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Memória (in)voluntária Benjamin, proust, Freud

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VII Encontro de Pesquisa na Graduação em Filosofia da UNESP 
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Da “memória involuntária” à “incompatibilidade consciência-
memória”: aproximações benjaminianas entre Proust e Freud 
 
Fernando Araújo Del Lama1 
 
Resumo: No início do século XX, era comum, na crítica de tradição francesa, ver no romance 
de Marcel Proust, “Em busca do tempo perdido”, uma espécie de “aplicação literária” das ideias 
do filósofo Henri Bergson sobre a memória e o tempo; certamente, esta aproximação entre o 
filósofo e o romancista se deu, principalmente, por terem sido contemporâneos, e 
consequentemente, partilharem do mesmo ambiente francês de efervescência intelectual e 
cultural. Mas seria esta aproximação, com efeito, verdadeira ou, ao menos, a única possível de 
ser feita? Ora, é justamente adotando uma posição contrária a esta, isto é, a de distanciamento 
entre os dois autores franceses, que Walter Benjamin lê Proust. Sabe-se que Proust possui 
grande relevância nas ideias de Benjamin e que, nas vicissitudes de sua leitura, Benjamin, além 
de afastar Bergson de Proust, acaba por aproximar Proust de Freud. O objetivo deste texto é 
compreender qual o sentido destas relações, ora de aproximação, ora de distanciamento, entre 
estes autores e qual a importância delas para o projeto filosófico de Benjamin. 
 
Palavras-chave: Walter Benjamin. Marcel Proust. Sigmund Freud. Memória. Experiência. 
 
Abstract: In the beginning of the 20th century, it was common in the French tradition criticism 
to see in Marcel Proust’s “In Search of Lost Time” a kind of "literary application" of 
philosopher Henri Bergson’s ideas regarding memory and time; certainly, this approximation 
between the philosopher and the novelist occurred mainly due to their contemporaneity and the 
consequent sharing of the same French environment of cultural and intellectual fermentation. 
But would this approach be effectively true or even the only one possible to be made? In fact, 
adopting a position opposite to the aforementioned – establishing distance between the two 
French authors – is how Walter Benjamin reads Proust. It is known that Proust possesses great 
relevance over Benjamin’s ideas, and in the vicissitudes of his reading, Benjamin, not only 
distances Bergson from Proust but approaches Proust to Freud. The aim of this paper is to 
understand the meaning of these relationships, at times as approximation, at times as distance, 
between these authors and how they are important for Benjamin’s philosophical project. 
 
Keywords: Walter Benjamin. Marcel Proust. Sigmund Freud. Memory. Experience. 
 
 
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I 
	
  
A literatura assume muitos saberes. Num romance como Robinson 
Crusoé, há um saber histórico, geográfico, social (colonial), técnico, 
botânico, antropológico (Robinson passa da natureza à cultura). Se, 
por não sei que excesso de socialismo ou de barbárie, todas as nossas 
disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto numa, é a 
disciplina literária que devia ser salva, pois todas as ciências estão 
presentes no monumento literário. É nesse sentido que se pode dizer 
	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  
1Graduando em Filosofia pela Universidade de São Paulo. Bolsista PIBIC/CNPq. Orientador: Prof. Dr. 
Marcus Sacrini Ayres Ferraz. E-mail: fernando.lama@usp.br 
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que a literatura, quaisquer que sejam as escolas em nome das quais 
ela se declara, é absolutamente, categoricamente realista: ela é a 
realidade, isto é, o próprio fulgor do real (BARTHES, 1988, p. 16-7, 
grifos nosso). 
 
Este é um trecho de autoria de Roland Barthes, extraído de sua aula inaugural no 
Collége de France. Parece-me, porém, que se ele fosse encontrado em algum texto de 
Walter Benjamin, não seria tão estranho ao leitor, exceto, talvez, pelo exemplo, que 
provavelmente não seria o romance de Daniel Defoe, mas algum outro autor mais 
próximo do universo benjaminiano. No entanto, o que eu gostaria de enfatizar aqui é 
que, a meu ver, Benjamin partilha desta ideia de uma relação íntima entre literatura e 
realidade, tanto é que ele lança mão de alguns exemplos literários, que assumem papéis 
importantes em algumas de suas principais ideias filosóficas: o contista russo Nikolai 
Leskov, por exemplo, se torna o exemplo paradigmático do “contador de histórias” 2 (ou 
“narrador”), fundamental para sua teoria sobre a atrofia da experiência; o grande poeta 
Charles Baudelaire é, para Benjamin, incontornável quando o assunto é modernidade, 
sendo sua figura mais emblemática; o romancista Marcel Proust, por sua vez, é 
personagem fundamental para compreender outras ideias, às quais, doravante, passarei a 
me dedicar. 
Para orientar o texto, formulei, então, a seguinte questão: no interior desta gama 
de “empréstimos literários” da filosofia benjaminiana, qual é, de fato, a função de 
Proust em sua filosofia? Buscando responder a esta questão, percebi outra, correlata e 
menos explorada, porém não menos interessante do que a primeira: por que a presença 
de algumas ideias desenvolvidas por Sigmund Freud passa a ser fundamental para 
garantir a validade da contribuição proustiana? Em outras palavras: qual é o sentido da 
aproximação entre Proust e Freud estabelecida por Benjamin? Parte-se da hipótese de 
que Proust, ou, mais precisamente, a noção de memória involuntária, exerce uma 
função primordial para se pensar soluções ao problema da atrofia da experiência na 
modernidade, função esta que só é compatível com um modelo de aparelho psíquico 
	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  
2 Apoiando-me em algumas traduções mais recentes para der Erzähler, a saber, the storyteller no inglês, 
le conteur no francês e el cuentacuentos no espanhol, preferi traduzir – contrariando, talvez, o próprio 
Benjamin, que em certa ocasião traduziu o termo em questão para o francês como le narrateur – este 
termo para o português como o contador de histórias. Conforme a leitura que proponho, o “narrador” do 
qual trata Benjamin, não é um conceito meramente literário, mas filosófico; daí minha opção, a fim de 
diferenciar o “narrador” literário, a entidade fictícia que enuncia o discurso no interior de uma narrativa, 
do “contador de histórias” filosófico, o transmissor por excelência da experiência em seu sentido pleno. 
Mantive, entretanto, a tradução mais difundida junto ao texto, visto que a introdução de uma nova 
terminologia sem advertência poderia confundir o leitor. 
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dotado de algumas peculiaridades, que Benjamin buscará na obra de Freud. Para 
sustentá-la, proponho o seguinte percurso: em primeiro lugar, comentarei brevemente os 
dois textos benjaminianos que mencionam Proust, a fim de justificar minha opção por 
priorizar um deles, a saber, os poucos parágrafos do ensaio “Sobre alguns temas em 
Baudelaire”. Em segundo lugar, analisarei o modo como Benjamin interpreta e mobiliza 
a noção proustiana de memória involuntária em favor de sua teoria da experiência. Por 
último, farei algumas consideraçõesa respeito do papel de Freud, ou melhor, da 
hipótese freudiana acerca da incompatibilidade entre memória e consciência, na 
concatenação dessas ideias. Posto isso, passemos ao primeiro tópico. 
 
II 
 
O ensaio intitulado “A imagem de Proust”, de 1929, é certamente o escrito mais 
famoso de Benjamin sobre Proust. Sabe-se que ele traduziu para o alemão alguns dos 
volumes do monumento romanesco de Proust, e que este ensaio foi produzido neste 
contexto3; ele foi publicado numa revista chamada Die Literarische Welt, claramente 
inclinada à literatura e com a qual Benjamin manteve “colaboração regular” 
(BENJAMIN, 2011, p. 9). Neste ensaio, Benjamin exerce seu método de “crítica 
imanente” da literatura, que “pressupõe”, segundo Ernani Chaves, “como uma espécie 
de propedêutica, que o estudo de uma obra literária não se esgota na própria obra, mas, 
ao contrário, exige que atravessemos, criticamente, as sucessivas camadas que, a partir 
das diversas interpretações acabam por aderir à obra” (2008 p. 34); Jeanne Marie 
Gagnebin aborda outros pontos do método benjaminiano, como a exigência do trabalho 
de comentário previamente à elaboração crítica (cf. 1985, p. 119 ss.), esboçado pela 
autora a partir, sobretudo, do ensaio de Benjamin sobre as “Afinidades Eletivas”, de 
Goethe. 
Seguindo seu método, no ensaio sobre Proust, Benjamin parece tentar dar conta 
do monumento literário proustiano de forma mais livre e abrangente, levando em conta 
alguns de seus componentes, tais como seus aspectos estruturais, “que conjuga a poesia, 
	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  
3 Este ensaio sobre Proust não foi elaborado com a intenção de prefaciar a tradução, tal como ocorrera 
com o ensaio sobre “A Tarefa do Tradutor” em relação à tradução dos “Tableaux Parisienses”, de 
Baudelaire; dado que o objetivo último do contato com Proust fora a sua tradução para o alemão, 
Benjamin teve de empreender uma leitura atenta e minuciosa, que tornou possível as reflexões expostas 
neste ensaio. 
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a memorialística e o comentário” (BENJAMIN, 1994, p.36), ou mesmo as 
considerações acerca da densidade do texto “tecido” por Proust (cf. BENJAMIN, 1994, 
p. 37). Ora, por se tratar de um ensaio no qual o objetivo é, fundamentalmente, fazer a 
crítica do romance proustiano, ele versa, com efeito, sobre o romance de Proust; deste 
modo, ele se aproxima mais dos demais ensaios de crítica literária, como aqueles 
dedicados a Kafka e a Goethe, do que dos ensaios mais tardios de Benjamin, os quais 
possuem vieses filosóficos e sociológicos melhores delineados. 
O outro ensaio benjaminiano no qual há referências a Proust é “Sobre alguns 
temas em Baudelaire”, de 1939; como o próprio nome revela, este não é inteiramente 
sobre Proust, porém possui algumas passagens dedicadas a ele. Diferentemente do que 
faz em seus ensaios de crítica literária, Benjamin não se limita a analisar um poema ou 
um livro de Baudelaire, mas busca evidenciar alguns traços característicos da 
modernidade a partir da obra do poeta francês, ou seja, um esforço em levar a literatura 
para além da escritura. Aliás, num Curriculum Vitae, o próprio Benjamin se refere a 
este texto como “um fragmento de uma série de estudos que propõem analisar a 
literatura do século XIX como instrumento para um conhecimento crítico deste período” 
(2011, p. 10). Vale lembrar, ainda com o intuito de melhor caracterizar seu conteúdo, 
que este ensaio foi publicado na revista do Instituto de Pesquisa Social, a Zeitschrift für 
Sozialforschung, que também publicou outros artigos de Benjamin, mais ligados, 
também, às suas reflexões tardias (cf. BENJAMIN, 2011, p. 10). 
É de se estranhar o fato de um texto que leva o nome de Baudelaire no título 
iniciar, de fato, a apresentação de suas reflexões sobre o poeta apenas depois de uma 
longa introdução. As primeiras seções, em especial, atuam, em relação ao texto em sua 
integralidade, como uma espécie de propedêutica, no sentido de passagem obrigatória, 
indispensável4: ora, se o grande tema tratado no texto é, certamente, mostrar como 
Baudelaire transforma, através de sua poesia, a “vivência do choque” em “experiência 
do choque”, torna-se necessário, para compreender corretamente a exposição de 
Benjamin, ter em mente o contexto no qual Baudelaire vivia, mais precisamente, a 
situação da experiência neste contexto; para tanto, o filósofo se vale destas seções 
iniciais para “pintar”, ainda que de modo bastante sumário, as condições da experiência 
na época em questão. Para tanto, Benjamin mobilizará um caleidoscópio de autores: 
	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  
4 Este é um procedimento mais ou menos usual na filosofia de Benjamin, fazendo eco, por exemplo, ao 
“Prefácio Epistemológico-Crítico”, em relação à tese sobre a “Origem do drama trágico alemão”, e às 
teses “Sobre o conceito de História”, em relação ao ambicioso e inacabado projeto das “Passagens”. 
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chega a impressionar a quantidade de autores que Benjamin faz referência e tenta 
mobilizar a favor de suas ideias, como Henri Bergson, Paul Valéry, Edgard Alan Poe e, 
claro, aqueles que vão nos interessar mais a partir de agora, Proust e Freud. São, com 
efeito, poucos os parágrafos dedicados por Benjamin a estes dois últimos; e é neles que 
a figura de Proust, via noção de memória involuntária, surge como uma espécie de 
“metáfora literária” de algumas ideias de Benjamin a respeito da memória e da 
experiência. Comparado ao ensaio anterior, dedicado exclusivamente a Proust, este 
último parece ir mais diretamente ao que, no romancista, será interessante às ideias de 
Benjamin; poder-se-ia dizer, talvez, que neste último texto, o filósofo procura 
apreender, mais do que no primeiro, o espírito por trás da letra proustiana, que se 
encontra, para ele, na noção de memória involuntária, que embora só seja cunhada, por 
uma única vez, nas primeiras páginas do último volume do romance, “O Tempo 
Redescoberto”, pode ser entrevista já desde o primeiro volume, “No Caminho de 
Swann”, a partir da cena da madeleine (cf. PROUST, 2006, p. 71 e ss.), se fazendo 
presente, desde então, em toda a trama. Em suma, Benjamin escreve, neste ensaio, sobre 
suas próprias ideias, porém, com o auxílio de Proust. 
Ora, como uma das propostas deste trabalho é identificar o papel de Proust na 
filosofia de Benjamin, creio que seja melhor privilegiar os parágrafos dedicados a 
Proust no ensaio sobre Baudelaire, tendo o ensaio sobre o próprio Proust como suporte. 
Passemos, então, a analisá-lo mais detidamente. 
 
III 
 
Benjamin inicia a segunda seção de seu texto com as seguintes palavras: 
 
Matière et Memoire define o caráter da experiência na durée (duração) 
de tal maneira que o leitor se sente obrigado a concluir que apenas o 
escritor seria o sujeito adequado de tal experiência. E, de fato, foi 
também um escritor quem colocou à prova a teoria da experiência de 
Bergson. Pode-se considerar a obra de Proust, Em Busca do Tempo 
Perdido,como a tentativa de reproduzir artificialmente, sob as 
condições sociais atuais, a experiência tal como Bergson a imagina, 
pois cada vez se poderá ter menos esperanças de realizá-la por meios 
naturais (1989, p. 105). 
 
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Ora, a primeira menção a Proust no texto já é buscando opô-lo a Bergson, 
caracterizando-o como aquele que põe em xeque a teoria bergsoniana5. Para Benjamin, 
esta oposição é fundamental, uma vez que, o que está em jogo para Benjamin aqui é sua 
teoria sobre a atrofia da experiência; exploremos, pois, tal oposição, recuperando os 
pressupostos necessários. 
Para Benjamin, a noção de experiência possui uma relação bastante intrincada 
com as noções de memória e de narração (ou “arte de contar histórias”): grosso modo, o 
acesso à memória é o que permitiria a transmissão, via narração, da experiência. Para 
uma melhor compreensão destas ideias, vale relembrar a distinção, feita por Benjamin, 
entre experiência e vivência. Sobre tal distinção, Leandro Konder (1999, p. 83) ensina: 
 
O nosso crítico distinguia entre duas modalidades de conhecimento, 
indicadas por duas palavras diversas em alemão: Erfahrung e Erlebnis. 
‘Erfahrung’ é o conhecimento obtido através de uma experiência que 
se acumula, que se prolonga, que se desdobra, como numa viagem (e 
viajar, em alemão, é fahren); o sujeito integrado numa comunidade 
dispõe de critérios que lhe permitem ir sedimentando as coisas, com o 
tempo. ‘Erlebnis’ é a vivência do indivíduo privado, isolado; é a 
impressão forte, que precisa ser assimilada às pressas, que produz 
efeitos imediatos. 
 
Segundo o diagnóstico benjaminiano, nosso tempo é marcado por um processo 
de declínio das ações experiência6; na acelerada modernidade capitalista, não há mais 
tempo para ouvir histórias, únicas vias de transmissão da experiência em seu sentido 
pleno; preferem-se, hoje, os jornais, fonte de informação concisa e de fácil assimilação, 
logo, mais compatível com o acelerado cotidiano moderno. O problema é que esse tipo 
de informação não se integra à experiência do indivíduo, deixando-o pobre em termos 
	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  
5 Embora Benjamin tenha sido um dos críticos pioneiros na interpretação de Proust desvencilhando-o da 
tutela de Bergson, o próprio Proust parecia ser partidário desta ideia. Em uma entrevista, compilada ao 
final da edição brasileiro de “No Caminho de Swann”, Proust diz, a respeito do vínculo de sua obra com a 
filosofia bergsoniana, que “não seria exato [estabelecer este vínculo], pois minha obra está dominada pela 
distinção entre a memória involuntária e a memória voluntária, distinção que não somente não aparece na 
filosofia de Bergson, mas é até mesmo contradita por ela” (PROUST, 2006, p. 511). Ou ainda, Leopoldo 
e Silva, que, embora bergsoniano, é lúcido o bastante para advertir, num texto sobre a relação entre Proust 
e Bergson acerca da apreensão do tempo, que “convém desde logo esclarecer que não se pretende sugerir, 
com isto, qualquer tipo de identificação, ainda que parcial, entre a obra romanesca e a teoria filosófica” 
(LEOPOLDO E SILVA, 1992, p. 141). Quer dizer: o próprio Proust, bem como um grande estudioso da 
obra de Bergson, se opõem à tese de que o romance de Proust seria apenas uma espécie de “aplicação 
literária” das ideias filosóficas de Bergson. 
6Utilizarei doravante, seguindo a tradução mais corrente, experiência como correspondente a Erfahrung, 
bem como vivência para corresponder ao termo Erlebnis. 
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desta; com a vida sendo guiada pelo imediatismo, pela efemeridade do instante, a 
vivência assume a dianteira, colaborando decisivamente com o declínio da experiência. 
E o duelo entre experiência e vivência não se resolve através de uma simples 
escolha: nosso tempo, guiado pelo modo de viver imposto pelo capitalismo, segundo 
Benjamin, não comporta mais a experiência; para o reestabelecimento da possibilidade 
de sua transmissão efetiva, haveria a necessidade de alguns pressupostos, os quais 
podem ser localizados de modo preponderante, apenas, num regime pré-capitalista. A 
título de exemplo, pode-se destacar a organização social baseada na coletividade (e não 
na individualidade e na ruptura com uma tradição unificadora, caras ao mundo 
capitalista); ou, do mesmo modo, um modo de produção ou organização do trabalho 
baseado no artesanato, responsável por ditar o tempo e o ritmo da atividade humana de 
modo geral (e não no modo de produção industrial, que nos impõe uma temporalidade 
repetitiva e que extrapola todo e qualquer limite humano e nos produtos impessoais e 
desumanizados produzidos no regime fabril); ou ainda, de maneira semelhante, a 
transmissão de saberes práticos fundada na experiência da tradição (e não nos livros de 
autoajuda, sempre entre os mais vendidos nas livrarias). Nesse contexto capitalista, no 
qual impera a impossibilidade da realização plena da experiência, haveria a necessidade 
de construir artificialmente novas formas de transmissão da experiência, ou do que 
sobra de seu esfacelamento, construção esta que deve ser empreendida “justamente por 
aqueles que reconheceram a impossibilidade da experiência tradicional na sociedade 
moderna e que se recusam a se contentar com a privaticidade da experiência vivida 
individual (Erlebnis)” (GAGNEBIN, 1994, p. 10). Proust é, para Benjamin, um dos 
autores mais sensíveis a esta questão, sendo sua memória involuntária um exemplo 
paradigmático de transmissão “artificial” da experiência. A respeito disso, Benjamin, 
em seu ensaio sobre Proust, cita uma passagem de um autor chamado Max Unold, que 
reproduzo aqui: 
 
‘ele conseguiu tornar interessantes as histórias de cocheiro. Ele diz: 
imagine, caro leitor, ontem eu mergulhei um bolinho numa xícara de 
chá, e então me lembrei que tinha morado no campo, quando criança. 
Para dizer isso, Proust usa oitenta páginas, e o faz de modo tão 
fascinante que deixamos de ser ouvintes, e nos identificamos com o 
próprio narrador desse sonho acordado’ (BENJAMIN, 1994, p. 39, 
grifos nosso). 
 
 
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É, exatamente, por essas razões que Benjamin diz, ao final do trecho citado no 
início desta seção, que a experiência nos moldes bergsonianos dificilmente se realizará 
por meios naturais: as ideias de Bergson são demasiado idealizadas, não se aplicam à 
realidade; Proust, por sua vez, encara a situação com mais lucidez e tenta recriar, na 
medida do possível e sob as condições sociais vigentes, a experiência tal como Bergson 
a concebera. 
Benjamin segue sua análise a partir das noções que, de certo modo, funcionam 
como pilares em relação às ideias sobre a memória de cada um dos autores, a saber, a 
memória pura em Bergson e a memória involuntária em Proust, e buscará compreendê-
las à luz de sua própria teoria da experiência e da memória. Assim, de acordo com a 
leitura benjaminiana, a “memória involuntária” do romance proustiano se diferencia da 
“memória pura” bergsoniana precisamente quanto ao que iniciaria o processo de 
rememoração: se para Bergson, há a sugestão de que “o recurso à presentificação 
intuitiva do fluxo da vida seja uma questão de livre escolha” (BENJAMIN,1989, p. 
106), para Proust “fica por conta do acaso, se cada indivíduo adquire ou não uma 
imagem de si mesmo7, e se pode ou não se apossar de sua própria experiência” 
(BENJAMIN, 1989, p. 106). 
Bergson, a certa altura de seu “Matéria e Memória”, diz que: “Para evocar o 
passado em forma de imagem, é preciso poder abstrair-se da ação presente, é preciso 
saber dar valor ao inútil, é preciso querer sonhar” (BERGSON, 1999, p. 90). Quer dizer: 
o filósofo francês diz aqui que o ato de presentificar o passado depende do abstrair da 
ação presente, do valorizar o inútil e do querer sonhar, ou seja, três verbos que 
exprimem ações conscientes, que dependem do conhecimento e da intenção do sujeito 
da ação. Ora, do ponto de vista proustiano, isso é inconcebível: tomemos, por exemplo, 
a paradigmática cena da madeleine, lida ao fim do primeiro capítulo do primeiro volume 
de Em busca do tempo perdido. Tratando-se de uma cena de suma importância tanto 
para o romance quanto para a interpretação benjaminiana dele, talvez valesse um 
esforço de reconstrução da mesma; muito estudiosos de Proust já o fizeram de forma 
brilhante, dentre os quais destaco – e reproduzo – um, de autoria de Jeanne Marie 
Gagnebin (2006, p. 145): 
 
	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  
7Estas palavras fazem alusão ao título do ensaio sobre Proust, “A imagem de Proust”: uma das 
interpretações possíveis da imagem da qual fala o título é, justamente, a ideia de uma imagem do passado, 
continente da experiência. 
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[...] voltando para casa numa noite fria de inverno, o escritor 
[protagonista ou herói do romance] aceita a oferta de sua mãe de lhe 
preparar um chá. Ele é servido com um bolinho seco, tipo nossa broa 
de milho, cujo nome é ‘madeleine’. O primeiro gole de chá, misturado 
ao sabor desse bolo bastante comum na França, produz uma impressão 
como que mágica na alma do narrador, há pouco ainda submersa pela 
melancolia e pela escuridão de uma triste tarde chuvosa. De repente, 
ele vê luz, sente calor, alegria, um prazer intenso o atravessa cuja 
causa ele ignora. Percebe, então, depois de um longo esforço de 
atenção espiritual, que a ‘madeleine’ ressuscitou uma lembrança, 
esquecida no fundo da memória: o sabor do mesmo bolinho misturado 
ao chá que ele tomava enquanto criança, na casa de veraneio de sua 
família, aos Domingos, quando ia cumprimentar sua tia-avó, a Tante 
Léonie. 
 
Nesta cena, fica clara a discrepância em relação às ideias de Bergson: o 
personagem do romance não toma o chá com a intenção de lembrar-se de sua infância; 
ele é, ao contrário, acometido de modo involuntário e completamente passivo pela 
sensação que o leva às imagens de seu passado. O elo causal entre o sabor do chá com a 
madeleine e o assalto pelas lembranças do passado é estabelecido apenas num momento 
de reflexão posterior. 
Dito de outro modo: enquanto para Bergson o desencadear do processo de 
rememoração está muito mais próximo das capacidades subjetivas e da mente 
consciente, em Proust, pelo contrário, ele está mais próximo do mundo e das sensações 
que ele pode oferecer8. É verdade que há, para Proust, uma memória que opera sob a 
tutela da consciência – a “memória voluntária, a memória da inteligência” (PROUST, 
2008, p. 70). Contudo, esta memória voluntária é incomparavelmente inferior, 
qualitativamente falando, às lembranças fornecidas pela memória involuntária. 
Tal distanciamento promovido por Benjamin entre os dois autores franceses é de 
fundamental importância, uma vez que, tomando sua teoria da experiência como 
parâmetro, ambos os autores não podem permanecer aliados, como queria a crítica 
literária de tradição francesa, pois são contraditórios. Cabe observar, porém, que a 
filosofia de Bergson mantinha relações, reconhecidas pelo próprio Benjamin (cf. 
BENJAMIN, 1989, p. 104-5), com a investigação científica, orientando-se, sobretudo, 
	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  
8O mecanismo de funcionamento da memória involuntária é adaptado por Proust a partir de uma crença 
céltica de que as almas dos falecidos são deslocadas para algum ser inferior, como um animal ou algum 
objeto qualquer; quando entramos em contato com o “guardião da alma” e a reconhecemos, o encanto se 
quebra. “É assim”, diz Proust, “com nosso passado” (2006, p. 71): de nada adianta buscar evocá-lo com o 
esforço de nossa inteligência. Ele permanece distante de nosso alcance intelectual, aprisionado em algum 
objeto material (e na sensação que dele proviria). “Esse objeto, só do acaso depende que o encontremos 
antes de morrer, ou que não o encontremos nunca” (PROUST, 2006, p.71). 
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pela biologia; ao afastar Bergson de Proust, Benjamin também quebra, de certo modo, o 
elo entre o romance de Proust e a investigação científica, garantido outrora pela relação 
a Bergson. Ora, sabe-se que, para Benjamin, Proust não é simplesmente um escritor de 
ficção; ele escreve, na verdade, sobre a realidade, porém através da ficção, e seria 
importante, para garantir tal vínculo com a realidade, alguma conexão com a 
investigação científica. Sem a garantia deste vínculo, Benjamin tem seu projeto de 
utilizar a literatura como material para o estabelecimento de um conhecimento crítico 
enfraquecido, uma vez que, se a literatura não possui sequer alguma ligação com a 
realidade, ela não passa de mera ficção, restando a ela, simplesmente, se tornar objeto 
de mera fruição estética. A saída encontrada por Benjamin para reestabelecer esta 
ligação é aproximar algumas teses de outro pensador à obra de Proust, um médico 
austríaco que se esforçava em consolidar uma nova ciência – no sentido de 
Naturwissenchaft – que fazia claras referências à termodinâmica, ciência “modelo” da 
época, em seu aparelho conceitual, chamado Sigmund Freud. Vejamos, então, como se 
dá tal aproximação empreendida por Benjamin. 
 
IV 
 
Na seção seguinte àquela dedicada a Proust, Benjamin escreverá alguns 
parágrafos sobre Freud, mais precisamente, sobre a hipótese freudiana acerca da 
incompatibilidade entre os sistemas psíquicos percepção-consciência e memória, 
desenvolvida em seu texto “Além do Princípio de Prazer” (FREUD, 2010). É verdade 
que este não é, de fato, o tema central do artigo de Freud; a introdução do conceito de 
pulsão de morte é aquilo que se situa “além do princípio do prazer”, sendo sua 
adequação aos desenvolvimentos psicanalíticos de até então o mote central do texto. 
Entretanto, dado o escopo deste trabalho, me limitarei apenas aos interesses 
benjaminianos no texto de Freud, interesses estes que residem, precisamente, no tema 
secundário acerca da relação entre os estímulos do mundo exterior e sua recepção – e 
captação – pelo aparelho psíquico. 
Em sua especulação acerca da constituição e atuação do aparelho psíquico, 
Freud afirma que o que é objeto da consciência não pode conservar nenhum traço 
mnemônico, pois se o fizesse, inviabilizaria uma nova percepção, afirmação esta que 
pode ser expressa na fórmula freudiana “aconsciência surge no lugar do traço de 
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lembrança” (FREUD, 2010, p. 186); disso se segue que a consciência e o registro 
mnemônico não podem ser compatíveis, devendo operar cada qual num sistema distinto 
(cf. FREUD, 2010, p. 185-6). Em seu texto, Freud elabora toda uma história conjectural 
a respeito da origem do organismo vivo (cf. FREUD, 2010, p. 187 ss.), elemento que 
julgo não ser imprescindível para os propósitos de meu texto. Porém, cabe ressaltar um 
ponto específico, a saber, o surgimento da barreira protetora (Reizschutz): “Esse 
pequeno pedaço de substância viva flutua num mundo externo carregado de fortes 
energias, e seria liquidado pela ação dos estímulos que vêm dele se não fosse dotado de 
uma proteção contra estímulos” (FREUD, 2010, p. 188). 
Segundo Oswaldo Giacóia Jr. (2010, p. 51-2), de forma bastante clara: 
 
Dada a magnitude dos estímulos externos, contra sua incidência é 
necessário que o aparelho desenvolva uma camada de proteção, uma 
vez que, sem esse escudo, as quantidades de excitação provenientes do 
ambiente levariam à destruição do aparelho. Desse modo, os 
elementos físicos que constituem a base somática do sistema 
percepção/consciência precisam ter se tornado, de alguma maneira, 
calcinados, inorgânicos, de forma a não possibilitar o registro 
duradouro (mnêmico) de traços de excitação, que nele se esgotam 
inteiramente, sem deixar resíduos. 
 
Assim, o sistema percepção-consciência, além de tornar conscientes as 
excitações recebidas, teria a função primordial de proteger o organismo, por intermédio 
de uma barreira protetora, o organismo contra os estímulos externos que visam 
desestabilizar seu fluxo interno de troca de energias. Segundo Benjamin, essa ameaça de 
desestabilização pelos estímulos externos é chamada por Freud de choque9, e quanto 
maior for sua recorrência, mais o sistema percepção-consciência se esforçará para inibi-
lo, com o intuito último de preservar o organismo, já que “para o organismo vivo, a 
proteção contra estímulos é tarefa quase mais importante do que a recepção de 
estímulos” (FREUD, 2010, p. 189). Em outras palavras, numa situação de recepção 
	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  
9 Conforme ressalta Rouanet (cf. ROUANET, 2008, p. 73 e ss.), a leitura de Benjamin não é totalmente 
exata, uma vez que para ele não há distinção, clara em Freud, entre estímulos traumáticos e não 
traumáticos, flagrante em afirmações como: “O fato de o choque ser assim amortecido e aparado pelo 
consciente emprestaria ao evento que o provoca o caráter de experiência vivida em sentido restrito” 
(BENJAMIN, 1989, p. 110). . Para Freud, o mecanismo do choque não é, como o quer Benjamin, a regra 
de funcionamento da barreira protetora, mas é desencadeado apenas pelo estímulo traumático; este é, 
segundo Freud, aquele que é interceptado pela barreira, mas, dada sua força, rompe a proteção e invade o 
organismo, desestabilizando-o, sem se tornar representação consciente. No entanto, esse equívoco de 
interpretação não invalida a argumentação benjaminiana, pois, como afirma Maria Rita Kehl: “O que 
interessa ao argumento de Walter Benjamin não é o evento excepcional que caracteriza o trauma, mas a 
velocidade com que a consciência é assolada pelo prosaico e corriqueiro choque” (2009, p. 175). 
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excessiva de estímulos (na leitura benjaminiana, os causadores do choque), o sistema 
percepção-consciência, através da barreira protetora, passa a ser mais frequentemente 
exigido, passando a se sobressair em relação aos demais sistemas. 
Alguns anos mais tarde, Freud (cf. 2011, p. 270 e ss.) compara seu modelo de 
aparelho psíquico a um brinquedo, o Bloco Mágico, a fim de mostrar como se daria o 
seu funcionamento. O brinquedo é composto por uma tábua de cera e por uma folha, 
separável em duas camadas: a parte de cima é composta de uma película de celuloide 
transparente, a de baixo é de um papel encerado e translúcido. Escreve-se no bloco com 
um estilete pontiagudo que, ao fazer ranhuras na superfície do papel, deixa marcas, 
possíveis de serem lidas, no papel encerado. Quando as notas não forem mais 
necessárias, basta levantar a folha, gesto que apaga tudo o que havia sido “escrito”. 
Freud observa que, depois de uma anotação, se as camadas da folha forem descoladas, é 
possível ler o que fora escrito apenas no papel encerado. Poder-se-ia perguntar se a 
película de celuloide é de fato necessária; porém, ao se tentar “escrever” diretamente no 
papel encerado, nota-se que, devido a sua fragilidade, ele provavelmente seria 
danificado. Percebe-se, então, que a película atua como uma espécie de proteção ao 
papel encerado. Ora, se o compararmos ao aparelho psíquico, notam-se algumas 
semelhanças entre a tábua de cera e o inconsciente e entre a folha e o sistema 
percepção-consciência, com a película de celuloide correspondendo à barreira protetora 
e o papel encerado à parte perceptiva do sistema. Freud indica, ainda, que “se 
pensarmos que, enquanto uma mão escreve na superfície no Bloco Mágico, a outra 
levanta da tabuinha de cera periodicamente a folha de cobertura, temos uma 
representação concreta do modo como procurei imaginar a função de nosso aparelho 
psíquico perceptivo” 10 (FREUD, 2011, p. 274). 
Assim, segundo Olgária Matos (2010, p. 266-7): 
 
No ‘bloco mágico’, no qual tudo o que é grafado apaga-se assim que 
se levanta a folha transparente sobre a qual se escreve, Freud 
considera que a inscrição das excitações vivenciadas nos sistemas 
psíquicos atestam a incompatibilidade entre a consciência e a 
	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  
10 Não há, a meu ver, um brinquedo no Brasil correspondente ao que Freud descreve em seu artigo; talvez 
o que mais se aproxime do brinquedo descrito por Freud é a “lousa mágica”, brinquedo semelhante, 
embora confeccionado em plástico, porém sem a necessidade de algo como a película de celuloide, tendo 
em vista que, na versão brasileira do brinquedo, não se usa um estilete, mas um bastão de plástico que, 
quando pressionado contra a camada mais superficial, adere à peça sólida as regiões pressionadas, 
tornando-as legíveis pelo contato com essa. Ou seja: a “lousa mágica” não serviria de metáfora para 
Freud, já que lhe falta, precisamente, a barreira protetora. 
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memória. As excitações não podendo se tornar inconscientes são 
estocadas em outra parte que não a consciência, a saber, em dois 
outros sistemas, o pré-consciente e o consciente: ‘a consciência 
nasceria no lugar do rastro mnésico. 
 
Ora, a esta altura do texto, já podemos organizar o ideário nele exposto: 
Benjamin atribui ao sistema percepção-consciência o trato das vivências e os limites de 
atuação da memória da inteligência, aquela capaz de tornar conscientes apenas os 
registros dos sistemas pré-consciente e consciente. A memória, ou sistema mnemônico, 
daria conta do registro das experiências,e, sendo incompatível com a consciência, 
configura, assim, o âmbito da memória involuntária. 
Ora, se levarmos em conta o modo de vida ao qual estamos submetidos no 
capitalismo, modo de vida este que exige o máximo de nossa atenção consciente, a fim 
de dar conta do bombardeio infindável de estímulos com os quais nos deparamos e 
temos de lidar a todo instante, como aqueles vivenciados em nosso contato com a 
multidão, esse mar de pessoas que inunda os centros urbanos, passamos, deste modo, a 
viver majoritariamente sob o predomínio das vivências; como exposto acima, uma vez 
que se passa a viver sob o signo da vivência, anula-se a possibilidade da experiência. E 
o que significa esta substituição de uma pela outra? Segundo Rouanet, em síntese: “A 
consciência está, pois, continuamente mobilizada contra a ameaça do choque, donde 
Benjamin conclui que quanto maiores os riscos objetivos de que esse choque venha a 
produzir-se, mais alerta fica a consciência, o que significa, aceita a tese da relação 
inversa entre consciência e memória, que esta se empobrece correspondentemente, 
passando a armazenar cada vez menos traços mnêmicos” (ROUANET, 1981, p. 45) 
Quer dizer: o capitalismo fabrica indivíduos desprovidos de memória, isto é, de um 
passado que conserva sua experiência, inviabilizando, assim, sua transmissão. Em 
outras palavras: o homem moderno, por não conseguir memorizar nada, torna-se um 
homem sem passado, condenado a viver num eterno presente, já que tampouco pode 
imaginar um futuro diferente baseando-se em suas memórias. 
 
V 
 
À guisa de conclusão, espero ter conseguido deixar clara a maneira como 
Benjamin entrelaça algumas ideias de Proust (memória involuntária) e Freud 
(incompatibilidade entre os sistemas psíquicos percepção-consciência e memória), sem 
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conexão aparente, em favor de sua teoria da experiência. Se, ao afastar Bergson de 
Proust, ainda que em prol de sua teoria da experiência, Benjamin rompe o elo da 
literatura com a cientificidade, o substituto de Bergson é fruto de uma escolha 
minuciosa, já que Freud, além de ter concebido hipóteses harmoniosas com as ideias de 
Benjamin, era, também, alguém próximo das ciências, devolvendo, assim, a 
“proximidade das coisas” ao romance de Proust, proximidade esta de fundamental 
importância na proposta benjaminiana de pensar a modernidade a partir da literatura da 
época moderna. Ele poderia muito bem ter se apoiado apenas nas palavras de Proust, em 
“A Fugitiva”, citadas por Malcolm Bowie: “o pensamento [consciente] possui um poder 
de renovação, ou melhor, uma impotência de conservação” (BOWIE, 1987, p. 69, 
tradução minha), ou seja, exatamente o que Freud propõe em seu texto. Embora este 
volume não tenha sido objeto da tradução feita por Benjamin, o que está formulado 
nestas palavras de Proust, de certo modo, perpassa todo o romance, sendo improvável 
que isto tenha escapado a um leitor atento como fora o filósofo alemão. Isso, a meu ver, 
apenas reforça minha hipótese acerca da escolha de Freud em substituição a Bergson. 
Cabem, no entanto, algumas observações finais: evidentemente, Proust nunca 
leu Benjamin, logo, ele não poderia ter escrito seu romance pensando em fazer de seu 
protagonista uma espécie de “redentor”, aquele que descobriu, ainda que por acaso, um 
modo de acessar sua experiência e, deste modo, poder transmiti-la adiante. Isso é, 
evidentemente, fruto da interpretação de Benjamin. Porém, essa interpretação não 
possui nada de absurdo, e é incorporada organicamente ao restante de seu projeto 
filosófico. Quer dizer: Benjamin, a meu ver, não distorce o romance de Proust, a fim de 
fazê-lo dizer o que ele não diz; pelo contrário, a sutileza com que Benjamin mobiliza as 
ideias do romance e as dispõe a seu favor, nos faz, por alguns instantes, acreditar que, 
de fato, o romance proustiano é a peça faltante no quebra-cabeça filosófico 
benjaminiano11. 
	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  
11 Obviamente, o romance proustiano é também, mas não apenas, esta peça faltante. Atendo-me apenas 
no plano das interpretações filosóficas da obra de Proust, basta folhear, por exemplo, o livro de Gilles 
Deleuze, “Proust e os signos”, para se encontrar um contraponto interessante. Logo nas primeiras páginas, 
o filósofo francês apresenta sua interpretação do romance de Proust, que pode ser resumida enquanto uma 
desvalorização da memória e a caracterização da jornada do protagonista como um “relato de um 
aprendizado” (DELEUZE, 2003, p. 3); ou seja, a leitura deleuziana é incompatível – mas nem por isso 
menos plausível, já que é apoiada por bons argumentos – com a leitura benjaminiana. Para além de 
discutir qual das interpretações é correta, pode-se apenas depreender a riqueza e a pluralidade de 
interpretações possíveis do monumento romanesco proustiano. 
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E o mesmo se aplica a Freud: ele não estava pensando em elaborar, sob a 
encomenda de Benjamin, um modelo de aparelho psíquico que se encaixasse 
exatamente na crítica cultural e na problemática da atrofia da experiência; no entanto, o 
aparelho psíquico, tal como Freud o concebe, cumpre muito bem esse papel na 
constelação em que Benjamin o insere. 
Ademais, é verdade que não é algo novo estabelecer aproximações entre Proust e 
Freud: no texto de Ernani Chaves, há referências a Jacques Riviére e outros autores, que 
indicam aproximações bastante tímidas entre os dois autores (cf. CHAVES, 2008, p. 34-
5); Bowie, por sua vez, enumera uma série de temas existentes nas obras dos dois 
autores, como por exemplo, as temáticas do sadismo, do masoquismo, do 
homossexualismo, da análise de sonhos e das regras de interpretação, dentre outras (cf. 
BOWIE, 1987, p. 68-9). Porém, o grande diferencial da aproximação entre Proust e 
Freud tratada aqui é que, diferentemente das aproximações mencionadas – meros 
cruzamentos de temas que aparecem na obra romanesca de Proust e na psicanálise de 
Freud –, a aproximação empreendida por Benjamin dá um passo além: a convergência 
entre literatura e psicanálise, em Benjamin, opera de modo tão intenso que impossibilita 
a distinção dos elementos amalgamados; assim, citando estas ideias, isto é, retirando-as 
de seus contextos originais e reinserindo-as numa nova constelação, Benjamin produz 
um terceiro elemento, a saber, sua própria filosofia, que se apresenta sob a forma de 
crítica da cultura e se sustenta através de uma teoria da experiência. 
 
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Tradução: Paulo Neves. 2ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 1999. (Coleção tópicos) 
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