie com poucas similarida- des. Sªo pessoas, portanto, negadas em sua huma- nidade: homens e mulheres que nªo sªo mais vis- tos como tais por seus semelhantes. E talvez jÆ nªo se sintam tambØm como tais (p. 56). ClØver, outro ex-morador de rua (MATTOS, 2003), nos dÆ o seguinte depoimento: ...a rua Ø uma das fases mais cruØis que podem existir no ser humano. Eu acho que depois da guerra eu acho que a crueldade maior Ø ser um mora- dor de rua. É uma guerra contra o si- lŒncio, contra o descaso, contra uma coisa que muitos passam e nem olham, nem tomam conhecimento de quem estÆ deitado ali, quem nªo estÆ (p. 75). No outro extremo, hÆ uma atitude hostil de repulsa, nomeadamente a violŒncia física, como atitude legitimada pela existŒncia destas tipificaçıes. Esta Ø a idØia discutida por Bursztyn (2000), quando pondera que a desqualificaçªo e a desvinculaçªo das pessoas em situaçªo de rua pode ser seguida da eliminaçªo física à qual elas estªo suscetíveis. Buarque (2000) acrescenta que pode estar em andamento um processo de dessemelhança entre seres humanos, marcado pela imagem do cidadªo em situaçªo de rua como alguØm destituído do pertencimento à espØcie hu- mana. ClØver, participante da pesquisa de Mattos (2003), na Øpoca que habitava o baixio de um via- duto próximo à favela de Heliópolis, em Sªo Pau- lo, relata que nªo dormia, em parte pelo medo de que vândalos tentassem queimÆ-lo. NoticiÆrios constantes tambØm corroboram a existŒncia de muitos casos de homicídios de pes- soas em situaçªo de rua. AlØm do conhecido caso do assassinato do índio Galdino em Brasília, Ø muito freqüente a ocorrŒncia de lamentÆveis fatos como este, embora nªo tenham a mesma repercussªo. Eis a tese de que a violŒncia simbólica, que por si só jÆ acarreta danos intransponíveis atravØs das atitudes e das palavras, legitima a ocorrŒncia de violŒncia física, que pode chegar ao extremo da eliminaçªo física. INTERIORIZA˙ˆO DOS DISCURSOS: SOU UMA PESSOA VAGABUNDA, LOUCA, SUJA, PERIGOSA E DIGNA DE PIEDADE? Somente a existŒncia destes atributos jÆ pontua a ocorrŒncia de uma violŒncia simbólica para com a populaçªo em situaçªo de rua que, como vimos, legitima a ocorrŒncia da violŒncia fí- sica. Contudo, a faceta mais contundente Ø o fato 52 Mattos, R.M.; Ferreira, R.F. Quem vocŒs pensam que (elas) sªo? Representaçıes sobre as pessoas em situaçªo de rua dessas pessoas utilizarem estes conteœdos como referŒncia para configurarem suas próprias identi- dades. Sob o prisma de Ciampa (1990), configu- ramos nossa identidade a partir da interiorizaçªo de atributos pressupostos pelos outros em nossas interaçıes, tendo como pano de fundo o conheci- mento socialmente compartilhado. A existŒncia de esquemas tipificadores possui a condiçªo de pre- dizer e manipular as condutas individuais na me- dida em que define e constrói os papØis e, por conseguinte, controla e prediz todas essas condu- tas (BERGER e LUCKMANN, 1985, p. 93). Com base nestes papØis objetivamente atribuídos, o in- divíduo constrói personagenssubjetivamente apro- priados. Assim, os conteœdos simbólicos emergen- tes nas relaçıes sociais construídas pelo indivíduo com seus interlocutores tornam-se referŒncias que passam a ser apropriadas intrapsiquicamente. Isto nªo quer dizer que o indivíduo aceite de bom gra- do tais tipificaçıes, mas que as tŒm como conteœ- dos subjetivos em torno dos quais ele dÆ sentido às suas vivŒncias e constrói sua identidade pesso- al, mesmo que sejam por ele negados (MATTOS, CASTANHO e FERREIRA, 2003). Diversos estudos e os próprios depoimen- tos de pessoas em situaçªo de rua apontam que hÆ uma apropriaçªo das representaçıes sociais a elas atribuídas e, atravØs delas, dªo sentido às suas identidades e às condiçıes sociais a que estªo sub- metidas. Nesse sentido, ClØver nos dÆ seu depoimen- to: O morador de rua nªo Ø só aquele que estÆ debaixo do viaduto, dormindo debaixo de uma coberta, ou mesmo num asfalto ou numa calçada fria, mas Ø aquele morador que um dia ele teve uma cama quente, um dia ele teve um lar, ele teve uma cultura na vida dele. Mas como se fosse numa fraçªo de segundos, como um vírus no computador, aquilo deu um tilt na vida dele. E ele parou de funcio- nar, e ele foi parar ali, como se fosse um depósito de ferro velho. Sem ter alguØm, um mecânico que fosse lÆ ten- tar descobrir onde estava o problema, tentar descobrir se tinha conserto ou nªo aquela peça... E cada vez mais, quanto mais tempo a pessoa fica co- locada nesse depósito de ferro velho, que Ø o mundo aí fora, as calçadas e as esquinas da vida, aquele defeito vai de agravando de tal forma que vai to- mando conta de todas as peças, ela vai enferrujando todas as suas partes. Chega um determinado momento que esta peça nªo tem mais vontade pró- pria, nem sequer ela lembra que teve um passado. Ela começa a viver na verdade aquele sub-mundo que ela estÆ vivendo e esquece que existe ou- tro mundo. Ela começa a ver as pes- soas que vivem nesse outro mundo como se fossem ETs, como se fos- sem pessoas superiores a ela ao mÆxi- mo. Por mais capacidade que essa pes- soa tenha, ela nªo consegue botar isso para frente, ela nªo consegue botar isso para uma mudança da própria vida dela (MATTOS, 2003, p. 75). Configurando sua identidade, a partir des- tes valores, acaba vivendo o que denomina uma das mais cruØis fases que podem existir ao ser hu- mano. Justamente uma etapa na qual a própria humanidade lhe Ø negada. O cidadªo em situaçªo de rua nªo Ø visto como um igual, como integran- te da mesma espØcie, apenas nªo Ø visto, como se fosse coisa. Como analisamos, o indivíduo pode apropria-se das representaçıes sociais e passar a ver-se como um objeto, uma peça sem vontade pró- pria. AlØm disso, a pessoa tambØm pode se apro- priar do conteœdo ideológico da culpabilizaçªo e acreditar que estÆ nestas condiçıes devido somen- te a imperfeiçıes individuais, responsabilizando- se integralmente (NASCIMENTO, 2000, p. 63). Sur- gem, entªo, justificativas, tambØm parciais, segun- do as quais a pessoa estÆ em situaçªo de rua por- que nªo estudou, nªo soube abraçar oportunida- des de emprego ou nªo tenha pensado no futuro. Por conseguinte, a pessoa pode incorporar uma visªo de si própria como digna de menos va- lia, como um fracasso, ou seja: vªo pouco a pou- co adquirindo a identidade dos caídos, dos inœ- teis, dos fracassados (ZALUAR, 1995, p. 55). Segundo Stoffels (1977), na representaçªo que as pessoas em situaçªo de rua concebem para sua existŒncia permeada pela pobreza, a dicotomia pobreza/riqueza Ø vista como uma contingŒncia da natureza humana cuja naturalizaçªo extrapola a atividade humana e Ø tida como uma força extrínseca e estranha aos homens. Ocorre a ten- dŒncia à culpabilizaçªo pessoal ou aos desígnios traçados por Deus, como demonstram os depoimen- tos de seus entrevistados: A misØria existe por fal- ta de capacidade e oportunidade; O pobre Ø po- bre porque nªo usou a cabeça; Ricos e pobres? 53 Psicologia & Sociedade; 16 (2): 47-58; maio/ago.2004 Isto daí existe desde o começo do mundo; Essa diferença nªo Ø culpa de ninguØm. É assim (p. 208); Desconfio que Deus jÆ fez o mundo assim (p. 209). Por fim, o indivíduo nªo-trabalhador Ø encerrado pela ideologia dominante numa situaçªo perifØrica, e estigmatizado como ser desviante, degenerado e residual. Ele se vŒ e sente como elemento segregado, portador de uma identidade atrofiada (STOFFELS, 1977, p. 231). Tal fato repercute em diversos aspectos de sua vida: sentimento de vergonha e humilhaçªo que o faz se afastar do contato com familiares; ten- dŒncia ao isolamento ou formaçªo de grupos que lhe confiram uma identidade estÆvel. Se muitos se calam resignados, incorpo- rando os atributos de fracassados, outros negam tal prerrogativa e constroem seus sucessos pesso- ais ao narrem suas biografias (ORTIZ, 2001; BAR- BOSA e PAULINO, 2003), permeadas por críticas aos preconceitos sociais e à falta de oportunida- des. Observa-se, entªo, tambØm a possibilidade de desenvolvimento de uma postura crítica na in- vestigaçªo da realidade concreta das pessoas em situaçªo de rua em ediçıes por elas produzidas, tais como a Revista Boca de Rua, utilizada como instrumento de denœncia das problemÆticas que margeiam a vida nas ruas de Porto Alegre tais como a invisibilidade social e a violŒncia polici- al (ano I, n” 0), a drogadiçªo (ano I, n” 1), a difi- culdade de conseguir vagas em albergues (ano I, n” 2) e a omissªo de tratamento à saœde da popu- laçªo de rua (ano I, n” 3). Entre as próprias pessoas em situaçªo de rua, suas relaçıes indicam tambØm para uma re- produçªo destes discursos ideológicos que confi- guram a violŒncia simbólica. Domingues Junior (1998), que desenvolveu sua pesquisa com catadores de materiais reciclÆveis, os quais, em sua maioria, jÆ estiveram ou estªo em situaçªo de rua, espanta-se com o fato de existir a proliferaçªo dos valores dominantes atØ no âmbito das diversas ca- tegorias que compıem a populaçªo em situaçªo de rua: portanto, se de um lado os catadores re- cusam a imagem que lhes Ø imposta, de vagabun- dos, que nªo querem trabalhar, etc, por outro, os catadores se conformam, reproduzem essa imagem realizada pela ideologia dominante, e repassam- na para a populaçªo de rua (p. 110). Entretanto, ao lado destes, muitos catadores encabeçam movimentos sociais protagonizados pela populaçªo em situaçªo de rua, tornando os cooperados uma espØcie de vanguar- da nas lutas desta populaçªo por suas reivindica- çıes históricas. Outras vezes, contrapondo-se à tipificaçªo de vagabundas, muitas pessoas em si- tuaçªo de rua reagem trabalhando com afinco em alternativas de trabalho que valorizam o ser hu- mano como centro de toda atividade econômica tal como as experiŒncias de economia solidÆria analisadas por Hayashida (2003) -, ou mesmo par- ticipando como trabalhadores em luta por impor- tantes modificaçıes sociais como a reforma agrÆ- ria, ao ingressarem no Movimento dos Trabalha- dores Rurais Sem-Terra como visto por Shimabukuro (2003) e Costa e Magalhªes (2002). Di Flora (1987) analisa a interiorizaçªo da desumanizaçªo como um aspecto que faz com que o cidadªo em situaçªo de rua nªo se sinta mesmo completamente humano: a pressªo da estrutura social e econômica, ao determinar o ingresso do indivíduo nesta categoria, condiciona-o à forma- çªo de uma nova identidade: a de mendigo social- mente estigmatizado e entendida como deteriora- da, o que leva a nªo se sentir completamente hu- mano (p. 49). Com tudo o que foi dito, nªo Ø de se es- pantar o depoimento de MÆrio, um cidadªo em situaçªo de rua entrevistado por Nasser (1996): É triste! As pessoas passam de ônibus pessoal de carro nªo olha muito e ficam olhando e pensam: rapaz novo, em fila de albergue, tomando sopa... Ø vagabundo! Eles analisam assim. Pensam que amanhª a gente vai sair evai roubar. Todo pessoal de alber- gue Ø injustiçado. Pensam que Ø la- drªo, maconheiro, estuprador. A gen- te fica condenado. Quando a gente vŒ, tem sempre umas pessoas olhan- do. Por dentro, a gente fica magoado (p. 24). As duas histórias de vida analisadas por Mattos (2003) indicam a existŒncia nítida da re- presentaçªo ideológica da pessoa em situaçªo de rua como suja. ClØver, um de seus colaboradores de pesquisa narra a seguinte vivŒncia: Com um simples olhar que te davam, vocŒ jÆ se sentia en- vergonhado pelo lixo que vocŒ era. VocŒ se olhava e perguntava: serÆ que eu estou fedendo? Porque com aquele olhar vocŒ sentia que era um olhar repugnante, como vocŒ olha para um cachorro sarnento (p. 92). Jorge, o outro ex-morador de rua entrevistado por Mattos (2003), revela uma outra faceta da tipificaçªo a que o cidadªo em situaçªo de rua estÆ sujeito. Segundo ele, as pes- soas sabiam julgar, mas nªo conheciam estas pes- soas, nªo se aproximavam e atØ ficavam indiferen- tes ao vŒ-las. Vemos a ocorrŒncia da indiferença, 54 Mattos, R.M.; Ferreira, R.F. Quem vocŒs pensam que (elas) sªo? Representaçıes sobre as pessoas em situaçªo de rua da negligŒncia, da invisibilidade social dos indi- víduos em situaçªo de rua. Simplesmente passam despercebidos. Em contrapartida, ainda na fala de ClØver (MATTOS, 2003), pode-se perceber fervorosas crí- ticas às pessoas que desrespeitam as atividades desenvolvidas por pessoas em situaçªo de rua. Referimo-nos especialmente a uma passagem de sua narrativa em que, trabalhando como catador, discute com uma cidadª cabeleireira que nªo per- mitira a ele remexer em um lixo no qual afirmava haver cocô de gato: Senhora, a senhora ganha dessa profissªo que a senhora estÆ fazendo cortan- do o cabelo? - e a cliente olhando para a minha cara, eu falei: entªo eu vou meter a mªo nesse cocô de gato, porque Ø desse cocô de gato que eu tiro o meu sustento. Eu abri o saco e peguei o que eu queria. Entªo por aí vocŒ vŒ a discriminaçªo que sofre a pessoa (MATTOS, 2003, p. 97). Em outra ocasiªo reafirma sua visªo crítica em relaçªo às tipificaçıes sofridas pelas pessoas em situaçªo de rua nos albergues da cidade, pois, segundo ele, muitas destas instituiçıes funcionam como depó- sito humano, criando uma dependŒncia institucional e nªo oferecendo condiçıes para es- tas pessoas criarem suas próprias autonomias: É nada mais nada menos que esse homem que se acostumou a comer, beber e dormir sempre na dependŒn- cia dos outros. PorquŒ? Porque as en- tidades, a prefeitura, e nªo sei quem, proporcionaram isso daí para ele. Dei- xou para ele usufruir disso, nªo se importou em pegar esse homem e reciclar ele. Fazer ele ganhar o pªo dele de cada dia (p. 112). Em outras ocasiıes, vemos pessoas em si- tuaçªo de rua que comparecem a encontros uni- versitÆrios (MATTOS e TUCCI, 2003) para mos- trar suas caras e quem realmente sªo, conforme suas palavras. Assim, contribuem para a desmistificaçªo das tipificaçıes e para a formaçªo de profissionais mais engajados em causas sociais. Poderíamos citar vÆrios outros exemplos, tais como a mobilizaçªo da populaçªo em situa- çªo de rua em seu Dia de Luta (JORNAL O TRECHEIRO, ANO XII, n. 108), realizado anual- mente para reivindicar alguns direitos que sªo es- camoteados em virtude destas tipificaçıes. Analisando a identidade como o próprio processo de identificaçªo, observamos que, alØm da interiorizaçªo, a totalidade concreta das rela- çıes sociais tambØm rege a re-posiçªo da identida- de impregnada destas tipificaçıes. Nos casos de submissªo a estes valores, por mais que a pessoa em situaçªo de rua busque a alternaçªo de sua identidade, estes valores pejorativos permeiam suas relaçıes sociais e impedem-na de fazŒ-lo. Pode-se considerar, nestas circunstâncias, que, em casos de estigmatizaçıes, o indivíduo ... nªo tem vir- tualmente defesa subjetiva contra a identidade que lhe Ø atribuída, ou seja, Ø prisioneiro da realida- de objetiva de sua sociedade... (BERGER e LUCKMANN, 1985, p. 217-218). Assim, a re-posiçªo ininterrupta da identi- dade objetivamente atribuída pode cercear sua li- berdade individual, fazendo com que a pessoa ca- minhe em uma rØplica de si mesmo. Embora seja de sua vontade, a possibilidade do novo, de novas personagens, faz com que adentre em um círculo vicioso da crise do ator-sem-personagem. Esta condiçªo pode ser entendida baseando-se no que Ciampa (1990) denomina como sendo uma mesmice de si imposta. O indivíduo Ø levado a reproduzir uma identidade involuntariamente por força dos processos sociais que o tem como tipo. Esta negaçªo da sua humanidade Ø veiculada a partir de interesses que fogem do seu controle. Nas palavras de Ciampa (1990): De qualquer forma, Ø o trabalho de re-posiçªo que sustenta a mesmice. Outros sªo levados a essa situaçªo, involuntariamente, quando o seu de- senvolvimento Ø de alguma forma pre- judicado, barrado, impedido; na nos- sa sociedade, encontramos milhıes de exemplos de pessoas submetidas a condiçıes sócio-econômicas desuma- nas; às vezes, mesmo com condiçıes sócio-econômicas favorÆveis, milhares, talvez milhıes, de pessoas sªo impe- didas de se transformar, sªo forçadas a se reproduzir como rØplicas de si, involuntariamente, a fim de preservar interesses estabelecidos, situaçıes con- venientes, interesses e conveniŒncias que sªo, se radicalmente analisados, interesses e conveniŒncias do capital (e nªo do ser humano, que assim per- manece um ator preso à mesmice im- posta) (p. 165). Por fim, entorpecida nestas condiçıes, a pessoa pode vivenciar a mutilaçªo de sua vida de diferentes formas, o sofrimento Øtico-político, a negaçªo imposta socialmente, enfim, a dor que surge da situaçªo social de ser tratado como infe- rior, subalterno, sem valor, apŒndice inœtil da so- ciedade (SAWAIA, 1999, p. 104). Sawaia aponta o suicídio como uma possível expiaçªo deste sofri- mento. Trilhando idØias similares, Ciampa (1990) 55 Psicologia & Sociedade; 16 (2): 47-58; maio/ago.2004 pondera que na mesmice de si imposta, na crise do ator-sem-personagem, ... o ator caminha para a morte, simbólica ou biológica. A loucura, neste sen- tido, Ø o esforço de criaçªo de um novo universo louco porque singular, nªo compartilhado con- seqüentemente fuga de uma realidade: a realida- de quotidiana (p.157). Talvez por isso, vemos algumas pessoas em situaçªo de rua caminhando a esmo, de cabeça baixa e expressªo desconsolada. É possível surgir desta condiçªo a loucura como forma de fugir da realidade que nega-as em sua humanidade: Afi- nal de contas, se raramente vocŒ Ø o destinatÆrio de qualquer atençªo positiva ou Ø completamente ignorado, criar e se isolar numa realidade privada que lhe dÆ percepçıes privilegiadas e status espe- cial pode ser mais adaptativo do que parece à pri- meira vista (SNOW e ANDERSON, 1998, p. 340). Ou mesmo recorrer ao suicídio e ter vontade só de morrer como relata o ex-morador de rua Carlos Donizete Duarte (TRECHEIRO, Ano XII, n” 105, p. 02), que se jogou na frente de um carro e, feliz- mente, foi confundido como cego e auxiliado a atravessar a rua. PorØm, como vimos, as tipificaçıes sobre as pessoas em situaçªo de rua possuem em si o seu contrÆrio, o germe de sua superaçªo: se podem negar a humanidade destas pessoas, podem tam- bØm serem elaboradas de forma a possibilitar a ex- pressªo e afirmaçªo de suas humanidades. Carre- gando em si sua própria negaçªo, tais tipificaçıes dªo margem à vozes dissonantes, à causa revo- lucionÆria de pessoas em situaçªo de rua que ela- boram tais referŒncias negativas por meio da luta pelos seus direitos. Fazem germinar daí a consti- tuiçªo de suas autonomias como sujeitos históri- cos e autores de suas transformaçıes sociais. Desta forma, essas tipificaçıes podem ge- rar a submissªo e a reproduçªo dadominaçªo: o ato de alienar-se do mundo que as torna objeto e, por meio da loucura, criar um mundo imaginÆrio no qual elas podem ser sujeitos humanos; ou mes- mo abdicar da luta, e, jÆ que nªo podem ser auto- ras de suas vidas, que o sejam de suas mortes, com o suicídio. PorØm, podem utilizar-se de tais tipificaçıes como ensejo para atitudes de resistŒn- cia e transformaçªo social, negando a negaçªo de suas humanidades nelas contida: indignar-se e lu- tar, fazendo germinar a vida da possibilidade da morte. Trata-se, na concepçªo de Escorel (2000) de pessoas que vivem de teimosas, pois, mesmo vendo reduzido seus campos de possibilidades, rom- pem estas restriçıes e criam novas oportunidades de constituir-se enquanto protagonistas ativos da constituiçªo daquela mesma sociedade que nega a elas essas mesmas oportunidades. REFLEXÕES FINAIS No ponto de intersecçªo entre o conceito de identidade como metamorfose humana e de re- presentaçıes sociais, discutimos o mecanismo da tipificaçªo como forma de cristalizar e sustentar relaçıes de dominaçªo e exploraçªo no âmbito da identidade pessoal. No que se refere às pessoas em situaçªo de rua, estas tipificaçıes surgem sob a feiçªo de apreendŒ-las como vagabundas, sujas, loucas, perigosas e coitadas que suscitam atitu- des que vªo da total indiferença à hostil violŒncia física. Tal conhecimento compartilhado materiali- za-se nas relaçıes sociais destes indivíduos servin- do como material simbólico utilizado para a cons- tituiçªo de suas identidades. Com efeito, as maneiras com as quais as pessoas em situaçªo de rua elaboram estes conteœ- dos foram analisados a partir da submissªo, mate- rializando a loucura e o suicídio, ou da prÆxis transformadora, constituindo movimentos sociais na luta por seus direitos e reivindicaçıes históri- cas. Tal como as pessoas em situaçªo de rua, nós, pesquisadores e cientistas sociais, tambØm podemos elaborar de formas distintas as tipificaçıes comumente fomentadas em nossa sociedade. Po- demos, por um lado, em nossas pesquisas, nos re- signarmos a tais conteœdos e reproduzir relaçıes de dominaçªo alinhadas aos ideais neoliberais: considerando que a culpa pela situaçªo de rua Ø somente das pessoas que vivenciam tal condiçªo e que cabe a nós, donos do saber, orientÆ-las, sub- metendo-as aos nossos valores. Em contrapartida, temos a possibilidade de negar estas tipificaçıes, atribuindo a essas pessoas a condiçªo histórica de lutar junto a nós para a transformaçªo desta reali- dade social. Neste œltimo caso, faremos realmente uma Psicologia Social enquanto prÆxis (LANE e BOCK, 2003), como disciplina a serviço das clas- ses populares para construir, junto com elas, uma sociedade mais justa. Na primeira possibilidade, nªo obstante, nªo faremos senªo reproduzir uma Psicologia elitista, ou seja, como disciplina sub- serviente ao ideal neoliberal e ... instrumento de controle social das classes subalternas utilizado pelas classes dominantes para perpetuar o sistema vigente de dominaçªo e exploraçªo (ANDERY, 1984, p. 33). 56 Mattos, R.M.; Ferreira, R.F. Quem vocŒs pensam que (elas) sªo? Representaçıes sobre as pessoas em situaçªo de rua NOTA *O presente artigo estÆ atrelado ao trabalho de Iniciaçªo Científica realizado por Ricardo Mendes Mattos, intitulado Processo de constituiçªo da identidade do indivíduo em situaçªo de rua: da rualizaçªo a sedentarizaçªo, que pos- sui a colaboraçªo da Universidade Sªo Marcos e o patrocí- nio da Fundaçªo de Amparo à Pesquisa do Estado de Sªo Paulo (FAPESP). REFER˚NCIAS ANDERY, A. A. Trabalhos em comunidade: seu sig- nificado para a produçªo de novos conhecimentos científicos. Psicologia, CiŒncia e Profissªo, Sªo Pau- lo, vol. 1, n. 4, p. 30-33, 1984. BAPTISTA, M. T. Identidade profissional: questıes atuais. In: DUNKER, C. I. L.; PASSOS, M. C. (Orgs.). Uma psicologia que se interroga: ensaios. Sªo Pau- lo: Edicon, 2002. p. 145-154. BARBOSA, J.; PAULINO, S. Identidade perdida: memórias de um morador de rua. Sªo Paulo: Legnar, 2003. BERGER, P. & LUCKMANN, T. A construçªo social da realidade. Petrópolis: Vozes, 1985. BUARQUE, C. 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