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VII Encontro de Pesquisa na Graduação em Filosofia da UNESP Vol. 5, 2012. www.marilia.unesp.br/filogenese 16 Da “memória involuntária” à “incompatibilidade consciência- memória”: aproximações benjaminianas entre Proust e Freud Fernando Araújo Del Lama1 Resumo: No início do século XX, era comum, na crítica de tradição francesa, ver no romance de Marcel Proust, “Em busca do tempo perdido”, uma espécie de “aplicação literária” das ideias do filósofo Henri Bergson sobre a memória e o tempo; certamente, esta aproximação entre o filósofo e o romancista se deu, principalmente, por terem sido contemporâneos, e consequentemente, partilharem do mesmo ambiente francês de efervescência intelectual e cultural. Mas seria esta aproximação, com efeito, verdadeira ou, ao menos, a única possível de ser feita? Ora, é justamente adotando uma posição contrária a esta, isto é, a de distanciamento entre os dois autores franceses, que Walter Benjamin lê Proust. Sabe-se que Proust possui grande relevância nas ideias de Benjamin e que, nas vicissitudes de sua leitura, Benjamin, além de afastar Bergson de Proust, acaba por aproximar Proust de Freud. O objetivo deste texto é compreender qual o sentido destas relações, ora de aproximação, ora de distanciamento, entre estes autores e qual a importância delas para o projeto filosófico de Benjamin. Palavras-chave: Walter Benjamin. Marcel Proust. Sigmund Freud. Memória. Experiência. Abstract: In the beginning of the 20th century, it was common in the French tradition criticism to see in Marcel Proust’s “In Search of Lost Time” a kind of "literary application" of philosopher Henri Bergson’s ideas regarding memory and time; certainly, this approximation between the philosopher and the novelist occurred mainly due to their contemporaneity and the consequent sharing of the same French environment of cultural and intellectual fermentation. But would this approach be effectively true or even the only one possible to be made? In fact, adopting a position opposite to the aforementioned – establishing distance between the two French authors – is how Walter Benjamin reads Proust. It is known that Proust possesses great relevance over Benjamin’s ideas, and in the vicissitudes of his reading, Benjamin, not only distances Bergson from Proust but approaches Proust to Freud. The aim of this paper is to understand the meaning of these relationships, at times as approximation, at times as distance, between these authors and how they are important for Benjamin’s philosophical project. Keywords: Walter Benjamin. Marcel Proust. Sigmund Freud. Memory. Experience. * * * I A literatura assume muitos saberes. Num romance como Robinson Crusoé, há um saber histórico, geográfico, social (colonial), técnico, botânico, antropológico (Robinson passa da natureza à cultura). Se, por não sei que excesso de socialismo ou de barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto numa, é a disciplina literária que devia ser salva, pois todas as ciências estão presentes no monumento literário. É nesse sentido que se pode dizer 1Graduando em Filosofia pela Universidade de São Paulo. Bolsista PIBIC/CNPq. Orientador: Prof. Dr. Marcus Sacrini Ayres Ferraz. E-mail: fernando.lama@usp.br VII Encontro de Pesquisa na Graduação em Filosofia da UNESP Vol. 5, 2012. www.marilia.unesp.br/filogenese 17 que a literatura, quaisquer que sejam as escolas em nome das quais ela se declara, é absolutamente, categoricamente realista: ela é a realidade, isto é, o próprio fulgor do real (BARTHES, 1988, p. 16-7, grifos nosso). Este é um trecho de autoria de Roland Barthes, extraído de sua aula inaugural no Collége de France. Parece-me, porém, que se ele fosse encontrado em algum texto de Walter Benjamin, não seria tão estranho ao leitor, exceto, talvez, pelo exemplo, que provavelmente não seria o romance de Daniel Defoe, mas algum outro autor mais próximo do universo benjaminiano. No entanto, o que eu gostaria de enfatizar aqui é que, a meu ver, Benjamin partilha desta ideia de uma relação íntima entre literatura e realidade, tanto é que ele lança mão de alguns exemplos literários, que assumem papéis importantes em algumas de suas principais ideias filosóficas: o contista russo Nikolai Leskov, por exemplo, se torna o exemplo paradigmático do “contador de histórias” 2 (ou “narrador”), fundamental para sua teoria sobre a atrofia da experiência; o grande poeta Charles Baudelaire é, para Benjamin, incontornável quando o assunto é modernidade, sendo sua figura mais emblemática; o romancista Marcel Proust, por sua vez, é personagem fundamental para compreender outras ideias, às quais, doravante, passarei a me dedicar. Para orientar o texto, formulei, então, a seguinte questão: no interior desta gama de “empréstimos literários” da filosofia benjaminiana, qual é, de fato, a função de Proust em sua filosofia? Buscando responder a esta questão, percebi outra, correlata e menos explorada, porém não menos interessante do que a primeira: por que a presença de algumas ideias desenvolvidas por Sigmund Freud passa a ser fundamental para garantir a validade da contribuição proustiana? Em outras palavras: qual é o sentido da aproximação entre Proust e Freud estabelecida por Benjamin? Parte-se da hipótese de que Proust, ou, mais precisamente, a noção de memória involuntária, exerce uma função primordial para se pensar soluções ao problema da atrofia da experiência na modernidade, função esta que só é compatível com um modelo de aparelho psíquico 2 Apoiando-me em algumas traduções mais recentes para der Erzähler, a saber, the storyteller no inglês, le conteur no francês e el cuentacuentos no espanhol, preferi traduzir – contrariando, talvez, o próprio Benjamin, que em certa ocasião traduziu o termo em questão para o francês como le narrateur – este termo para o português como o contador de histórias. Conforme a leitura que proponho, o “narrador” do qual trata Benjamin, não é um conceito meramente literário, mas filosófico; daí minha opção, a fim de diferenciar o “narrador” literário, a entidade fictícia que enuncia o discurso no interior de uma narrativa, do “contador de histórias” filosófico, o transmissor por excelência da experiência em seu sentido pleno. Mantive, entretanto, a tradução mais difundida junto ao texto, visto que a introdução de uma nova terminologia sem advertência poderia confundir o leitor. VII Encontro de Pesquisa na Graduação em Filosofia da UNESP Vol. 5, 2012. www.marilia.unesp.br/filogenese 18 dotado de algumas peculiaridades, que Benjamin buscará na obra de Freud. Para sustentá-la, proponho o seguinte percurso: em primeiro lugar, comentarei brevemente os dois textos benjaminianos que mencionam Proust, a fim de justificar minha opção por priorizar um deles, a saber, os poucos parágrafos do ensaio “Sobre alguns temas em Baudelaire”. Em segundo lugar, analisarei o modo como Benjamin interpreta e mobiliza a noção proustiana de memória involuntária em favor de sua teoria da experiência. Por último, farei algumas consideraçõesa respeito do papel de Freud, ou melhor, da hipótese freudiana acerca da incompatibilidade entre memória e consciência, na concatenação dessas ideias. Posto isso, passemos ao primeiro tópico. II O ensaio intitulado “A imagem de Proust”, de 1929, é certamente o escrito mais famoso de Benjamin sobre Proust. Sabe-se que ele traduziu para o alemão alguns dos volumes do monumento romanesco de Proust, e que este ensaio foi produzido neste contexto3; ele foi publicado numa revista chamada Die Literarische Welt, claramente inclinada à literatura e com a qual Benjamin manteve “colaboração regular” (BENJAMIN, 2011, p. 9). Neste ensaio, Benjamin exerce seu método de “crítica imanente” da literatura, que “pressupõe”, segundo Ernani Chaves, “como uma espécie de propedêutica, que o estudo de uma obra literária não se esgota na própria obra, mas, ao contrário, exige que atravessemos, criticamente, as sucessivas camadas que, a partir das diversas interpretações acabam por aderir à obra” (2008 p. 34); Jeanne Marie Gagnebin aborda outros pontos do método benjaminiano, como a exigência do trabalho de comentário previamente à elaboração crítica (cf. 1985, p. 119 ss.), esboçado pela autora a partir, sobretudo, do ensaio de Benjamin sobre as “Afinidades Eletivas”, de Goethe. Seguindo seu método, no ensaio sobre Proust, Benjamin parece tentar dar conta do monumento literário proustiano de forma mais livre e abrangente, levando em conta alguns de seus componentes, tais como seus aspectos estruturais, “que conjuga a poesia, 3 Este ensaio sobre Proust não foi elaborado com a intenção de prefaciar a tradução, tal como ocorrera com o ensaio sobre “A Tarefa do Tradutor” em relação à tradução dos “Tableaux Parisienses”, de Baudelaire; dado que o objetivo último do contato com Proust fora a sua tradução para o alemão, Benjamin teve de empreender uma leitura atenta e minuciosa, que tornou possível as reflexões expostas neste ensaio. VII Encontro de Pesquisa na Graduação em Filosofia da UNESP Vol. 5, 2012. www.marilia.unesp.br/filogenese 19 a memorialística e o comentário” (BENJAMIN, 1994, p.36), ou mesmo as considerações acerca da densidade do texto “tecido” por Proust (cf. BENJAMIN, 1994, p. 37). Ora, por se tratar de um ensaio no qual o objetivo é, fundamentalmente, fazer a crítica do romance proustiano, ele versa, com efeito, sobre o romance de Proust; deste modo, ele se aproxima mais dos demais ensaios de crítica literária, como aqueles dedicados a Kafka e a Goethe, do que dos ensaios mais tardios de Benjamin, os quais possuem vieses filosóficos e sociológicos melhores delineados. O outro ensaio benjaminiano no qual há referências a Proust é “Sobre alguns temas em Baudelaire”, de 1939; como o próprio nome revela, este não é inteiramente sobre Proust, porém possui algumas passagens dedicadas a ele. Diferentemente do que faz em seus ensaios de crítica literária, Benjamin não se limita a analisar um poema ou um livro de Baudelaire, mas busca evidenciar alguns traços característicos da modernidade a partir da obra do poeta francês, ou seja, um esforço em levar a literatura para além da escritura. Aliás, num Curriculum Vitae, o próprio Benjamin se refere a este texto como “um fragmento de uma série de estudos que propõem analisar a literatura do século XIX como instrumento para um conhecimento crítico deste período” (2011, p. 10). Vale lembrar, ainda com o intuito de melhor caracterizar seu conteúdo, que este ensaio foi publicado na revista do Instituto de Pesquisa Social, a Zeitschrift für Sozialforschung, que também publicou outros artigos de Benjamin, mais ligados, também, às suas reflexões tardias (cf. BENJAMIN, 2011, p. 10). É de se estranhar o fato de um texto que leva o nome de Baudelaire no título iniciar, de fato, a apresentação de suas reflexões sobre o poeta apenas depois de uma longa introdução. As primeiras seções, em especial, atuam, em relação ao texto em sua integralidade, como uma espécie de propedêutica, no sentido de passagem obrigatória, indispensável4: ora, se o grande tema tratado no texto é, certamente, mostrar como Baudelaire transforma, através de sua poesia, a “vivência do choque” em “experiência do choque”, torna-se necessário, para compreender corretamente a exposição de Benjamin, ter em mente o contexto no qual Baudelaire vivia, mais precisamente, a situação da experiência neste contexto; para tanto, o filósofo se vale destas seções iniciais para “pintar”, ainda que de modo bastante sumário, as condições da experiência na época em questão. Para tanto, Benjamin mobilizará um caleidoscópio de autores: 4 Este é um procedimento mais ou menos usual na filosofia de Benjamin, fazendo eco, por exemplo, ao “Prefácio Epistemológico-Crítico”, em relação à tese sobre a “Origem do drama trágico alemão”, e às teses “Sobre o conceito de História”, em relação ao ambicioso e inacabado projeto das “Passagens”. VII Encontro de Pesquisa na Graduação em Filosofia da UNESP Vol. 5, 2012. www.marilia.unesp.br/filogenese 20 chega a impressionar a quantidade de autores que Benjamin faz referência e tenta mobilizar a favor de suas ideias, como Henri Bergson, Paul Valéry, Edgard Alan Poe e, claro, aqueles que vão nos interessar mais a partir de agora, Proust e Freud. São, com efeito, poucos os parágrafos dedicados por Benjamin a estes dois últimos; e é neles que a figura de Proust, via noção de memória involuntária, surge como uma espécie de “metáfora literária” de algumas ideias de Benjamin a respeito da memória e da experiência. Comparado ao ensaio anterior, dedicado exclusivamente a Proust, este último parece ir mais diretamente ao que, no romancista, será interessante às ideias de Benjamin; poder-se-ia dizer, talvez, que neste último texto, o filósofo procura apreender, mais do que no primeiro, o espírito por trás da letra proustiana, que se encontra, para ele, na noção de memória involuntária, que embora só seja cunhada, por uma única vez, nas primeiras páginas do último volume do romance, “O Tempo Redescoberto”, pode ser entrevista já desde o primeiro volume, “No Caminho de Swann”, a partir da cena da madeleine (cf. PROUST, 2006, p. 71 e ss.), se fazendo presente, desde então, em toda a trama. Em suma, Benjamin escreve, neste ensaio, sobre suas próprias ideias, porém, com o auxílio de Proust. Ora, como uma das propostas deste trabalho é identificar o papel de Proust na filosofia de Benjamin, creio que seja melhor privilegiar os parágrafos dedicados a Proust no ensaio sobre Baudelaire, tendo o ensaio sobre o próprio Proust como suporte. Passemos, então, a analisá-lo mais detidamente. III Benjamin inicia a segunda seção de seu texto com as seguintes palavras: Matière et Memoire define o caráter da experiência na durée (duração) de tal maneira que o leitor se sente obrigado a concluir que apenas o escritor seria o sujeito adequado de tal experiência. E, de fato, foi também um escritor quem colocou à prova a teoria da experiência de Bergson. Pode-se considerar a obra de Proust, Em Busca do Tempo Perdido,como a tentativa de reproduzir artificialmente, sob as condições sociais atuais, a experiência tal como Bergson a imagina, pois cada vez se poderá ter menos esperanças de realizá-la por meios naturais (1989, p. 105). VII Encontro de Pesquisa na Graduação em Filosofia da UNESP Vol. 5, 2012. www.marilia.unesp.br/filogenese 21 Ora, a primeira menção a Proust no texto já é buscando opô-lo a Bergson, caracterizando-o como aquele que põe em xeque a teoria bergsoniana5. Para Benjamin, esta oposição é fundamental, uma vez que, o que está em jogo para Benjamin aqui é sua teoria sobre a atrofia da experiência; exploremos, pois, tal oposição, recuperando os pressupostos necessários. Para Benjamin, a noção de experiência possui uma relação bastante intrincada com as noções de memória e de narração (ou “arte de contar histórias”): grosso modo, o acesso à memória é o que permitiria a transmissão, via narração, da experiência. Para uma melhor compreensão destas ideias, vale relembrar a distinção, feita por Benjamin, entre experiência e vivência. Sobre tal distinção, Leandro Konder (1999, p. 83) ensina: O nosso crítico distinguia entre duas modalidades de conhecimento, indicadas por duas palavras diversas em alemão: Erfahrung e Erlebnis. ‘Erfahrung’ é o conhecimento obtido através de uma experiência que se acumula, que se prolonga, que se desdobra, como numa viagem (e viajar, em alemão, é fahren); o sujeito integrado numa comunidade dispõe de critérios que lhe permitem ir sedimentando as coisas, com o tempo. ‘Erlebnis’ é a vivência do indivíduo privado, isolado; é a impressão forte, que precisa ser assimilada às pressas, que produz efeitos imediatos. Segundo o diagnóstico benjaminiano, nosso tempo é marcado por um processo de declínio das ações experiência6; na acelerada modernidade capitalista, não há mais tempo para ouvir histórias, únicas vias de transmissão da experiência em seu sentido pleno; preferem-se, hoje, os jornais, fonte de informação concisa e de fácil assimilação, logo, mais compatível com o acelerado cotidiano moderno. O problema é que esse tipo de informação não se integra à experiência do indivíduo, deixando-o pobre em termos 5 Embora Benjamin tenha sido um dos críticos pioneiros na interpretação de Proust desvencilhando-o da tutela de Bergson, o próprio Proust parecia ser partidário desta ideia. Em uma entrevista, compilada ao final da edição brasileiro de “No Caminho de Swann”, Proust diz, a respeito do vínculo de sua obra com a filosofia bergsoniana, que “não seria exato [estabelecer este vínculo], pois minha obra está dominada pela distinção entre a memória involuntária e a memória voluntária, distinção que não somente não aparece na filosofia de Bergson, mas é até mesmo contradita por ela” (PROUST, 2006, p. 511). Ou ainda, Leopoldo e Silva, que, embora bergsoniano, é lúcido o bastante para advertir, num texto sobre a relação entre Proust e Bergson acerca da apreensão do tempo, que “convém desde logo esclarecer que não se pretende sugerir, com isto, qualquer tipo de identificação, ainda que parcial, entre a obra romanesca e a teoria filosófica” (LEOPOLDO E SILVA, 1992, p. 141). Quer dizer: o próprio Proust, bem como um grande estudioso da obra de Bergson, se opõem à tese de que o romance de Proust seria apenas uma espécie de “aplicação literária” das ideias filosóficas de Bergson. 6Utilizarei doravante, seguindo a tradução mais corrente, experiência como correspondente a Erfahrung, bem como vivência para corresponder ao termo Erlebnis. VII Encontro de Pesquisa na Graduação em Filosofia da UNESP Vol. 5, 2012. www.marilia.unesp.br/filogenese 22 desta; com a vida sendo guiada pelo imediatismo, pela efemeridade do instante, a vivência assume a dianteira, colaborando decisivamente com o declínio da experiência. E o duelo entre experiência e vivência não se resolve através de uma simples escolha: nosso tempo, guiado pelo modo de viver imposto pelo capitalismo, segundo Benjamin, não comporta mais a experiência; para o reestabelecimento da possibilidade de sua transmissão efetiva, haveria a necessidade de alguns pressupostos, os quais podem ser localizados de modo preponderante, apenas, num regime pré-capitalista. A título de exemplo, pode-se destacar a organização social baseada na coletividade (e não na individualidade e na ruptura com uma tradição unificadora, caras ao mundo capitalista); ou, do mesmo modo, um modo de produção ou organização do trabalho baseado no artesanato, responsável por ditar o tempo e o ritmo da atividade humana de modo geral (e não no modo de produção industrial, que nos impõe uma temporalidade repetitiva e que extrapola todo e qualquer limite humano e nos produtos impessoais e desumanizados produzidos no regime fabril); ou ainda, de maneira semelhante, a transmissão de saberes práticos fundada na experiência da tradição (e não nos livros de autoajuda, sempre entre os mais vendidos nas livrarias). Nesse contexto capitalista, no qual impera a impossibilidade da realização plena da experiência, haveria a necessidade de construir artificialmente novas formas de transmissão da experiência, ou do que sobra de seu esfacelamento, construção esta que deve ser empreendida “justamente por aqueles que reconheceram a impossibilidade da experiência tradicional na sociedade moderna e que se recusam a se contentar com a privaticidade da experiência vivida individual (Erlebnis)” (GAGNEBIN, 1994, p. 10). Proust é, para Benjamin, um dos autores mais sensíveis a esta questão, sendo sua memória involuntária um exemplo paradigmático de transmissão “artificial” da experiência. A respeito disso, Benjamin, em seu ensaio sobre Proust, cita uma passagem de um autor chamado Max Unold, que reproduzo aqui: ‘ele conseguiu tornar interessantes as histórias de cocheiro. Ele diz: imagine, caro leitor, ontem eu mergulhei um bolinho numa xícara de chá, e então me lembrei que tinha morado no campo, quando criança. Para dizer isso, Proust usa oitenta páginas, e o faz de modo tão fascinante que deixamos de ser ouvintes, e nos identificamos com o próprio narrador desse sonho acordado’ (BENJAMIN, 1994, p. 39, grifos nosso). VII Encontro de Pesquisa na Graduação em Filosofia da UNESP Vol. 5, 2012. www.marilia.unesp.br/filogenese 23 É, exatamente, por essas razões que Benjamin diz, ao final do trecho citado no início desta seção, que a experiência nos moldes bergsonianos dificilmente se realizará por meios naturais: as ideias de Bergson são demasiado idealizadas, não se aplicam à realidade; Proust, por sua vez, encara a situação com mais lucidez e tenta recriar, na medida do possível e sob as condições sociais vigentes, a experiência tal como Bergson a concebera. Benjamin segue sua análise a partir das noções que, de certo modo, funcionam como pilares em relação às ideias sobre a memória de cada um dos autores, a saber, a memória pura em Bergson e a memória involuntária em Proust, e buscará compreendê- las à luz de sua própria teoria da experiência e da memória. Assim, de acordo com a leitura benjaminiana, a “memória involuntária” do romance proustiano se diferencia da “memória pura” bergsoniana precisamente quanto ao que iniciaria o processo de rememoração: se para Bergson, há a sugestão de que “o recurso à presentificação intuitiva do fluxo da vida seja uma questão de livre escolha” (BENJAMIN,1989, p. 106), para Proust “fica por conta do acaso, se cada indivíduo adquire ou não uma imagem de si mesmo7, e se pode ou não se apossar de sua própria experiência” (BENJAMIN, 1989, p. 106). Bergson, a certa altura de seu “Matéria e Memória”, diz que: “Para evocar o passado em forma de imagem, é preciso poder abstrair-se da ação presente, é preciso saber dar valor ao inútil, é preciso querer sonhar” (BERGSON, 1999, p. 90). Quer dizer: o filósofo francês diz aqui que o ato de presentificar o passado depende do abstrair da ação presente, do valorizar o inútil e do querer sonhar, ou seja, três verbos que exprimem ações conscientes, que dependem do conhecimento e da intenção do sujeito da ação. Ora, do ponto de vista proustiano, isso é inconcebível: tomemos, por exemplo, a paradigmática cena da madeleine, lida ao fim do primeiro capítulo do primeiro volume de Em busca do tempo perdido. Tratando-se de uma cena de suma importância tanto para o romance quanto para a interpretação benjaminiana dele, talvez valesse um esforço de reconstrução da mesma; muito estudiosos de Proust já o fizeram de forma brilhante, dentre os quais destaco – e reproduzo – um, de autoria de Jeanne Marie Gagnebin (2006, p. 145): 7Estas palavras fazem alusão ao título do ensaio sobre Proust, “A imagem de Proust”: uma das interpretações possíveis da imagem da qual fala o título é, justamente, a ideia de uma imagem do passado, continente da experiência. VII Encontro de Pesquisa na Graduação em Filosofia da UNESP Vol. 5, 2012. www.marilia.unesp.br/filogenese 24 [...] voltando para casa numa noite fria de inverno, o escritor [protagonista ou herói do romance] aceita a oferta de sua mãe de lhe preparar um chá. Ele é servido com um bolinho seco, tipo nossa broa de milho, cujo nome é ‘madeleine’. O primeiro gole de chá, misturado ao sabor desse bolo bastante comum na França, produz uma impressão como que mágica na alma do narrador, há pouco ainda submersa pela melancolia e pela escuridão de uma triste tarde chuvosa. De repente, ele vê luz, sente calor, alegria, um prazer intenso o atravessa cuja causa ele ignora. Percebe, então, depois de um longo esforço de atenção espiritual, que a ‘madeleine’ ressuscitou uma lembrança, esquecida no fundo da memória: o sabor do mesmo bolinho misturado ao chá que ele tomava enquanto criança, na casa de veraneio de sua família, aos Domingos, quando ia cumprimentar sua tia-avó, a Tante Léonie. Nesta cena, fica clara a discrepância em relação às ideias de Bergson: o personagem do romance não toma o chá com a intenção de lembrar-se de sua infância; ele é, ao contrário, acometido de modo involuntário e completamente passivo pela sensação que o leva às imagens de seu passado. O elo causal entre o sabor do chá com a madeleine e o assalto pelas lembranças do passado é estabelecido apenas num momento de reflexão posterior. Dito de outro modo: enquanto para Bergson o desencadear do processo de rememoração está muito mais próximo das capacidades subjetivas e da mente consciente, em Proust, pelo contrário, ele está mais próximo do mundo e das sensações que ele pode oferecer8. É verdade que há, para Proust, uma memória que opera sob a tutela da consciência – a “memória voluntária, a memória da inteligência” (PROUST, 2008, p. 70). Contudo, esta memória voluntária é incomparavelmente inferior, qualitativamente falando, às lembranças fornecidas pela memória involuntária. Tal distanciamento promovido por Benjamin entre os dois autores franceses é de fundamental importância, uma vez que, tomando sua teoria da experiência como parâmetro, ambos os autores não podem permanecer aliados, como queria a crítica literária de tradição francesa, pois são contraditórios. Cabe observar, porém, que a filosofia de Bergson mantinha relações, reconhecidas pelo próprio Benjamin (cf. BENJAMIN, 1989, p. 104-5), com a investigação científica, orientando-se, sobretudo, 8O mecanismo de funcionamento da memória involuntária é adaptado por Proust a partir de uma crença céltica de que as almas dos falecidos são deslocadas para algum ser inferior, como um animal ou algum objeto qualquer; quando entramos em contato com o “guardião da alma” e a reconhecemos, o encanto se quebra. “É assim”, diz Proust, “com nosso passado” (2006, p. 71): de nada adianta buscar evocá-lo com o esforço de nossa inteligência. Ele permanece distante de nosso alcance intelectual, aprisionado em algum objeto material (e na sensação que dele proviria). “Esse objeto, só do acaso depende que o encontremos antes de morrer, ou que não o encontremos nunca” (PROUST, 2006, p.71). VII Encontro de Pesquisa na Graduação em Filosofia da UNESP Vol. 5, 2012. www.marilia.unesp.br/filogenese 25 pela biologia; ao afastar Bergson de Proust, Benjamin também quebra, de certo modo, o elo entre o romance de Proust e a investigação científica, garantido outrora pela relação a Bergson. Ora, sabe-se que, para Benjamin, Proust não é simplesmente um escritor de ficção; ele escreve, na verdade, sobre a realidade, porém através da ficção, e seria importante, para garantir tal vínculo com a realidade, alguma conexão com a investigação científica. Sem a garantia deste vínculo, Benjamin tem seu projeto de utilizar a literatura como material para o estabelecimento de um conhecimento crítico enfraquecido, uma vez que, se a literatura não possui sequer alguma ligação com a realidade, ela não passa de mera ficção, restando a ela, simplesmente, se tornar objeto de mera fruição estética. A saída encontrada por Benjamin para reestabelecer esta ligação é aproximar algumas teses de outro pensador à obra de Proust, um médico austríaco que se esforçava em consolidar uma nova ciência – no sentido de Naturwissenchaft – que fazia claras referências à termodinâmica, ciência “modelo” da época, em seu aparelho conceitual, chamado Sigmund Freud. Vejamos, então, como se dá tal aproximação empreendida por Benjamin. IV Na seção seguinte àquela dedicada a Proust, Benjamin escreverá alguns parágrafos sobre Freud, mais precisamente, sobre a hipótese freudiana acerca da incompatibilidade entre os sistemas psíquicos percepção-consciência e memória, desenvolvida em seu texto “Além do Princípio de Prazer” (FREUD, 2010). É verdade que este não é, de fato, o tema central do artigo de Freud; a introdução do conceito de pulsão de morte é aquilo que se situa “além do princípio do prazer”, sendo sua adequação aos desenvolvimentos psicanalíticos de até então o mote central do texto. Entretanto, dado o escopo deste trabalho, me limitarei apenas aos interesses benjaminianos no texto de Freud, interesses estes que residem, precisamente, no tema secundário acerca da relação entre os estímulos do mundo exterior e sua recepção – e captação – pelo aparelho psíquico. Em sua especulação acerca da constituição e atuação do aparelho psíquico, Freud afirma que o que é objeto da consciência não pode conservar nenhum traço mnemônico, pois se o fizesse, inviabilizaria uma nova percepção, afirmação esta que pode ser expressa na fórmula freudiana “aconsciência surge no lugar do traço de VII Encontro de Pesquisa na Graduação em Filosofia da UNESP Vol. 5, 2012. www.marilia.unesp.br/filogenese 26 lembrança” (FREUD, 2010, p. 186); disso se segue que a consciência e o registro mnemônico não podem ser compatíveis, devendo operar cada qual num sistema distinto (cf. FREUD, 2010, p. 185-6). Em seu texto, Freud elabora toda uma história conjectural a respeito da origem do organismo vivo (cf. FREUD, 2010, p. 187 ss.), elemento que julgo não ser imprescindível para os propósitos de meu texto. Porém, cabe ressaltar um ponto específico, a saber, o surgimento da barreira protetora (Reizschutz): “Esse pequeno pedaço de substância viva flutua num mundo externo carregado de fortes energias, e seria liquidado pela ação dos estímulos que vêm dele se não fosse dotado de uma proteção contra estímulos” (FREUD, 2010, p. 188). Segundo Oswaldo Giacóia Jr. (2010, p. 51-2), de forma bastante clara: Dada a magnitude dos estímulos externos, contra sua incidência é necessário que o aparelho desenvolva uma camada de proteção, uma vez que, sem esse escudo, as quantidades de excitação provenientes do ambiente levariam à destruição do aparelho. Desse modo, os elementos físicos que constituem a base somática do sistema percepção/consciência precisam ter se tornado, de alguma maneira, calcinados, inorgânicos, de forma a não possibilitar o registro duradouro (mnêmico) de traços de excitação, que nele se esgotam inteiramente, sem deixar resíduos. Assim, o sistema percepção-consciência, além de tornar conscientes as excitações recebidas, teria a função primordial de proteger o organismo, por intermédio de uma barreira protetora, o organismo contra os estímulos externos que visam desestabilizar seu fluxo interno de troca de energias. Segundo Benjamin, essa ameaça de desestabilização pelos estímulos externos é chamada por Freud de choque9, e quanto maior for sua recorrência, mais o sistema percepção-consciência se esforçará para inibi- lo, com o intuito último de preservar o organismo, já que “para o organismo vivo, a proteção contra estímulos é tarefa quase mais importante do que a recepção de estímulos” (FREUD, 2010, p. 189). Em outras palavras, numa situação de recepção 9 Conforme ressalta Rouanet (cf. ROUANET, 2008, p. 73 e ss.), a leitura de Benjamin não é totalmente exata, uma vez que para ele não há distinção, clara em Freud, entre estímulos traumáticos e não traumáticos, flagrante em afirmações como: “O fato de o choque ser assim amortecido e aparado pelo consciente emprestaria ao evento que o provoca o caráter de experiência vivida em sentido restrito” (BENJAMIN, 1989, p. 110). . Para Freud, o mecanismo do choque não é, como o quer Benjamin, a regra de funcionamento da barreira protetora, mas é desencadeado apenas pelo estímulo traumático; este é, segundo Freud, aquele que é interceptado pela barreira, mas, dada sua força, rompe a proteção e invade o organismo, desestabilizando-o, sem se tornar representação consciente. No entanto, esse equívoco de interpretação não invalida a argumentação benjaminiana, pois, como afirma Maria Rita Kehl: “O que interessa ao argumento de Walter Benjamin não é o evento excepcional que caracteriza o trauma, mas a velocidade com que a consciência é assolada pelo prosaico e corriqueiro choque” (2009, p. 175). VII Encontro de Pesquisa na Graduação em Filosofia da UNESP Vol. 5, 2012. www.marilia.unesp.br/filogenese 27 excessiva de estímulos (na leitura benjaminiana, os causadores do choque), o sistema percepção-consciência, através da barreira protetora, passa a ser mais frequentemente exigido, passando a se sobressair em relação aos demais sistemas. Alguns anos mais tarde, Freud (cf. 2011, p. 270 e ss.) compara seu modelo de aparelho psíquico a um brinquedo, o Bloco Mágico, a fim de mostrar como se daria o seu funcionamento. O brinquedo é composto por uma tábua de cera e por uma folha, separável em duas camadas: a parte de cima é composta de uma película de celuloide transparente, a de baixo é de um papel encerado e translúcido. Escreve-se no bloco com um estilete pontiagudo que, ao fazer ranhuras na superfície do papel, deixa marcas, possíveis de serem lidas, no papel encerado. Quando as notas não forem mais necessárias, basta levantar a folha, gesto que apaga tudo o que havia sido “escrito”. Freud observa que, depois de uma anotação, se as camadas da folha forem descoladas, é possível ler o que fora escrito apenas no papel encerado. Poder-se-ia perguntar se a película de celuloide é de fato necessária; porém, ao se tentar “escrever” diretamente no papel encerado, nota-se que, devido a sua fragilidade, ele provavelmente seria danificado. Percebe-se, então, que a película atua como uma espécie de proteção ao papel encerado. Ora, se o compararmos ao aparelho psíquico, notam-se algumas semelhanças entre a tábua de cera e o inconsciente e entre a folha e o sistema percepção-consciência, com a película de celuloide correspondendo à barreira protetora e o papel encerado à parte perceptiva do sistema. Freud indica, ainda, que “se pensarmos que, enquanto uma mão escreve na superfície no Bloco Mágico, a outra levanta da tabuinha de cera periodicamente a folha de cobertura, temos uma representação concreta do modo como procurei imaginar a função de nosso aparelho psíquico perceptivo” 10 (FREUD, 2011, p. 274). Assim, segundo Olgária Matos (2010, p. 266-7): No ‘bloco mágico’, no qual tudo o que é grafado apaga-se assim que se levanta a folha transparente sobre a qual se escreve, Freud considera que a inscrição das excitações vivenciadas nos sistemas psíquicos atestam a incompatibilidade entre a consciência e a 10 Não há, a meu ver, um brinquedo no Brasil correspondente ao que Freud descreve em seu artigo; talvez o que mais se aproxime do brinquedo descrito por Freud é a “lousa mágica”, brinquedo semelhante, embora confeccionado em plástico, porém sem a necessidade de algo como a película de celuloide, tendo em vista que, na versão brasileira do brinquedo, não se usa um estilete, mas um bastão de plástico que, quando pressionado contra a camada mais superficial, adere à peça sólida as regiões pressionadas, tornando-as legíveis pelo contato com essa. Ou seja: a “lousa mágica” não serviria de metáfora para Freud, já que lhe falta, precisamente, a barreira protetora. VII Encontro de Pesquisa na Graduação em Filosofia da UNESP Vol. 5, 2012. www.marilia.unesp.br/filogenese 28 memória. As excitações não podendo se tornar inconscientes são estocadas em outra parte que não a consciência, a saber, em dois outros sistemas, o pré-consciente e o consciente: ‘a consciência nasceria no lugar do rastro mnésico. Ora, a esta altura do texto, já podemos organizar o ideário nele exposto: Benjamin atribui ao sistema percepção-consciência o trato das vivências e os limites de atuação da memória da inteligência, aquela capaz de tornar conscientes apenas os registros dos sistemas pré-consciente e consciente. A memória, ou sistema mnemônico, daria conta do registro das experiências,e, sendo incompatível com a consciência, configura, assim, o âmbito da memória involuntária. Ora, se levarmos em conta o modo de vida ao qual estamos submetidos no capitalismo, modo de vida este que exige o máximo de nossa atenção consciente, a fim de dar conta do bombardeio infindável de estímulos com os quais nos deparamos e temos de lidar a todo instante, como aqueles vivenciados em nosso contato com a multidão, esse mar de pessoas que inunda os centros urbanos, passamos, deste modo, a viver majoritariamente sob o predomínio das vivências; como exposto acima, uma vez que se passa a viver sob o signo da vivência, anula-se a possibilidade da experiência. E o que significa esta substituição de uma pela outra? Segundo Rouanet, em síntese: “A consciência está, pois, continuamente mobilizada contra a ameaça do choque, donde Benjamin conclui que quanto maiores os riscos objetivos de que esse choque venha a produzir-se, mais alerta fica a consciência, o que significa, aceita a tese da relação inversa entre consciência e memória, que esta se empobrece correspondentemente, passando a armazenar cada vez menos traços mnêmicos” (ROUANET, 1981, p. 45) Quer dizer: o capitalismo fabrica indivíduos desprovidos de memória, isto é, de um passado que conserva sua experiência, inviabilizando, assim, sua transmissão. Em outras palavras: o homem moderno, por não conseguir memorizar nada, torna-se um homem sem passado, condenado a viver num eterno presente, já que tampouco pode imaginar um futuro diferente baseando-se em suas memórias. V À guisa de conclusão, espero ter conseguido deixar clara a maneira como Benjamin entrelaça algumas ideias de Proust (memória involuntária) e Freud (incompatibilidade entre os sistemas psíquicos percepção-consciência e memória), sem VII Encontro de Pesquisa na Graduação em Filosofia da UNESP Vol. 5, 2012. www.marilia.unesp.br/filogenese 29 conexão aparente, em favor de sua teoria da experiência. Se, ao afastar Bergson de Proust, ainda que em prol de sua teoria da experiência, Benjamin rompe o elo da literatura com a cientificidade, o substituto de Bergson é fruto de uma escolha minuciosa, já que Freud, além de ter concebido hipóteses harmoniosas com as ideias de Benjamin, era, também, alguém próximo das ciências, devolvendo, assim, a “proximidade das coisas” ao romance de Proust, proximidade esta de fundamental importância na proposta benjaminiana de pensar a modernidade a partir da literatura da época moderna. Ele poderia muito bem ter se apoiado apenas nas palavras de Proust, em “A Fugitiva”, citadas por Malcolm Bowie: “o pensamento [consciente] possui um poder de renovação, ou melhor, uma impotência de conservação” (BOWIE, 1987, p. 69, tradução minha), ou seja, exatamente o que Freud propõe em seu texto. Embora este volume não tenha sido objeto da tradução feita por Benjamin, o que está formulado nestas palavras de Proust, de certo modo, perpassa todo o romance, sendo improvável que isto tenha escapado a um leitor atento como fora o filósofo alemão. Isso, a meu ver, apenas reforça minha hipótese acerca da escolha de Freud em substituição a Bergson. Cabem, no entanto, algumas observações finais: evidentemente, Proust nunca leu Benjamin, logo, ele não poderia ter escrito seu romance pensando em fazer de seu protagonista uma espécie de “redentor”, aquele que descobriu, ainda que por acaso, um modo de acessar sua experiência e, deste modo, poder transmiti-la adiante. Isso é, evidentemente, fruto da interpretação de Benjamin. Porém, essa interpretação não possui nada de absurdo, e é incorporada organicamente ao restante de seu projeto filosófico. Quer dizer: Benjamin, a meu ver, não distorce o romance de Proust, a fim de fazê-lo dizer o que ele não diz; pelo contrário, a sutileza com que Benjamin mobiliza as ideias do romance e as dispõe a seu favor, nos faz, por alguns instantes, acreditar que, de fato, o romance proustiano é a peça faltante no quebra-cabeça filosófico benjaminiano11. 11 Obviamente, o romance proustiano é também, mas não apenas, esta peça faltante. Atendo-me apenas no plano das interpretações filosóficas da obra de Proust, basta folhear, por exemplo, o livro de Gilles Deleuze, “Proust e os signos”, para se encontrar um contraponto interessante. Logo nas primeiras páginas, o filósofo francês apresenta sua interpretação do romance de Proust, que pode ser resumida enquanto uma desvalorização da memória e a caracterização da jornada do protagonista como um “relato de um aprendizado” (DELEUZE, 2003, p. 3); ou seja, a leitura deleuziana é incompatível – mas nem por isso menos plausível, já que é apoiada por bons argumentos – com a leitura benjaminiana. Para além de discutir qual das interpretações é correta, pode-se apenas depreender a riqueza e a pluralidade de interpretações possíveis do monumento romanesco proustiano. VII Encontro de Pesquisa na Graduação em Filosofia da UNESP Vol. 5, 2012. www.marilia.unesp.br/filogenese 30 E o mesmo se aplica a Freud: ele não estava pensando em elaborar, sob a encomenda de Benjamin, um modelo de aparelho psíquico que se encaixasse exatamente na crítica cultural e na problemática da atrofia da experiência; no entanto, o aparelho psíquico, tal como Freud o concebe, cumpre muito bem esse papel na constelação em que Benjamin o insere. Ademais, é verdade que não é algo novo estabelecer aproximações entre Proust e Freud: no texto de Ernani Chaves, há referências a Jacques Riviére e outros autores, que indicam aproximações bastante tímidas entre os dois autores (cf. CHAVES, 2008, p. 34- 5); Bowie, por sua vez, enumera uma série de temas existentes nas obras dos dois autores, como por exemplo, as temáticas do sadismo, do masoquismo, do homossexualismo, da análise de sonhos e das regras de interpretação, dentre outras (cf. BOWIE, 1987, p. 68-9). Porém, o grande diferencial da aproximação entre Proust e Freud tratada aqui é que, diferentemente das aproximações mencionadas – meros cruzamentos de temas que aparecem na obra romanesca de Proust e na psicanálise de Freud –, a aproximação empreendida por Benjamin dá um passo além: a convergência entre literatura e psicanálise, em Benjamin, opera de modo tão intenso que impossibilita a distinção dos elementos amalgamados; assim, citando estas ideias, isto é, retirando-as de seus contextos originais e reinserindo-as numa nova constelação, Benjamin produz um terceiro elemento, a saber, sua própria filosofia, que se apresenta sob a forma de crítica da cultura e se sustenta através de uma teoria da experiência. Referências BARTHES, R. Aula. Tradução e posfácio: Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Editora Cultrix, 1988. BENJAMIN, W. “A imagem de Proust”. In: ________. Magia e técnica, arte e política: ensaio sobre literatura e história da cultura. Tradução: Sergio Paulo Rouanet. 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A filosofia após Freud. São Paulo: Humanitas, 2008. DELEUZE, G. Proust e os signos. Tradução: Antonio Piquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. FREUD, S. “Além do Princípio do Prazer” In: _______. História de uma neurose infantil (“O homem dos lobos”), além do princípio do prazer e outros textos (1917- 1920). Tradução e notas: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. (Obras completas, volume 14) _______. “Nota sobre o Bloco Mágico” In: _______. O eu e o id, “autobiografia” e outros textos (1923-1925). Tradução e notas: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. (Obras Completas, volume 16) GAGNEBIN, J. M. “A propósito do conceito de crítica em Walter Benjamin” in: Discurso, n. 13, São Paulo, ed. Polis, 1983. _______. “O Rumor das Distâncias Atravessadas” In: _______. Lembrar, escrever, esquecer. São Paulo: Editora 34, 2006. _______. “Walter Benjamin ou a história aberta” In: BENJAMIN, Walter. 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