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ASPECTOS TEÓRICOS DA LUDICIDADE Nelson Carvalho Marcellino Docente da Universidade Metodista de Piracicaba - UNIMEP-SP/Líder do grupo de pesquisas em Lazer-GPL/ Pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPQ - Brasil. Lançar alguns questionamentos sobre a discussão conceitual que envolve o lúdico como elemento da cultura, e o lazer como o espaço para a sua manifestação, constitui a preocupação básica deste comunicado. Isso não significa que o lúdico não possa se manifestar em outros “tempos”. Muito pelo contrário. O lazer é aqui entendido como um campo de manifestação humana, com possibilidades de gerar valores que ampliem o seu universo. Como pano de fundo é levada em conta a relação de interdependência entre o lazer, a escola e o processo educativo, dando ênfase à ligação lúdico/ educação, e sua possível contribuição para a denúncia da contradição prazer/realidade, para o desenvolvimento da criatividade e participação cultural. Opto por uma abordagem do lúdico não “em si mesmo”, ou de forma isolada nessa ou naquela atividade (brinquedo, festa, jogo, brincadeira, etc.), mas como um componente da cultura historicamente situada. Destaco o “furto do lúdico”, cada vez mais precoce, na infância, e suas possíveis conseqüências. Defendo uma “pedagogia da animação” que considere os valores da ludicidade, e leve em conta, ao mesmo tempo, a necessidade de trabalhar para a mudança do futuro, através da ação no presente, e de vivenciar esse processo de mudança, sem abrir mão do prazer restrito de que se dispõe, mas, pelo contrário, que essa vivência seja em si mesma, prazerosa. l. O jogo das palavras: Um jogo de palavras. Assim poderia ser caracterizado o traço comum no tratamento das questões conceituais relacionadas ao campo das manifestações lúdicas. Melhor seria falar em jogo de “caça às palavras”. Não é meu propósito “entrar” nesse jogo. Trabalhos recentes têm se debruçado em dicionários, enciclopédias e obras especializadas procurando definições. Mas, uma tomada de posição, ainda que preliminar, sobre o lúdico enquanto manifestação, é pré-requisito para qualquer “jogo” que o envolva. Exige, pois, um exame, mesmo que breve e incompleto, das várias perspectivas, ou melhor, das diversas fontes a partir das quais possa ser considerado. Percorrer os verbetes dos dicionários na busca do significado do lúdico é uma experiência interessante, mas pouco esclarecedora, sobretudo se for considerado que a tarefa de especificar um conceito implica na restrição do uso das palavras a ele relacionadas. Neste caso, a restrição é problemática, pois mais de uma dezena de substantivos são registrados, nos dicionários da língua portuguesa, no rol dos termos relativos ao lúdico. Dessa forma, pelo simples significado comum das palavras que o designam, uma conclusão razoável a que se pode chegar, além da imprecisão, é exatamente o caráter abrangente do lúdico enquanto manifestação. O grande número de palavras, entretanto, não contribui para a sua especificação. Pelo contrário, a dificuldade de precisão das palavras relacionadas ao lúdico é manifestada, quase sempre, nas traduções para o português, de textos da área. É comum, o aviso dos tradutores, nas notas de rodapé, sobre as possíveis imprecisões, pelo fato, por exemplo, de uma única palavra “brinquedo”, designar tanto o objeto quanto a ação do brincar. No campo específico da Filosofia, vários termos, como “divertimento” e “júbilo/alegria”, têm merecido consideração, mas são as tentativas de entendimento do “jogo” que vêm demandando maior esforço dos filósofos. Meu objetivo presente não é uma análise dos desdobramentos das discussões dos vários conceitos relacionados ao lúdico. Para o âmbito desta comunicação importa destacar a não-restrição da natureza do lúdico a uma esfera determinada. E pelo menos os três principais termos utilizados na tradição filosófica, não podem ser considerados mutuamente excludentes para a sua manifestação. Assim, para Huizinga, a realização do lúdico se dá no jogo (1971, passim), que tem sua essência no divertimento (prazer, agrado, alegria) (ibid., p.5.). Tentando resumir as principais características do jogo, ele o destaca como “... uma atividade livre, conscientemente tomada como ‘não séria’ e exterior à vida habitual, mas ao mesmo tempo capaz de absorver o jogador de maneira intensa e total. É uma atividade desligada de todo e qualquer interesse material, com a qual não se pode obter qualquer lucro, praticada dentro de limites espaciais e temporais próprios, segundo uma certa ordem e certas regras. Promove a formação de grupos sociais com tendência a rodearem-se de segredo e a sublinharem sua diferença em relação ao resto do mundo por meio de disfarces ou outros meios semelhantes”(ibid., p.16). Outra possibilidade para a manifestação do lúdico é o domínio da festa. E ao abordar as relações entre a festa e o jogo, Huizinga constata estreitas relações quanto aos elementos comuns: eliminação da vida cotidiana, predomínio da alegria, combinação de regras com liberdade: “Em resumo, a festa e o jogo têm em comum suas características principais” (ibid., p.25). Dessa forma, na abordagem conceitual do jogo, o autor utiliza termos variados e considerados, por outros filósofos, distintos e fundamentais para a manifestação do lúdico. As contribuições de Huizinga foram criticadas e receberam adendos de Eco (1989) e Callois, R. ( 1988, 1990 ). No entanto, ainda assim, o lúdico fica restrito ao universo do “jogo”. Na área das chamadas Ciências Humanas vamos encontrar, quer nos autores clássicos, quer nos contemporâneos neles baseados, tentativas de especificação conceitual bastante variadas. Algumas delas procuram a caracterização do jogo, do brinquedo e da brincadeira, por exemplo, através da distinção de traços que seriam constitutivos de cada um deles. O trabalho desenvolvido pelo sociólogo Paulo de Salles Oliveira (1982, 52-62: 1986b, passim; 1986 a. 25-31), confrontando as posições de diversos autores, conclui pela caracterização do brinquedo como objeto, cuja utilização seria marcada, com maior intensidade, pelo exercício individual e pela gratuidade, enquanto o jogo e a brincadeira seriam distinguidos pela ação coletiva mais próxima do culto à excelência na prática, à destreza, ao desejo de vencer e à disputa. Outros autores, como Joseph Leif & Lucien Brunelle (1978, 94) fazem a distinção em termos de valores, associando, de forma direta, um caráter positivo ao jogar (em inglês: “to play”) e negativo ao brinquedo (em inglês: “toy”). E há, pelo menos, uma terceira postura, que pode ser verificada, por exemplo, no trabalho das psicólogas Edda Bomtempo e Carmem Lúcia Hussein (1986 17-28). Também a partir da análise de conceitos de vários autores para designar o brincar, elas concluem pela dificuldade de chegar-se a definições, optando pela utilização de termos variados, respeitando o contexto dos diversos autores que os empregam. Mas, mesmo essa propostanão é de fácil operacionalização. Dificuldades de tradução à parte, o clássico Walter Benjamim (1984, 70) considera o brinquedo “instrumento do brincar” da brincadeira, distinguindo-o do jogo, pois nesse predomina o caráter de imitação. Entretanto, no decorrer dos seus escritos sobre o assunto, verifica-se o uso das expressões brinquedo e brincadeira indistintamente (ibid., passim). Entre os brasileiros que tratam do tema, a precisão, com relação aos termos utilizados, parece não constituir motivo de preocupação. Rubem Alves, por exemplo, em algumas de suas obras, serve-se de termos variados para se referir ao lúdico, destacando-se “brinquedo” e “jogo” (1986, 95-107; 1985, 22-24 e 165-184). A questão permanece quando se deixa o terreno exclusivo das palavras e se procura analisar o contexto concreto da experiência lúdica. Aqui, além da abrangência, pode-se constatar a forte carga de subjetividade que o lúdico envolve. A mesma Edda Bomtempo, em outro trabalho, embora distinguindo “jogo” enquanto comportamento e “brinquedo” enquanto objeto, destaca, baseada em exemplos de conteúdo, a subjetividade de qualquer julgamento envolvendo a diferença entre jogo e brinquedo, considerando que “... nada permite afirmar que determinado tipo de comportamento é jogo ou que determinado objeto é brinquedo” (em Oliveira, P.S., 1982, 23). Dessa forma, a análise descritiva das atividades lúdicas, presente nos estudos de determinada tradição folclórica ( Cascudo, 1962; Araújo 1964), ou mesmo nos manuais de recreação (Marinho, 1981, Miranda 1984), enfatizando o conteúdo, não contribui para o esclarecimento do seu significado mais abrangente, como campo de manifestação. Por outro lado, as tentativas de análise puramente conceitual, que procuram isolar as manifestações lúdicas, reduzindo-as segundo critérios racionais, no nível exclusivo das “idéias”, também não contribuem para o reconhecimento do seu campo de manifestação, uma vez que, tomadas em conjunto, reúnem uma ‘serie de termos, usados até mesmo como sinônimos, para designá-lo. As tentativas de diferenciação entre os vários termos, talvez devido ao caráter artificial das classificações, e à forte carga de subjetividade que os conteúdos comportam, variam de autor para autor, chegando a uma abrangência de tal porte, que inviabilizaria sua caracterização. A questão também é examinada dessa perspectiva, de modo específico com relação ao termo “festa”, por José Cláudio Noel Ribeiro Jr.( 1982) . Essas considerações iniciais sobre a questão conceitual reforçam minha posição de optar por uma abordagem do lúdico não “em si mesmo”, ou de forma isolada nessa ou naquela atividade (brinquedo, festa, jogo, brincadeira, etc.), mas como um componente da cultura historicamente situada. Outras opções poderiam implicar na colocação apenas parcial e abstrata das questões que o lúdico envolve o que poderia contribuir para uma armadilha de uma análise meramente ideológica e, por conseguinte, embasadora de propostas reforçadoras da situação vigente, que entre outros aspectos indesejáveis, desvaloriza o lúdico. 2. Lúdico e lazer: Considerar que o lazer é um espaço privilegiado para a manifestação do lúdico, na sociedade contemporânea, apesar dos riscos do consumismo e da institucionalização, não significa que o elemento lúdico da cultura não possa se manifestar em outros espaços. Mesmo assim, ainda julgo ser necessário, nos meus escritos e falas, explicitar o conceito de lazer, com o qual trabalho, para evitar mal entendidos na sua discussão. Cada vez que o faço, acrescento novas explicações, em decorrência de questionamentos que recebo, por ocasião de suas colocações. Muitas vezes o que constato é que se busca uma definição. No entanto trabalho com um conceito operacional, do lazer historicamente situado. Dessa perspectiva, a consideração do lazer, cada vez mais em nossa sociedade, deve levar em conta os seguintes pontos: 1. Cultura vivenciada (praticada, fruída ou conhecida), no tempo disponível das obrigações profissionais, escolares, familiares, sociais, combinando os aspectos tempo e atitude. Digo do concreto da sociedade contemporânea como é, e não do devir- como deveria ser inclusive numa sociedade que eu próprio considere mais justa; Quando me refiro à cultura, não estou reduzindo lazer a um único conteúdo, vendo-o a partir de uma visão parcial, como geralmente ocorre quando se utiliza a palavra cultura, quase sempre a restringindo aos conteúdos artísticos, mas aqui abordando os diversos conteúdos culturais. E, finalmente, quando digo vivenciada, não estou restringindo o lazer à prática de uma atividade, mas também ao conhecimento e à assistência, que essas atividades podem ensejar, e até mesmo à possibilidade do ócio, desde que visto como opção, e nem confundido com ociosidade, sem contraponto com a esfera das obrigações, no nosso caso, fundamentalmente, a obrigação profissional. 2. O lazer gerado historicamente e dele podendo emergir, de modo dialético, valores questionadores da sociedade como um todo, e sobre ele também sendo exercidas influências da estrutura social vigente; A relação que se estabelece entre lazer e sociedade é dialética, ou seja, a mesma sociedade que o gerou, e exerce influências sobre o seu desenvolvimento, também pode ser por ele questionada, na vivência de seus valores. 3. Um tempo que pode ser privilegiado para vivência de valores que contribuam para mudanças de ordem moral e cultural, necessárias para solapar a estrutura social vigente; A vivência desses valores pode se dar numa perspectiva de reprodução da estrutura vigente, ou da sua denúncia e anúncio – através da vivência de valores diferentes dos dominantes- imaginar e querer vivenciar uma sociedade diferenciada. 4. Portador de um duplo aspecto educativo - veículo e objeto de educação, considerando-se, assim, não apenas suas possibilidades de descanso e divertimento, mas também de desenvolvimento pessoal e social. E aqui não se está negando o descanso e o divertimento, mas simplesmente enfatizando a dimensão menos considerada do lazer, a de desenvolvimento que o seu vivenciar pode ensejar. Volto a repetir, como em outros escritos que o lazer é entendido, portanto, como a cultura, compreendida em seu sentido mais amplo, vivenciada no tempo disponível. É fundamental como traço definidor, o caráter “desinteressado” dessa vivência. Ou seja, não se busca, pelo menos basicamente, outra recompensa além da satisfação provocada pela própria situação. A disponibilidade de tempo significa possibilidade de opção pela atividade ou pelo ócio (Marcelino, 2001 a). É importante ressaltar, também, que o entendimento do lazer não pode ser efetuado “em si mesmo”, mas como uma das esferas de ação humana historicamente situada. Outras opções implicariam na colocação apenas parcial e abstrata das questões relativas ao lazer. É impossível, por exemplo, abordar as questões do lazer isoladas das questões do trabalho, ou da educação. Deve-se levar em conta ainda,que se o conteúdo das atividades de lazer pode ser altamente educativo”, também a forma como são desenvolvidas abre possibilidades “pedagógicas”, muito grandes, uma vez que o componente lúdico, com seu “faz-de-conta”, que permeia o lazer, pode se constituir numa espécie de denúncia da realidade, à medida que contribui para mostrar, em forma de sentimento, a contradição entre obrigação e prazer( Ibid, 37). A polêmica verificada quanto ao conceito permanece quando se examina a questão da ocorrência do lazer na vida social, do ponto de vista histórico. Alguns autores consideram que, se os homens sempre trabalharam, também paravam de trabalhar, existindo assim um tempo de não-trabalho, e que esse tempo seria ocupado pôr atividades de lazer, mesmo nas sociedades tradicionais. Para outros o lazer é fruto da sociedade moderna urbano-industrial. Não há, a rigor, um caráter de rejeição entre as duas correntes, mas sim enfoques diferentes. A primeira aborda a necessidade de lazer, sempre presente, e a segunda se detém nas características que essa necessidade assume na sociedade moderna. Assim, o lazer sempre existiu, variando apenas os conceitos sobre o que era e quais os seus significados. Em outros tipos de organização social, o que se verifica é o não isolamento das atividades obrigatórias, das lúdicas, o que de modo algum significa a não existência do lúdico. E mais ainda, o que não nos permite prever se essa divisão, verificada atualmente na sociedade moderna, urbano-industrial, permanecerá efetivamente ou não. A observação do lazer concreto, tal como se manifesta notadamente nas sociedades contemporâneas mais desenvolvidas, marcado, tanto quanto o trabalho, pela alienação e por conceitos de produtividade, faz com que alguns autores critiquem as duas esferas de atividade humana - o trabalho e o lazer. Destacando a produtividade, ligada ao princípio de desempenho “como um dos mais protegidos valores da cultura moderna” Marcuse contrapõe-lhe a idéia do jogo: o jogo é improdutivo, é inútil precisamente porque anula as características repressivas e exploradoras do trabalho e do lazer. Em outro trabalho, centrado na análise das tendências das sociedades contemporâneas mais altamente desenvolvidas, o mesmo autor distingue o lazer do tempo livre, cuja restrição é por ele considerada um dos fatores da ausência de liberdade no Estado de Bem Estar Social, argumentando que as horas de lazer “vicejam na sociedade industrial desenvolvida, mas não são livres desde que são administradas pelas negócios e pela política”(Marcuse, 1982, p.20 e 62). Esta distinção entre o jogo e seu caráter lúdico, e o lazer, como esfera permitida e controlada da vida social é efetuada também por autores brasileiros. Perrotti afirma que “o lúdico, dentro do mecanismo do sistema, é a sua negação. Em seu lugar permite-se o lazer, o não trabalho, coisa totalmente diferente do lúdico, que é o jogo, a brincadeira, a criação contínua, ininterrupta, intrínseca à produção. Para Perrotti “a racionalidade do sistema produtivo torna o lúdico inviável, pois o tempo do lúdico não é regulável, mensurável, objetivável”, e que, sendo assim, “toda tentativa de subordiná-lo ao tempo da produção provoca sua morte”(Perroti, In. Zilberman(Org.), 1982, p.20). De fato, a observação da prática do lazer na sociedade moderna é marcada por fortes componentes de produtividade. Valoriza-se a “performance”, o produto e não o processo de vivência que lhe dá origem; estimula-se a prática compulsória de atividades denotadoras de moda ou “status”. Além disso, o caráter social requerido pela produtividade, confina e adia o prazer para depois do expediente, fins de semana, períodos de férias, ou mais drasticamente, para a aposentadoria. No entanto, isso tudo não nos permite ignorar a ocorrência histórica do lazer, inclusive como conquista da classe trabalhadora (Marcellino, 2001 a ). Seja como for, considero que, a partir da observação das relações sociais de produção, tal como se processam atualmente na sociedade brasileira, e apesar de todo o controle social verificado, é importante destacar o lazer, conforme nos lembra Magnani, como espaço “onde as possibilidades de criação e escolha são, com certeza, maiores que as existentes numa linha de montagem”(Idem). Entender o lazer como um campo específico de atividade, em estreita relação com as demais áreas de atuação do homem, não significa deixar de considerar os processos de alienação que ocorrem em quaisquer dessas áreas. Entender o lazer como espaço privilegiado para manifestação do lúdico na nossa sociedade, não significa absolutizá-lo, ou menos ainda, considerá-lo como único. Ao meu ver esse entendimento parece ser uma postura que contribui para abrir possibilidades de alteração do quadro atual da vida social, tendo em vista a realização humana, a partir de mudanças no plano cultural. 3. A educação- Escola e Processo Educativo: Muitos adjetivos têm sido colocados ao lado do termo “educação” para denominar diferentes processos educativos. Aqui, é fundamental a distinção entre a educação sistemática, efetuada sobretudo através da Escola, e a assistemática, que compreende os vários processos de transmissão cultural, englobando, dessa forma, toda relação pedagógica. Entendo a relação pedagógica, de maneira ampla, tal como foi definida por Gramsci, que não a limita “às relações especificamente escolásticas”, mas a distingue “... em toda a sociedade no seu conjunto e em todo o indivíduo com relação aos outros indivíduos, bem como entre camadas intelectuais e não intelectuais, entre governantes e governados, entre elite e seguidores, entre dirigentes e dirigidos, entre vanguardas e corpos do exército. Toda relação de ‘hegemonia’ é necessariamente uma relação pedagógica” (1981, p.37). Dessa perspectiva, quando se fala em educação não se pode prescindir da Escola, mas não se pode, também, deixar de levar em conta o quadro cultural mais amplo. A consideração da Escola como uma das bases significativas de atuação, tendo em vista a instauração de uma nova ordem social, e de uma nova cultural, leva em conta, fundamentalmente, que os mesmos instrumentos que servem à classe dominante deverão ser usados em sentidos contrários. “Então, noutros termos, se a Escola é um instrumento de hegemonia, nós não podemos descurar, se queremos estabelecer um novo bloco de poder, não podemos descurar deste instrumento. Porque descurar dele seria deixá-lo ao uso exclusivo da classe dominante ( Saviani, 1980, p. 184)” . Por outro lado, não podemos ignorar as relações pedagógicas que são estabelecidas fora da Escola, pois estaríamos deixando de lado as possibilidades de mudanças relacionadas aos “serviços públicos intelectuais”, que além da Escola, devem ser assegurados à população. Na sua visão ampla de educação Gramsci relaciona uma série desses serviços, justificando que “serviços intelectuais são elemento de hegemonia, ou seja, de democracia no sentido moderno”(1979,p.152). Se isso já poderia ser aplicado no momento histórico que Gramsci viveu, nos dias atuais, com a difusão dos meios de comunicação e informação, centrar-se unicamente na análise das relações pedagógicas estabelecidas na Escola, sem considerar também as possibilidades de “contra-informação”, de construção de uma cultura popular dentro de relações pedagógicas mais amplas caracterizaria, do meu ponto de vista, uma visão míope do processo educativo. E aqui, podemos considerar também o papel das Ludotecas, como centros de cultura. 4. As relações: Após a devida análise e reflexão, partindo da produção de teóricos brasileiros relacionados ao lazer e à educação ( Marcellino, 2001 a), chego à seguinte conclusão: Partes que são de um todo mais amplo – o plano cultural, não é possível desconhecer as relações existentes entre o lazer, a escola e o processo educativo. Caracterizam-se pela interdependência, entre cada um desses elementos, considerados como pares, ou encadeados. A teoria do lazer, que o entende dentro de uma concepção “funcionalista”, em quaisquer de suas nuanças – moralista, compensatória, utilitarista ou romântica -, não desconhece essa relação, mas privilegia o primeiro elemento (lazer), minimizando o papel da escola no processo educativo, baseando seus argumentos no “fracasso escolar”, que estaria situado dentro da própria instituição. A teoria da educação, analisada na época, também não desconhece a relação, mas privilegia o segundo elemento (escola), não raro adotando uma atitude “apocalíptica” com relação ao lazer, considerando-o apenas na perspectiva da classe dominante como instrumento de manipulação. O reconhecimento da interdependência entre os três elementos exigiria uma nova pedagogia, embasadora de uma nova prática educativa e realimentada através dessa própria prática, considerando as possibilidades do lazer, como canal possível de atuação no plano cultural, de modo integrado com a escola, no sentido de contribuir para a elevação do senso comum, numa perspectiva de transformação da realidade social, sempre em conexão com outras esferas de atuação política. Uma pedagogia que considere, ao mesmo tempo, a necessidade de trabalhar para a mudança do futuro, através da ação no presente, sem abrir mão do prazer de que se dispõe, mas, pelo contrário, que essa vivência seja em si mesma, prazerosa (Marcellino, 2001 a, p.151-153). Considero essa Pedagogia, como Pedagogia da animação. E aqui a animação engloba os sentidos de vida, de movimento e de alegria. Portanto, a pedagogia da animação, assim encarada, estaria ligada à criação de ânimo, à provocação de estímulos, e à cobrança da esperança. À preparação não para uma sociedade dominada pela exploração do trabalho, ou para o ideal questionável de uma “civilização do lazer”. Mas, à educação para o movimento do presente, o que implica em não considerá-lo imutável, e que entra em choque profundo com a visão “funcionalista” do lazer, nas suas várias nuanças. É a animação do “anima”, do sopro, do sopro vital; do “ânimo”, tanto no sentido de dar vida, e vida humana, quando no de transformar. Trata-se de recuperar o sentido de recreação, como “recreare”- re-criação, criar de novo, dar vida nova, como novo vigor. Trata-se de recuperar o lazer, como “licere”- lícito, poder Ter direito. Trata-se de recuperar o sentido de escola, como “scholé” (Marcellino, 2001 a , p. 142) Examinando as relações entre o jogo e a cultura, Huizinga chama a atenção para a origem da palavra (schóle). Remontando à história grega, observa o autor, que a sabedoria e a ciência não eram frutos da escola, pelo menos no sentido atual da palavra, ou seja, “não eram produtos secundários de um sistema educacional destinado a preparar os cidadãos para funções úteis e proveitosas”. Dessa forma, prossegue, “... a palavra “escola” tem por trás dela uma histórica curiosa”, uma vez que, originalmente significava ócio, adquirindo depois o sentido exatamente oposto de trabalho e preparação sistemática, à medida que a civilização foi restringindo cada vez mais a liberdade que os jovens tinham de dispor de seu tempo, e levando estratos cada vez mais amplos de jovens para uma vida quotidiana de rigorosa aplicada, da infância em diante “( Huizinga, 1971, 165). Não sei, até que ponto, comparando-se com os ideais de liberdade atuais, esse ócio/lazer teriam as mesmas características que atribuí a esse conceito neste estudo. Talvez fosse mais correto, sob um ponto de vista atual, encará-lo muito mais como “ociosidade” alicerçada no trabalho de escravos. Em todo caso, o que gostaria de destacar no momento, é a origem da palavra(Marcellino, 2001 a, 143) A consideração da relação entre a manifestação do componente lúdico da cultura, no lazer, e a educação, transcende a aquisição de informações, vai além dos conteúdos culturais. Não se trata, pois, da consideração de um instrumento leve e eficaz para facilitar o processo de aprendizagem, para a adequação conformista de indivíduos a uma inquestionável sociedade estabelecida. Longe disso, é uma questão de participação cultural – usufruir e criar cultura- uma das bases do exercício da cidadania(Marcellino, 2001 b, p.45). 5. O “jogo do saber” e a escola como “centro de cultura popular”: Podemos assim falar de um lado do “jogo do saber”, e de outro, da escola considerada como centro de cultura popular. Dessa perspectiva, conforme já foi colocado anteriormente, a Ludoteca também seria um centro de cultura popular. Falar do “jogo do saber” é tentar recuperar o caráter lúdico do ensino/aprendizagem. Dessa forma, nunca é demais lembrar que a palavra “ludus”, em sentido próprio significa jogo, divertimento e, por extensão, Escola aula. E não só no latim pode-se encontrar essa origem, mas também em outras línguas, como por exemplo, o japonês(Marcellino, 2002, p.59). Mas, dar condições para a ocorrência da alegria, da festa, dentro dos limites da sala de aula, e nos horários de aula, e assim, propiciar a evasão do real, não seria contribuir para a alienação? Ao contrário, creio que o “jogo do saber”, praticado com características lúdicas, é uma alternativa para a denúncia da realidade tal como se apresenta e, assim sendo, a sala de aula, longe de ser espaço de alienação, poderia ser encarada como um dos espaços de resistência ( Marcellino, 2002). Na perspectiva da “pedagogia da animação”, a Escola – como equipamento e como organização de educadores – funcionaria como “centro de cultura popular” (MARCELLINO, 2001 b, p. 145) . Sua tarefa educativa seria efetuada em termos de conteúdo, a partir do cotidiano local, fornecendo o instrumental necessário no sentido de contribuir para o superação do “senso comum”, a partir dele; forma, respeitando o “ritmo” dos alunos, mas não ignorando as diferenças na apropriação do saber entre professores e alunos, uma vez que esse reconhecimento é necessário para a própria superação dessas diferenças; abrangência, ultrapassando o âmbito dos alunos“regularmente matriculados”, mas se estendendo a toda a comunidade local, através da participação comunitária; espaço, com a escola funcionando também como equipamento de lazer não específico, e ultrapassando os muros dos prédios escolares, estendendo-se a outros equipamentos da comunidade próxima, procurando dessacralizá-los; recursos materiais, procurando utilizar os parcos que lhe são destinados, aliados a soluções alternativas da própria comunidade local. O que não significa, de modo algum, deixar de exercer pressão para obtenção de recursos do poder público. Pelo contrário, as soluções alternativas funcionariam como elementos de pressão nesse sentido; elementos humanos, por um grupo de educadores, englobando professores, funcionários, administradores, lideranças culturais informais, enfim, um grupo de animadores culturais, que aliem competência técnica a um compromisso político de transformação (Marcellino, 2001 a, p.147-148). A “pedagogia da animação” atuaria assim, nos planos culturais e sociais: No plano cultural seria orientada por princípios de valorização da cultura popular, em todos os seus conteúdos, e não como muitas vezes é feito, restringido-se aos conteúdos artísticos, o que vale dizer, buscando o equilíbrio entre os artísticos, físico-esportivos, manuais, sociais, intelectuais e turísticos, e a sua identificação com as bases locais e regionais, necessária para a convivência multicultural. No plano social seria orientada para o entendimento com critérios quantitativos, procurando atender o maior número de pessoas, a partir de seus interesses, a partir do nível na maioria das vezes conformista, o que não significa “nivelar por baixo”, mas iniciar o trabalho educativo a partir de situações reais, procurando superá-las para níveis críticos e criativos; procurando recursos materiais alternativos e exercendo pressões para obtenção de novos recursos: procurando, sem preconceitos, articulações com órgãos e instituições locais, na medida em que essas possam ser estabelecidas, sem que se abra mão do compromisso de mudança da situação, portanto, do compromisso político. As propostas de ação da “pedagogia da animação” no âmbito específico do lazer, ou seja, da cultura vivenciada no tempo disponível, seriam discutidas e elaboradas em conjunto com as comunidades locais, o que não significa que devam ser precedidas pelas famosas “sondagens de opiniões”, que na maioria das vezes, quando concluídas, acabam no fundo de gavetas. Elabora-se um rol de sugestões a partir da interação animadores-comunidade, o que não impede que as propostas e seus desdobramentos previstos sejam rejeitados quando da aplicação. Não considero essa possibilidade como negativa, uma vez que, mesmo assim os objetivos consumatórios de participação e fruição das atividades, são atingidos,e ainda se tem oportunidade para avaliar as possíveis razões para o não cumprimento dos objetivos instrumentais, avaliação essa feita em conjunto com os participantes. E isso também é processo educativo(Ibid., 149-150). 6. O furto do lúdico, da cultura da criança – implicações. A aplicação do termo lazer á infância não é consensual, entre os autores que estudam o assunto (cf. Parker, 1978, 60). Isso ocorre pelo peso considerável do aspecto tempo na conceituação do lazer, o que pode levar à consideração da não aplicabilidade à criança, uma vez que, pelo menos em termos ideais, a infância seria marcada pelo descompromisso, pela falta de obrigações, o que implicaria na impossibilidade de contraposição obrigação/lazer e, consequentemente, da demarcação de um tempo "livre", ou "disponível", para essa faixa etária. Creio que a consideração da infância como o reinado absoluto do lúdico advém de uma abstração da criança, que não a enxerga como integrante da sociedade concreta. A análise da criança. Ou melhor, das crianças, inseridas na sociedade demonstra que, de uma perspectiva mais geral, o que vem se verificando, de modo crescente, é o furto da possibilidade da vivência do lúdico na infância, ou pela negação temporal e espacial do jogo, do brinquedo, da festa, ou mesmo através do consumo "obrigatório" de determinados bens e serviços oferecidos como num grande supermercado, ocorrendo a substituição da cultura da criança, por uma cultura para a criança, Pelo menos na sociedade brasileira, e particularmente nas grandes cidades, ainda que por razões bem diferentes, as crianças não têm tempo e espaço para a vivência da infância, como produtoras de cultura, e isso independente de classe social ou de gênero. O furto do lúdico acaba provocando uma igualdade entre as crianças. Todas as crianças passam a ser "proletárias". Mas, que argumentos devem embasar a necessidade da vivência plena do componente lúdico da cultura das crianças? O primeiro e fundamental aspecto de sua importância é que o brinquedo, o jogo, a brincadeira, são gostosos, dão prazer, trazem felicidade. E nenhum outro motivo precisaria ser acrescentado para afirmar a sua necessidade, mas deve-se considerar também, que, através do prazer, o brincar contribui de modo significativo, para sua formação como ser realmente humano, participante da cultura da sociedade em que vive, e não apenas como mero indivíduo requerido pelos padrões de "produtividade social". A vivência do lúdico é imprescindível em termos de participação cultural crítica, e principalmente, criativa. Por tudo isso, é fundamental que se assegure á criança o tempo e o espaço para que o lúdico seja vivenciado com intensidade capaz de formar a base sólida da criatividade e da participação cultural e, sobretudo, para o exercício do prazer de viver. São os conteúdos e a forma, os produtos e o seu processo, da cultura das crianças, que representam o antídoto á aceitação do "jogo sujo" preestabelecido da sociedade, e mesmo à camuflagem das colocações individuais, justificando sua impotência frente à estrutura do mundo que receberam e que são "obrigados" a reproduzir. Vale a pena considerar assim, do meu ponto de vista, as possibilidades de uma Pedagogia da animação, com base no lúdico, considerando as relações existentes entre o Lazer, a escola e o processo educativo, deste último fazendo parte, com destaque, a contribuição das ludotecas. Referências bibliográficas: ARAÚJO, A . M. de. Folclore nacional. São Paulo, Melhoramentos, 1964. ALVES, R., A gestação do futuro, Campinas, Papirus,1986 ________. Da esperança, Campinas, Papirus, 1985. BENJAMIN, W. Reflexões: a criança, o brinquedo e a educação. São Paulo, Summus, 1984. BONTEMPO, E. e HUSSEIN, C.L. Psicologia do brinquedo, São Paulo, Nova Stela/EDUSP, 1986 CAILLOIS, R. 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