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Esclarecimentos sobre a posse injusta

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Sobre a questão da convalidação da posse injusta em posse justa e os efeitos daí advindos, cumpre esclarecer alguns pontos que talvez tenham sido mal compreendidos.
	O primeiro deles é que não há, conforme será apresentado abaixo, posicionamento uniforme na doutrina sobre a questão. Aliás, a depender do posicionamento adotado, as conclusões doutrinárias são excludentes. Desse modo, passemos a análise do tema.
	Em sala de aula, foram elencadas as cinco principais características da posse injusta. Dessas cinco características, as últimas três devem ser compreendidas em conformidade com as seguintes posições doutrinárias sobre a possibilidade de a posse injusta ser convalidada, segundo dispõe o artigo 1.208 do Código Civil.
	A questão deve ser compreendida à luz da conjugação dos artigos 1.203 e 1.208, que são os dispositivos orientadores da discussão.
Diz o artigo 1.208: Não induzem posse os atos de mera permissão ou tolerância assim como não autorizam a sua aquisição os atos violentos, ou clandestinos, senão depois de cessar a violência ou a clandestinidade.[1: Aquisição da posse, não da propriedade.]
Diz o artigo 1.203: Salvo prova em contrário, entende-se manter a posse o mesmo caráter com que foi adquirida. 
	Somente depois que cessa a violência, ou seja, o antigo possuidor, diante da ciência do vício, não mais resiste à violência, ou ainda, quando a posse transmuda das escuras para o conhecimento público, deixa de existir detenção para nascer posse. Contudo, diante dessa afirmativa, nasce uma questão tormentosa: essa posse é justa ou injusta? Para essa indagação, existem três posições doutrinárias a seguir delineadas:
	Para a primeira posição, cessando os atos de violência e de clandestinidade, há a situação de posse justa. Para Carvalho Santos, a posse passa a ser útil, como se nunca tivesse sido eivada de tal vício. Esse possuidor adquire a posse para a usucapião. (J.M Carvalho Santos – Código Civil Brasileiro interpretado - 11ª edição, vol VII). Diz o doutrinador: "o que quer dizer que desde que a violência cessou, os atos de posse daí por diante praticados constituirão o ponto de partida da posse útil, como se nunca tivesse sido eivada de tal vício".
	A segunda posição defendida por grandes juristas como Silvio Rodrigues, Maria Helena Diniz e Flávio Augusto Monteiro de Barros, sustenta que a posse injusta pode, sim, transformar-se em justa, basta que se passe ano e dia de quando cessar a violência, ou de quando a posse se tornar pública. Essa posição não ficou imune às críticas. O lapso temporal de ano e dia é notoriamente reconhecido para a questão do possuidor mantido na posse sem ter contra ele uma liminar, devido à contumácia (negligência) do antigo possuidor, que deixou ultrapassar mais de ano e dia para bater nas portas do judiciário. Tanto que, mesmo depois de ano e dia, o proprietário esbulhado pode recuperar a coisa mesmo depois desse prazo.
	A terceira posição, que parece assistir a razão, é muito bem explanada pelo Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo Francisco Eduardo Loureiro, quando tece seus comentários ao artigo 1.208, do Código Civil Comentado (editora Manole – ed. 2007, página 1.008):
"Via de consequência, nos exatos termos da segunda parte deste artigo (1.208), enquanto perduram a violência e a clandestinidade, não há posse, mas simples detenção. No momento em que cessam os mencionados ilícitos, nasce a posse, mas injusta, porque contaminada de moléstia congênita. Dizendo de outro modo, a posse injusta, violenta ou clandestina, tem vícios ligados a sua causa ilícita. São vícios pretéritos, mas que maculam a posse mantendo o estigma da origem. Isso porque, como acima dito, enquanto persistirem os atos violentos e clandestinos, nem posse haverá, mas mera detenção."
Cabe, ainda, esclarecer que a detenção de que fala o artigo 1.208 não é da mesma espécie trazida no art. 1.198. Ali o legislador menciona a detenção mediante vínculo de subordinação (detenção dependente). No art. 1.208, a lei trata da detenção independente (ou autônoma) que é a forma ilícita (pela violência ou clandestinidade, já que o vício da precariedade não se convalida).
A questão se resume ao seguinte: desde que provada a cessação da clandestinidade ou da violência, a posse pode ou não ser convalidada, a depender da posição doutrinária que se adote.
Não obstante todas as posições acima externadas é preciso acentuar o que se entende por convalescimento da posse. Tal ato é a passagem da posse injusta para a posse justa. Assim, de acordo com as posições apresentadas, somente há convalescimento da posse para os que adotarem a linha do segundo pensamento. Já para a primeira e para a terceira não existe convalescimento, já que aquela entende que o vício nunca existiu (e o que nunca existiu não se transforma), e essa entende que não se transfigura, mantendo o vício que a originou.
Diante da exposição, deve-se dar uma atenção especial para dois requisitos da usucapião: posse pacífica e pública. Pode-se chegar à conclusão equivocada de que a posse violenta ou clandestina não se harmoniza com a posse pública e pacífica. A questão é que tais vícios estão presentes no momento da aquisição da posse, e, depois que cessam a violência e a clandestinidade, ela passa a existir, e começa correr o tempo para a usucapião. Durante esse prazo, é que não pode haver violência, pois, caso contrário, a posse deixa de ser pacífica. Marcus Vinicius Rios Gonçalves explica bem:
"Na verdade a pacificidade, tida como cessação da violência, é requisito da posse. De sorte que, nesse sentido, a expressão posse pacífica é redundante, porquanto, não sendo pacífica, isto é, não havendo cessação da violência, não haverá posse, mas mera detenção. Destarte, o único sentido útil que se pode dar à expressão posse pacífica é o daquela em cujo decurso não há emprego da violência."
Vejamos como se posiciona a jurisprudência do STJ sobre o tema (possibilidade de usucapião da posse injusta):
JURISPRUDÊNCIA:
EMENTA. CIVIL. USUCAPIÃO. VEÍCULO. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. INADIMPLEMENTO. PRESCRIÇÃO AQUISITIVA. IMPOSSIBILIDADE. POSSE INJUSTA. I- A posse de bem por contrato de alienação fiduciária em garantia não pode levar a usucapião, seja pelo adquirente, seja por cessionário deste, porque essa posse remonta ao fiduciante, que é a financiadora, a qual, no ato do financiamento, adquire a propriedade do bem, cuja posse direta passa ao comprador fiduciário, conservando a posse indireta (IHERING) e restando essa posse como resolúvel por todo o tempo, até que o financiamento seja pago. II- A posse, nesse caso, é justa enquanto válido o contrato. Ocorrido o inadimplemento, transforma-se em posse injusta, incapaz de gerar direito a usucapião. Recurso Especial não conhecido. (REsp 844.098/MG, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, Rel. p/ Acórdão Ministro SIDNEI BENETI, TERCEIRA TURMA, julgado em 06/11/2008, DJe 06/04/2009).
Obs.: Nesse julgado, o STJ entende não ser passível de usucapião a posse injusta.
EMENTA. DIREITOS CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO REIVINDICATORIA. USUCAPIÃO ALEGADO EM DEFESA. OPOSIÇÃO. CC, ART. 550. DOUTRINA. RECURSO PROVIDO. I - AO TEOR DO ART. 550 DO CODIGO CIVIL (1916), A AUSENCIA DE OPOSIÇÃO É REQUISITO ESSENCIAL AO RECONHECIMENTO DA PRESCRIÇÃO AQUISITIVA. II - O PERIODO ANTERIOR AO TRANSITO EM JULGADO DE AÇÃO EM QUE SE DISCUTIU O DOMINIO DA AREA REIVINDICADA NÃO PODE SER COMPUTADO PARA FINS DE USUCAPIÃO, SE A PARTE QUE O ALEGA EM DEFESA FOI DEVIDAMENTE CITADA PARA O PROCESSO, INTEGRANDO A RELAÇÃO PROCESSUAL. III - SEGUNDO AUTORIZADA DOUTRINA, A OPOSIÇÃO A QUE SE REFERE O ART. 550, CC, TRADUZ MEDIDAS EFETIVAS "VISANDO A QUEBRAR A CONTINUIDADE DA POSSE, OPONDO À VONTADE DO POSSUIDOR UMA OUTRA VONTADE QUE LHE CONTESTA O EXERCICIO DOS PODERES INERENTES AO DOMINIO QUALIFICADOR DA POSSE. (REsp 53.800/SP, Rel. Ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, QUARTA TURMA, julgado em 09/12/1997, DJ 02/03/1998, p. 93).
Obs.: Embora o julgado diga respeito à caracterização da posse injusta ainda na vigência do Código de1916, o STJ entendeu que uma vez cessada a violência e clandestinidade, desde que devidamente provada pelo possuidor (pela quebra do princípio da continuidade do caráter da posse), seria possível o manejo da ação de usucapião (convalescimento da posse injusta em justa). 
	Finalmente, há que se considerar que mesmo no âmbito da jurisprudência, conforme foi visto, o tema não é pacífico.
REFERÊNCIA:
ZULIANI, Matheus Stamillo Santarelli: Posse justa e posse injusta: aplicações práticas e teóricas.

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