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N.Cham. B823.3 S6l9u4. ed./2009 
Autor: Sire, James W. 
Título: O universo ao lado : um catálo 
582944 
Pv 1 fPIV/l I I P M . F Ç T 
Sumário 
PREFÁCIO À 4a EDIÇÃO 5 
1. TO DA A DIFERENÇA DO MUNDO : introdução 11 
2. U M UNIVERSO PERMEADO 
DA GRANDEZA DE O I I S : teísmo cristão 23 
3. A PRECISÃO DO UNIVERSO: deísmo 55 
4. O SILÊNCIO DO ESPAÇO FINITO : naturalismo 73 
5. MARCO ZERO : niilismo 109 
6. ALÉM DO NIILISMO : existencialismo 141 
7. JORNADA RUMO AO ORIENTE: 
Monismo panteísta oriental 179 
8. U M UNIVERSO SEPARADO: a Nova Era 207 
9. O HORIZONTE DESVANECIDO: pós-modernismo 263 
10. A VIDA EXAMINADA: conclusão 301 
NOTAS 315 
ÍNDEX 373 
Prefácio à 4 a edição 
MUITOS ANOS SE PASSARAM desde a publicação da primeira edição deste livro, em 1976. Nesse ínterim, inúmeros 
acontecimentos ocorreram, seja no desenvolvimento das 
cosmovisões no Ocidente, seja na maneira como eu e muitos 
outros passamos a compreender a noção de cosmovisão. 
Em 1976, a cosmovisão da Nova Era estava apenas se 
formando e nem nome tinha ainda. Eu a chamei de "a nova 
consciência". Ao mesmo tempo, o termo pós-moderno estava 
restrito apenas aos círculos académicos e ainda necessitava 
de ser reconhecido como uma mudança intelectual signifi-
cante. Agora, no século X X I , a Nova Era já completou mais 
de trinta anos, sendo adolescente apenas no caráter, não em 
anos. Enquanto isso, o pós-modernismo tem penetrado em 
cada área da vida intelectual, o suficiente para despertar, pelo 
menos, uma modesta reação. O pluralismo e o relativismo 
que o acompanham têm emudecido a distinta voz de todos 
os pontos de vista. Embora a terceira edição desta obra tenha 
O u n i v e r s o ao l a d o 
observado isso, há mais hoje sobre as histórias tanto da Nova 
Era quanto do pós-modernismo. Portanto, eu atualizei o 
capítulo sobre a Nova Era e revisei, de maneira substancial, 
o capítulo sobre o pós-modernismo. Igualmente, atualizei as 
notas de rodapé ao longo do livro, mencionando publicações 
recentes que podem ser frutíferas para os que, porventura, 
estejam realizando uma pesquisa sobre cosmovisões ou as-
suntos de caráter específico. 
Hoje em dia, há uma importante cosmovisão afetando 
0 Ocidente que não foi abordada em nenhumas das edições 
anteriores, incluindo-se esta. Desde 11 de setembro de 
2001, o Islã tornou-se o principal fator da vida não apenas 
no Oriente Médio, África e Ásia, mas também na Europa e 
América do Norte. A cosmovisão islâmica (ou talvez, cos-
movisões), exerce sua influência sobre as vidas das pessoas 
em todo o mundo. Além disso, o termo cosmovisão aparece 
comumente nos jornais, quando jornalistas tentam com-
puvnder e explicar o que está incentivando os chocantes 
eventos dos últimos anos. Infelizmente, não estou preparado 
no presente para abordar a cosmovisão islâmica da maneira 
que ela merece. Como tenho dito aos meus amigos coreanos 
que têm me questionado porque não discuti as cosmovisões 
dl ( onfúcio e a xamanista, isso deve ser feito por aqueles 
• 111<- detém uma melhor compreensão do que eu. Qualquer 
que enfrente esse desafio tem a minha bênção. 
I ntretanto, eu mesmo tenho reavaliado toda a noção de cos-
movisío, O que é isso na realidade? Tem havido contestações 
1 dl l i nu. i o que elaborei em 1976 (a qual mantive inalte-
i ul.i nas edições posteriores). Não é ela muito intelectual? 
Prefácio à 4a edição 
A cosmovisão não é mais inconsciente que consciente? Por 
que ela principia com ontologia abstrata (a noção de ser) em 
vez de com a questão mais pessoal da epistemologia (como 
nós sabemos)? Não precisamos primeiro de ter o nosso co-
nhecimento justificado para, então, começarmos a fazer 
afirmações sobre a natureza ou a suprema realidade? Minha 
definição de cosmovisão não é dependente do idealismo 
germânico do século X I X ou, talvez, da verdade da própria 
cosmovisão cristã? E quanto ao papel do comportamento na 
formação, avaliação ou mesmo identificação da cosmovisão 
da pessoa? O pós-modernismo não enfraquece a própria no-
ção de cosmovisão? 
Trago esses desafios no coração, e o resultado é duplica-
do. O primeiro é um livro que está sendo publicado pela 
InterVarsity Press ao mesmo tempo que esta edição. Nes-
sa obra, intitulada Naming the Elephant: Worldview as a 
Concept [Dando nome ao elefante: cosmovisão como um con-
ceito] , abordo uma série de assuntos em torno do conceito 
de cosmovisão. Leitores interessados na ferramenta inte-
lectual que está sendo utilizada neste livro irão encontrá-la 
em maior profundidade lá. Fui grandemente auxiliado 
nesta obra pelo trabalho de David Naugle, professor de 
filosofia da Universidade Batista de Dallas. Em sua obra, 
Worldview: The History ofa Concept [Cosmovisão: a história 
de um conceito], ele pesquisa a origem, o desenvolvimen-
to e as várias versões do conceito desde Immanuel Kant a 
Arthur Holmes; além disso, apresenta sua própria defini-
ção da cosmovisão cristã. Sua identificação da cosmovisão 
com a noção bíblica do coração é que tem fundamentado 
• 7 • 
O u n i v e r s o ao l a d o 
a minha própria definição revisada que aparece no capítulo 
primeiro do presente livro. 
Leitores de qualquer uma das edições anteriores notarão 
que a nova definição faz três coisas. Primeiro, ela muda o foco 
de uma cosmovisão como "um conjunto de pressuposições" 
para um "compromisso, uma orientação fundamental do co-
ração", concedendo uma ênfase maior às raízes pré-teóricas 
do intelecto. Segundo, expande a forma pela qual as cosmovi-
sões são expressas, adicionando ao conjunto de pressuposições 
uma noção de história. Terceiro, torna mais explícito que a raiz 
mais profunda de uma cosmovisão é seu comprometimento 
e compreensão da "realidade real". Quarto, ela reconhece o 
papel do comportamento em avaliar o que a cosmovisão de 
uma pessoa realmente é. 
Não obstante, as análises empreendidas nas três edições 
anteriores, em sua maioria, permanecem as mesmas. Apenas 
mudanças ocasionais foram feitas na apresentação e análise 
das seis primeiras, dentre as oito cosmovisões examinadas. 
A minha esperança é que o refino de minha definição, aliado 
i essas modestas revisões, possa tornar mais evidente a natu-
reza poderosa de cada uma das cosmovisões. 
* I renovado interesse que este livro tem despertado so-
bn OS leitores, entretanto, continua a me surpreender e a 
iii, satisfazer. Esta obra foi traduzida para quinze diferentes 
idiomas, e a cada ano que passa ela encontra o seu caminho 
p< las mãos de muitos estudantes, indicada por seus professo-
!• em < ursos tão abrangentes quanto diferentes, tais como 
tpologética, história, literatura inglesa, introdução à reli-
trodução à filosofia e até mesmo sobre as dimensões 
8 
Prefácio à 4a edição 
humanas da ciência. Tal diversidade de interesses sugere que 
uma das suposições sobre a qual o livro se baseia é, de fato, 
verdadeira: os assuntos mais fundamentais que nós, como 
seres humanos, precisamos de considerar, não possuem li-
mites departamentais. Qual é a realidade primária? Deus ou 
o cosmo? O que o ser humano é? Que acontece na morte? 
Como devemos, então, viver? Tais questões são igualmente 
relevantes seja para a psicologia, religião ou ciência. 
Pelo menos em um tópico eu permaneço constante: estou 
convencido de que para qualquer um de nós ser plenamen-
te consciente, intelectualmente falando, seria necessário não 
apenas ser capaz de detectar as cosmovisões dos outros, como 
também ter consciência da nossa própria - porque é nossa e 
porque à luz de tantas outras opções, cremos ser a verdadeira. 
Apenas posso esperar que este livro torne-se uma pedra firme 
e sólida, da qual cada leitor possa rumar em direção ao desen-
volvimento e justificação de sua autoconsciência sobre a sua 
própria cosmovisão. 
Somando-se aos muitos reconhecimentosexpressados 
nas notas de rodapé, gostaria, em especial, de agradecer a 
C. Stephen Board, que muitos anos atrás me convidou a 
apresentar muito deste material sob a forma de palestras, na 
Christian Study Project, com o devido apoio da Inter Varsity 
Christian Fellowship, ministradas no Cedar Campus, em 
Michigan. Ele e Thomas Trevethan, igualmente presente 
naquele programa, me forneceram conselhos excelentes no 
desenvolvimento do material e no contínuo questionamento 
crítico de meu pensamento sobre cosmovisão desde a 
primeira publicação desta obra. 
O u n i v e r s o ao l a d o 
Outros amigos leram o manuscrito e me ajudaram a po-
lir algumas arestas ásperas, como C. Stephen Evans, com 
sua contribuição sobre o marxismo, Os Guinness, Charles 
Hamptom, Keith Yandell, Douglas Groothuis, Richard H . 
Bube, Rodney Clapp e Gary Deddo. Meu reconhecimento 
dirige-se também a David Naugle, sem o qual minha defini-
ção de cosmovisão permaneceria inalterada. A eles e ao editor, 
James Hoover, a minha mais sincera estima. Finalmente, gos-
taria de mencionar os comentários de muitos estudantes que 
discutiram o material em minhas aulas e palestras. 
Assumo total responsabilidade pelas contínuas falhas e 
erros que, porventura, sejam encontrados neste livro. 
1 0 
Capítulo um 
TODA A DIFERENÇA DO MUNDO 
Int rodução 
Muitas vezes, nas ruas mais agitadas deste mundo, 
Muitas vezes, em meio à confusão da luta, 
Surge um desejo inexprimível 
De conhecer nossa vida encoberta: 
Uma ânsia de consumir nossa chama e força impetuosa 
Para encontrar a pista do nosso curso original; 
Um desejo de investigar 
Os mistérios deste coração que bate 
Tão louco, tão profundo dentro de nós - para conhecer 
De onde nossas vidas vêm e para onde elas vão." 
Mat t hew Ar n old , The Buried Life [A vida encoberta] 
J Á N O FINAL D O SÉCULO XIX, Stephen Crane havia aprendido a condição com que nós, no início do século X X I , encara-
mos o universo. 
O u n i v e r s o a o la d o 
Certo homem disse ao universo: 
"Senhor, eu existo." 
"Entretanto", replicou o universo, "o fato não criou em 
mim um senso de obrigação."1 
Quão diferentes são as palavras do antigo salmista, que 
olhou para si mesmo e para Deus e expressou: 
"Senhor, Senhor nosso, como é majestoso o teu nome em 
toda a terra! Tu, cuja glória é cantada nos céus. Dos lá-
bios das crianças e dos recém-nascidos firmaste o teu nome 
como fortaleza, por causa dos teus adversários, para silen-
ciar o inimigo que busca vingança. Quando contemplo os 
teus céus, obras dos teus dedos, a lua e as estrelas que ali 
firmaste, pergunto: Que é o homem para que com ele te 
importes? E o filho do homem para que com ele te preocu-
pes? Tu o fizeste um pouco menor do que os seres celestiais 
e o coroaste de glória e de honra. Tu o fizeste dominar sobre 
as obras das tuas mãos; sob os seus pés tudo puseste: Todos 
os rebanhos e manadas, e até os animais selvagens, as aves 
do céu, os peixes do mar e tudo o que percorre as veredas 
dos mares. Senhor, Senhor nosso, como é majestoso o teu 
nome em toda a terra!" (Salmo 8) 
Há toda a diferença do mundo entre as cosmovisões pre-
sentes nesses dois poemas. De fato, eles propõem universos 
alternativos. Não obstante, ambos os poemas reverberam na 
mente e alma das pessoas hoje em dia. Muitos que se postam 
ao lado de Stephen Crane possuem mais que uma lembrança 
da grande e gloriosa afirmação do salmista sobre a mão de 
Deus no cosmo e seu amor pelas pessoas. Elas anseiam por 
algo que não podem mais verdadeiramente aceitar. O vazio 
deixado pela perda do centro da vida é como o abismo no 
• 12 • 
Toda a diferença do mundo 
coração de uma criança que perdeu seu pai. Como aqueles 
que não crêem mais em Deus desejam preencher esse vazio! 
E muitos que, apesar de estarem do lado do salmista e 
cuja fé no Senhor Deus Jeová é vital e plena, ainda sentem a 
luta do poema de Crane. Sim, é exatamente isso o que sig-
nifica perder a Deus. Sim, é isso o que aqueles que não têm 
fé no Senhor pessoal e infinito, Criador do universo devem 
sentir, qual seja, alienação, solidão e mesmo desespero. 
Lembramo-nos das lutas com a fé enfrentadas por nossos 
antepassados do século X I X e sabemos que para muitos a fé 
perdeu. Como Alfred, Lorde Tennyson, escreveu em respos-
ta à morte de seu grande amigo, 
Perceba que não sabemos nada; 
Posso apenas esperar que o bem falhe 
Por fim - distante - por fim, a todos 
E todo inverno se transforme em primavera. 
Assim caminham os meus sonhos; mas o que sou eu? 
Uma criança que chora na noite; 
Uma criança que chora pela luz; 
Que não consegue falar, apenas chorar."2 
No caso de Tennyson, a fé, no devido tempo, venceu, 
mas a sua luta levou anos para ser concluída. 
A luta em descobrir a nossa própria fé, nossa própria 
cosmovisão, nossas crenças sobre a realidade é o assunto so-
bre o qual discorre este livro. Formalmente estabelecidos, os 
propósitos desta obra são: 1) esboçar as cosmovisões básicas 
que estão por trás da maneira como nós, no mundo ociden-
tal, pensamos sobre nós mesmos, outras pessoas, o mundo 
natural e Deus ou a realidade suprema; 2) historicamente, 
• 13 • 
O u n i v e r s o a o l a d o 
traçar como tais cosmovisões se desenvolveram a partir 
de uma ruptura na cosmovisão teísta, resultando, por seu 
turno, no deísmo, no naturalismo, no niilismo, no existen-
cialismo, no misticismo oriental e na nova consciência do 
movimento Nova Era; 3) mostrar como o pós-modernismo 
deu um nó nessas cosmovisões; e 4) encorajar a todos nós a 
pensar em termos de cosmovisões, isto é, com uma consci-
ência não apenas de nossa própria maneira de pensar, mas 
também com as das demais pessoas, de modo que possamos 
primeiramente compreender e, então, nos comunicarmos 
de forma genuína com os outros, na sociedade pluralista 
em que vivemos. 
Essa é uma ordem abrangente. De fato, ela soa muito 
similarmente ao projeto de toda uma vida. Minha esperança 
é que assim seja para muitos que leiam este livro e levem a 
sério as suas implicações. O que se encontra aqui escrito é 
somente uma introdução do que pode muito bem se trans-
formar em um modo de viver. 
Na confecção deste livro achei especialmente difícil defi-
nir o que incluir e o que deixar de fora, porém, pelo fato de 
considerar todo o livro como uma introdução, procurei ser 
rigorosamente breve, de modo a chegar ao âmago de cada 
cosmovisão, sugerir seus pontos fortes e fracos e passar ao 
próximo. Entretanto, fiz concessões ao meu próprio inte-
resse, incluindo notas de rodapé que, creio eu, levarão os 
leitores a níveis de profundidade maiores que o abordado no 
respectivo capítulo. Aqueles cujo interesse primário seja o 
de apenas obter o que considero como o coração da questão 
podem ignorá-las com segurança. Porém, os que desejam 
• 14 • 
Toda a diferença do mundo 
ir mais fundo por conta própria (que sejam uma legião!), 
podem achar as notas de rodapé extremamente úteis na su-
gestão de leituras adicionais e novos objetos de investigação. 
O que é uma cosmovisão? 
Apesar de nomes de filósofos como Platão, Aristóteles, 
Sartre, Carnus e Nietzsche serem mencionados em suas 
páginas, este livro não constitui um trabalho de filosofia 
profissional. Igualmente, embora faça referências, de quan-
do em quando, a conceitos celebrizados por homens como 
o apóstolo Paulo, Agostinho, Aquino e Calvino, esta obra 
tampouco é de cunho teológico. Pelo contrário, é uma obra 
de cosmovisões - apresentadas de uma forma mais básica e 
fundamental que os estudos formais, sejam da filosofia sejam 
da teologia.3 Expressando de outra maneira, esta é uma obra 
de universos moldados por palavras e conceitos que traba-
lham juntos, visando prover uma estrutura mais ou menos 
coerente de referência para todo o pensamento e ação.4 
Poucas pessoaspossuem algo que se aproxime a uma fi-
losofia articulada - pelo menos, como demonstrado pelos 
grandes filósofos. Menos pessoas ainda, suspeito, possuem 
uma teologia cuidadosamente construída, porém, todas pos-
suem uma cosmovisão. Sempre que refletimos sobre alguma 
coisa, desde um pensamento casual (Onde será que deixei o 
meu relógio?) até uma questão profunda (Quem sou eu?), 
estamos operando dentro de uma estrutura. De fato, somen-
te a hipótese de uma cosmovisão, ainda que seja básica ou 
simples, é que nos permite pensar. 
15 
O u n i v e r s o a o la d o 
O que, então, é essa coisa chamada de cosmovisão, tão im-
portante a todos nós? Se jamais ouvi falar de cosmovisão, como 
posso ter uma? Essa pode muito bem ser a indagação de mui-
tas pessoas. Um exemplo pode ser encontrado em monsieur 
Jourdain, personagem da peça de Jean Baptiste Molière, O 
Burguês Fidalgo, que repentinamente descobriu falar em prosa 
durante quarenta anos, sem jamais tê-la conhecido. No en-
tanto, conhecer a sua própria cosmovisão é algo muito mais 
valioso. Na verdade, é um importante passo rumo à autocons-
ciência, ao autoconhecimento e ao autoentendimento. 
Então, o que é cosmovisão? Em essência, é isto: 
Uma cosmovisão é um comprometimento, uma orientação fun-
damental do coração, que pode ser expressa como uma história 
ou um conjunto de pressuposições (hipóteses que podem ser total 
ou parcialmente verdadeiras ou totalmente falsas), que detemos 
(consciente ou subconscientemente, consistente ou inconsistente-
mente) sobre a constituição básica da realidade e que fornece o 
alicerce sobre o qual vivemos, movemos e possuímos nosso ser. 
Essa definição sucinta precisa ser esmiuçada. Cada frase 
representa uma característica específica que merece um co-
mentário mais elaborado.5 
Cosmovisão como um comprometimento. A essência de 
uma cosmovisão repousa nos mais profundos e íntimos re-
cônditos do eu humano. Uma cosmovisão envolve a mente; 
porém, é, acima de tudo, um compromisso, uma questão de 
alma. É uma orientação espiritual mais que uma questão de 
mente apenas. 
Cosmovisões são, na verdade, uma questão do cora-
ção. Essa noção seria fácil de entender se a palavra coração 
• 16 -
Toda a diferença do mundo 
carregasse, no mundo de hoje, o mesmo peso que ostenta 
nas Escrituras. O conceito bíblico inclui as noções de sa-
bedoria (Pv 2.10), de emoção (Êx 4.14; Jo 14.1), desejo e 
vontade (lCrs 29.18), espiritualidade (At 8.21) e intelecto 
(Rm 1.21).6 Em suma, em termos bíblicos, o coração é "o 
elemento definidor central da pessoa humana".7 Portanto, 
uma cosmovisão está localizada no eu - o compartimento 
central de operação de todo o ser humano. É desse coração 
que procedem todos pensamentos e açÕes. 
Expressa como uma história ou um conjunto de pressuposi-
ções. Uma cosmovisão não é uma história ou um conjunto 
de pressuposições, mas pode ser expressa dessa maneira. 
Quando reflito a respeito de onde eu e toda a raça humana 
viemos ou para onde minha vida ou a própria humanidade 
está indo, minha cosmovisão está sendo expressa como uma 
história. Uma história contada pela ciência principia com o 
Big Bang e prossegue pela evolução do cosmo, a formação 
das galáxias, estrelas e planetas, o surgimento da vida na ter-
ra e sobre o seu desaparecimento à medida que o universo 
se desvanece. Os cristãos contam a história da criação, da 
queda, da redenção, da glorificação - uma história na qual 
o nascimento, a morte e a ressurreição de Jesus Cristo consti-
tuem o fundamento central. Os cristãos enxergam a sua vida 
e a das demais pessoas como minúsculos capítulos inseridos 
na história principal. O significado dessas pequenas histó-
rias não pode ser divorciado da principal, e alguns desses 
significados são proposicionais. Quando, por exemplo, per-
gunto-me o que estou realmente presumindo sobre Deus, 
os seres humanos e o universo, o resultado é um conjunto 
1 7 
O u n i v e r s o ao la d o 
de pressuposições que posso expressar sob forma proposi-
cional. 
Quando expressas dessa forma, elas respondem a uma 
série de questões básicas sobre a natureza da realidade fun-
damental. Listarei e examinarei essas questões rapidamente; 
mas considere primeiro a natureza de tais pressuposições. 
Pressuposições que sejam verdadeiras, conscientes e consisten-
tes. As pressuposições que expressam o comprometimento da 
pessoa podem ser plena ou parcialmente verdadeiras ou to-
talmente falsas. Há, claro, o modo como as coisas são, mas, em 
geral, equivocamo-nos quanto a isso. Em outras palavras, a 
realidade não é infinitamente plástica. Uma cadeira continua 
sendo uma cadeira quer a reconheça como tal ou não. Igual-
mente, ou há um Deus infinitamente pessoal quer não. No 
entanto, as pessoas discordam quanto ao que é verdadeiro. 
Alguns presumem uma coisa, enquanto outros, uma distinta. 
Segundo, algumas vezes nós temos consciência dos nos-
sos comprometimentos, outras não. Suspeito que a maioria 
das pessoas não pensa, de maneira consciente, em seus se-
melhantes como máquinas orgânicas, embora as que não 
acreditam em nenhum tipo de Deus, na verdade, estão assu-
mindo, conscientemente ou não, que é isso o que elas são. 
Ou elas presumem que realmente possuem algum tipo de 
alma imaterial e tratam as pessoas dessa maneira e, portanto, 
simplesmente não possuem consciência de sua cosmovisão. 
Algumas pessoas que não crêem em nada que seja sobre-
natural, se questionam quanto a sua reencarnação. Assim, 
terceiro, algumas vezes, nossas cosmovisões carecem de con-
sistência. 
• 18 • 
Toda a diferença do mundo 
O alicerce sobre o qual vivemos. É importante observar que 
nossa própria cosmovisão pode não ser o que pensamos que 
seja. Via de regra, ela é o que demonstramos por meio de 
nossas palavras e ações. Em geral, nossa cosmovisão repou-
sa tão profundamente entremeada em nosso subconsciente 
que, a não ser que tenhamos refletido longa e arduamente, 
não temos consciência do que ela é. Mesmo quando acha-
mos que sabemos o que seja e a expomos claramente em 
proposições ordenadas e histórias claras, é possível que este-
jamos equivocados. Nossas próprias ações podem desmentir 
nosso autoentendimento. 
Pelo fato deste livro focar os principais sistemas de cos-
movisão sustentados por um grande contingente de pessoas, 
a análise desse elemento privado de cosmovisão não será alvo 
de maiores comentários. No entanto, se desejamos obter um 
esclarecimento mais detalhado sobre a nossa própria cosmo-
visão, devemos refletir e considerar profundamente sobre 
como realmente nos comportamos. 
Sete quest ões básicas 
Se uma cosmovisão pode ser expressa sob a forma de propo-
sições, quais seriam elas? Em essência, são as nossas respostas 
mais íntimas às seguintes perguntas: 
1. O que é a realidade primordial, qual seja, o que é real-
mente verdadeiro? A essa questão, podemos responder 
Deus, os deuses ou o cosmo material. Nossa resposta 
aqui é a mais fundamental de todas.8 Ela estabelece 
• 19 • 
O u n i v e r s o a o la d o 
os limites para as respostas que podem ser, consisten-
temente, dadas para todas as demais questões. Isso se 
tornará mais claro à medida que avançarmos de uma 
cosmovisão a outra nos capítulos que se seguem. 
Qual a natureza da realidade externa, isto é, o mundo 
que nos rodeia?Aqui nossas respostas indicam se enxer-
gamos o mundo como criado ou autónomo, caótico 
ou organizado, como matéria ou espírito ou se enfati-
zamos o nosso relacionamento pessoal subjetivo com o 
mundo ou sua objetividade à parte de nós. 
O que o ser humano é? A essa pergunta podemos res-
ponder: uma máquina altamente complexa, um deus 
adormecido, uma pessoa feita à imagem de Deus, um 
símio nu. 
O que acontece a uma pessoa quando ela morre? Aqui 
podemos replicar: extinção pessoal, ou transformação 
para umestado mais elevado, ou reencarnação, ou pas-
sagem para uma existência sombria do "outro lado". 
Por que é possível conhecer alguma coisa? As respostas 
incluem a ideia de que fomos feitos à imagem de um 
Deus onisciente ou que a consciência e a racionalidade 
se desenvolveram sob as contingências da sobrevivên-
cia ao longo do processo evolutivo. 
Como sabemos o que é certo e errado? Novamente, tal-
vez tenhamos sido criados à imagem de um Deus cujo 
caráter é bom, ou talvez o certo e o errado sejam de-
terminados apenas pela escolha humana ou talvez pelo 
que nos faz sentir bem, ou as noções se desenvolveram 
20 
Toda a diferença do mundo 
simplesmente sob um ímpeto direcionado à sobrevi-
vência cultural ou física. 
7. Qual é o significado da história humana? K essa questão 
podemos responder: para compreender os propósitos 
de Deus ou dos deuses, para fazer da terra um paraíso, 
preparar as pessoas de modo a viverem em comunida-
de com um Deus amoroso e santo e assim por diante. 
Dentre as variadas e distintas cosmovisões básicas, em geral, 
surgem outras questões. Por exemplo: quem está no comando 
deste mundo - Deus, os seres humanos ou ninguém, afinal? 
Como seres humanos, somos limitados ou livres? Apenas nós 
é que determinamos os valores? Deus é realmente bom? Deus 
é pessoal ou impessoal? Afinal de contas, Deus existe? 
Quando colocadas nessa sequência, tais questões dão um 
nó na mente. Das duas uma: ou as respostas são tão óbvias 
para nós que nos perguntamos por que alguém teria o tra-
balho de fazê-las ou nos questionamos sobre como qualquer 
uma delas pode ser respondida com alguma certeza. Se achar-
mos que as respostas são óbvias demais para considerá-las, 
então, possuímos uma cosmovisão, mas não fazemos ideia 
de que muitos não compartilham do mesmo pensamento. 
Deveríamos compreender que vivemos em meio a um mun-
do pluralista. O que nos parece óbvio pode ser uma "mentira 
dos infernos" para o nosso vizinho. Se não reconhecermos 
isso, decerto somos ingénuos e provincianos e temos muito 
ainda por aprender sobre a vida no presente mundo. Por ou-
tro lado, se acharmos que nenhuma das perguntas pode ser 
respondida sem cometer enganos ou suicídio intelectual, na 
realidade, adotamos um tipo de cosmovisão - uma forma de 
ceticismo que, em sua forma extrema, leva ao niilismo. 
2 1 
O u n i v e r s o a o l a d o 
O fato é que não conseguimos evitar assumir algumas 
respostas para tais questões. Ou adotamos um ponto de vista 
ou outro. A recusa em se adotar uma cosmovisão explícita, 
mostrará ser, em si mesma, uma cosmovisão ou, pelo menos, 
uma posição filosófica. Em resumo, estamos em um beco 
sem saída. Assim, enquanto durar nossa vida, nós a vive-
remos refletida ou irrefletidamente. A pressuposição deste 
livro é de que a primeira situação é a melhor. 
Portanto, os capítulos seguintes - cada qual examinando 
uma cosmovisão importante - são designados para esclare-
cer as possibilidades. Deveremos analisar as respostas que 
cada cosmovisão fornece a essas sete questões básicas. Isso 
nos concederá uma abordagem consistente de cada uma, 
auxiliar-nos-á a enxergar as similaridades e diferenças entre 
elas, sugerindo como cada uma delas deve ser avaliada den-
tro de sua própria estrutura de referência, bem como a partir 
do ponto de vista das demais cosmovisões concorrentes. 
A cosmovisão que adotei será detectada logo no princípio 
da exposição do argumento. Porém, para evitar qualquer adi-
vinhação, eu a declararei agora, pois é o assunto do próximo 
capítulo. O livro, contudo, não é uma revelação da minha 
cosmovisão, mas uma exposição crítica das opções existen-
tes. Se no decurso desse exame, os leitores descobrirem, 
modificarem ou tornarem mais explícita sua cosmovisão, o 
principal alvo desta obra terá sido alcançado. Existem mui-
tos universos verbais ou conceituais, alguns há muito tempo, 
enquanto outros acabaram de ser desenvolvidos. Qual é o 
seu universo? Quais são os universos ao lado? 
• 2 2 • 
Capítulo dois 
UM UNIVERSO PERMEADO DA 
GRANDEZA DE DEUS 
Teísmo cr i st ão 
A grandeza de Deus, o mundo inteiro admira, 
Em ouro ou ouropel faísca o seu fulgor; 
Grandiosa em cada grão, qual limo em óleo 
Amortecido. Mas por que não temem a sua ira? 
Gerard Manley Hopkins, God's Grandeur 
[A grandeza de Deus] 
ATÉ O FIM DO SÉCULO X V I I , a cosmovisão teísta era claramente dominante no mundo ocidental. O s de-
bates intelectuais — e havia tantas quantos há hoje — eram, 
notadamente, contendas familiares. O s dominicanos po-
diam discordar dos jesuítas, estes dos anglicanos que, por 
seu turno, discordavam dos presbiterianos, ad infinitum, 
O u n i ver so ao l ad o 
porém todos eles estavam circunscritos ao mesmo conjunto 
de pressuposições. O Deus bíblico, pessoal e trino existia; ele 
se revelara a nós e poderia ser conhecido; o universo era sua 
criação; os seres humanos constituíam sua criação especial. 
Se batalhas eram levadas a efeito, os seus limites eram esta-
belecidos dentro do círculo do teísmo. 
Por exemplo, como nós conhecemos a Deus? Por meio 
da razão, da revelação, da fé, pela contemplação, por procu-
ração, pelo acesso direto? Essa batalha foi travada em muitas 
frentes durante dezenas de séculos e permanece sendo uma 
questão entre os remanescentes no campo teísta. O u con-
sidere u m outro ponto: o componente básico do universo 
é somente matéria, apenas forma ou uma combinação das 
duas. O s teístas também divergem sobre isso. Q u e papel a 
liberdade humana desempenha em u m universo onde Deus 
reina soberano? U m a vez mais, u m debate, por assim dizer, 
familiar. 
Durante o período compreendido entre a Idade Média e o 
fim do século X V I I , poucos desafiavam a existência de Deus, 
ou defendiam que a realidade suprema era impessoal ou que 
a morte significava a extinção individual. A razão é óbvia. O 
cristianismo havia impregnado o mundo ocidental de tal for-
ma que, quer as pessoas acreditassem em Cristo quer agissem 
como deveriam os cristãos, todos viviam sob u m contexto de 
ideias transmitidas e influenciadas pela fé cristã. Mesmo os 
que rejeitavam a fé, em geral, viviam sob o estigma do medo 
do inferno ou das aflições do purgatório. Pessoas más podiam 
rejeitar a bondade cristã, mas elas reconheciam ser más, basi-
camente, com referência aos padrões cristãos — grosseiramente 
• 24 • 
Um universo permeado da grandeza de Deus 
compreendidos, sem dúvida, mas cristãos em essência. As 
pressuposições teístas que jaziam por trás de seus valores, já 
v inham com o leite materno. 
Claramente, isso não é mais verdade. Hoje em dia, nas-
cer na parte ocidental do mundo não garante mais nada. A s 
cosmovisões proliferaram. C a m i n he pelas ruas de qualquer 
cidade importante da Europa ou dos Estados Unidos e a 
próxima pessoa que encontrar pela frente pode aderir a qual-
quer u m dos inúmeros padrões distintamente diferentes de 
compreensão da vida. Quase nada é bizarro para nós, o que 
apenas torna cada vez mais difícil a missão dos apresentado-
res de programas de entrevistas em sua tentativa de alavancar 
a audiência de seus programas com declarações bombásticas 
e chocantes de seus entrevistados. 
Considere o problema de crescer nos dias de hoje. Jane, 
como qualquer criança nascida no final do século X X e co-
meço do século X X I , no mundo ocidental, em geral, percebe 
a realidade definida sob óticas completamente distintas - a 
da sua mãe e de seu pai. Então, a família se rompe, e a corte 
de justiça pode entrar com uma terceira definição da reali-
dade humana. T a l situação coloca u m problema distinto de 
como decidir qual a forma real do mundo. 
E m contrapartida, João, uma criança do século X V I I , foi 
embalada emu m consenso cultural que lhe concedia u m 
sentido de lugar. O mundo ao redor estava realmente lá -
criado por Deus para estar lá. C o m o vice-regente de Deus, 
o jovem João sentia que ele e os outros seres humanos ha-
v i a m recebido o domínio sobre o mundo. Dele requeria-se o 
culto a Deus, mas ele, eminentemente era digno desse 
O u n i ver so ao l ad o 
louvor. D e igual sorte, dele exigia-se obediência a Deus, mas, 
então, obedecer a Deus constituía a verdadeira liberdade, uma 
vez que era para isso que as pessoas foram criadas. Além disso, 
o jugo de Deus era fácil e seu fardo leve. Igualmente, as regras 
divinas eram vistas como primariamente morais, e as pessoas 
eram livres para ser criativas sobre o universo exterior, para 
aprender seus segredos, para moldá-lo e adaptá-lo como mor-
domos de Deus, cultivando o jardim de Deus e oferecendo 
seu trabalho como verdadeiro culto diante de u m Deus que 
honra sua criação com liberdade e dignidade. 
H a v i a u m alicerce tanto para o propósito quanto para a 
moralidade e também para a questão da identidade. O s após-
tolos do absurdo ainda estavam por chegar. Mesmo a obra 
de Shakespeare, Rei Lear (talvez o herói renascentista inglês 
mais "perturbado"), não termina em total desespero. E as suas 
peças subsequentes sugerem que ele mesmo havia superado o 
momento de desespero, encontrando significado no mundo. 
E adequado, pois, iniciarmos o estudo sobre as cosmo-
visões com o teísmo, pois é a visão fundamental, da qual 
derivam todas as demais que foram desenvolvidas entre os 
séculos X V I I e X X . Seria possível retornar ao classicismo 
greco-romano, que precedeu o teísmo, porém mesmo esse, 
quando renasceu na Renascença, era visto quase que unica-
mente dentro da estrutura teísta.1 
O t eísmo cr i st ão básico 
C o m o o princípio de cada capítulo, tentarei expressar 
a essência de cada cosmovisão por meio de u m número 
Um universo permeado da grandeza de Deus 
mínimo de proposições sucintas. C a d a cosmovisão considera 
as seguintes questões básicas: a natureza e o caráter de Deus 
ou suprema realidade, a natureza do universo, a natureza da 
humanidade, a questão quanto ao que ocorre a uma pessoa 
quando ela morre, a base do conhecimento humano, a base 
da ética e o significado da história.2 N o caso do teísmo, a 
proposição primária concerne à natureza de Deus. 
Por essa primeira proposição ser revestida de grande 
importância, deter-me-ei nela por mais tempo que nas de-
mais. 
1 . Deus é infinito e pessoal (trino), transcendente e imanente, 
onisciente, soberano e bom.3 
Separemos as várias afirmações: 
Deus é infinito. Isso significa que ele está além de limites, 
de medidas, no tocante a nós. N e n h u m outro ser no u n i -
verso pode desafiar a Deus em sua natureza. Tudo o mais 
é secundário. Deus não possui semelhante, mas apenas ele 
é o ser-total e o fim-total da existência. D e fato, Deus é o 
único ser autoexistente.4 C o m o ele mesmo falou a Moisés 
na sarça ardente: " E u Sou o que Sou" ( E x 3 .14) . Ele é de 
uma forma como ninguém mais. Ass im como Moisés pro-
clamou: "Ouça, ó Israel: O Senhor, o nosso Deus, é o único 
Senhor" ( D t 6.4) . Deus é a única existência primordial , a 
única realidade suprema e, como abordaremos detidamente 
mais adiante, a única fonte de toda a realidade. 
Deus é pessoal. Essa afirmação significa que Deus não é 
u m a mera força, ou energia ou "substância" existente. Ele é 
pessoal, e personalidade requer duas características básicas: 
• 27 • 
O u n i ver so ao l ad o 
autorreflexão e autodeterminação. E m outras palavras, Deus 
é pessoal no sentido de que ele sabe quem é (Deus é auto-
consciente) e possui as características de autodeterminação, 
ou seja, ele "pensa" e "age". 
U m a implicação da personalidade de Deus é que ele é 
como nós. T a l afirmação, de certo modo, coloca a carroça 
na frente dos bois. O correto é afirmar que somos como ele, 
porém, será conveniente colocar ao contrário, pelo menos, 
para u m breve comentário. Ass im, ele é como nós, o que 
significa que há alguém supremo que existe para alicerçar 
nossas mais elevadas aspirações, a nossa mais preciosa pos-
sessão, qual seja, a personalidade. Porém, há mais sobre isso 
na proposição 3 . 
O u t r a implicação da personalidade de Deus é que ele não 
é uma simples unidade, u m número inteiro, pois Deus pos-
sui atributos, características. S i m , ele é u m a unidade, porém, 
uma unidade de complexidade. 
N a verdade, no teísmo cristão (não no judaísmo ou isla-
mismo) Deus não é somente pessoal, mas trino. Isto é, "dentro 
de uma mesma essência da Divindade, temos de distinguir 
três 'pessoas' que, se por u m lado não são três deuses, por 
outro também não são três divisões ou modos de Deus, mas 
coiguais e coeternos em D e u s " . 5 Certamente, a Trindade 
constitui u m grande mistério e, no momento, não sou capaz 
nem mesmo de começar a elucidá-lo. O mais importante 
aqui é observar que a Trindade confirma a natureza "pessoal" 
e comunitária do supremo ser. Deus não está apenas lá — u m 
ser existente real; ele é pessoal e podemos nos relacionar com 
ele de uma forma pessoal. Logo, conhecer a Deus significa 
• 28 
Um universo permeado da grandeza de Deus 
ir além do simples reconhecimento de que ele existe, ou seja, 
conhecê-lo como conhecemos u m irmão, ou melhor, o nos-
so próprio pai. 
Deus é transcendente. Isso significa que Deus está além de 
nós e nosso mundo. E le é diferente. Veja u m a pedra: Deus 
não é ela, mas é muito além dela. Veja u m homem: Deus 
não é ele, mas é muito além dele. Deus, entretanto, não está 
tão além assim de modo a não permitir qualquer relacio-
namento conosco e nosso mundo. É igualmente verdadeiro 
que Deus é imanente, o que significa que ele está conosco. 
Veja uma pedra: Deus está presente. Veja u m homem: ele 
está presente. Então, temos uma contradição? O teísmo não 
faz sentido nesse ponto? A c h o que não. 
A m i n h a filha, Caro l , me ensinou muito, quando tinha 
apenas cinco anos. A m i n h a esposa e ela conversavam na 
cozinha sobre Deus estar em todo o lugar. Então, Caro l per-
guntou: 
"Deus está na sala?" 
"Sim", respondeu sua mãe. 
"Ele está na cozinha?" 
"Sim", minha esposa confirmou. 
"Estou pisando Deus?" 
M i n h a esposa ficou sem saber o que responder. Mas pres-
te atenção no ponto que foi levantado. Deus está aqui da 
mesma forma que uma pedra, uma cadeira ou uma cozinha? 
É claro que não, pois ele é imanente, aqui, em todo o lugar, 
em u m sentido totalmente alinhado com a sua transcendên-
cia. Deus não é matéria como eu e você somos, mas Espírito. 
E , não obstante, ele está aqui. N o Novo Testamento lemos 
29 • 
O u n i ver so ao l ad o 
que Jesus está "sustentando todas as coisas por sua palavra 
poderosa" ( H b 1.3). Isto é, Deus está além de tudo, ainda 
que em tudo e sustentando tudo. 
Deus é onisciente. O significado dessa afirmação é que 
Deus conhece tudo. E le é o alfa e o ômega e conhece o pr in -
cípio desde o fim (Ap 22 .13) . E le é a fonte suprema de todo 
o conhecimento e de toda a inteligência. É aquele que sabe. 
O autor do salmo 139 expressa com extrema beleza a sua 
perplexidade por Deus estar em todos os lugares, preenchen-
do-o com sua presença - conhecendo-o ainda quando ele 
estava sendo formado no ventre de sua mãe. 
Deus ésoberano. N a verdade, essa é uma ramificação adicio-
nal da infinitude de Deus, porém, expressa mais plenamente 
seu interesse em governar e cuidar de todas as açÕes de seu 
universo. Essa afirmação revela o fato de que nada está além 
do supremo interesse, controle e autoridade de Deus. 
Deus ébom. Essa é a declaração primordial sobre o caráter 
de D e u s . 6 De la derivam todas as outras. Ser bom significa 
ser bom. Deus é bondade, ou seja, o que ele é, é bom. Não 
há nenhum sentido no qual a bondade ultrapasse Deus ou 
vice-versa. D a mesma forma que o ser é a essência de sua 
natureza, a bondade é a essência de seu caráter. 
A bondade de Deus é expressa de duas maneiras: por 
meio da santidade e do amor. A primeira enfatiza a sua ab-
soluta justiça, que não suporta nenhuma sombra do mal . 
C o m o escreveu o apóstolo João: "Deus é luz; nele não há 
treva alguma" ( l j o 1.5). A santidade de Deus é sua sepa-
ração de tudo o que apresenta qualquer vestígio do mal . 
Porém, a bondade de Deus também é expressa em amor. 
. 30 • 
Um universo permeado da grandeza de Deus 
D e fato, João afirma: "Deus é amor" ( l j o 4 .16) , e isso leva 
Deus ao autossacrifício e à plena expressão de seu favor ao 
seu povo, chamado nas Escrituras como "rebanho do seu 
pastoreio" (SI 100.3). 
A bondade divina significa, então, que há u m padrão 
absoluto de justiça (encontrado no caráter de Deus) e, se-
gundo, que há esperança para a humanidade (porque Deus é 
amor e não abandonará a sua criação). A combinação dessas 
afirmações tornar-se-á especialmente significante ao investi-
garmos os resultados de se rejeitar a cosmovisão teísta. 
2. Deus criou o cosmos ex-nihilo para operar com uma 
uniformidade de causa e efeito em um sistema aberto. 
Deus criou o cosmos ex-nihilo. Deus é aquele que é, e, 
portanto, ele é a fonte de tudo o mais. É ainda importante 
compreender que Deus não criou o universo de si mesmo. 
E m vez disso, ele o chamou à existência. O universo veio a 
existir por meio de sua palavra: "Disse Deus: ' H a j a luz', e hou-
ve luz" ( G n 1.3). Assim, os teólogos dizem que Deus "criou" 
( G n 1.1) o cosmo ex-nihilo — do nada, e não de si mesmo ou 
de algum caos pré-existente (pois se fosse "pré-existente" teria 
de ser eterno como Deus) . 
E m segundo lugar, Deus criou o universo como uma uni-
formidade de causa e efeito em um sistema aberto. Essa frase 
é u m resumo útil para duas concepções-chave.7 Primeira, 
significa que o cosmo não foi criado para ser caótico. Isaías 
afirma essa verdade de modo magnífico: 
"Pois assim diz o Senhor, que criou os céus, ele é Deus; que 
moldou a terra e a fez, ele fundou-a; não a criou para estar 
• 31 
O u n i ver so ao l ad o 
vazia, mas a formou para ser habitada; ele diz: ' E u sou o 
Senhor, e não há nenhum outro. Não falei secretamente, 
de algum lugar numa terra de trevas; eu não disse aos des-
cendentes de Jacó: Procurem-me à toa. E u , o Senhor, falo a 
verdade; eu anuncio o que é certo." (Is 45.18,19) 
O universo é ordenado, e Deus não o apresenta a nós 
em confusão, mas em claridade. A natureza do universo de 
Deus e o caráter divino estão, portanto, intimamente rela-
cionados. O mundo é como é em parte porque Deus é como 
é. Mais adiante, veremos como a queda do homem qualifica 
essa observação. N o momento, é suficiente observar que há 
uma regularidade, uma metodologia, no universo. Podemos 
esperar que a terra gire em torno de seu próprio eixo, de 
modo que o sol "se levante" a cada novo amanhecer. 
Todavia, uma outra noção importante encontra-se em-
butida nessa sucinta frase. O sistema é aberto, o que significa 
que ele não é programado. Deus está constantemente envol-
vido no patente padrão da contínua operação do universo. 
E assim também estamos nós, seres humanos! O curso da 
operação do mundo é aberto ao reordenamento tanto por 
Deus quanto pelos seres humanos. Desse modo, o encon-
tramos dramaticamente reordenado por ocasião da queda. 
Adão e E v a fizeram u m a escolha que se revelou de extrema 
importância. Deus, porém, fez uma outra escolha ao redimir 
as pessoas por intermédio de Jesus Cristo. 
A operação do mundo é igualmente reordenada por nos-
sa contínua atividade após a queda. Toda e qualquer ação 
realizada por cada u m de nós, cada decisão em perseguir u m 
curso em detrimento de outro, altera ou, melhor, "produz" o 
32 
Um universo permeado da grandeza de Deus 
futuro. Por meio de despejos de poluentes clandestinos em rios 
cristalinos, impedimos a vida dos peixes e alteramos a maneira 
Como [iodemos nos alimentar nos anos vindouros. A o "des-
poluirmos" nossos rios, novamente alteramos o nosso futuro. 
Sc 0 universo não fosse ordenado, nossas decisões não teriam 
efeito algum. Se o curso dos eventos fosse determinado, nos-
sas decisões não teriam importância alguma. Assim, o teísmo 
declara que o universo é ordenado, porém, não determinado. 
As implicações disso se tornarão mais claras ao considerarmos 
0 I ngai ocupado pela humanidade no cosmos. 
3. Os seres humanos são criados à imagem de Deus e, 
portanto, possuem personalidade, autotranscendência, 
inteligência, moralidade, senso gregário e criatividade. 
A frase-chave aqui é "à imagem de Deus" , uma concep-
ção sublinhada pelo fato de ocorrer três vezes em u m curto 
espaço de dois versículos, no livro de Génesis: 
"Então disse Deus: 'Façamos o homem à nossa imagem, 
lonlorme a nossa semelhança. Domine ele sobre os peixes 
do mar, sobre as aves do céu, sobre os grandes animais de 
toda a terra e sobre os pequenos animais que se movem ren-
te ao chão. Criou Deus o homem à sua imagem, à imagem 
de Deus o criou; homem e mulher os criou." (Gn 1.26,27; 
compare com G n 5.3; 9.6). 
O fato de as pessoas serem feitas à imagem de Deus signi-
fica que somos como Deus. Já observamos anteriormente que 
1 )eus é como nós, porém, as Escrituras, na verdade, afirmam 
isso de outra forma: "Nós somos como Deus", coloca a ênfase 
no devido lugar, qual seja, na primazia de Deus. 
33 • 
O u n i ver so ao l ad o 
Somos seres pessoais porque Deus é pessoal, isto é, reconhe-
cemos a nossa existência (somos autoconscientes) e tomamos 
decisões livremente (possuímos autodeterminação). Somos 
capazes de agir por conta própria. Não apenas reagimos ao 
nosso ambiente, mas podemos agir conforme nosso próprio 
caráter e nossa própria natureza. 
Não existem duas pessoas iguais, dizemos. Isso ocorre 
não apenas porque duas pessoas não compartilharam exa-
tamente a mesma hereditariedade e meio ambiente, mas 
porque cada u m de nós possui u m único caráter, do qual se 
originam nossos pensamentos, desejos, nossa avaliação das 
consequências ou nossa recusa em avaliá-las, o perdão ou a 
recusa em perdoar - em suma, escolhemos agir. 
Nisso cada ser humano reflete, como u m a imagem, a 
transcendência de Deus sobre seu universo. Deus não está 
l imitado, de forma alguma, pelo seu ambiente. E le está l i m i -
tado (podemos dizer) apenas por seu caráter, pois ele, sendo 
bom, não pode mentir, ser enganado, agir com má intenção 
e assim por diante. N o entanto, nada externo a Deus pode 
restringi-lo. Se ele decidir restaurar u m universo arruinado, 
é porque ele "quer" fazer isso, porque, por exemplo, Deus 
ama o universo e deseja sempre o melhor para ele. Mas ele é 
livre para agir conforme a sua vontade que, por sua vez, está 
em consonância com seu caráter {quem ele é) . 
Dessa forma, agimos parcialmente em uma transcendên-
cia sobre nosso meio ambiente. Exceto em condições críticas 
de existência — uma enfermidade ou privação física ( inani-
ção extrema ou ficar aprisionado durante dias sem-fim na 
escuridão total, por exemplo) — uma pessoa não é forçada a 
nenhuma reação necessária. 
34 
Um universo permeado da grandeza de Deus 
Se, por acidente, levo u m pisão no dedinho do pé. Sou 
obrigado a xingar? E u posso. Sou obrigado a perdoar? E u 
posso. Sou obrigado a gritar? E u posso. Sou obrigado a sor-
rir? E u posso. A m i n h a reação refletirá o meu caráter, massou "eu" que decido agir daquela forma, e não apenas reagir 
como uma campainha, quando o botão é acionado. 
E m suma, as pessoas possuem personalidade, sendo ca-
pazes de transcender o cosmo no qual estão, no sentido de 
que podem conhecer algo sobre aquele cosmo onde se en-
contram e agir de maneira significativa de modo a alterar o 
curso tanto dos eventos humanos quanto cósmicos. Essa é 
uma outra forma de dizer que o sistema cósmico criado por 
Deus está aberto à reorganização pelos seres humanos. 
A personalidade é a principal característica no tocante 
aos seres humanos, assim como, acho justo dizer, é a carac-
terística principal sobre Deus, que é infinito tanto na sua 
personalidade como em seu ser. Nossa personalidade está 
fundamentada na personalidade de Deus. Isto é, encontra-
mos nossa verdadeira morada em Deus e por meio de u m 
íntimo relacionamento com ele. " N o coração de todo ho-
mem há u m vazio com o formato de Deus" , escreveu Pascal. 
"Nossos corações não descansam até encontrarem repouso 
em T i " , escreveu Agostinho. 
C o m o Deus satisfaz nosso desejo supremo? Ele o faz de 
diversas maneiras: sendo o encaixe perfeito para a nossa 
própria natureza ao satisfazer nossos anseios por u m rela-
cionamento interpessoal, ao ser, em sua onisciência, o fim 
de nossa busca por conhecimento, ao ser, em seu infinito 
ser, o refúgio para todos os nossos medos, ao ser, em sua 
35 
O u n i ver so ao l ad o 
santidade, o alicerce justo de nossa busca por justiça, ao ser, 
em seu infinito amor, a causa da esperança da nossa salvação, 
ao ser, em sua infinita criatividade, tanto a fonte de nossa 
criativa imaginação quanto a suprema beleza que buscamos 
refletir quando criamos algo. 
Podemos resumir esse conceito da humanidade criada à 
imagem de Deus, afirmando que, como Deus, possuímos 
personalidade, autotranscendência, inteligência (a capacidade 
da razão e do conhecimento), moralidade (a capacidade de 
reconhecer e compreender o bem e o mal) , senso gregário ou 
capacidade social (nossa característica, anseio fundamental e 
necessidade por companheirismo humano, de comunidade, 
em especial representado pelo aspecto "macho" e "fêmea") 
e criatividade (a capacidade de imaginar coisas novas ou de 
conferir u m novo significado a coisas antigas). 
Mais adiante, consideraremos a raiz da inteligência h u -
mana, porém, agora, quero comentar sobre a criatividade 
h u m a n a - u m a característica, em geral, desconsiderada 
no teísmo popular. A criatividade do h o m e m nasce como 
u m reflexo da inf ini ta criatividade do próprio Deus . 
Sir Phi l ip Sidney (1554-1586) , certa feita, escreveu sobre 
o poeta que "foi elevado com o vigor de sua própria i n -
venção que, com efeito, cresceu em u m a outra natureza, 
tornando as coisas ou melhores que a própria natureza 
criada ou totalmente novas, formas tais jamais encontradas 
na natureza, [...] variando livremente dentro do zodíaco 
de sua própria sagacidade". H o n r a r a criatividade humana, 
afirmava Sidney, é honrar a Deus , pois ele é "o Cr iador 
celestial daquele cr iador" . 8 
• 36 • 
Um universo permeado da grandeza de Deus 
A atividade artística dentro da cosmovisão teísta tem uma 
sólida base para a sua expressão. Nada é mais libertador para 
os artistas do que compreender que, pelo fato de setem cria-
dos à semelhança de Deus, eles podem realmente inventar. 
A inventividade artística é u m reflexo da i l imitada capacida-
de divina de criar. 
N o teísmo cristão, os seres humanos são, de fato, dignifi-
cados. Nas palavras do salmista, eles são " u m pouco menor do 
que os seres celestiais", pois o próprio Deus os criou daquela 
forma e os coroou "de glória e de honra" (SI 8.5) . A digni-
dade humana, em certo sentido, não é nossa; contrariando 
Protágoras, a humanidade não é a medida. A dignidade do 
homem deriva de Deus, porém, embora derivada, as pesso-
as a possuem, mesmo se como u m dom. H e l m u t Thie l i cke 
afirma com propriedade: "Sua [da humanidade] grandeza 
repousa apenas e tão somente no fato de que Deus, em sua 
incompreensível bondade, concedeu seu amor ao homem. 
Deus não nos ama porque somos valiosos; somos valiosos 
porque Deus nos ama" . 9 
Portanto, a dignidade humana tem dois lados. C o m o seres 
humanos, somos dignificados, mas não devemos nos orgu-
lhar disso, pois a nossa dignidade é gerada como u m reflexo 
da dignidade suprema. Mas ela ainda / u m reflexo. Assim, 
as pessoas que são teístas, veem a si mesmas como uma es-
pécie de ponto central - acima do restante da criação (por 
Deus lhes ter concedido o domínio sobre ela - Gn 1.28-30; 
SI 8.6-8) e abaixo de Deus (por não serem pessoas autónomas, 
por conta própria). 
• 37 • 
O u n i ver so ao l ad o 
Esse é, então, o equilíbrio ideal da condição humana. 
O s nossos problemas surgiram em função de nossa falha 
em permanecer nessa condição de equilíbrio, e a história de 
como tudo aconteceu constitui, em grande parte, o teísmo 
cristão. Porém, antes de considerarmos o que alterou o estado 
de equilíbrio da humanidade, precisamos compreender uma 
implicação adicional de sermos criados à imagem de Deus. 
4. Os seres humanos podem conhecer tanto o mundo que os 
cerca quanto o próprio Deus, porque ele colocou neles essa 
capacidade e porque ele desempenha um papel ativo na 
comunicação com eles. 
A base do conhecimento humano é o caráter de Deus 
como Criador. Somos criados à sua imagem ( G n 1.27). Por 
ele ser o onisciente conhecedor de todas as coisas, algumas 
vezes, podemos ser hábeis especialistas em algumas coisas. 
O evangelho de João expressa esse conceito desta forma: 
"No princípio era aquele que é a Palavra. Ele estava com 
Deus, e era Deus. Ele estava com Deus no princípio. Todas 
as coisas foram feitas por intermédio dele; sem ele, nada do 
que existe teria sido feito. Nele estava a vida, e esta era a luz 
dos homens" (Jo 1.1-4). 
A Palavra (em grego, logos, da qual se origina a pala-
vra lógica, em português) é eterna, u m aspecto do próprio 
D e u s . 1 0 E m suma, a lógica, a inteligência, a racionalidade 
e o significado são todos inerentes em Deus . Dessa intel i-
gência é que o mundo, o universo veio a existir e, pottanto, 
em virtude dessa fonte é que o universo possui estrutura, 
ordem e significado. 
38 
Um universo permeado da grandeza de Deus 
Além disso, na Palavra — essa inteligência inerente — está 
a " luz dos homens", luz essa que no livro de João é u m sím-
bolo tanto de capacidade moral quanto de inteligência. O 
versículo 9 acrescenta que a Palavra é "a verdadeira luz, que 
i lumina todos os homens". A própria inteligência de Deus é, 
portanto, a base da inteligência humana. O conhecimento é 
possível porque há algo a ser conhecido (Deus e sua criação) 
e alguém para conhecer (o Deus onisciente e os seres huma-
nos, criados à sua imagem). 1 1 
É óbvio que Deus está tão além de nós que não podemos 
ter u m a total compreensão dele. N a verdade, se Deus assim 
desejasse, poderia permanecer para sempre escondido, mas 
ele quer que o conheçamos e toma iniciativa nessa transfe-
rência de conhecimento. 
E m termos teológicos, essa iniciativa divina é chamada 
de revelação. Deus se revela ou expõe a si mesmo a nós de 
duas maneiras básicas: por meio da revelação geral e por 
uma revelação especial. N a primeira forma, Deus fala atra-
vés da ordem criada do universo. O apóstolo Paulo escreveu: 
"Pois o que de Deus se pode conhecer é manifesto entre eles, 
porque Deus lhes manifestou. Pois desde a criação do m u n -
do os atributos invisíveis de Deus, seu eterno poder e sua 
natureza divina, têm sido vistos claramente, sendo compre-endidos por meio das coisas criadas" ( R m L I 9 , 2 0 ) . Séculos 
antes, o salmista escreveu: 
"Os céus declaram a glória de Deus; o firmamento pro-
clama a obra das suas mãos. U m dia fala disso a outro dia; 
uma noite o revela a outra noite" (SI 19.1,2). 
O u n i ver so ao l ad o 
E m outras palavras, a existência de Deus, bem como sua 
natureza como Criador e poderoso mantenedor do universo, 
são reveladas por meio "das obras de Suas mãos", qual seja, o 
universo. A o contemplarmos a sua magnitude - sua ordem 
e beleza - muito podemos aprender sobre Deus . Quando 
mudamos a nossa visão do imenso universo para focar a 
humanidade, vemos algo mais, pois os seres humanos acres-
centam a dimensão de personalidade. Deus, portanto, deve 
ser, pelo menos, tão pessoal quanto nós. 
Ass im, por mais que a revelação geral nos forneça da-
dos sobre Deus , ainda é pouco. C o m o afirmou Tomás de 
Aquino , nós podemos saber que Deus existe por meio da 
revelação geral, mas jamais saberíamos que ele é trino exceto 
por uma revelação especial. 
A revelação especial é Deus se manifestando de formas 
sobrenaturais. Ele não só se revelou ao aparecer de formas 
espetaculares como a sarça ardente que não era consumida, 
como também falou às pessoas em suas próprias línguas. 
A Moisés ele se definiu como " E u sou o que Sou", identifican-
do-se como o mesmo Deus que havia agido anteriormente 
em favor do povo hebreu. C h a m o u a si mesmo de o Deus de 
Abraão, Isaque e Jacó (Êx 3.1-17). D e fato, Deus manteve 
u m diálogo com Moisés no qual uma genuína conversação de 
mão dupla se estabeleceu. Esse foi u m dos episódios em que a 
revelação especial ocorreu. 
Mais tarde, Deus deu a Moisés as tábuas contendo os D e z 
Mandamentos e revelou u m extenso código de leis às quais 
os hebreus deveriam se submeter. Mais adiante ainda, Deus 
se revelou aos profetas em inúmeras situações diferentes. 
• 40 • 
Um universo permeado da grandeza de Deus 
Sua palavra chegou a eles que, por seu turno, as registraram 
para a posteridade. O escritor neotestamentário da carta 
aos Hebreus assim resumiu: " H á muito tempo Deus falou 
muitas vezes e de várias maneiras aos nossos antepassados 
por meio dos profetas" ( H b 1.1). E m todo caso, as revelações 
feitas a Moisés, D a v i e os diversos profetas foram, pela ordem 
de Deus , escritas e mantidas para ser lidas e relidas ao povo 
( D t 6.4-8, SI 119) . O s crescentes textos se transformaram 
no Ant igo Testamento, que foi confirmado pelo próprio 
Jesus como u m a revelação precisa e autorizada de D e u s . 1 2 
O escritor da carta aos Hebreus não terminou com o re-
sumo sobre a revelação divina no passado, mas prosseguiu, 
afirmando: "Mas nestes últimos dias falou-nos por meio do 
Fi lho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas e por 
meio de quem fez o universo. O Fi lho é o resplendor da 
glória de Deus e a expressão exata do seu ser" ( H b 1.2,3). 
Jesus Cristo é a revelação especial suprema de Deus porque 
é verdadeiramente Deus e nos mostrou como Deus é mais 
plenamente que qualquer outra forma de revelação poderia 
revelar. Pelo fato de Jesus também ser totalmente humano, 
falou-nos mais claramente do que qualquer outro tipo de 
revelação falaria. 
U m a vez mais, a abertura do evangelho de João é de ex-
trema relevância: "Aquele que é a Palavra tornou-se carne e 
viveu entre nós [...] cheio de graça e de verdade" (Jo 1.14). 
Isto é, a Palavra é Jesus Cristo . " V i m o s a sua glória, gló-
ria como do Unigénito vindo do Pai" . Jesus tornou Deus 
conhecido entre nós em termos realmente carnais. 
O ponto mais importante para nós é que o teísmo declara 
que Deus pode e tem claramente se comunicado conosco. 
41 
O u n i ver so ao l ad o 
Por causa disso, podemos conhecer muito sobre quem Deus 
é e o que deseja para nós. Isso é verdadeiro para pessoas de 
todas as épocas e lugares, porém, era especialmente verda-
deiro antes da queda, para a qual voltamos nossa atenção 
agora. 
5. Os seres humanos foram criados bons, porém, devido à 
queda a imagem de Deus tornou-se desfigurada, embora 
não tão destruída de modo a não ser mais passível de 
restauração; através da obra de Cristo, Deus redimiu a 
humanidade e começou o processo de restauraras pessoas 
à bondade, muito embora qualquer pessoa possa escolher 
rejeitar essa redenção. 
A "história" humana pode ser sumarizada em quatro 
palavras - criação, queda, redenção e glorificação. Nós já 
abordamos as características humanas essenciais. A elas de-
vemos acrescentar que os seres humanos e todo o restante 
da criação foram originalmente criados bons. C o m o o l i -
vro de Génesis registra: " E Deus v i u tudo o que havia feito, 
e tudo havia ficado muito bom" (1 .31) . Porque Deus, por 
seu caráter, estabeleceu os padrões de justiça, a bondade 
humana consistia em ser o que Deus desejava que as pesso-
as fossem - seres criados à sua imagem e agindo conforme 
aquela natureza em sua vida diária. A tragédia é que nós não 
permanecemos como fomos criados. 
C o m o vimos, os seres humanos foram criados com a 
capacidade da autodeterminação. Deus deu ao homem 
a liberdade de permanecer ou não em u m relacionamen-
to íntimo da imagem com o original. C o m o o capítulo 3 
42 
Um universo permeado da grandeza de Deus 
de Génesis registra, o casal original, Adão e E v a , escolheu 
desobedecer a ordem de seu Criador no único ponto em que 
ele lhes impôs restrições. Esta é a essência da histótia sobre a 
queda. Adão e E v a escolheram comer do fruto que Deus lhes 
havia proibido comer e, assim, violaram o relacionamento 
pessoal que eles t inham com o Criador. 
Dessa forma, pessoas de todas as eras têm buscado em vão 
estabelecer a si mesmos como seres autónomos, árbitros de 
suas próprias vidas. Elas têm escolhido agir como se tivessem 
uma vida independente de Deus. Porém, isso é exatamente 
o que elas não têm, pois devem tudo - tanto sua origem 
quanto a continuidade de sua existência — a Deus . 
O resultado desse ato de rebelião foi a morte para Adão e 
Eva , o que gerou para as gerações subsequentes longos séculos 
de desordem pessoal, social e natural. Resumindo, podemos 
dizer que a imagem de Deus na humanidade tornou-se des-
figurada em muitos aspectos. N o tocante à personalidade, 
perdemos a nossa capacidade de nos autoconhecermos com 
precisão e de estabelecer livremente o nosso próprio curso de 
ação em resposta à nossa inteligência. 
Nossa autotranscendência foi prejudicada pela alienação 
ae Deus, pois quando Adão e E v a deram as costas para Deus, 
éle os deixou ir. E , como nós, humanidade, esquivamo-nos de 
um relacionamento íntimo com aquele cuja transcendência 
c suprema, igualmente perdemos a nossa capacidade de nos 
posicionarmos diante do universo exterior, compreendê-lo, 
julgá-lo com precisão e, assim, tomar decisões verdadeira-
mente "livres". Pelo contrário, a humanidade tornou-se mais 
um servo da natureza do que de Deus. E nossa condição de 
• 43 
O u n i ver so ao l ad o 
vice-regentes de Deus sobre a natureza ( u m aspecto da ima-
gem de Deus) foi revertida. 
D e igual sorte, a inteligência humana foi debilitada. 
Agora não podemos mais obter u m conhecimento pleno e 
preciso do mundo que nos rodeia, tampouco somos capazes 
de raciocinar sem constantemente cair no erro. Moralmente, 
tornamo-nos menos capazes de discernir com clareza entte 
o bem e o mal . Socialmente, começamos a explorar as outras 
pessoas. Criativamente, nossa imaginação passou a ser alie-
nada da realidade, tornou-se ilusão, e os artistas que criaram 
deuses à sua própria imagem conduziram a humanidade cada 
vez para mais distante da sua origem. O vazio existencial em 
cadaalma humana, resultante dessa série de consequências 
é, de fato, nefasto. ( A mais completa expressão dessas ideias 
pode ser encontrada nos dois primeiros capítulos do livro de 
Romanos) . 
O s teólogos têm resumido desta forma: nós nos tornamos 
alienados de Deus, dos outros, da natureza e de nós mesmos. 
Essa é a essência da humanidade decaída.10 
A humanidade, porém, é passível de remissão e, na verdade, 
tem sido redimida. A história da criação e da queda é relatada 
em apenas três capítulos de Génesis, sendo que a história da 
redenção ocupa todo o restante das Escrituras. A Bíblia regis-
tra o amor de Deus nos buscando, encontrando-nos em nossa 
perdida e alienada condição e nos redimindo por intermédio 
do sacrifício de seu próprio Filho, Jesus Cristo, a segunda 
pessoa da Trindade. Deus, em u m ato de imerecido favor e 
grande graça, assegura-nos a possibilidade de uma nova vida, 
• 44 • 
Um universo permeado da grandeza de Deus 
que envolve cura substancial de nossas alienações e restauração 
de nossa comunhão com Deus. 
O fato de Deus haver criado uma saída para nós não 
significa em absoluto significa que não precisamos desem-
penhar papel algum. Adão e E v a não foram forçados a 
desobedecer, assim, também não somos obrigados a retor-
nar. E m b o r a o propósito dessa descrição de teísmo não seja 
o de tomar partido em uma famosa contenda familiar den-
tro do teísmo cristão (predestinação versus livre arbítrio), é 
necessário observar que os cristãos discordam em relação ao 
papel desempenhado por Deus e o papel que ele deixa para 
nós desempenharmos. A i n d a assim, a maioria concorda que 
Deus, na salvação do homem, é o agente primário. Nosso 
papel é responder por meio do arrependimento de nossas 
atitudes e ações erradas, da aceitação quanto às provisões 
divinas e de seguir a Cristo como nosso Senhor e Salvador. 
Humanidade redimida é a humanidade no processo de 
restauração da imagem desfigurada de Deus. E m outras pa-
lavras, é uma substancial cura em todas as áreas de nosso 
ser - personalidade, autotranscendência, inteligência, mora-
lidade, capacidade social e criatividade. E m contrapartida, a 
humanidade glorificada é a humanidade plenamente restau-
rada e em paz com Deus e indivíduos em paz com os seus 
semelhantes e consigo mesmo. Porém, isso apenas ocorre no 
outro lado da morte e na ressurreição corpórea, cuja impor-
tância é enfatizada por Paulo em I C o 15. Individualmente 
falando, as pessoas são tão importantes que elas retêm singu-
laridade — uma existência individual e pessoal - para todo o 
45 
O u n i ver so ao l ad o 
sempre. A humanidade glorificada é a humanidade transfor-
mada em uma personalidade purificada em comunhão com 
Deus e seu povo. E m suma, no teísmo, os seres humanos 
são vistos como significativos porque são, em essência, seme-
lhantes a Deus e, embora decaídos, podem ser restaurados à 
sua dignidade original. 
6. Para cada ser humano a morte representa tanto o portão 
para a vida com Deus e seu povo quanto o portão para a 
separação eterna da única coisa que pode satisfazer as 
aspirações humanas definitivamente. 
O significado da morte é, na verdade, parte da proposi-
ção anterior, porém, é destacado aqui porque atitudes no 
tocante à morte são extremamente importantes em cada 
cosmovisão. O que acontece quando u m a pessoa morre? 
Vamos expressar isso pessoalmente, pois esse aspecto na 
cosmovisão de cada u m é, de fato, predominantemente 
pessoal. Desaparecemos - extinção pessoal? Nós hiberna-
mos e retornamos em u m a forma diferente - reencarnação? 
E u continuo em uma existência transformada no céu ou no 
inferno? 
Claramente, o teísmo cristão ensina a última dessas ques-
tões. N a morte, as pessoas são transformadas. O u elas entram 
em uma existência com Deus e seu povo - uma existência 
glorificada - ou entram em uma existência de sepatação 
eterna de Deus, mantendo a sua singularidade em terrível 
solidão e isolados exatamente do que as preencheria. 
Essa é a essência do inferno. G . K . Chesterton, certa 
vez, observou que o inferno é u m monumento à libetdade 
46 
Um universo permeado da grandeza de Deus 
humana — e, podemos acrescentar, à dignidade humana. O 
inferno é u m tributo de Deus para a liberdade que ele nos 
concedeu de escolhermos a quem servir; é u m reconhecimen-
to de que as nossas decisões trazem em si u m significado que 
se estende muito além, atingindo a eternidade.1 4 
Entretanto, os que respondem à oferta de salvação d i -
vina, habitam as planícies da eternidade como criatutas 
gloriosas de Deus, completas, satisfeitas, mas não saciadas 
e participantes da alegria eterna da comunhão dos santos. 
As Escrituras nos fornecem poucos detalhes sobre essa exis-
tência, mas os vislumbres do céu presentes, por exemplo, no 
livro de Apocalipse, capítulos 4, 5 e 2 1 , cr iam u m anseio 
que os cristãos esperam que seja satisfeito além de suas mais 
arraigadas expectativas. 
7. A ética é transcendente e alicerçada no caráter de Deus 
como bom (santo e amoroso). 
Essa proposição já tem sido considerada como uma impli -
cação da proposição 1 . Deus é a fonte do mundo moral, bem 
como do mundo físico. Deus é o bem e expressa essa verdade 
nas leis e princípios morais que revela nas Escrituras. 
Criados à imagem de Deus, somos, em essência, seres mo-
rais e, portanto, não podemos nos recusar a usar categorias 
morais para sustentar as nossas açÕes. Evidentemente, nossa 
noção de moralidade tem sido corrompida como resultado 
da queda e agora emitimos apenas pálidos reflexos do ver-
dadeiro bem. Não obstante, mesmo em nossa relatividade 
moral, não podemos fugir da noção de que algumas coisas 
são "corretas" ou naturais" e outras não. 
• 47 • 
O u n i ver so ao l ad o 
Por anos, a homossexualidade foi considerada imoral para 
a maioria da sociedade. Hoje em dia, u m número cada vez 
maior de pessoas desafia essa posição. Porém, elas assim agem 
não com base na inexistência de qualquer categoria moral, 
mas que essa área específica da homossexualidade deveria 
realmente estar no outro lado da l inha que divide o moral do 
imoral . E m geral, os homossexuais não perdoam o incesto! 
Ass im, o fato de as pessoas diferirem em seus julgamentos 
morais em nada altera a verdade de que continuamos a fazer 
julgamentos morais, a viver por meio deles e a violá-los. O 
universo em que todos nós vivemos é moral, e todos — se 
refletirem nisso - não terão outra alternativa senão reconhe-
cer essa verdade. 
O teísmo, no entanto, ensina que não somente há u m 
universo moral, como também há u m padrão absoluto pelo 
qual todos os julgamentos morais são feitos. O próprio Deus 
- seu caráter de bondade (santidade e amor) - é esse padrão. 
Além disso, os cristãos e judeus defendem que Deus tem 
revelado o seu padrão em várias leis e princípios expressos no 
texto bíblico. O s Dez Mandamentos, o sermão do monte, o 
ensino ético do apóstolo Paulo - por meio dessas e muitas 
outtas maneiras, Deus tem revelado o seu caráter. Há, por-
tanto, u m padrão de certo e etrado, e todos os que desejam 
conhecê-lo o conseguem. 
A mais completa personificação do bem, entretanto, é 
Jesus Cristo. E le é a humanidade, o homem completo, como 
Deus planejou que fosse. Paulo chama a Jesus de o segundo 
Adão ( I C o 15.45-49). E , em Jesus vemos a genuína vida 
4 8 
Um universo permeado da grandeza de Deus 
encarnada, que foi supremamente revelada em sua mor-
te - u m ato de infinito amor, pois, como escreveu Paulo: 
"Dif ic i lmente haverá alguém que morra por u m justo. [...] 
Mas Deus demonstra seu amor por nós: Cristo morreu em 
nossofavor quando ainda éramos pecadores" ( R m 5.7,8). 
E o apóstolo João ecoou: "Nisto consiste o amor; não em 
que nós tenhamos amado a Deus, mas em que ele nos amou 
e enviou seu Fi lho como propiciação pelos nossos pecados" 
( I J o 4 .10) . 
Desse modo, a ética, embora u m domínio em grande 
parte humano é, no fim das contas, u m assunto de Deus. 
Não somos a medida de moralidade; Deus é. 
8. A história é linear, uma sequência de eventos significativos, 
que levam ao cumprimento dos propósitos de Deus para a 
humanidade. 
Afi rmar que "a história é linear" significa que as ações das 
pessoas - por mais confusas e caóticas que pareçam - são 
parte de uma sequência importante que possui u m começo, 
meio e fim. A história não é reversível, reproduzível, cíclica, 
tampouco ela é sem significado. Pelo contrário, a história é 
teleológica, dotada de direção, rumando para u m fim co-
nhecido. O Deus que conhece o fim desde o começo está 
consciente e no controle das ações da humanidade. 
Inúmeros momentos de transformação no curso da his-
tória recebem uma especial atenção por parte dos escritores 
bíblicos, e eles formam o pano de fundo para a compreensão 
teísta dos seres humanos no tempo. Esses momentos históri-
cos críticos incluem a criação, a queda no pecado, a revelação 
• 49 • 
O u n i ver so ao l ad o 
de Deus aos hebreus (o que abrange o chamado de Abrão, 
da terra de U r para Canaã, o êxodo do Egito, a concessão 
da lei, o testemunho dos profetas), a encarnação, a vida de 
Jesus, a crucificação e ressurreição, o evento de Pentecostes, 
a propagação das boas novas, a segunda vinda de Cristo e o 
julgamento final. Essa é uma lista mais detalhada dos eventos 
paralelos ao padrão da vida humana: criação, queda, redenção 
e glorificação. 
Vis ta sob essa ótica, a história em si mesma é uma forma 
de revelação, ou seja, não apenas Deus revelou a si mesmo na 
história {aqui, lá e depois), mas a própria sequência de even-
tos é revelação. Pode-se dizer, portanto, que a história (em 
especial quando concentrada no povo judeu) é o registro do 
envolvimento e preocupação de Deus nos eventos humanos. 
A história é o propósito divino de Deus na forma concreta. 
O padrão, é claro, depende da tradição cristã. A princípio, 
ela não parece levar em conta outtas pessoas, além de judeus 
e cristãos. Não obstante, o Antigo Testamento tem muito a 
dizer sobre as nações ao redor de Israel e sobre os consagra-
dos a Deus (não judeus que adotaram as crenças judaicas, 
sendo considerados como parte da promessa de Deus) . T a l 
dimensão internacional dos propósitos de Deus e de seu rei-
no é ainda mais enfatizada pelo Novo Testamento. 
A revelação do plano de Deus ocorreu, primeiramente, 
por meio de u m povo, os judeus. E , embora possamos repe-
tir as palavras de W i l l i a m Ewer : "Quão estranho / D a parte 
de Deus / Escolher / O s judeus", não precisamos pensar que 
essa escolha indique u m favoritismo da parte de Deus. Pedro, 
• 50 • 
Um universo permeado da grandeza de Deus 
certa feita, af irmou: "Agora percebo verdadeiramente que 
Deus não trata as pessoas com parcialidade, mas de todas 
as nações aceita todo aquele que o teme e faz o que é justo" 
(At 10.34,35) . 
O teísmo olha à frente, portanto, para a história sendo 
encerrada pelo julgamento e por uma nova era a ser inaugu-
rada além do tempo. Porém, antes dessa nova era, o tempo é 
irreversível e a história é localizada no espaço. Essa concepção 
necessita ser enfatizada, u m a vez que difere dramaticamen-
te da típica noção oriental. Para grande parte do Oriente, 
o tempo é uma ilusão; a história é eternamente cíclica. A 
reencarnação traz a alma de volta ao tempo repetidas vezes; 
o progresso na jornada da alma é u m processo longo, árduo 
e, talvez, eterno. N o entanto, no teísmo cristão, "o homem 
está destinado a morrer uma só vez e depois disso enfrentar o 
juízo" ( H b 9.27) . A s escolhas individuais fazem sentido para 
a pessoa que as faz, para os outros e para Deus . A história é o 
resultado de tais escolhas que, debaixo da soberania divina, 
leva aos propósitos de Deus para este mundo. 
E m resumo, o aspecto mais importante do conceito teísta 
sobre a história é que ela tem significado porque Deus - o L o -
gos, o próprio significado - está por trás de todos os eventos, 
não apenas "sustentando todas as coisas por sua palavra pode-
rosa" ( H b 1.3), mas, igualmente, agindo, "em todas as coisas 
para o bem daqueles que o amam, dos que foram chamados 
de acordo com o seu propósito" ( R m 8.28). Por detrás do 
aparente caos de eventos está o Deus amoroso que é suficiente 
para tudo. 
• 51 • 
O u n i ver so ao l ad o 
A g randeza de Deus 
Por ora, já deveria ser óbvio que o teísmo cristão é, pr ima-
riamente, dependente de seu conceito sobre Deus, pois o 
teísmo sustenta que todas as coisas provêm dele. Nada é an-
terior a Deus ou igual a ele. E le é aquele que é. Portanto, 
o teísmo possui uma base para a metafísica. U m a vez que 
aquele que é possui u m caráter digno, sendo, assim aquele 
que é digno, o teísmo possui uma base para a ética. U m a 
vez que aquele que é também é aquele que conhece, o teísmo 
possui uma base para a epistemologia. E m outras palavras, o 
teísmo é uma cosmovisão completa. 
A s s i m a grandeza de Deus é o princípio central do 
teísmo cristão. Q u a n d o uma pessoa reconhece isso e, cons-
cientemente, aceita e age em conformidade com isso, tal 
conceito central passa a ser a rocha, o ponto de referência 
transcendente, que dá significado à v ida , tornando as ale-
grias e tristezas da existência cotidiana no planeta Terra em 
momentos significativos no desenrolar do drama no qual 
se espera participar para sempre não apenas com decepções 
e tristezas, mas, algum dia, somente c o m júbilo. Mesmo 
agora, no entanto, o mundo está, como escreveu Gerard 
Manley H o p k i n s , "permeado com a grandeza de D e u s " . 1 5 
O fato de haver "vislumbres de Deus em muitas formas 
do dia a dia" sinaliza que Deus não está apenas nos céus, 
mas conosco, sustentando-nos, amando-nos e cuidando 
de n ó s . 1 6 N o entanto, teístas cristãos extremamente com-
petentes não apenas crêem, mas proclamam essa verdade 
como verdadeira. O primeiro ato deles é direcionado a 
• 52 • 
Um universo permeado da grandeza de Deus 
Deus - uma resposta de amor, obediência e louvor ao Se-
nhor do universo, o Criador , Sustentador e, por meio de 
Jesus Cr i s to , o Redentor e amigo. 
53 
Capítulo t rês 
A PRECISÃO DO UNIVERSO 
Deísmo 
Deu s nas altu ras ou o h om em abaixo na terra, 
O qu e p od em os con clu ir além d aqu ilo qu e sabemos? 
O qu e vem os d o h om em além d a su a existência terrena 
D a qu al p erscru ta ou se questiona? 
Através d a vastidão de m u n d os, em bora Deu s seja con h ecid o, 
Está em nós a in icia t iv a p or d escobrí-lo. 
Alexander Pope, Essay on Man [Ensaio sobre o homem] 
SE O TEÍSMO SO BREVIVEU PO R TANTO TEMP O , O qu e p od er ia ter acon tecid o d e m o d o a d ebilitá -lo? Se ele r esp on d ia 
sa t isfa tor iam en te a tod as as nossas qu estões básicas, p r o -
v id en cia v a u m refú gio p a r a os nossos tem ores e esp eran ça 
q u a n to ao nosso fu t u r o , p o r qu e su r g ir a m ou tras a lt e r n a t i-
vas? Resp ostas a essas p ergu n tas p o d em ser d ad as em vários 
O u n i v e r s o a o la d o 
n íveis. A verd ad e é q u e m u it a s forças co n sp ir a r a m p a r a r a -
ch a r a u n id a d e in t e lectu a l d o O cid en t e . 
O d eísm o d esen volveu -se, a lgu n s d iz e m , co m o u m a 
t en ta t iv a d e r estau rar a u n id a d e d e u m caos d e d iscu ssão 
teo lóg ica e filosóficaqu e, n o sécu lo X V I I , v iu -se a tolad o e m 
d ebates in term in áveis sobre o qu e co m e ço u a se d elin ear , 
m esm o p a r a os con ten d or es , com o qu estões t r iv ia is . Ta lv ez 
Jo h n M i l t o n tivesse tais qu estões e m m en te q u a n d o v is u a -
l iz o u os an jos ca íd os d isp u t a n d o u m jogo ép ico d e teolog ia 
filosófica: 
Algu ns se isolaram em descanso n u m a colin a 
E m pensamentos e razão su blim es 
D e Provid ência, Presciência, Vontad e e Dest in o, 
Pred estinação, Livre-arbítrio, Presciência absolu ta, 
E n en h u m fim encon traram , em confusões errantes se per-
d eram . 1 
Ap ós d écad as d e exten u an tes d iscu ssões, eclesiást icos 
lu t er a n os , p u r it a n os e an g lican os p o d e r ia m m u i t o b em ter 
o lh a d o n ov a m en te p a r a os p on tos d e con co r d â n cia . D e cer -
t a fo r m a , o d eísm o é a resp osta p a r a isso, ap esar d e o r u m o 
qu e ta l con cor d â n cia t o m o u t en h a levad o o d eísm o a lém d os 
l im it es d o cr is t ia n ism o t r a d icio n a l . 
O u t r o fa tor n o d esen v o lv im en t o d o d eísm o fo i u m a m u -
d a n ça n a loca lização d a au tor id ad e p elo co n h ecim en t o sobre 
o d iv in o , qu e p assou d a revelação esp ecia l en con t r a d a n a 
Es cr i t u r a p a r a a p resen ça d a razão, "a lu z d e D e u s ", n a m en te 
h u m a n a o u p a r a a in tu içã o , "a lu z in t e r io r ". Po r qu e oco r r eu 
ta l m u d a n ça d e au tor id ad e? 
• 56 • 
A precisão do universo 
U m a d as razões é esp ecia lm en te ir ón ica , p o is está r e lacio-
n ad a a u m a im p licaçã o d o te ísm o qu e, q u a n d o d escober ta , 
foi ext r em a m en t e b em -su ced id a e m seu d esen v o lv im en t o . 
I )u r a n t e a Id a d e M éd ia , e m p ar te graças à t eor ia p la tón ica 
d e co n h ecim en t o qu e estava e m v og a , a a t en çã o d os er u d itos 
íeis tas e in telectu a is fo i d ir ecion a d a a D e u s . A id e ia era d e 
qu e os con h eced ores e m a lg u m sen t id o tornavam-se o q u e 
eles co n h e cia m . E , d esd e q u e o in d iv íd u o d ev er ia se torn a r , 
d e a lg u m m o d o , b o m e san to , ele d ev er ia estu d ar a D e u s . 
A teolog ia fo i , p o r t a n to , con sid er a d a a r a in h a d as ciências 
(o qu e n a q u ela ép oca s ig n ifica v a s im p lesm en te co n h e cim e n -
to ), p ois a teologia era a ciên cia d e D e u s . 
Se as pessoas es tu d a v a m a n im a is o u p lan ta s o u m in er a is 
(zoolog ia , b io log ia , q u ím ica e física ), en tã o es tav am r eba i-
xa n d o a si m esm as. Es s a visão h ier á rqu ica d a r ea lid ad e é, n a 
verd ad e, m a is p la tón ica q u e teísta o u cr istã , p o r q u e em p res-
ta d e Pla tão a n oçã o d e qu e a m atér ia é, d e a lg u m m o d o , se 
n ão m a l ig n a , p elo m en os i r r a cio n a l e cer tam en te n ão boa . 
A m a tér ia é algo p a r a ser t r a n scen d id a , n ão co m p r een d id a . 
Q u a n d o , t od a v ia , m en tes m a is b ib lica m en te or ien tad as 
co m eça r a m a r econ h ecer q u e se t r a ta d o m u n d o d e D e u s 
e qu e, em b o r a seja u m m u n d o d eca íd o, ele fo i cr iad o p or 
D eu s e p ossu i va lor . Lo g o , v a le a p en a obter com p r een são e 
co n h ecim en t o sobre ele. A lém d isso , D e u s é u m D e u s r a cio -
n a l , e seu u n iv er so é, con seq u en tem en te, r a cio n a l , ord en ad o 
e con h ecív el. A t u a n d o sobte essa base, os cien t istas p assa-
r a m a in v es t ig a i a forma d o u n iv er so . U m q u a d r o d o m u n d o 
d e D e u s co m e ço u a su r g ir ; ele p assou a ser v is to co m o u m 
im en so e bem -or d en a d o m eca n ism o , u m relógio gigan tesco, 
• 57 • 
O u n i v e r s o a o la d o 
cu jas en gren agen s e a lavan cas r e lacion av am -se co m p er fe i-
t a p recisão m ecâ n ica . T a l r et r a to p areceu t an to su r g ir d a 
in vest igação cien t ífica q u a n to leva r a m a is q u es t ion a m en tos 
e es t im u la r n ovas d escober tas sobre a fo r m a çã o d o u n iv er so . 
E m ou tras p a lav ras, a ciên cia co m o a con h ecem os h o je , n as-
cia d essa fo r m a e er a in cr iv e lm en t e b em -su ced id a . 
N a s p a lav ras d e Ba co n , o co n h ecim en to to r n ou -se p od er , 
p od er p a r a m a n ip u la r e t razer a cr iação m a is p len a m en te 
sob o d o m ín io d o h o m e m . Es s a v isão é ecoad a n a l in g u a -
gem m o d e r n a d e J . Br o n o w s k i : " E u d efin o ciên cia co m o a 
organ ização d e n osso co n h ecim en t o , d e m o d o a a u m en t a r o 
seu d o m ín io sobre o p o t en cia l la ten te n a n a t u r ez a ". 2 Se ta l 
fo r m a d e o b t en çã o d e co n h ecim en t o sobre o u n iv er so era 
tão b em su ced id a , p o r q u e n ão a p lica r o m esm o m é t o d o 
p a r a obter co n h ecim en t o sobre D eu s? 
N o te ísm o cr istão , cer t am en te , ta l m é t o d o já d esem p e-
n h a v a o seu p a p el, p ois D e u s a f i r m o u revelar a si m esm o p or 
m eio d a n a tu r eza . N o en ta n to , a p r o fu n d id a d e d e co n t eú d o 
qu e era t r a n sm it id a p or essa revelação gera l era con sid er a -
d a l im i t a d a ; m u i t o m a is fo i d ad o a con h ecer sobre D e u s n a 
revelação esp ecia l. N ã o obstan te, o d eísm o n ega qu e D e u s 
p od e ser con h ecid o p ela revelação, p or atos esp eciais d a a u -
toexp ressão, p or exem p lo , n a Es cr i t u r a o u n a en ca r n a çã o . 
H a v e n d o exclu íd o Ar istóteles co m o u m a a u to r id a d e e m as-
su n tos tela t ivos à ciên cia , o d eísm o agota exclu i a Es cr i t u r a 
co m o au tor id ad e e m teologia , p e t m i t in d o ap enas a a p l i -
cação d a tazão "h u m a n a ". C o m o Petet M e d a w a r a f i r m o u : 
"A d o u t r in a d o sécu lo X V I I q u a n to à necessidade d a razão 
estava, p ou co a p o u co , d a n d o lu gar à cr en ça d a suficiência 
58 
A precisão do universo 
d a r azão".3 D essa fo r m a , o d eísm o p assa a v er D e u s ap enas 
n a "n a tu r ez a ", t e r m o p elo q u a l se en t en d ia co m o o sistem a 
d o u n iv er so . E , u m a v ez q u e o sis tem a d o u n iv er so era v is to 
co m o o m eca n ism o d e u m im en so relóg io, D e u s p assa a ser 
v isto co m o o relo joeiro . 
D e cer t a m a n e ir a , p od em os a fir m a r qu e r es t r in g ir o co-
n h ecim en t o sobre D e u s ap enas à revelação gera l é co m o 
d escobr ir q u e com er ovos n o café d a m a n h ã faz b e m e, p o r 
isso, com er ap enas ovos n o d es je ju m (e ta lvez n o a lm oço e 
n o ja n t a r t a m b ém ) p elo resto d a v id a (qu e agora , im p e r -
cep t iv e lm en te , to r n ou -se d everas r ed u z id a ). P a r a ter cer teza , 
o t e ísm o assu m e qu e p od em os con h ecer algo sobre D e u s a 
p a r t ir d a n a tu r ez a . P o r ém , ao m esm o t em p o , isso t a m b ém 
su sten ta qu e h á muito mais a se conhecer d o qu e p od e ser 
con h ecid o d aqu ela m a n e ir a e qu e h á outras maneiras d e obter 
conhecimento. 
Deísmo básico 
C o m o Fr e d r ick C o p le s t o n exp lica , h is to r ica m en te o d eísm o 
n ão é r ea lm en te u m a "escola" d e p en sa m en to . N o fin a l d o 
sécu lo X V I I e n o X V I I I , m a is d o qu e u n s p ou cos p en sad ores 
v ie r a m a ser ch am ad os d e d eístas o u a ss im se au tod en o-
m in a r a m . Esses h o m en s d efen d er a m u m a série d e n oções 
in ter -r e lacion ad as , p o r ém , n e m tod os a p o ia t a m tod as as 
d ou t t in a s e m co m u m . Jo h n Lo ck e , p o r exem p lo , n ão re-
je it ou a id e ia d a revelação, p o r ém , in s is t iu e m qu e a razão 
h u m a n a d ev er ia ser u sad a p a r a ju lg á -la .4 C e r t o s d eístas, co m o 
Volt a ir e , e r a m h ost is ao cr is tia n ism o ; a lgu n s, co m o Lo ck e , 
• 5 9 • 
O u n i v e r s o a o la d o 
n ã o . U n s a cr ed it a v a m n a im o r t a l id a d e d a a lm a ; ou t r os , n ã o . 
A i n d a a lgu n s cr i a m qu e D e u s a b a n d o n o u a su a cr iação p a r a 
fu n cio n a r p o r co n t a p róp r ia ; ou t r os , p o r ém , a cr ed it a v a m n a 
p rov id ên cia . Po r fim, h a v ia os qu e a cr ed it a v a m e m u m D e u s 
p essoal; ou t r os , n ã o . P o r t a n t o , os d eístas e r a m m u i t o m en os 
u n id o s e m relação a qu estões básicas d o qu e os teísta s .5 
Ta m b é m é ú t il p en sar n o t e ísm o co m o u m sis tem a e 
exp ressá-lo e m u m a fo r m a r e la t iv am en te ext r em a , p ois d essa 
m a n eir a s , serem os cap azes d e com p r een d er as im p licações 
sobre as várias "r ed u ções" d e te ísm o qu e co m eça v a m a se d e-
l in ea r n o sécu lo X V I I I . C o m o v er em os, o n a t u r a l ism o lev a 
as im p licações a in d a m a is ad ian te . 
Deus t ranscendente, como primeira causa, criou 
o universo, mas, então, o deixou funcionar por conta 
própria. Deus é, portanto, não imanente, não totalmente 
pessoal, não soberano sobre os assuntos humanos e não 
prov idencial. 
C o m o n o t e ísm o , a m a is im p o r t a n t e p r op osiçã o refere-se 
à existên cia e ao cará ter d e D e u s . 
E m essên cia , o d eísm o red u z o n ú m er o d e caracter íst icas 
qu e D e u s r ev elou . E l e é u m a for ça o u en erg ia t r a n scen d en -
te, u m p r im e ir o a cion a d or o u p r im e i r a cau sa , u m p r in cíp io 
p a r a o qu e, d e o u t r a sor te, ser ia o regresso in fin i t o d e cau sas 
p assad as. P o r ém , ele n ão é r ea lm en te u m ele, em b or a o p r o -
n o m e p essoal p e r m a n eça n a l in g u a g em u t i l iz a d a sobre ele. 
C e r t a m e n t e , ele n ão se im p o r t a co m a su a cr iação; ele n ão 
a a m a , t a m p ou co p ossu i u m a relação "p essoa l" co m o qu e 
cr io u . 
• 6 0 • 
A precisão do universo 
U m t ip o m o d er n o d e d eísta , Bu ck m in s t e r Fu lle r , 
exp ressou a su a fé d essa fo r m a : " E u t en h o fé n a in teg r id ad e 
d a sabed or ia in t e lectu a l p r ev en t iv a , qu e p od em os ch a m a r 
' D e u s ' ". 6 M a s o D e u s d e Fu l le r n ão é u m ser p essoal a ser 
ad or ad o , e s im ap enas u m in telecto o u for ça a ser r econ h e-
cid a . 
P a r a o d eísta , en t ã o , D e u s é d is tan te , a lh e io , a lien ad o . 
Kn t r e t a n t o , a solitár ia con d içã o n a q u a l essa n o çã o lan ça a 
h u m a n id a d e , ap a r en tem en te n ão fo i p er ceb id a p elos p r i -
m eiros d eístas. Q u a se d ois sécu los se p assa r am an tes d essa 
im p licação ser esgotad a n o ca m p o d as em o çõ es h u m a n a s . 
2. O cosmo criado por Deus é determinado, pois foi criado 
como uma uniformidade de causa e efeito em um sistema 
fechado; nenhum milagre é possível. 
O sis tem a d o u n iv er so é fech ad o e m d ois sen t id os . P r i -
m e ir o , é fech ad o ao r eor d en a m en to p or p a r te d e D e u s , p o r 
ele n ão estar "in ter essad o" e m fazê-lo. D e u s m er a m en t e o 
fez su tg ir . Po r t a n to , m ilagres o u even tos qu e r ev elem q u a l-
qu er in teresse esp ecia l d e D e u s n ão são p ossíveis. Q u a lq u e r 
a lteração o u ap aren te a lteração n o m eca n ism o d o u n iv er so 
p od er ia su ger ir qu e D e u s com eteu u m er ro n o p la n o o r ig i -
n a l o qu e n ão esta r ia à a lt u r a d a d ig n id a d e d e u m a d iv in d a d e 
on ip o ten te . 
Seg u n d o , o u n iv er so é fech ad o ao r eor d en am en to h u -
m a n o p or q u e é sem elh an te ao m eca n ism o fech ad o d e u m 
relógio. P a r a ser cap az d e r eor d en á -lo , q u a lq u er ser h u m a -
n o , iso lad am en te o u e m co m p a n h ia d e ou t r os, ter ia d e ser 
cap az d e t r an scen d ê-lo , sa in d o d a cad eia d e cau sa e efeito. 
• 6 1 • 
O u n i v e r s o a o la d o 
P or ém , isso n ão n os é p ossível fazer . Dev er ía m os observar , n o 
en t a n to , qu e essa segu n d a im p licaçã o n ão é m u i t o en fa t iz ad a 
p elos d eístas. A m a io r ia d eles p rossegu e p a r a a ssu m ir , co m o 
tod os n ós fazem os à p ar te d a reflexão, qu e n ã o p od em os ag ir 
p a r a m o d ifica r o nosso m eio a m b ien t e . 
3. Os seres humanos, embora pessoais, fazem parte do 
mecanismo do universo. 
Pa r a ser exa to , os d eístas n ão n egam qu e os seres h u m a n o s 
se jam seres p essoais. C a d a u m d e n ós p ossu i a u tocon sciên cia 
e, p elo m en os à p r im e i r a v is t a , a u tod et er m in a çã o . P o r ém , 
essas caracter íst icas d ev em ser v istas à lu z ap en as d as d i m e n -
sões h u m a n a s . Is to é, co m o seres h u m a n o s n ós n ão tem os 
q u a lq u er relação essen cia l co m D e u s - co m o im a g em d o 
o r ig in a l - e, p o r q u a n t o , n ão h á co m o t r an scen d er m os o sis-
t em a n o q u a l n os en con t r a m os . 
O bisp o Fran çois Fén elon (1651-1715) , ao cr it ica r os 
d eístas d e su a ép oca , escreveu : "Ele s cr ed it a m a si m esm os o 
con h ecim en to d e D e u s co m o o cr iad or cu ja sabed or ia é ev i-
d en te e m su as obras; m as, segu nd o eles, D e u s n ão ser ia n e m 
b o m , t am p ou co sábio se tivesse d ad o ao h o m e m o liv r e-a r -
b ít r io - isto é, o p od er d e p ecar, d e d esviar -se d o a lvo final, 
d e rever ter a o r d em e ficar p erd id o p ara sem p r e".7 Fén elon 
co locou o seu d ed o sobre o m a io r p r ob lem a p resen te n o d e-
ísm o: os seres h u m a n os p erd eram a su a cap acid ad e d e agir 
co m sign ificad o. Se n ão p od em os "rever ter a o r d em ", en tão 
n ão p od em os ser sign ifican tes, m as ap enas n os cabe ser com o 
m ar ion etes. Se u m in d iv íd u o p ossu i p erson alid ad e, d eve ser 
d o t ip o qu e n ão in clu i o elem en to d a au tod eterm in ação . 
• 6 2 
A precisão da universo 
1'. cla ro qu e os d eístas r econ h ecem qu e os seres h u m a n o s 
..10 d otad os d e in teligên cia (sem d ú v id a , eles en fa t iz a m a 
I . I / . I O h u m a n a ) , d e u m senso d e m o r a lid a d e (os d eístas são 
m u it o in teressad os p or é t ica ), d e u m a cap acid ad e co m u n i -
i.íria e d e cr ia r . Po r ém , tod as essas ca racter íst icas , em b o r a 
em b u t id a s e m n ós co m o seres cr iad os , n ão estão alicerçad as 
n o ca rá ter d e D e u s . Ela s p ossu em u m a esp écie d e n a tu reza 
a u t ó n o m a a ss im com o o restan te d o m a t e r ia l d o u n iv er so . 
( ) s seres h u m a n o s são o qu e são: eles p ossu em p arcas esp e-
ranças d e se t o r n a r algo d ifer en te o u m a ior . 
4. O cosmo, este mundo, é compreendido como estando 
em seu estado normal; ele não é decaído ou anormal. 
Podemos conhecer o universo e por meio de seu estudo 
determinar como Deus é. 
Pelo fa to d e o m u n d o estar essen cia lm en te co m o D e u s 
o cr io u e as pessoas p ossu ír em a cap acid ad e in t e lectu a l d e 
com p r een d er o m u n d o q u e as cerca , elas p o d em ap ren d er 
sobre D e u s a p a r t ir d o estu d o d o u n iv er so . C o m o v im o s 
a n t e r io r m en te , as Es cr i t u r a s n os fo r n ecem u m a base p a r a 
isso, p ois o sa lm is t a escreveu : "O s céu s d ecla r a m a glór ia 
d e D e u s ; o firmamento p r o cla m a a ob r a d as su as m ã os" 
(SI 19.1) . E cer to qu e os teístas ig u a lm en te su s ten ta m qu e 
D e u s t em tevelad o a s i m esm o p or m eio d a n a tu r ez a . Po r ém , 
p a r a u m teísta , D e u s t a m b é m t em se revelad o em p alav ras 
— n a revelação p r op os icion a l r evelad a aos seu s p rofetas e 
aos vár ios escr itores b íb licos . O s teístas d efen d em a in d a 
qu e D e u s se r ev elou atravésd e Seu F i l h o , Jesu s - "a Pa la -
v r a to r n ou -se ca r n e" (Jo 1.14). N o en ta n to , p a r a os d eístas, 
• 6 3 • 
O u n i v e r s o a o la d o 
D e u s n ã o se co m u n ica co m as p essoas. N e n h u m a revelação é 
n ecessár ia e, a ss im , n e n h u m a oco r r eu . 
Emile Bréh ier , u m h is to r ia d o r d a filosofia, r esu m e co m 
excelên cia a d ifer en ça en t r e o d eísm o e o t e ísm o : 
Vem os claram ente que u m a nova concep ção de h om em , 
totalm ente incom p atível com a fé cristã, foi in trod u zid a: 
Deu s, o arqu iteto que p rod u ziu e m anteve u m a ord em 
m aravilhosa no u n iverso, foi descoberto n a natu reza, e não 
há mais lugar para o Deu s do d ram a cristão, o Deu s que 
conced eu a Ad ão o "pod er de pecar e reverter a ordem". 
Deu s estava na natu reza e não m ais na h istória; ele estava 
presente nas m aravilhas analisad as p or natu ralistas e biólo-
gos e não m ais n a consciência h u m an a , com sentim entos 
de pecad o, desgraça ou graça que acom p anhavam a su a 
p resença; ele d eixou o h om em no com and o de seu p róp rio 
d estin o.8 
O D e u s qu e h a v ia sid o d escober to p elos d eístas era u m 
a r q u it e to , p o r ém , d e m o d o a lg u m a m or oso , ju i z o u p essoal. 
E l e n ão era o ú n ico a agir n a h istór ia . Sim p lesm en t e , ele 
a b a n d o n o u o m u n d o à p róp r ia sor te. Po r ém , a h u m a n id a d e 
em b o r a e m cer to sen t id o n o con t r o le d e seu p r óp r io d est in o 
en con t r av a -se, n ão obstan te, e m u m sis tem a fech ad o. A li-
berd ad e h u m a n a d e D e u s n ão ser v ia p a r a n a d a ; d e fa to , nãc 
era liberd ad e coisa a lg u m a . 
C e r t a ten são n o t e ísm o p od e ser en con t r a d a n a aber tu r ; 
d a ob r a d e A lexa n d e r Pop e, Essay on Man [Ensaio sobre t 
homem] (1732-1734) . E l e escreveu : 
Deu s nas altu ras ou o h om em abaixo n a terra, 
O que pod emos con clu ir além d aqu ilo que sabemos? 
64 
A precisão do universo 
l ) que vemos do h om em além d a su a existência terrena 
I ) . i qu al perscru ta ou se questiona? 
Ai raves da vastidão de m u nd os, embora Deu s seja conhecido, 
Está em nós a in icia t iva p or d escobri-lo.9 
I ssa estrofe d e seis l in h a s a fi r m a qu e p od em os con h ecer 
i I >eus ap enas estu d an d o o m u n d o ao nosso red or . Es s a é 
i referên cia d o d eísm o ao e m p ir is m o . A p r en d em o s a p a r t ir 
di d .id os e p rossegu im os d o esp ecífico p a r a o gera l, n a d a 
u n s é revelad o à p a r te d o qu e exp er im en t a m os. A s s i m Pop e 
I l • 111 in u a : 
Ele que através d a vasta imensidão pode penetrar, 
Ver mund o sobre mundos compondo u m universo, 
( Mxservar como sistemas dentro de sistemas interagem, 
Qu e outros planetas orbitam outros sóis, 
Qu ão diferentes seres habitam as estrelas, 
Pode dizer por que os céus nos fizeram como somos. 
Mas dessa estrutura de sustentações e liames, 
fortes conexões, belas dependências, 
Apenas u m pouco do todo tem a sua alma perscrutadora 
Vislu m brad o? O u pode u m a parte conter o tod o?1" 
A q u i Pop e p r esu m e u m co n h ecim en t o d e D e u s e d a n a -
i I I reza q u e n ão é cap az d e ser ob t id o p or m eio d a exp er iên cia . 
I le a té m esm o a d m it e isso, q u a n d o d esafia a n ós , leitores, 
M lea lm en te tem os "in v es t ig a d o" o u n iv er so e v is to o seu 
m e c a n i s m o . Por ém , se n ão o tem os v is t o , en tã o , p r e su m iv e l-
m en te, t a m p o u co ele o v i u . C o m o , en t ã o , Pop e o recon h ece 
I o r n o u m im en so e b em -or d en a d o relógio? 
N ã o é p ossível t r i lh a r d ois ca m in h o s . O u (1) tod o o 
< o n h ecim en t o é p r ov en ien te d a exp er iên cia e n ós , sen d o 
65 
O u n i v e r s o a o la d o 
finitos, n ão p od em os con h ecer o s is t em a co m o u m tod o , 
o u (2) o co n h ecim en t o é p r ov en ien te d e o u t r a fon te - p o r 
exem p lo , d e id eias in a tas con ceb id as e m nosso in t e r io r o u 
a p a r t ir d e u m a revelação d o extet io t . N o en ta n to , Pop e, 
co m o a m a io r ia d os d eístas, d escon sid er a a revelação. E , p elo 
m en os nesse "en sa io", ele ja m a is a fi r m a o u su gere a p oss ib i-
lid ad e d e id eias in a ta s . 
A s s i m v em os qu e h á u m a ten são n a ep is tem olog ia d e 
Pop e. P r ecisam en te, fo r a m tais ten sões qu e p a ten tea r am a 
in s t a b ilid a d e d o d eísm o co m o cosm ov isão . 
5. A ét ica é rest rita à revelação geral; pelo fato de o universo 
ser normal, ele revela o que é certo. 
U m a o u t r a im p lica çã o d e se v er a D e u s ap enas e m u m 
m u n d o n a t u t a l , n o r m a l e n ão d eca íd o , é qu e D e u s , sen d o o 
C r i a d o r on ip o ten t e , torn a-se resp onsável p o r tod as as coisas 
co m o elas são. Es t e m u n d o , en t ã o , d eve r eflet ir o u o qu e 
D e u s d eseja o u co m o ele é. Isso lev a e t icam en te à p osição 
exp ressa p o r Pop e: 
Tod a a n a tu reza não passa de ar te desconhecida a t i; 
Tod o acaso, d ireção que tu não podes ver; 
Tod a discórdia, harmonia não compreend ida; 
Tod o m al parcial, bem universal; 
E , apesar do orgulho e dos erros da razão, 
Um a verdade é clara: SEJA O Q U E F O R , É C E R T O . 1 1 
Es sa p osição , n a r ea lid ad e, t e r m in a p or d es t r u ir a ét ica . 
Se tu d o o qu e for , é cer to , en tão n ão existe m a l . N ã o h á 
d ist in ção en t te o b em e o m a l . C o m o C h a r le s Ba u d ela ir e 
a f i r m o u : "Se D e u s existe, ele d eve ser o d ia b o". O u , p io r 
• 6 6 • 
A precisão do universo 
l i n d a , n ã o d eve h av er bem a lg u m . Pois sem a cap acid ad e d e 
d is t in g u ir en tre o b em e o m a l , n ão p od e h av er n e m u m n e m 
OUtro, n e m b em n e m m a l . A ét ica d esap arece. 
Ap esa r d isso, co m o v im o s , n ós , seres h u m a n o s , co n t in u a -
m o s a fazer d ist in ções ét icas. E m a lg u m m o m e n t o , cad a u m 
i l e nós d is t in gu e o b em do m a l , o cer to do e r r ad o . A ét ica 
deísta n ão se en ca ixa e m nossas d im en sões h u m a n a s reais. 
Nesse p o n t o , o d eísm o p assa a set u m a cosm ov isão im p r a t i -
i ável, p ois n in g u ém con segu e v iv e r p o r ela . 
É absolu tam en te necessário en fatizar qu e n em tod os os d e-
i s u s r econ h eceram (ou r econ h ecem agora) qu e su as h ip óteses 
I .1 n egam as con clu sões d e Pop e. N a verd ad e, a lgu n s p ercebe-
i . i i n qu e os en sin am en tos éticos d e Jesu s e r a m , n a realid ad e, 
li i s natu rais expressas em p alavras. E , co m cer teza, o serm ão do 
m on te n ão con tém n e n h u m a afirm ação sem elh an te à p r op o-
lição "Seja o qu e for, é cer to"! U m estu d o m ais p r o fu n d o p or 
parte d os d eístas ter ia levad o, creio eu , à con clu são d e qu e s im -
pli sm en te eles er am in con sisten tes, e n ão r econ h eciam isso. 
O p r óp r io A le xa n d e r Pop e é in con sis t en te , p ois em b or a 
defenda a n o çã o d e qu e seja o qu e fo r é cer to , t a m b é m te-
preende a h u m a n id a d e p or cau sa d o o r g u lh o (o q u a l , seja o 
que for, é cer to ). 
E m orgu lho, em elucubrações de orgu lho nosso erro se en -
raíza; 
Iod os aband onam seus afazeres e se apressam para os céus. 
O orgu lho aind a alm eja os lugares abençoad os; 
H om en s desejam ser anjos, anjos desejam ser deuses... 
E qu em não deseja inverter as leis 
Qu e nos m an têm em pecado con tra a Cau sa Et e r n a .1 2 
O u n i v e r s o ao la d o 
Pois u m a p essoa con s id er a r a s i m esm o su p er io r ao q u e 
d ev er ia , er a o r g u lh o . T a l sen t im en to era e r r a d o , a té m esm o 
u m pecado. N ã o obstan te , observ e: u m p ecad o n ã o co n t ra 
u m D e u s p essoa l, m as co n t r a a "C a u s a Et e r n a ", co n t t a u m a 
abst r ação filosófica. A t é m esm o o t e r m o pecado a ssu m e u m 
n ov o co lo r id o e m ta l co n t ext o . A i n d a m a is im p o r t a n t e , n o 
en t a n t o , é qu e tod a a n o çã o d e p ecad o d esap arece se a lgu ém 
su sten ta , sobre ou t r os fu n d a m en t o s , q u e seja o q u e for é 
cer to . 
Por m a is in teressad os qu e os an t igos d eístas est ivessem 
e m p teservar o co n t eú d o é t ico d o cr is t ia n ism o , eles fo r a m 
in cap azes d e en con t r a r u m a base ad equ ad a p a r a ele. D e v id o 
a ten sões e in con sis tên cia s co m o essa é q u e o d eísm o gozou 
d e u m a v id a t e la t iv am en te cu r t a co m o cosm ov isão r elevan te, 
em b o r a a in d a exis t a m m u it o s h oje qu e são essen cia lm en te 
d eístas, qu er r e iv in d iq u e m isso qu er n ã o . 
6. A história é linear, pois o curso do cosmo foi determinado 
na criação. 
O s p róp r ios d eístas p a r ecem estar p ou co in teressad os 
e m h istór ia , p or q u e, co m o Br éh ier in d ico u , eles b u sca v a m 
p elo co n h ecim en t o d e D e u s , p r im a r ia m en t e , n a n a tu r ez a . 
O cu r so d a h istór ia d os ju d eu s co m o registrad o n a Bíb lia é 
m a is ú til n ão co m o u m registro d as in terv en ções d e D e u s n a 
h istór ia , m as co m o ilu strações d a lei d iv in a d a q u a l p r in cí-
p ios ét icos p o d em ser extra íd os. Jo h n To l a n d (1670-1722) , 
p or exem p lo , a r g u m en t o u qu e o cr is t ia n ism o era tão a n t i -
go q u an to a cr iação; o evan gelh o era u m a "r ep u b licação" 
d a religião d a n a tu r eza . C o m u m a visão co m o essa, os atos 
68 
A precisão do universo 
esp ecíficos d a h istór ia n ão são m u i t o im p or t a n t es . A ên fase 
resid e nas regras gerais. C o m o d isse Pop e: " A P r im e i r a C a u s a 
on ip o ten te / N ã o age p or leis p a r cia is , m as g e r a is ". 1 3 D e u s 
não está n e m u m p ou co in teressad o e m h o m en s e m u lh e -
res, co m o in d iv íd u os, t a m p o u co e m tod as as p essoas. A lém 
d isso, o u n iv er so é fech ad o , d e m o d o a lg u m aber to ao seu 
r eor d en am en to . 
Um co m p o nen t e inst ável 
O d eísm o n ão p r o v o u ser u m a cosm ov isão estável. H i s -
to r icam en te , ele exer ceu breve d o m ín io sobre o m u n d o 
in telectu a l d a Fr an ça e In g la t e r r a , d o fim d o sécu lo X V I I a té 
.1 p r im e ir a m etad e d o sécu lo X V I I I . P r eced id o p elo t e ísm o, 
foi segu id o p elo n a t u r a l ism o . 
O qu e t o r n o u o d eísm o u m a cosm ov isão tão efém era? E u 
| .i abor d ei as razões p r in cip a is : as in con sis tên cias d en t r o d a 
p róp r ia cosm ov isão e a im p r a t ica b il id a d e d e a lgu n s d e seus 
p r in cíp ios. Ta is in con g r u ên cia s in t er n a s , qu e logo se t o r n a -
r a m óbv ias, in clu e m as segu in tes: 
1 . N a ét ica , a su p osição d e u m u n iv er so n o r m a l e n ão d e-
ca íd o , co m o nas sem elh an ças d e A le xa n d e r Pop e, p o r 
exem p lo , t en d ia a im p l ica r qu e seja o q u e for é cer to . 
Se isso fo r v er d ad e, en t ã o , n e n h u m esp aço é d eixad o 
p a r a u m co n t eú d o n ít id o d a ét ica . N ã o obstan te, os 
d eístas se m o s t r a v a m m u i t o in teressad os p ela ét ica , 
co n s t i t u in d o essa a ú n ica d ivisão d o en s in a m en to cr is -
tão qu e lh es era m a is aceitável. 
69 
O u n i v e r s o ao l ad o 
2. N a ep is t em olog ia , a t en ta t iv a d e a r g u m en ta r d o p a r -
t icu la r p a t a o u n iv er sa l r e d u n d o u e m fracasso, p ois 
ser ia p reciso u m a m en te in f in i t a p a t a reter os d eta lh es 
n ecessár ios a u m a gen eta lização p r ecisa . N e n h u m a 
m en te é in f in i t a . P o r t a n t o , co m o o co n h ecim en t o u n i -
v er sa l é im p ossível, e os p en sad ores e r a m d eixad os co m 
u m rela t ivo co n h ecim en t o , eles a ch a r a m isso d e d ifícil 
a ce i t a çã o . 1 4 
3 . E m relação à n a tu r ez a h u m a n a , u m a p essoa n ão p od e 
m a n t e r s ign ificân cia e p er son a lid ad e d ian te d e u m 
u n iv er so fech ad o ao r eor d en a m en to . A sign ificân cia 
h u m a n a e o d e t e r m in ism o m ecâ n ico são p arceiros i n -
com p a t ív eis . 
H o je e m d ia , p od er íam os en con t r a r a in d a m a is asp ec-
tos qu est ion áveis d o d eísm o. O s cien t ista s t êm aban d on ad o 
to ta lm en te a n o çã o d o u n iv er so com o u m gigan tesco reló-
g io . O s elét ron s (p a r a n ã o m en cio n a r p ar t ícu las su ba tôm ica s 
a in d a m a is d escon cer tan tes) n ão se co m p o r t a m co m o m i -
n ú scu los elem en tos d e u m a m á q u in a . Se o u n iv er so é u m 
m eca n ism o , ele é m u i t o m a is co m p lexo d o qu e im a g in a -
d o n a ép oca , e D e u s d eve ser m u i t o d ifer en te d e u m m er o 
"a r q u it e to" o u "r e lo joeir o". A lém d isso, a p er son a lid ad e h u -
m a n a é u m "fa to" d o u n iv er so . Se fo i D e u s qu e a cr io u , n ão 
ser ia ele p essoal? 
Desse m o d o , h is t o r ica m en te o d eísm o fo i u m a co sm o v i-
são t tan sitór ia e, n ã o obstan te, n ão está m o r t a tan to sob as 
fo r m a s p op u la res q u a n t o sob as m a is sofist icad as. N o n ível 
p op u la r , in ú m er as p essoas h oje a cr ed it a m n a existên cia d e 
D e u s , m as q u a n d o p ergu n tad as co m o ele é, elas se l i m i t a m 
7 0 
A precisão do universo 
a exp ressões co m o En e r g ia , For ça , P r im e i r a C a u s a , a lg u m a 
coisa cap az d e m a n t e r o u n iv er so e m fu n cio n a m e n t o e, e m 
geta l, co n clu e m d and o-lhe u m a a u r a d e d iv in d a d e . C o m o 
diz Etienne G i l s o n : "P o r qu ase d ois sécu los [...] o fa n ta sm a 
do D e u s cr istão t em sid o a t en d id o p elo fa n t a sm a d a religião 
cr istã : u m vago sen t im en t o d e r elig iosid ad e, u m t ip o d e co n -
fiante fa m ilia r id a d e co m a lg u m ca m a r a d a b o m e su p r em o a 
q u e m ou t ros cam arad as p o d em esp er an çosam en te r ecor rer 
q u a n d o estão e m a p u r o s ". 1 5 
Sob u m a fo r m a m a is sofis t icad a , o d eísm o sobrev ive e m 
a lgu n s cien t istas e u n s p ou cos h u m a n is t a s n os cen t ros acad é-
m icos ao ted ot d o m u n d o . C ien t is t a s , co m o A lb e t t Ein s t e in , 
qu e "v eem " u m a for ça su p er io r e m ação n o u n iv er so o u p or 
trás d ele e d esejam m a n t e r a tazão e m u m m u n d o cr ia d o , 
p od em ser con sid erad os d eístas d e co t a çã o , em b o r a , d ecer to, 
m u it o s n ão d eseja r iam a fir m a r algo qu e soasse tão sem elh a n -
te a u m a filosofia d e v i d a . 1 6 
O ast rofísico Step h en H a w k i n g ig u a lm en te d á a bet tu ta 
p ara se d efen d er u m D e u s d eísta . E l e escreveu qu e as leis 
fu n d a m en ta is d o u n iv er so "p o d em ter s id o o r ig in a lm en te 
d eter m in ad as p or D e u s , m as ao qu e p arece, d esd e en t ã o , 
ele d e ixo u o u n iv er so d esen volver -se d e acord o co m elas e 
agora n ão m a is in ter v ém n e le ". 1 7 Su a rejeição a u m D e u s 
teísta é m u i t o cla r a . C e r t a fe it a , a a t r iz e líd er d a N o v a E r a , 
Sh ir ley M a cLa i n e , p e r g u n t o u a H a w k i n g se h a v ia u m D e u s 
qu e "qu e cr io u o u n iv er so e g u ia a su a cr ia çã o". "N ã o ", ele 
r esp on d eu s im p lesm en t e e m su a v oz co m p u t a d o r iz a d a . 1 8 
A f in a l d e con tas, se o u n iv er so é "a u tocon t id o , sem fr o n -
teiras o u l im it e s ", co m o H a w k i n g su sp eita ser v er d a d eir o , 
• 7 1 
O u n i v e r s o ao l ad o 
en tã o n ão h á n ecessid ade d e u m C r i a d o r ; D e u s torn a -se 
su p ér flu o .1 9 A s s i m sen d o, H a w k i n g u t i l iz a "o t e r m o D e u s 
co m o a in cor p or açã o d as leis d a fís ica ". 2 0 
H a w k i n g n ã o está soz in h o nessa p r ob lem á t ica d e o qu e 
fazer co m D e u s . E m u m a con v et sa co m Ro b e r t W r i g h t , o 
físico E d w a r d Fr i e d k i n p od er ia fa la r p o r m u i t o s cien t is ta s : 
Para m im é d ifícil acred itar que tud o o que existe foi apenas 
u m acid ente. [...] [Con tu d o], não tenho n en h u m a crença 
religiosa. E u não acred ito que há u m Deu s. N ão acred ito 
no cr istian ism o, ju d aísm o ou qualquer coisa semelhante, 
certo? N ão sou u m ateu . [...] N ão sou u m agnóstico. [...] 
Estou apenas em u m estado sim p les. E u não sei o que há 
ou pode haver. [...] Mas, por ou tro lad o, o que posso d izer é 
que m e parece que este u niverso p articu lar que temos é u m a 
consequ ência de algo que eu cham aria de in teligen te.2' 
F r i e d k in e H a w k i n g são d eístas o u n a tu ra listas? O u 
s im p lesm en te são agn óst icos n o tocan te a Deu s? D e q u a l -
qu er m o d o , visões co m o as d eles en tre os cien t istas n ão são 
in co m u n s . O n a t u r a l ism o p u r o n ão é a ssim tão a m b iv a len t e . 
Es s a p osição é qu e v er em os a segu ir . 
• 7 2 • 
Capítulo quatro 
O SILÊNCIO DO ESPAÇO FINITO 
Naturalismo 
Sem aviso, Davi foi visitado por uma visão perfeita da morte: 
um largo buraco no chão, não maior que seu corpo, no qual era 
colocado, enquanto os rostos brancos se afastavam. Você tenta 
alcançá-los, mas os seus braços estão atados. Pás jogam terra em 
seu rosto. Lá você estará para sempre, em uma posição voltada para 
cima, cego e silencioso, e com o passar do tempo ninguém mais 
se lembrará de você, e você jamais será visitado. Como estratos do 
deslocamento de rochas, seus dedos se alongam, e seus dentes são 
distendidos para o lado em uma grande careta subterrânea indis-
tinguível da própria terra. E a terra se revolverá, o sol expirará, as 
trevas reinam imutáveis onde antes havia estrelas. 
John Updike, Pigeon Feathers [Penas de pombo] 
ODEÍSMO É U M I S T M O entre dois grandes continentes -teísmo e naturalismo. Para se mover do primeiro ao 
O universo ao lado 
segundo, o deísmo é a rota natural. É provável que, sem 
o deísmo, o naturalismo não surgiria tão prontamente. O 
deísmo desvaneceu precocemente, tornando-se a sua versão 
do século X V I I I quase uma curiosidade intelectual. As suas 
versões do século X X estão restritas a uns poucos cientistas 
e intelectuais e aqueles que, embora afirmem que acreditam 
em Deus, possuem apenas uma vaga noção do que isso possa 
ser. Por outro lado, o naturalismo era e é um negócio sério. 
Em termos intelectuais, a rota é esta: no teísmo, Deus 
é o Criador pessoal e infinito, sustentador do cosmo. No 
deísmo, Deus é reduzido; ele começa a perder a sua persona-
lidade, embora permaneça como Criador e (por implicação) 
sustentador do cosmo. No naturalismo, Deus é ainda mais 
reduzido, perdendo a sua própria existência. 
Os personagens envolvidos nessa mudança do teísmo para 
o naturalismo formam uma legião, em especial, no período 
entre 1600 e 1750. René Descartes (1596-1650), teísta por 
consciente confissão, estabelece o cenário ao conceber o uni-
verso como um gigantesco mecanismo de "matéria" que as 
pessoas compreenderam como "mente". Ele, portanto, divi-
de a realidade em dois tipos de ser; desde então, o mundo 
ocidental tem enfrentado dificuldades para ver a si mesmo 
como um todo integrado. O naturalismo, seguindo uma 
rota para a unificação, fez da mente uma subcategoria da 
matéria mecanicista. 
John Locke (1632-1714), um teísta para a maioria das 
pessoas, acreditava em um Deus pessoal que se revelou a 
nós; Locke pensou, entretanto, que a nossa razão concedi-
da por Deus é o juiz do que pode ser considerado como 
74 • 
O silêncio do espaço finito 
verdadeiro a partir da "revelação" bíblica. Dessa concepção, 
os naturalistas removeram o "concedido por Deus" e fizeram 
da "razão" o único critério para a verdade. 
Uma das figuras mais importantes nessa mudança foi 
Julien Offray de La Mettrie (1709-1751). Em sua própria 
época, La Mettrie foi, em geral, considerado um ateu, mas 
ele mesmo afirma: "Não que eu coloque em dúvida a exis-
tência de um ser supremo; pelo contrário, parece-me que o 
mais elevado grau de probabilidade está a favor dessa cren-
ça". Não obstante, ele prossegue: "É uma verdade teórica 
com pouco valor prático".1 A razão para ele concluir que a 
existência de Deus possui um valor prático tão diminuto é 
que o Deus que existe é apenas o criador do universo. Ele 
não está interessado de modo pessoal nele, tampouco em 
ser adorado por quem quer que esteja nesse universo. Assim 
sendo, a existência de Deus pode ser efetivamente conside-
rada como de nenhuma importância.2 
É precisamente esse sentimento, essa conclusão que mar-
ca a transição para o naturalismo. La Mettrie foi um deísta 
teórico, porém, um naturalista prático. Foi deveras fácil para 
as gerações subsequentes tornar as suas teorias consistentes 
com a prática de La Mettrie, de modo que o naturalismo foi 
tanto crido quanto influenciado.3 
O comportamento realmente fomenta o desenvolvimen-
to intelectual. De fato, se levarmos a sério a última frase da 
definição sobre cosmovisão, no primeiro capítulo ("sobre o 
qual vivemos, movemos e possuímos nosso ser"), nós po-
deríamos acusar La Mettrie de sustentar uma cosmovisão 
plenamente naturalista. 
75 
O universo ao lado 
Naturalismo básico 
Isso nos leva, então, à primeira proposição definidora de na-
turalismo. 
1. A matéria existe eternamente e é tudo o que há. Deus não 
existe. 
Como no teísmo e no deísmo, a proposição primária diz 
respeito à natureza da existência básica. Nos dois anteriores, a 
natureza de Deus é o fator chave. No naturalismo, a natureza 
do cosmo é que é primária, pois, agora, com um Criador eter-
no fora de cena, o próprio cosmo se torna eterno - sempre lá, 
porém, não necessariamente em sua forma atual; na verdade, 
certamente não em sua presente forma.4 Carl Sagan, astrofísico 
e popularizador da ciência, afirmou isso o mais alto possível: 
"O cosmo é tudo o que é, foi ou será".5 
Nada vem do nada. Existe alguma coisa. Portanto, algu-
ma coisa sempre existiu. Porém, essa alguma coisa, dizem os 
naturalistas, não é um Criador transcendente, mas matéria 
do próprio cosmo. Em alguma forma, toda a matéria do 
universo sempre existiu. 
A palavra matéria deve ser entendida de forma generali-
zada, pois desde o século X V I I I , a ciência tem refinado a sua 
compreensão. No século X V I I , os cientistas ainda estavam 
por descobrir a complexidade da matéria e sua estreita relação 
com a energia. Eles concebiam a realidade como constituída 
de "unidades" irredutíveis, existentes em um relacionamen-
to mecânico e espacial umas com as outras, relacionamento 
esse que estava sendo investigado e revelado pela Química 
e I ísica, sendo expresso através de "leis" inexoráveis. Mais 
• 76 • 
O silêncio do espaço finito 
tarde, descobriram que a natureza não era tão certinha ou, 
pelo menos, tão simples. Parece não haver essas "unida-
des" irredutíveis como tal, e as leis físicas apenas contêm 
expressões matemáticas. Físicos, como Stephen Hawking, 
podem buscar por nada menos que uma "completa descri-
ção do universo" e mesmo nutrir esperanças de encontrá-la.6 
Porém, a certeza sobre o que a natureza é ou a probabilidade 
de descobrir o que possa ser, praticamente desapareceu. 
Ainda assim, a proposição expressa acima une os natura-
listas. O cosmo não é composto por duas coisas — matéria 
e mente, ou matéria e espírito. Como afirmou La Mettrie: 
"Em todo o universonada mais há que uma única substância 
com várias modificações".7 O cosmo é, em última instância, 
uma única coisa sem qualquer relação com um ser transcen-
dental; não existe "deus", tampouco "criador". 
2. O cosmo existe como uma uniformidade de causa e efeito 
em um sistema fechado. 
Essa proposição é similar à segunda proposição no de-
ísmo. A diferença reside em que o universo pode ou não 
ser concebido como uma máquina ou relógio. Os cientistas 
modernos têm descoberto que as relações entre os vários ele-
mentos da realidade são muito mais complexas, se não mais 
misteriosas, que a imagem do relógio poderia expressar. 
Não obstante, o universo é um sistema fechado. Ele não 
está aberto ao reordenamento a partir do exterior — seja por 
um ser transcendental (pois não existe nenhum) ou, como 
discutiremos com mais profundidade posteriormente, por 
seres humanos autotranscendentes ou autónomos (pois eles 
O universo ao lado 
são uma parte da uniformidade). Emile Bréhier, ao descrever 
essa visão, disse: "A ordem na natureza nada mais é que um 
arranjo rigorosamente necessário de suas partes, alicerçado 
na essência das coisas; por exemplo, a bela regularidade das 
estações não é o efeito de um plano divino, mas o resultado 
da gravitação".8 
O Manifesto Humanista II (1973), que expressa as visões 
dos que se autodenominam "humanistas seculares", colo-
ca isso desta forma: "Não descobrimos nenhuma evidência 
suficiente para crer na existência do sobrenatural".9 Sem Deus 
ou o sobrenatural, claro, nada pode acontecer, exceto dentro 
do reino das próprias coisas. Escrevendo na The Columbia 
History of the World, [A história do mundo de Columbia], 
Rhodes W. Fairbridge afirmou claramente: "Nós rejeitamos o 
miraculoso".'0 Tal afirmação, proveniente de um professor de 
geologia da Universidade de Columbia, já era esperada. 
O que surpreende é encontrar um professor de seminá-
rio, David Jobling, afirmando quase a mesma coisa: "Nós 
[isto é, as pessoas modernas] vemos o universo como uma 
continuidade de espaço, tempo e matéria, mantidos jun-
tos, como o eram, do interior. [...] Deus não está "fora" 
do tempo e do espaço, nem permanece fora da matéria, 
comunicando-se com a parte "espiritual" do homem. [...] 
Precisamos encontrar alguma forma de enfrentar o fato de 
que Jesus Cristo é produto do mesmo processo revolucio-
nário como o resto de nós".1 1 
Jobling está tentando compreender o cristianismo den-
tro da cosmovisão naturalista. Certamente, após Deus ter 
sido colocado rigorosamente dentro do sistema - o sistema 
78 
O silêncio do espaço finito 
uniforme e fechado de causa e efeito - a ele foi negada a 
soberania e muito mais do que os cristãos tradicionalmente 
têm crido ser verdadeiro a seu respeito. A questão aqui, en-
tretanto, é que o naturalismo é uma cosmovisão insinuante, 
encontrada nos lugares mais improváveis. 
Quais são as características centrais desse sistema fecha-
do? Deve primeiro parecer que os naturalistas, ao afirmar a 
"continuidade de espaço, tempo e matéria, conservando-se 
unidos, como o eram [...] do interior," seriam determinis-
tas, declarando que o sistema fechado mantém-se unido por 
uma conexão inexorável e indestrutível de causa e efeito. A 
maioria dos naturalistas é, de fato, determinista, embora 
muitos argumentem que isso não retira o nosso senso de 
livre-arbítrio ou a responsabilidade pelas nossas ações. Será 
essa liberdade realmente consistente com a concepção de um 
sistema fechado? Para responder a essa pergunta, precisamos 
primeiro olhar mais detalhadamente a concepção naturalista 
quanto aos seres humanos. 
3. Os seres humanos são "máquinas" complexas; a perso-
nalidade é uma inter-relação de propriedades químicas e 
físicas ainda não totalmente compreendidas. 
Descartes, embora tenha reconhecido que os seres huma-
nos são em parte máquinas, também reconheceu que eles 
são em parte mente; e mente era uma substância diferen-
te. No entanto, a grande maioria dos naturalistas concebe 
a mente como uma função da máquina. La Mettrie foi um 
dos primeiros a colocar asperamente: "Vamos concluir ou-
sadamente, então, que o homem é uma máquina, e que em 
• 79 • 
O universo ao lado 
todo o universo há nada menos que uma única substância 
com várias modificações".12 
Expressando-se de forma ainda mais enfática, Pierre Jean 
Georges Cabanis (1757-1808) escreveu que "o cérebro se-
creta o pensamento assim como o fígado secreta a bílis".1 3 
William Barret, em uma fascinante história intelectual sobre 
a perda gradual da noção da alma ou do eu no pensamento 
do Ocidente, a partir de Descartes até o presente, escreve: 
Dessa forma chegamos a La Mettrie [...] aquelas curiosas 
ilustrações do corpo humano como um sistema de engrena-
gens, rodas dentadas e catracas. O homem, o microcosmo, 
é apenas uma outra máquina dentro da máquina universal 
que é o cosmo. Rimos ante tais ilustrações, julgando-as pi-
torescas e grosseiras, porém, em segredo, ainda podemos 
alimentar a noção de que eles, afinal de contas, estão na di-
reção certa, embora um pouco prematura. Com o advento 
do computador, no entanto, essa tentação concernente ao 
mecanismo torna-se mais irresistível ainda, pois aqui nós 
não mais temos uma máquina de rodas e polias, mas um 
aparelho que parece capaz de reproduzir os processos da 
mente humana. As máquinas podem pensar?, tornou-se 
agora uma questão crucial para o nosso tempo.14 
De qualquer modo, o ponto é que nós, como seres hu-
manos, simplesmente somos uma parte do cosmo, onde há 
uma única substância: matéria. Somos feitos a partir dela e 
tão somente dela. As leis que se aplicam à matéria também se 
aplicam a nós. De forma alguma, transcendemos o universo. 
É óbvio que somos máquinas muito complexas, e nosso 
mecanismo ainda está longe de ser totalmente compreendido. 
• 80 
O silêncio do espaço finito 
Assim as pessoas continuam a nos surpreender e a frustrar as 
nossas expectativas. Contudo, qualquer mistério que rodeie 
a nossa compreensão é resultado não de um genuíno misté-
rio, mas de complexidade mecânica.1 5 
Pode-se concluir que a humanidade não é distinta de ou-
tros objetos no universo, constituindo apenas um tipo de 
objeto entre muitos outros. Porém, os naturalistas insistem 
que não é assim. Julian Huxley, por exemplo, afirma que 
somos únicos entre os animais porque apenas nós somos 
capazes de pensar conceitualmente, de articular a fala, de 
deter uma tradição cumulativa (cultura) e possuir um mé-
todo singular de evolução.1 6 A esses argumentos a maioria 
dos naturalistas acrescentaria a nossa capacidade moral, 
um assunto que tratatemos em separado. Todas essas carac-
terísticas são abertas e, em geral, óbvias. Nenhuma delas 
implica em algum poder transcendental ou exige qualquer 
base extramaterial, afirmam os naturalistas. 
Ernest Nagel indica a necessidade de não enfatizar a 
"continuidade" humana com elementos não humanos de 
nossa composição: "Sem negar que mesmo as mais distintas 
características humanas são dependentes de elementos não 
humanos, um naturalismo maduro esforça-se por avaliar a 
natureza do homem à luz de suas ações e conquistas, suas as-
pirações e capacidades, suas limitações e falhas trágicas, bem 
como de seus esplêndidos trabalhos de ingenuidade e ima-
ginação".1 7 Ao enfatizar nossa humanidade (nossa distinção 
do restante do cosmo), um naturalista encontra uma base de 
valor, pois isso sustenta que a inteligência, a sofisticação cul-
tural, o senso de certo e errado não são apenas características 
81 
O universo ao lado 
humanas, mas o que nos torna valiosos. Esse tópico será 
mais desenvolvido adiante, na proposição 6. 
Finalmente, embora alguns naturalistas sejam ferrenhos 
deterministas com respeito a todos os eventos no universo, 
incluindo-se a ação humana, negando, portanto,qualquer 
senso de livre-arbítrio, muitos naturalistas sustentam que so-
mos livres para moldar o nosso próprio destino, pelo menos 
parcialmente. Alguns, por exemplo, defendem que embora 
o conceito de um universo fechado implique em determi-
nismo, ele ainda é compatível com a liberdade humana ou, 
pelo menos, com um sentido de liberdade.18 Podemos fazer 
muitas coisas que desejamos; nem sempre somos obrigados 
a agir contra os nossos desejos. Eu poderia, por exemplo, 
parar de preparar uma nova edição deste livro se assim dese-
jasse, porém, não é isso o que eu quero. 
Esse fato, muitos naturalistas defendem, deixa aberta a 
possibilidade para ações humanas significativas, além de for-
necer uma base para a moralidade. Pois a não ser que sejamos 
livres para agir como agimos, não podemos ser responsabi-
lizados pelo que fazemos. A coerência dessa visão tem sido 
contestada, entretanto, constituindo uma pequena mancha 
no sistema de pensamento naturalista, como veremos no 
capítulo seguinte. 
4. A morte é a extinção da personalidade e da individua-
lidade. 
Talvez essa seja a proposição naturalista mais "difícil" de as 
pessoas aceitarem, muito embora seja uma exigência absolu-
ta em função da concepção naturalista do universo. Homens 
e mulheres são constituídos de matéria e nada mais. Quando 
• 82 • 
O silêncio do espaço finito 
a matéria constituinte de um indivíduo é desorganizada na 
morte, então, aquela pessoa desaparece. 
O Manifesto Humanista II declara: "Até onde conhece-
mos, a personalidade total é uma função da transação do 
organismo biológico em um contexto social e cultural. 
Igualmente, não há nenhuma evidência crível de que a vida 
sobreviva à morte do corpo".19 Bertrand Russel escreve: 
"Nenhum fogo, heroísmo ou intensidade de pensamento 
e sentimento podem preservar uma vida individual além-
túmulo".2 0 A. J . Ayer também afirma: "Tomo isso [...] como 
fato de que a existência de uma pessoa termina na morte".21 
Em um sentido mais geral, a humanidade é igualmente vista 
como transitória. Nagel confessa: "O destino humano [é] 
um episódio entre dois esquecimentos".22 
Tais afirmações são claras e desprovidas de qualquer 
ambiguidade. O conceito pode desencadear problemas psi-
cológicos imensos, porém, sua precisão é inquestionável. 
A única "imortalidade", como apresentada pelo Manifesto 
Humanista II, é "a continuidade de nossa descendência e a 
influência que nossas vidas exercem nas demais pessoas em 
nossa cultura".23 Em sua breve obra, Pigeon Featbers [Penas 
de pombo], John Updike confere a essa noção uma dimensão 
lindamente humana quando retrata o jovem garoto David, 
refletindo sobre a descrição de céu, feita pelo pastor, sendo 
"semelhante à bondade de Abraham Lincoln sobrevivendo à 
sua própria morte".24 Como o professor de seminário, David 
Jobling, mencionado anteriormente, o pastor de David não 
é mais um teísta, mas está simplesmente tentando dar um 
conselho "espiritual", dentro da estrutura naturalista. 
• 83 • 
O universo ao lado 
5. A história é uma corrente linear de eventos ligada por 
causa e efeito, porém, sem uma proposta abrangente. 
Primeiramente, a palavra história, como utilizada nessa 
proposição, inclui tanto a história natural quanto a humana, 
pois os naturalistas veem a ambas como uma continuidade. 
A origem da família humana está na natureza. Surgimos dela 
e, mais provavelmente, retornaremos a ela (não apenas indi-
vidualmente, mas como espécie). 
A história natural principia com a origem do universo. 
Algo ocorreu muito tempo atrás - um Big Bang ou um sur-
gimento súbito - que desencadeou a formação do universo 
que agora habitamos e do qual temos consciência. Porém, 
poucos se mostram dispostos a afirmar, exatamente, como 
isso aconteceu. Lodewijk Woltjer, astrónomo da Universida-
de de Columbia, fala em nome de muitos: "A origem do que 
existe - o homem, a terra, o universo - está encerrada em 
um mistério que estamos tão distantes de elucidar quanto o 
narrador do livro de Génesis".2 5 Inúmeras teorias têm sido 
desenvolvidas para explicar o processo, mas nenhuma delas, 
na realidade, com sucesso.26 Ainda, persiste entre os natura-
listas a premissa de que o processo se autodesencadeou; não 
sendo colocado em ação por uma Primeira Causa, Deus ou 
algo diferente. 
Como os seres humanos surgiram é, em geral, consi-
derado mais certo que a origem do universo. A teoria da 
evolução, desconsiderada pelos naturalistas por longo tem-
po, conseguiu sobressair-se pelo "mecanismo" que recebeu 
de Darwin. E raro um texto de escola pública não proclamar 
a teoria como um fato. Devemos ser cuidadosos, entretanto, 
• 84 • 
O silêncio do espaço finito 
e não assumirmos que todas as formas de teoria evolucioná-
ria são estritamente naturalistas. Muitos teístas também são 
evolucionistas. Na verdade, a evolução tornou-se um assun-
to muito mais polémico entre cristãos e naturalistas que na 
época em que o livro foi lançado.2 7 
O teísta vê o Deus infinito e pessoal como responsável 
por todos os processos naturais. Se a ordem biológica evo-
luiu, isso só ocorreu em conformidade com o desígnio de 
Deus; isso é teleológico, onde tudo concorre para um fim 
pessoalmente almejado por Deus. Por sua vez, o naturalista 
vê o processo funcionando por si mesmo. George Gaylord 
Simpson apresenta isso com tamanha felicidade que merece 
essa longa menção: 
A evolução orgânica é um processo totalmente materialis-
ta em sua origem e operação [...] A vida é materialista na 
natureza, mas possui propriedades únicas que são ineren-
tes à sua organização, não em sua matéria ou mecânica. O 
homem surgiu como o resultado da operação da evolução 
orgânica, sendo seu ser e atividades igualmente materialis-
tas, mas a espécie humana possui propriedades únicas entre 
todas as formas de vida, que se somam às propriedades úni-
cas à vida entre todas as formas de matéria e de ação. A 
sua natureza intelectual, social e espiritual é excepcional em 
comparação aos animais, porém, elas surgiram por meio da 
evolução orgânica.28 
Essa passagem é importante devido à sua clara afirmação 
tanto da continuidade humana com o restante do cosmo 
quanto a sua especial singularidade. Entretanto, para não 
concluirmos que tal singularidade, essa nossa posição como 
• 85 
O universo ao lado 
a mais elevada criatura da natureza, foi planejada por al-
gum princípio operativo teleológico presente no universo, 
Simpson acrescenta: "Por certo, o homem não era o obje-
tivo da evolução, que, por seu turno, evidentemente não 
possuía objetivo algum".29 
De muitas maneiras, a teoria da evolução suscita tantas 
questões quantas soluciona, pois embora ofereça uma expli-
cação sobre o que aconteceu no transcorrer desses extensos 
períodos de tempo, ela não esclarece a causa. A noção de 
um Planejador, dotado de propósito, não é permitida pelos 
naturalistas. Pelo conttário, como afirma Jacques Monod, a 
"humanidade surgiu como um número em uma roleta de 
Monte Carlo", um lance de puro acaso.3" Richard Dawkins, 
um dos mais destacados defensores do recente evolucionis-
mo neo-darwinista, confirma essa ideia: "A seleção natural 
é o relojoeiro cego, pois nada vê à frente, não planeja as 
consequências, não possui nenhum propósito em vista".31 
Qualquer intencionalidade é descartada como possibilidade 
desde o princípio. 
De todo modo, os naturalistas insistem que com o alvore-
cer da humanidade, de súbito, a evolução assumiu uma nova 
dimensão, pois os seres humanos são dotados de consciência 
- provavelmente os únicos seres autoconscientes em todo o 
universo.32 Além disso, como humanos, somos consciente-
mente livres para refletir, decidir e agir. Portanto, enquanto 
a evolução, considerada estritamente no âmbito biológico, 
continua sendo inconsciente e acidental, as ações humanas 
não. Elas nãosão apenas parte do ambiente "natural". Elas 
constituem a história humana. 
• 86 • 
O silêncio do espaço finito 
Em outras palavras, quando o homem surgiu, a história 
com significado, a história humana — os eventos realizados 
por homens e mulheres autoconscientes e autodeterminados 
- também surgiu. Mas, como a evolução, que não possui um 
objetivo inerente, a história não possui um alvo inerente. 
A história é o que fazemos acontecer. Os eventos humanos 
apenas possuem o significado que as pessoas lhes dão, quan-
do elas os escolhem ou quando os rememoram. 
A história prossegue em uma linha linear, como no teís-
mo (não ciclicamente como no panteísmo oriental), mas ela 
não possui um alvo predeterminado. Em vez de culminar 
na segunda vinda do Deus-homem, simplesmente a história 
durará tanto quanto a consciência dos seres humanos perdu-
rar. Quando partirmos, a história humana desaparecerá, e a 
história natural seguirá sozinha seu curso. 
6. A ética está relacionada apenas os seres humanos. 
Considerações éticas não desempenhavam um papel cen-
tral no advento do naturalismo, que, em vez disso, surgiu 
como uma extensão lógica de certas noções metafísicas sobre 
a natureza do mundo externo. A maioria dos primeiros na-
turalistas continuou a defender visões éticas em similaridade 
àquelas presentes na cultura que os cercava, visões que, via 
de regra, pouco se diferenciavam do cristianismo popular. 
Havia respeito pela dignidade individual, uma afirmação de 
amor, um compromisso pela verdade e honestidade básica. 
Jesus Cristo era visto como um professor de elevados valores 
éticos. 
• 87 
O universo ao lado 
Embora seja cada vez mais raro em nossos dias, ainda 
é verdadeiro em alguma medida. Com algumas mudanças 
recentes como, por exemplo, uma atitude permissiva com 
respeito ao sexo pré-conjugal e extraconjugal, uma reação 
positiva quanto à eutanásia, o aborto e o direito individu-
al ao suicídio, as normas éticas do Manifesto Humanista II 
(1973) são similares às da moralidade tradicional. Com fre-
quência, teístas e naturalistas podem conviver lado a lado 
em comunal harmonia em relação à ética. As discordâncias 
entre os dois grupos sempre existiram e, creio eu, se acir-
rarão à medida que o humanista se afaste cada vez mais da 
memória de sua ética cristã.3 3 Porém, quaisquer que sejam os 
desacordos (ou concordâncias) sobre as normas éticas, a base 
para tais normas é radicalmente distinta. 
Para o teísta, Deus é o alicerce de todos os valores, en-
quanto que para os naturalistas os valores são construídos 
pelos seres humanos. A noção naturalista logicamente segue 
as pressuposições anteriores. Se não havia consciência an-
tes da existência dos seres humanos, então não havia prévia 
noção de certo e errado. E , se não havia capacidade de agir 
de modo diferente, qualquer senso de certo e errado não 
teria valor prático. Assim, para que a ética seja possível, deve 
existir tanto a consciência quanto a autodeterminação. Em 
suma, deve haver personalidade. 
Os naturalistas dizem que a consciência e a autodetermi-
nação surgiram com o aparecimento dos seres humanos, tal 
como a ética. Nenhum sistema ético pode ser derivado apenas 
da natureza das "coisas" externas à consciência humana. Em 
outras palavras, nenhuma lei natural está inscrita no cosmos. 
88 
O silêncio do espaço finito 
Mesmo La Mettrie, que escreveu com uma nesga de ironia: 
"A natureza nos criou a todos [homem e animais] unicamen-
te para sermos felizes", traindo as suas raízes deístas, foi um 
convicto naturalista quanto à ética: "Você vê que a lei natural 
é nada mais que um sentimento íntimo, pertencente à ima-
ginação, tal como todos os outros sentimentos, incluindo-se 
o pensamento".34 La Mettrie concebia a imaginação de um 
modo totalmente mecânico, de maneira que, para ele, a ética 
tornou-se apenas em pessoas seguindo um padrão nelas in-
corporado como criaturas. Certamente, não há nada, seja lá 
o que for, transcendente sobre a moralidade. 
O Manifesto Humanista II afirma o local da ética natura-
lista em termos muito claros: "Nós afirmamos que os valores 
morais possuem na experiência humana a sua fonte. A ética 
é autónoma e situacional, não necessitando de qualquer san-
ção teleológica ou ideológica. A ética provém da necessidade 
e interesse humanos. Negar isso é distorcer toda a base da 
vida. A vida humana possui significado porque criamos e 
desenvolvemos nosso futuro".35 A maioria dos naturalistas 
conscientes concordaria com essa afirmação. Porém, exata-
Biente como o valor é criado fora da situação humana está 
i .io distante de nosso alcance quanto o caminho a trilhar 
para compreendermos a origem do universo. 
A mais importante questão é: como o dever deriva do 
ser! 
A ética tradicional, ou seja, a ética do teísmo cristão, afir-
i i i . i .1 origem transcendente da ética e a posiciona na medida 
Jo bem no Deus infinito e pessoal. Bom é o que Deus é, 
C essa verdade tem sido revelada por inúmeras e distintas 
89 
O universo ao lado 
maneiras, mais plenamente na vida, no ensino e na morte 
de Jesus Cristo. 
Os naturalistas, entretanto, não possuem esse apelo, 
tampouco desejam fazê-lo. A ética constitui um domínio es-
tritamente humano. Assim a questão: como alguém vai do 
fato da autoconsciência e autodeterminação na esfera do ser 
e poder para a esfera do que deve ser ou deve ser feito? 
Uma observação feita pelos naturalistas é que todas as 
pessoas possuem uma noção de valores morais. Isso deriva, 
conforme diz G. G. Simpson, da intuição ("o sentimento 
de justiça sem uma investigação objetiva das razões para 
esse sentimento e sem a possibilidade de testar a vetacidade 
ou falsidade das premissas envolvidas"36), da autoridade e 
da convenção. Ninguém cresce sem absorver os valores do 
meio ambiente em que vive e, embora a pessoa possa rejei-
tar tais valores e pagar as consequências do ostracismo ou 
martírio, raramente alguém é bem-sucedido em criar valores 
totalmente divorciados de sua cultura. 
E certo que os valotes diferem entre as diversas culturas, 
e nenhum deles parece ser absolutamente universal. Desse 
modo, Simpson argumenta em favor de uma ética baseada 
em uma investigação objetiva e a encontra em um ajuste 
harmonioso das pessoas, umas com as outras e com seus 
respectivos meios ambientes.37 Tudo o que promove essa 
harmonia é bom; o contrário é ruim. John Platt, em um 
artigo que procura construir uma ética para o behaviorismo 
de B. E Skinner, escreve: 
Felicidade é ter reforços curtos congruentes com aqueles 
médios e longos, e sabedoria é conhecer como alcançar 
• 90 
O silêncio do espaço finito 
isso. Além disso, o comportamento ético surge quando os 
reforços pessoais curtos são congruentes com os reforços 
longos do grupo. Isso torna fácil 'ser bom' ou, mais precisa-
mente, "comportar-se bem".38 
O resultado disso é uma definição de boa ação como 
aquela que recebe a aprovação do grupo e promove a sobrevi-
vência. Tanto Simpson como Platt optam pela continuidade 
da vida humana como o valor acima de todos os outros. A 
sobrevivência, portanto, é básica, porém, é a sobrevivência 
humana que é afirmada como primária.3 9 
Ambos, Simpson e Platt, são cientistas conscientes da res-
ponsabilidade que possuem de serem plenamente humanos 
e, portanto, de integrarem o conhecimento científico que 
possuem e seus respectivos valores morais. Do lado das hu-
manidades, temos Walter Lippmann. Na obra, A Preface to 
Morais [Um prefácio para moral](\929), Lippmann assume 
a posição naturalista com respeito à origem e a ausência de 
propósito do universo. Ele objetiva construir uma ética com 
base no que assume ser o ponto de concordância central de 
"todos os grandes mestres religiosos". Para Lippmann, o bem 
sc revela como algo até agora reconhecido apenas pela elite,uma "aristocracia voluntária do espírito".4 0 Ele argumenta 
que essa ética elitista está agora se tornando mandatória para 
iodas as pessoas, caso elas queiram sobreviver à crise de valo-
res dos nossos tempos. 
O bem em si mesmo consiste no desinteresse - uma 
forma de atenuar as "desordens e frustrações" do mundo 
moderno, agora que os "ácidos da modernidade" têm corroí-
do a base tradicional para o comportamento ético. Torna-se 
• 91 • 
O universo ao lado 
difícil sintetizar o conteúdo que Lippmann deposita na pa-
lavra desinteresse. A terça parte final de seu livro é dedicada a 
isso. No entanto, é útil observar que a sua ética fundamenta-
se no compromisso pessoal de cada indivíduo de ser moral, e 
que isso está totalmente divorciado do mundo dos fatos — da 
natureza das coisas, em geral: 
Uma religião que se fundamenta em conclusões particu-
lares nas áreas de astronomia, biologia e história, pode ser 
fatalmente atingida pela descoberta de novas verdades. 
Porém, a religião do espírito não depende de credos e das 
cosmologias; não se reveste de interesse em nenhuma ver-
dade em particular. Não se preocupa com a organização da 
matéria, mas com a qualidade do desejo humano.41 
A linguagem utilizada por Lippmann deve ser cuidadosa-
mente compreendida. Por religião, ele quer dizer moralidade 
ou impulso moral. Por espírito, Lippmann quer significar a 
faculdade moral presente nos seres humanos, que exalta as 
pessoas acima dos animais e sobre outros, cuja "religião" é 
meramente "popular". A linguagem do teísmo está sendo 
empregada, porém, o seu conteúdo é puramente naturalista. 
De todo modo, o que resta da ética é a afirmação de uma 
elevada visão do certo, face a um universo que apenas existe 
e não possui qualquer valor em si mesmo. Portanto, a éti-
ca é pessoal e escolhida. Que eu saiba, Lippmann não está 
associado com os existencialistas, mas, como vetemos mais 
adiante, no capítulo 6, sua versão da ética naturalista é, em 
última análise, a deles. 
Os naturalistas buscaram construir sistemas éticos em 
uma ampla variedade de formas. Mesmo teístas cristãos 
O silêncio do espaço finito 
elevem admitir que muitas das reflexões éticas naturalistas 
são válidas. Na realidade, os teístas não deveriam se mostrar 
surpresos pelo fato de podermos aprender verdades morais 
através da observação da natureza e do comportamento hu-
mano, pois se homens e mulheres foram feitos à imagem 
de Deus, e se tal imagem não foi totalmente destruída pela 
queda, então eles ainda deveriam refletir - ainda que vaga-
mente - algo da bondade de Deus. 
Naturalismo na prát ica: humanismo secular 
Duas formas de naturalismo merecem uma atenção especial. 
A primeira é o humanismo secular, um termo que passou a 
ser usado e abusado tanto por adeptos quanto por críticos. 
Por essa razão, algum esclarecimento quanto aos termos 
se faz aqui necessário. 
Primeiro, o humanismo secular, em geral, é uma forma 
de humanismo, porém, não é a única. O humanismo em si é 
a postura global de que os seres humanos possuem um valor 
especial; seus anseios, pensamentos e aspirações são signi-
licantes. Igualmente, existe uma ênfase no valor da pessoa 
como indivíduo. 
Desde o movimento renascentista, pensadores de várias 
convicções têm sido chamados, bem como se autodenomi-
nado, humanistas, havendo entre eles muitos cristãos. João 
Calvino (1509-1564), Desidério Erasmo (1456-1536), 
Edmund Spenser (1552?-1599), William Shakespeare 
(1564-1616) e John Milton (1608-1674), os quais, sem 
exceção, escreveram em uma cosmovisão teísta cristã, eram 
93 
O universo ao lado 
humanistas, sendo, hoje em dia, algumas vezes, chamados 
de humanistas cristãos. A razão para essa designação é pelo 
fato de eles enfatizarem a dignidade humana, não contra 
Deus, mas como derivada da imagem de Deus em cada 
pessoa. Hoje, há muitos pensadores cristãos que desejam so-
bremaneira preservar a palavra humanismo de ser associada 
às formas puramente seculares, que eles assinaram um ma-
nifesto humanista cristão (1982), declarando que os cristãos 
sempre afirmaram o valor dos seres humanos.42 
Os princípios do humanismo secular estão bem expressos 
no Manifesto Humanista II.43 O humanismo secular é uma 
forma do humanismo que é totalmente estruturada dentro 
da cosmovisão naturalista. É justo afirmar, creio eu, que 
a maioria que se sente confortável dentro do rótulo "hu-
manista secular" encontrará suas visões retratadas nas seis 
proposições anteriores. Em outras palavras, os humanistas 
seculares são simplesmente naturalistas, embora nem todos 
os naturalistas sejam humanistas seculares. 
Naturalismo na prát ica: marxismo 
A partir da última parte do século XIX , umas das formas 
de naturalismo com maior relevância histórica tem sido o 
matxismo.44 No entanto, a prosperidade do marxismo tem 
decrescido ao longo dos anos; o colapso do comunismo no 
leste europeu, bem como na antiga União Soviética, resultou 
apenas em alguns poucos países "oficialmente" marxistas. 
Não obstante, durante grande parte do século XX, uma 
enorme área do globo foi dominada pelas ideias semeadas 
• 94 • 
O silêncio do espaço finito 
pelo filósofo Karl Marx (1818-1883). Nos tempos atuais, 
embora como ideologia, o comunismo aparente estar en-
fraquecido, inúmeras ideias de Marx se mantêm influentes 
entre cientistas sociais e outros intelectuais no Ocidente. 
Mesmo na Europa Oriental, os antigos comunistas, ainda 
que comedidos e professando um compromisso com a de-
mocracia, parecem estar realizando um retorno ao cenário 
político. 
É difícil expressar com brevidade uma definição sobre o 
marxismo, devido à existência de diferentes tipos de "mar-
xistas".45 Enormes distinções podem ser encontradas entre as 
teorias marxistas de diversos tipos, variando desde pensado-
res humanistas e, de alguma forma, devotados à democracia, 
até "stalinistas" do tipo linha-dura, que associam o marxis-
mo com o totalitarismo. Há outra grande diferença entre as 
teorias marxistas de todos os tipos e a realidade da prática 
marxista na antiga União Soviética, bem como em outros lu-
gares. Em teoria, supõe-se que o marxismo beneficie a classe 
trabalhadora, capacitando-a a obter o controle económico 
sobre a sua própria vida. Na realidade, porém, a rigidez bu-
rocrática da vida sob o comunismo levou a uma estagnação 
económica, bem como à perda da liberdade pessoal. 
Apesar de o marxismo reivindicar ser uma teoria cientí-
fica (tal como no nome "socialismo científico"), em geral, 
essa reivindicação não tem sido aceita. De inúmeras ma-
neiras, é mais útil pensar no marxismo como um tipo de 
humanismo, ainda que a maioria dos humanistas não seja, 
claro, marxista. Embora o humanismo marxista possua 
lemas caracteristicamente seus, o marxismo e o humanismo 
95 
O universo ao lado 
secular, como formas de naturalismo, compartilham mui-
tas suposições. 
Evidentemente, todas as formas de marxismo têm suas 
origens concentradas nos escritos de Karl Marx. A questão 
quanto aos "verdadeiros herdeiros" de Marx é acuradamen-
te disputada, porém, os marxistas mais humanistas podem, 
decerto, referir-se a alguns temas importantes nos escritos 
de Marx. Em um de seus primeiros ensaios, ele claramente 
afirma que "o homem é o ser supremo para o homem".46 
Foi a partir desse tema humanista que Marx deduziu seu 
imperativo revolucionário para a "destruição de todas aque-
las condições sob as quais o homem é um ser humilhado, 
escravizado, abandonado e desprezível".47 
Karl Marx chegou ao seu humanismo por meio de um 
encontro com dois importantes filósofos do século XIX : 
Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1830) e Ludwig 
Feuerbach (1804-1872). A filosofia de Hegel era uma forma 
de idealismo que ensinava a noção de que Deus ou "espí-
rito absoluto", não é um ser distinto do mundo, masuma 
realidade que se encontra em progressiva compreensão de si 
mesmo no mundo concreto. Para Hegel, tal processo é dialé-
tico em sua natureza, isto é, ele progride através de conflitos 
nos quais cada compreensão do espírito evoca seu próprio 
"antagonista" ou "negação". Desse conflito, emerge uma 
compreensão ainda mais elevada do espírito, que, por seu 
turno, evoca sua negação e assim por diante. Em essência, 
essa filosofia é uma filosofia altamente especulativa da histó-
ria. Para o filósofo, o mais elevado veículo de expressão do 
espírito era a sociedade humana, em particular, as modernas 
• 96 • 
O silêncio do espaço finito 
sociedades que floresciam nos estados capitalistas da Europa 
Ocidental, no século X I X . 
Já Feuerbach era um materialista que ficou famoso por 
afirmar que os seres humanos "são o que comem", e que 
a religião é uma invenção humana. Conforme sua visão, 
Deus é uma projeção da potencialidade do homem, uma 
expressão de nossos ideais inalcançáveis. A religião age de 
maneira perniciosa, pois ao inventarmos Deus, nos devota-
mos a agradar essa nossa construção imaginária, ao invés de 
trabalharmos para superar as deficiências que resultaram em 
sua invenção, em primeiro lugar. Feuerbach estendeu a sua 
crítica da religião ao idealismo filosófico de Hegel, enxer-
gando no conceito de "espírito" concebido por Hegel outra 
projeção humana, ou seja, uma versão levemente seculariza-
da do Deus cristão. 
Marx aceitou cabalmente a crítica de Feuerbach à religião, 
resultando na presença do ateísmo na grande maioria das di-
versas formas de marxismo, até os dias atuais. Entretanto, ele 
foi impactado pelo fato de que se as críticas de Feuerbach a 
Hegel estivessem corretas, então a filosofia de Hegel ainda 
poderia conter a verdade. Se o conceito de espírito de Hegel 
é apenas uma projeção equivocada da nossa realidade huma-
na, então o processo dialético descrito por ele pode ser real, 
tal como um filme que, ao ser projetado, pode fornecer um 
retrato da realidade que foi filmada. É necessário apenas "vi-
rar Hegel ao contrário", convertendo a conversa idealista de 
Hegel sobre espírito em conversa materialista de seres huma-
nos reais. Ao compreendermos que em Hegel estamos vendo 
uma projeção, ou "filme", podemos interpretar essa visão de 
97 • 
O universo ao lado 
um modo que a torne verdadeira. A história tem progredido 
mediante o conflito no qual as partes envolvidas criam os 
seus próprios antagonistas, e essa série de conflitos históricos 
vai "para algum lugar". O alvo da história é uma sociedade 
humana perfeita ou ideal, porém, é equivocado e confuso 
chamar tal sociedade de "espírito". 
Marx se autodenomina materialista e, de certo modo, 
ele certamente o é. Apesat disso, Marx raramente fala sobre 
matéria, e o seu materialismo é histórico e dialético. Prima-
riamente, é uma doutrina sobre a história humana, vendo 
tal história como uma série de lutas dialéticas, onde fatores 
económicos constituem os determinantes primários. Uma 
vez que os seres humanos são materiais, suas vidas devem ser 
compreendidas em termos da necessidade de trabalhar para 
satisfazer as suas necessidades materiais. 
Marx acreditava que a história humana tenha principia-
do com comunidades humanas relativamente diminutas, 
organizadas em tribos familiares. A propriedade privada é 
desconhecida; um tipo de comunismo primitivo ou natural 
assegura a identificação dos indivíduos com a comunidade 
como um todo, embora tais comunidades sejam pobres e 
incapazes de fornecer condições para que seus integrantes 
prosperem. A medida que as sociedades se desenvolvem 
tecnologicamente, gradualmente ocorre uma divisão de 
trabalho. Algumas pessoas na sociedade controlam as ferra-
mentas ou recursos dos quais a sociedade depende; isso lhes 
propicia poder para explorar os demais. Portanto, as classes 
sociais surgem, como resultado da divisão de trabalho e do 
consequente controle sobre os meios de produção. 
98 • 
O silêncio do espaço finito 
Para Marx, as classes sociais são os antagonistas dialéticos 
gb liistória ao invés das realidades espirituais de Hegel. Para 
lie, a história consiste na luta de classes. A partir do legado 
(Us sociedades primitivas, o domínio das sociedades sempre 
i ' IH estado nas mãos dos que controlam os meios de pro-
dução. O processo pelo qual são criados os bens materiais 
Que a sociedade demanda é a chave para compreendê-la. Tal 
pro< esso é chamado por Marx como a "base" da sociedade. 
Um sistema particular de produção de bens materiais, tal 
Como uma agricultura feudal ou o capitalismo industrial, 
produzirá uma estrutura de classe particular. Por seu turno, 
iquela estrutura de classe depende do que Marx chamou de 
u|)crestrutura" da sociedade: arte, religião, filosofia, mora-
lidade e, o mais importante, as instituições políticas. 
As mudanças sociais acontecem quando um sistema de 
I'indução "dialeticamente" promove o surgimento de um 
Bovo sistema. A nova base económica "nasce" dentro do 
VI IH te da superestrutura. As classes sociais dominantes da 
H n iga ordem tentam manter o poder por mais tempo possí-
yeli valendo-se do estado para manter a sua posição. Pouco 
,i pouco, entretanto, o novo sistema económico e a classe 
I nu igente tornam-se cada vez mais poderosos. Como resul-
i .iclo, temos uma revolução na qual a antiga superestrutura 
I iubstituída em favor de uma nova ordem política e social 
Que melhor reflete a ordem económica subjacente. 
A história do capitalismo claramente ilustra essas verdades, 
• l< acordo com Marx. As sociedades feudais da Idade Média 
ili 1.1111 lugar à moderna sociedade industrial, que constitui o 
posto dialético. Por longo período, a aristocracia feudal 
O universo ao lado 
tentou preservar o seu poder, porém, na Revolução Francesa, 
Marx viu o triunfo da nova classe média, que controlou os 
meios de produção da sociedade capitalista. Não obstante, 
algumas forças dialéticas que levaram ao capitalismo também 
concorrerão para a sua destruição, pois o capitalismo deman-
da um grande contingente de trabalhadores sem propriedades, 
o proletariado, para explorar. Conforme a compreensão de 
Marx, as dinâmicas económicas do capitalismo, necessaria-
mente, conduzirão a uma sociedade na qual o proletariado 
será cada vez mais numeroso e, por conseguinte, mais e mais 
explorado. As sociedades capitalistas tornam-se crescentemen-
te mais produtivas, porém, a distribuição da riqueza é cada vez 
menos abrangente. Com o passar do tempo, essa concentra-
ção de riqueza leva a uma sociedade na qual se produz mais do 
que o poder de compra da população; a superprodução resulta 
no desemprego e em mais sofrimento. Por fim, o proletariado 
se vê forçado a promover uma revolta. 
Para Marx, a revolta do proletariado será diferente de 
qualquer outra revolução anterior. No passado, uma classe 
social oprimida subjugava a classe opressora, tornando-se ela 
o opressor. O proletariado, enttetanto, será a maioria, não 
a minoria. Essa classe social não tem o interesse de manter 
a antiga ordem de coisas, de modo que um de seus alvos é 
abolir todo e qualquer sistema que inclua a opressão de clas-
ses. A abundância material criada pela tecnologia moderna 
torna esse objetivo uma possibilidade real e concreta, pela 
primeira vez na história da humanidade, uma vez que, sem 
tal abundância, a luta, a competição e a opressão inevitavel-
mente reapareceriam sob novas formas. 
100 
O silêncio do espaço finito 
A nova sociedade sem divisão de classes que emergirá 
tornará possível o que os marxistas denominam de "o novo 
indivíduo socialista". Supostamente, as pessoas serão me-
nos individualistas e competitivas, mais aptas a encontrar 
satisfação no trabalho para favorecer a outros. A "alienação" 
de todas as sociedades anteriores será superada, euma nova 
e superior forma de vida humana nascerá. Essa visão é, de 
muitas maneiras, paralela à visão cristã da vinda do reino de 
Deus e, portanto, torna-se fácil perceber por que alguns têm 
caracterizado o marxismo como uma heresia cristã. 
Pode-se facilmente ver por que essa visão de Marx atraiu 
tantos por tanto tempo. Ele possuía uma profunda compre-
ensão da necessidade humana por uma genuína comunidade 
e por satisfação no trabalho. Igualmente, era sensível não 
apenas aos problemas da pobreza, mas à perda de dignida-
de que ocorre quando seres humanos são vistos meramente 
como engrenagens de uma enorme máquina industtial. Ele 
almejava uma sociedade na qual as pessoas podiam criati-
vamente expressar a si mesmas por meio do trabalho e ver 
nele uma oportunidade de ajudar os outros, bem como a si 
mesmas. 
De maneira alguma é possível afirmar que, em determi-
nado momento, condições transformadoras não reacenderão 
o interesse por Marx. Alguns teóricos, por exemplo, preocu-
pam-se pelo fato de haver, nos Estados Unidos, um crescente 
vazio entre a elite económica e a grande massa de pessoas 
que se encontram economicamente estagnadas, e que essa 
crescente desigualdade possa tornar as teorias marxistas rele-
vantes novamente. 
101 
O universo ao lado 
Por outro lado, existem também questões difíceis que 
Marx não respondeu de maneira convincente. Claro que 
um conjunto de questões cruciais lida com a realidade da 
vida sob o comunismo. Como pode uma teoria que pare-
ce tão comprometida com a liberação humanista produzir a 
desumanização e opressão vista no stalinismo? Certamente, 
parte da resposta repousa nas mudanças que Vladimir Lênin 
introduziu ao marxismo. Karl Marx previu que o socialismo 
se desenvolveria nas sociedades mais avançadas economica-
mente, como Inglaterra e Estados Unidos; e ele depositava 
pouca fé na possibilidade de o socialismo se estabelecer em 
um país pouco desenvolvido como a Rússia. Lênin acredita-
va que se a sociedade fosse rigidamente controlada por um 
partido comunista monolítico, isso compensaria o atraso 
económico. Assim, muitos marxistas ocidentais se renderam 
ao argumento do "socialismo democrático" de que o estilo 
comunista-leninista era uma forma herética do marxismo e 
que as próprias ideias de Marx jamais foram consideradas. 
Não obstante, mesmo se alguém ignorar a realidade da 
vida sob o controle comunista e os horrores do Gulag, há 
muitos aspectos nos quais as ideias marxistas parecem vul-
neráveis. Uma preocupação crucial é sua crença de que a 
história humana está se movendo rumo a uma sociedade ide-
al. Ao abandonar qualquer crença religiosa na providência, 
bem como na crença de Hegel no espírito absoluto como 
subjacente à história, Marx despiu-se de qualquer base real 
para alimentar tal expectativa, fundamentando a sua própria 
esperança no estudo empírico da história, em particular, em 
sua análise das forças económicas. Entrementes, muitas das 
102 
O silêncio do espaço finito 
predições de Marx, como a sua afirmação de que os traba-
lhadores em países capitalistas avançados tornar-se-iam cada 
vez mais empobrecidos está longe de se concretizar. Pode 
algum cientista social, marxista ou não, prever com exatidão 
o futuro? 
Um segundo problema para Marx diz respeito à nos-
sa motivação ao trabalho, visando a futura sociedade, em 
especial, quando reconhecemos que essa sociedade é ab-
solutamente inevitável. Por que deveria trabalhar em prol 
de uma sociedade melhor e tentar exterminar a exploração 
social? Marx rejeita qualquer valor moral como base para 
tal motivação. Como naturalista, ele entende a moralidade 
apenas como um produto da cultura humana. Não há valo-
res transcendentais que possam ser usados como base para 
avaliar a cultura de maneira crítica. Ainda assim, Marx vê a 
si mesmo imbuído de indignação moral ao ver os excessos 
do capitalismo. Que base Matx utiliza para condenar o ca-
pitalismo se tais noções morais como "justiça" e "igualdade" 
são apenas invenções ideológicas? 
Dois problemas finais graves para Marx repousam em 
sua visão da natureza humana, bem como em sua análise 
do problema fundamental do homem. Para ele, os seres hu-
manos são fundamentalmente auto-criativos; criamos a nós 
mesmos por meio de nosso trabalho. Quando nossa labuta 
ou atividade de vida é alienada, nós nos tornamos alienados, 
porém, quando nosso trabalho torna-se verdadeiramente 
humano, igualmente seremos humanos. A ganância, a com-
petição e a inveja emergirão em função das divisões sociais e 
da pobreza; uma sociedade ideal exterminará esses males. 
103 • 
O universo ao lado 
A questão é se a visão de Marx quanto à natureza hu-
mana e sua análise do problema do homem vão fundo o 
suficiente. Realmente é plausível pensar que o egoísmo e a 
ganância são apenas produtos da escassez e da divisão de 
classes? É realmente possível tornar os seres humanos em 
seres fundamentalmente bons se tivermos o meio ambiente 
adequado para eles? Se olharmos tanto para as sociedades ca-
pitalistas quanto para as assumidamente socialistas, veremos 
que a história parece nos ensinar que os seres humanos são 
muito criativos em descobrir maneiras de manipular qual-
quer sistema em seu próprio e egoísta benefício. É possível 
que o problema com a natureza humana esteja mais profun-
damente arraigado do que supôs Marx. E isso pode expor 
outro problema com respeito à sua visão dos seres humanos: 
somos seres puramente materiais? 
Certamente, Marx estava correto em enfatizar o trabalho 
e os fatores económicos como elementos crucialmente im-
portantes no processo de modelagem da sociedade humana, 
mas a vida humana vai além da economia. Por certo, muitos 
jovens nos países mais avançados economicamente lutam 
para encontrar propósito e significado para suas vidas. O 
marxismo, como todas as formas de naturalismo, enfrenta 
um período difícil na tentativa de prover tal significado e 
propósito para os seres humanos. 
A persist ência do naturalismo 
Ao contrário do deísmo, o naturalismo tem apresentado um 
grande poder de permanência. Concebido no século X V I I I , 
104 
O silêncio do espaço finito 
ele se desenvolveu no século X I X , chegando à maturidade no 
século XX. Embora os sinais da idade estejam agora surgin-
do e os corneteiros pós-modernos sinalizem a morte da razão 
do iluminismo, o naturalismo ainda está muito vivo, pois 
domina as universidades, as faculdades e escolas secundárias. 
Isso fornece o quadro para a maioria dos estudos científicos; 
isso expõe o pano de fundo no qual a humanidade prossegue 
em sua luta para obter o valor humano, enquanto escrito-
res, poetas, pintores e artistas, em geral, estremecem diante 
de suas implicações.4 8 Ele é visto como o grande vilão da 
vanguarda pós-moderna. Todavia, até o momento, nenhu-
ma cosmovisão rival tem sido capaz de fazer-lhe frente, em 
que pese ser justo afirmar que o século X X forneceu algumas 
opções poderosas e o teísmo esteja experimentando um tipo 
de renascimento em todos os níveis da sociedade. 
Mas, então, o que torna o naturalismo tão persistente? 
Existem dois motivos básicos. Primeiro, ele dá a impres-
são de ser honesto e objetivo. A pessoa é solicitada a aceitar 
apenas o que parece estar fundamentado em fatos e nos re-
sultados seguros da investigação científica ou da erudição. 
Segundo, para um grande contingente de pessoas, o natura-
lismo parece coerente. Para elas, as implicações das premissas 
naturalistas são extensamente trabalhadas e consideradas 
aceitáveis. O naturalismo assume a inexistência de qualquer 
deus, espírito ou vida além-túmulo, vendo os seres humanos 
como formadores de valor. Muito embora tal noção não per-
mita que sejamos considerados como o centro do universo 
por virtude de propósito, ela permite que nos coloquemos 
no centro, fazendo de nóse para nós algo de valor. Como 
105 
O universo ao lado 
afirma Simpson: "O homem é o animal mais elevado. O fato 
de ele ser o único capaz de fazer tal julgamento é, por si só, 
parte da evidência de que essa decisão é correta".4y Depende 
de nós, então, desenvolver as implicações da posição espe-
cial que ocupamos na natureza, controlando e alterando, o 
quanto possível, a nossa própria evolução.5 0 
Tudo isso é deveras atraente. Se o naturalismo fosse re-
almente conforme é descrito, talvez devesse ser chamado 
não apenas de atraente ou persistente, mas de verdadeiro. 
Poderíamos, então, prosseguir em busca de suas virtudes e 
transformar o argumento deste livro em um tratado de nos-
sos tempos. 
Contudo, muito antes do término do século XX, racha-
duras começaram a surgir na estrutura. Os críticos teístas 
sempre encontraram falhas nela, jamais abandonando as 
suas convicções de que um Deus infinito e pessoal está por 
detrás do universo. Suas críticas podem ser ignoradas por 
serem consideradas pouco esclarecedoras ou meramente 
conservadoras, como se estivessem com receio de se lança-
rem nas inexploradas águas da nova verdade, porém, havia 
muito mais em ação além disso. Como veremos em detalhes 
no próximo capítulo, bem como no capítulo nove sobre o 
pós-modernismo, surgiram rumores de descontentamento 
dentro do campo dos próprios naturalistas. Os fatos nos 
quais o naturalismo foi fundamentado - a natureza do uni-
verso exterior, sua continuidade fechada de causa e efeito 
- não estavam em questão. O problema era a coerência. Te-
ria o naturalismo nos fornecido uma razão adequada para 
nos consideramos dotados de valor? Únicos, talvez, porém, 
106 
O silêncio do espaço finito 
os gorilas também são singulares, tal como cada categoria da 
natureza. O valor foi a primeira questão incómoda. Poderia 
um ser surgido ao acaso ter dignidade? 
Segundo, poderia um ser cujas origens eram tão "questio-
náveis" confiar em sua própria capacidade de conhecimento? 
i iazendo a questão para o âmbito pessoal: se a minha mente 
é adjacente ao meu cérebro, se "eu" sou apenas uma máqui-
na pensante, como posso confiar em meu pensamento? Se a 
Consciência é um fenómeno consequente da matéria, talvez o 
surgimento da liberdade humana que apresenta a base para a 
moralidade seja um fenómeno resultante do acaso ou de uma 
lei inexorável. Talvez o acaso ou a natureza das coisas tenha 
apenas incutido em mim o "sentimento" de que sou livre, mas 
na verdade eu não sou. 
Essas e outras questões similares não surgiram fora da cos-
movisão naturalista, mas são inerentes a ela. Os receios que 
tais questões alimentaram em algumas mentes levaram dire-
i a mente ao niilismo, que tentarei chamar de cosmovisão, mas 
que na realidade é uma negação de todas as cosmovisões. 
107 
Capítulo cinco 
Se me despojasse desse casaco esfarrapado 
MARCO ZERO 
Nii l ismo 
E seguisse livre ao poderoso céu; 
Se nada encontrasse lá 
Exceto um vasto azul, 
Silencioso e ignorante, 
E en tão? 
Stephen Crane, The Black Riders 
and Others Lines [Os cavaleiros negros e outras linhas] 
ONIILISMO É MAIS UM SENTIMENTO que propr iamen t e u m a filosofia. Sen do mais preciso, o n i i l i sm o, de for ma 
alguma, é u m a filosofia, mas u m a n egação dela, da possibi-
lidade de con h ecimen t o e de tudo aquilo que possui valor . 
Ao avan çar para a absoluta n egação de t udo, o n ii l ism o nega 
at é mesmo a realidade de sua p r óp r ia exist ên cia. E m outras 
O u n i ver so ao l ad o 
palavras, o n i i l ism o é a n egação de todas as coisas - con h e-
cim en t o, ét ica, beleza, realidade. N o n i i l ism o n en h u m a 
afi r m ação possui validade; n ada t em sign ificado. An t es, t udo 
é gratu ito, d ispen sável, isto é, apenas existe. 
Aqueles que per man ecem in sen síveis pelos sen t imen -
tos de desespero, ansiedade e t éd io , associados ao n i i l i sm o, 
talvez ach em difícil imagin ar que ele poder ia ser u m a "cos-
m ovi são" con siderada com seriedade. Mas ele o é e m u it o 
bem por todo aquele que deseja compreen der os sécu los X X 
e X X I , a fim de exper imen tar , ain da que in dir et amen t e, algo 
do n i i l ism o como u m a postura an te a exist ên cia h u m an a. 
As galerias de arte m oder n a est ão repletas de seus pr odu-
tos - como se fosse possível falar de algo (objetos de ar te) 
proven ien tes do n ada (ar t istas que, se exist em, n egam o va-
lor supremo de sua p r ópr ia exist ên cia). Co m o veremos mais 
adian te, n en h u m a arte é, no fim das con tas, n ii l ist a, p o r é m 
algumas pr ocu r am in cor por ar muit as das car act er íst icas 
n iilist as. O u r in ol de porcelan a co m u m de Mar eei Du ch am p , 
en con t rado em qualquer loja do gén er o, assinado com u m 
n om e fictício e rotu lado como "A Fon t e", con st it u i u m bom 
pon to de par t ida. As peças de Sam u el Becket t , em especial, 
Fim de jogo e Esperando Godot, são exemplos expon en ciais n a 
arte d r am át ica. P or ém , a arte n ii l ist a de Becket t talvez t en h a 
alcan çad o o seu auge em Breath (Su spir o), u m a peça de t r in -
t a e cin co segundos que dispensa atores h u m an os. O cen ár io 
é con st i t u íd o de u m a p i lh a de en t u lh o n o palco, i lu m in ad a 
por u m a luz que com e ça a d im in u i r de in ten sidade, para 
depois aumen t ar (mas jamais plen amen te) e, en t ão, regre-
d ir at é a total escu r idão. N ã o h á palavras, apenas u m ch oro 
110 
Marco zero 
"gravado" n a aber tura da peça, u m a in sp ir ação e exp ir ação, 
e o mesmo lamen to in ic ial , en cer ran do a apr esen t ação. Par a 
Becket t , a v ida é como t al "suspiro". 
Douglas Adam s, em seus roman ces cósm icos de ficção 
cien t ífica, ret rata a si t u ação dos que buscam n a ciên cia da 
co m p u t ação u m a resposta ao sign ificado do h om em . E m 
suas obras, O guia do mochileiro das galáxias, O restaurante 
do fim do universo, Vida, O universo e tudo o mais, além de, 
Até mais, e Obrigado pelos peixes, Adam s nos con t a a h ist ór ia 
do un iver so a par t ir do pon to de vist a de quat ro viajan tes 
do t empo que pegam caron a, in do para t rás e para fren te, 
pelo t empo e espaço in t er galáct ico, da cr iação n o Big Bang 
à dest r u ição do un iver so.1 N o decurso da h ist ór ia, u m a r aça 
de seres pan dimen sion ais e h iper in teligen tes (n a verdade, 
camun don gos) desenvolve u m comput ador gigantesco ("do 
t aman h o de u m a pequen a cidade"), para responder "A ques-
tão fun damen t al da vida, do un iver so e tudo o mais". Esse 
computador , a qu em d en om in am de Pen samen to Pr ofun do, 
leva sete m ilh ões e meio de anos nos cálcu los. 2 
"Por sete m ilh ões e meio de anos, Pensador Profun do com -
pu t ou e calcu lou e, por fim, an un ciou que a resposta de fato 
era 42 - assim outro computador ain da maior teve que ser 
con st r u ído para descobrir qual era a pergun ta afin al. 
E esse computador , que foi ch amado de Ter r a, era t ão 
grande que frequen temen te era con fun dido com u m pla-
neta — especialmen te pelos est ranhos seres parecidos com 
macacos que per am bu lavam por sua super fície, totalmen te 
ignoran tes do fato de que simplesmen te faziam parte de u m 
gigantesco programa de computador . 
• 111 • 
O u n i ver so ao l ad o 
O que é m u i t o est ran h o, pois sem o con h ecimen t o desse 
fato básico e razoavelmen te ób vio , n ada do que acon tecia n a 
Ter r a poder ia fazer o m en or sen t ido. In felizmen t e, p o r é m , 
pouco antes do m om en t o cr ít ico da con clu são do programa 
e leit u r a do resultado, a Ter r a foi in esperadamen te demolida 
pelos Vogon s para dar lugar — era o que alegavam - a u m a 
v ia expressa estelar, e assim qualquer esper an ça de descober-
ta de u m sen t ido para a vida se perdeu para sempre.O u era 
o que par ecia."3 
A o final da segunda obra, os viajan tes do t empo desco-
b r i r am que a "qu est ão em si " (A qu est ão fun damen t al da 
vida, do un iver so e tudo o mais) é "Q u a l o resultado de seis 
vezes n ove". 4 Assim , eles descobrem que tan to a pergun ta 
quan to a resposta são fú t eis. N ã o apenas 42 é u m a respos-
ta sem sen t ido para a qu est ão do pon to de vist a h u m an o 
(da perspect iva de p r op ósi t o e sign ificado), como t a m b é m 
é m at e m át i ca das piores. A mais r acion al das disciplin as 
un iver sit ár ias foi r eduzida ao absurdo. 
Já n o final do t erceiro volu m e, en con t r am os u m a exp l i -
cação da r azão porque, per gun t a e resposta par ecem n ão se 
en caixar u m a à ou t r a. P r ak , o per son agem que se su pu n h a 
con h ecer o sen t ido final, afir m a: " E u lam en t o dizer - falou 
por fim - que a per gun t a e a resposta são m u t u am en t e 
exclusivas. Por lógica, o con h ecim en t o de u m a impede o 
con h ecim en t o da ou t r a. É im possíve l que ambas possam 
ser con h ecidas n o m esm o u n iver so". 5 (Aq u i os estudan tes 
de física podem detectar u m jogo com o p r in c íp io da i n -
cer teza de H eisen ber g, em que a p osi ção e o m om en t o de 
u m elét r on podem ser ambos con h ecidos, p o r é m n ão com 
pr ecisão ao m esm o t em po). 
112 
Marco zero 
Por t an t o, podemos saber as respostas, como 42, que n ada 
sign ificam sem as qu est ões. O u podemos ter as qu est ões 
(que d ão d ir eção à nossa busca), p o r é m n ão podemos ter 
ambos. O u seja, n ão podemos satisfazer nosso anseio pelo 
sign ificado final. 
Le r Sam u el Becket t , Fr an z Kafk a , Eu gen e Ion esco, 
Joseph H el le r , Ku r t Von n egu t Jr . e, mais r ecen t emen te, 
Douglas Ad am s, é com e çar a sen t ir - se a l gu é m já n ão se 
sen t iu assim em nossa depr im en t e era - a an gú st i a do vazio 
h u m an o , de u m a v id a que é desprovida de valor , de p r o p ó -
sito, de sign ificado.6 
Mas, como a lgu ém sai do n at u r alismo para o n iilismo? 
N ã o era o n at u r alismo a leit u r a i lu m in ad a dos resultados 
garan t idos da ciên cia e in vest igação in t electual aberta? 
Co m o cosm ovisão , n ão con fer ia aos seres h u m an os a sua 
sin gular idade en tre todas as coisas n o cosmos? N ã o most rava 
a dign idade e o valor h uman o? Co m o o áp ice da cr iação, os 
ú n icos seres autoconscien tes e autodetermin ados n o un iver -
so, h omen s e mulh eres d om in am sobre t udo, são livres para 
valor izar o que desejam, livres at é mesmo para con t rolar o 
futuro de sua p r óp r ia evolu ção. O que mais a lgu ém poder ia 
almejar? 
A m aior ia dos naturalistas se satisfaz em finalizar a sua i n -
vest igação aqu i, pois, n a verdade, n ão querem ir além . Para 
eles, n ão h á rot a para o n i i l ism o. 
N o en tan to, para u m grande n ú m e r o de pessoas, os re-
sultados da r azão n ão são t ão garan t idos, o un iver so fechado 
est á se r est r in gin do, a n oção de mor t e como ext in ção é psi-
cologicamen te per turbadora, nossa posição com o o ser mais 
1 1 3 -
O u n i ver so ao l ad o 
elevado da cr iação é vist a ou como u m a alien ação do u n i -
verso ou como u m a u n ião com ele de modo que n ão temos 
m aior valor que u m seixo n a praia. N a verdade, os seixos "v i -
vem " mais! Que pon tes levam de u m n at u r alismo que afir ma 
o valor da vida h u m an a para u m n at u r alismo que n ão o faz? 
Co m o exatamen te su r giu o n iilismo? 
O n iil ism o n ão surgiu porque os teístas e deíst as desconsi-
deraram o n aturalismo, pois o n iil ism o é filho n atural desse. 
A p r im ei ra p o nt e: necessidade e acaso 
A pr im eir a e mais básica r azão para o n i i l ism o pode ser en -
con t r ada nas im pl icações diretas e lógicas das p r oposições 
p r im ár ias do n at u r alismo. Perceba o que acon tece ao con cei-
to da n atureza h u m an a quan do a lgu ém con sidera ser iamen te 
as n oções de que (1) a m at ér ia existe etern amen te e é tudo 
o que h á, e que (2) o cosmo opera com u m a un ifor m idade 
de causa e efeito em u m sistema fechado. Isso sign ifica que 
o ser h u m an o é par te de u m sistema. M u i t o embor a possam 
n ão compreen der as im pl icações para a liberdade h u m an a, 
os naturalistas con cor dam , como vim os n a p r op osição 3 do 
cap í t u lo quat ro: Os seres humanos são máquinas complexas 
cuja personalidade é uma inter-relação de propriedades quími-
cas e físicas ainda não totalmente compreendidas. Niet zsch e, 
en t retan to, d á o b r aço a torcer e reconh ece a perda da dig-
n idade h u m an a: 
Se alguém fosse onisciente, seria capaz de calcular cada ação 
individual [humana] antecipadamente, cada passo no pro-
gresso do conhecimento, cada erro, cada ato de malícia. 
114 
Marco zero 
Sem dúvida, o homem atuante é surpreendido em sua ilusão 
de vontade; se a roda do mundo tivesse que parar, ainda que 
por um momento, e uma mente onisciente e calculista esti-
vesse lá para aproveitar-se dessa in terrupção, ela seria capaz 
de relatar o futuro longínquo de cada ser e descrever cada 
giro que a roda dará. O delírio do homem sobre si mesmo, 
sua suposição de que o livre-arbítrio existe, t ambém faz parte 
do mecanismo de cálculo.7 
A i n d a assim, muit os naturalistas t en t am susten tar a 
liberdade h u m an a em u m sistema fechado. O argumen to 
deles segue essa l in h a. Tod o even to n o un iver so é provocado 
por u m estado an t er ior de at ividades, in clu in do-se a 
fo r m ação gen ét ica, a con d ição ambien t al de cada pessoa e 
at é mesmo os seus anseios e von tades pessoais. P or ém , cada 
pessoa é livr e para expressar tais desejos e von tades. Se eu 
t en h o von tade de comer u m san d u ích e e h á u m a lan ch on ete 
logo al i , n a esquin a, posso escolher com ê- lo . Se o m eu desejo 
é roubar o san d u ích e quan do o don o n ão est iver olh an do, 
posso fazê- lo. Nad a rest r inge m in h a escolh a. Sou eu qu em 
det er m in a as m in h as pr ópr ias ações. 
Por t an t o, os seres h u m an os que são obviamen te auto-
-conscien tes e, ao que parece, au todetermin ados, podem 
agir de modo sign ificat ivo e ser considerados r espon sáveis 
por seus atos. Pelo roubo do san d u ích e posso ser preso e 
obr igado a cu m p r i r a pen a respect iva. 
Mas, as coisas são simples assim? Mu it os pen sam que 
n ão . A qu est ão da liberdade h u m an a é mais profun da que 
a visão dos n aturalist as. Por cer to, posso fazer tudo aqui-
lo que desejo, mas o que eu quero é resultado de si t u ações 
115 
O u n i ver so ao l ad o 
passadas, sobre as quais, n o fim das con tas, n ão exerço con -
t role algum. E u n ão escolh i livr emen t e a m i n h a for m ação 
gen ét ica par t icu lar ou m eu ambien te familiar or igin al. A o 
t empo que in daguei se era livre para agir con for me desejasse, 
já estava t ão moldado pela n atureza e pela m i n h a ed u cação 
que o p r óp r io fato de a qu est ão ter surgido em m in h a m en -
te foi det ermin ado. Isto é, o m eu eu foi det ermin ado por 
for ças externas. Posso, de fato, fazer tais quest ion amen tos, 
eu posso agir de acordo com min h as von tades e desejos e 
posso parecer a m i m mesmo livr e, p o r é m isso é só apar ên cia. 
Niet zsch e est á cer to: " O delír io do h om em sobre si mesmo, 
sua su posição de que o livre-arbít r io existe, t a m b é m faz par-
te do mecan ismo de cálcu lo". 
O problema é que se o un iverso for verdadeiramen te 
fechado, en t ão a sua at ividade pode apenas ser governada por 
den t ro. Qualquer força que atue para modificar o cosmo, seja 
em que n ível for (m icr oscópico, h u m an o ou m acr oscóp ico), 
faz parte do pr ópr io cosmo. Por tan to, pareceria haver u m a 
única explicação para as m u d an ças: o estado de coisasatual 
deve governar o estado futuro. E m outras palavras, o presente 
deve causar o futuro que, por seu t u r n o, deve provocar o pr ó-
xim o futuro, e assim por dian te. 
A ob jeção de que em u m un iver so ein sten ian o de t em-
po-relat ividade é im possíve l defin ir a simult an eidade, e que 
ligações causais são im possíveis de provar n ão é o pon t o aqu i. 
N ã o estamos falando sobre como os eventos est ão ligados 
un s aos out ros, apenas observando que eles est ão conecta-
dos. Even t os ocor r em em con sequ ên cia de out ros eventos 
ocot r idos an tes. Tod a e qualquer at ividade n o un ivet so est á 
• 1 1 6 -
Marco zero 
con ectada dessa for ma. Talvez n ão nos seja possível con h ecer 
quais são essas con exões, mas a premissa de u m un iver so 
fechado nos for ça a con clu ir que elas t êm de exist ir . 
Al é m do mais, h á evidên cias de que tais con exões real-
men te exist em, pois pad r ões de eventos são per cept íveis, 
sendo que alguns even tos podem ser previstos do pon t o de 
vist a de t empo terrestre quase que com absoluta pr ecisão. 
Por exemplo, é possível prever com exat idão quan do e on de 
o p r ó xi m o eclipse ocor r er á. Par a cada eclipse a ocor rer nos 
p r óxim os quin ze sécu los é possível prever e rastrear a som-
bra exata, n o t empo e espaço, sobre a super fície da ter ra. 
A m aior ia dos eventos n ão pode ser prevista, mas pres-
su põe- se que a impr evisibilidade existe apenas porque 
todas as var iáveis e suas in t er - r elações n ão são con h ecidas. 
Det er m in ados eventos são mais previsíveis que out ros, po-
r ém n e n h u m é incerto. Cad a even to deve v i r a ser. 
E m u m un iver so fech ado, a possibilidade de algumas coi-
sas necessitarem n ão ser, de modo que outras sejam possíveis, 
n ão é possível. Pois a ú n ica m an eir a de ocorrer u m a m u d an -
ça é por meio de u m a for ça em m ovim en t o para causar tal 
m u d an ça , e a ú n ica m an eir a de essa for ça surgir é se ela for 
m ovida por ou t r a for ça, ad infinitum. N ã o h á rupturas nessa 
cadeia, da etern idade passada à etern idade fu t u r a, para todo 
o sempre, a m é m . 
Par a u m a pessoa co m u m , o det er min ismo n ão parece ser 
problema. E m geral, percebemo-nos como agentes livres, 
p o r é m a nossa per cepção é u m a ilu são. Apen as n ão sabemos 
qual a "causa" que nos levou a decidir . Algo o fez, claro, mas 
sen t imos que foi nossa liberdade de escolha. Essa per cepção 
• 117 • 
O u n i ver so ao l ad o 
de liberdade - se a lgu ém n ão pensa m u i t o em suas im plica-
ções - é suficien te, pelo men os de acordo com algun s.8 
E m outras palavras, em u m un iver so fech ado, a liberda-
de deve ser u m a determinável desconhecida, e para os que 
refletem sobre suas im pl icações, n ão basta apenas per m it ir 
a au t od e t e r m in ação ou a responsabilidade m or al . Se roubei 
u m ban co, em ú l t im a an álise, isso ocor reu devido à ação de 
forças in exoráveis (embor a im per cep t íve is), in fluen cian do as 
m in h as decisões de tal modo que eu n ão poder ia con siderar 
tais decisões como m in h as. Se essas decisões n ão são m in h as, 
n ão posso ser con siderado r espon sável por elas. E esse ser ia o 
caso com respeito a cada ação pessoal. 
Assim , u m ser h u m an o é u m mero elemen to da m aqu i-
n ar ia, u m br in quedo — m u it o complicado e complexo, mas 
u m br in quedo de for ças cósm icas impessoais. A autocon sci-
ên cia da pessoa é apenas u m ep i fen ôm en o , apenas parte da 
m aqu in ar ia olh an do para si mesma. P or ém , con sciên cia é 
apenas parte do mecan ismo; n ão existe o "eu " fora dela. N ã o 
h á "ego" que possa se colocar con t r a o sist ema e m an ip u lá- lo 
con for m a sua von tade 
A sua "von t ade" é a von tade do cosmo. Nesse quadro, 
a p r op ósi t o , temos u m a excelen te descr ição dos seres h u -
man os con forme a visão do psicólogo com por t am en t al B. 
E Skin n er . Par a promover m u d an ças nas pessoas, d iz ele, 
m u de o ambien t e delas, as con t in gên cias sob as quais elas 
agem, as for ças atuan tes sobre elas. A pessoa deve responder 
n a mesma moeda, pois, n a visão de Sk in n er , cada pessoa é 
apenas reagente: "U m a pessoa n ão age n o m u n d o, mas o 
m u n do é que age sobre ela".9 
118 • 
Marco zero 
O s n iilist as seguem esse argumen to, que agora pode ser 
expresso brevemen te: O s seres h uman os são m áq u in as con s-
cien tes sem a capacidade de afetar os seus p r óp r ios dest inos 
ou realizar algo sign ificat ivo; por t an to, os seres h uman os 
com o seres de valor est ão mor tos. A vida deles é o "fôlego" 
da peça de Becket t , n ão a v ida que Deu s "soprou" n o p r im ei-
ro h om em , no jar d im do Ed e n (Gén esis 2 .7) . 
Talvez o curso de m eu argumen to t en h a sido m u it o rá-
pido. Ser á que esqueci alguma coisa? Algu n s naturalistas 
cer tamen te d i r iam que sim . Eles d i r iam que me equivoquei 
quan do disse que a ú n ica explicação para a m u d a n ç a é a con -
t in u idade de causa e efeito. Por exemplo, Jacques M o n o d 
at r ibu i todas as m u d an ças básicas - cer t amen te, o su r gimen -
to de algo gen uin amen t e n ovo, ao acaso. E os naturalistas 
adm it em que novas coisas v ê m a exist ir at r avés de in con t áveis 
t r ilh ões: cada etapa n a escala evolu cion ár ia do h id r ogén io , 
carbon o, oxigén io , n i t r ogén io e assim por dian te em associa-
ção livr e at é a for m ação de am in oác id os complexos e out tos 
blocos básicos formadores de vida. A cada ciclo, e isso foge 
ao nosso cálcu lo - o acaso in t r odu ziu a n ovidade. En t ão , a 
necessidade, ou o que M o n o d ch am a de "a m aqu in ar ia da 
in var iân cia", en t r ou em ação e du pl icou o p ad r ão de acaso 
pr oduzido. Pau lat in amen t e, ao longo de muit as eras e por 
meio da cooper ação en tre o acaso e a necessidade, a vida 
celular , a vida mult icelu lar , o rein o vegetal e an im al e os se-
res h u m an os su r gir am . 1 0 Logo, o acaso é oferecido como o 
gat ilh o que levou ao surgimen t o da h uman idade. 
Mas, o que é o acaso? O u o acaso é a in exor ável pr open -
são de a realidade acon tecer com o acon tece, aparen t an do 
1 1 9 -
O u n i ver so ao l ad o 
ser ao acaso porque n ão con h ecemos a r azão pelo que acon -
tece (dan do o n om e de acaso à nossa ign or ân c ia das for ças 
do d e t e r m in ism o), ou ele é absolu t amen t e i r r ac i o n a l . " N o 
p r im eir o caso, o acaso apenas é o de t er m in ism o desco-
n h ecido e n ão liberdade de m an eir a algu m a. N a segun da 
alt er n at iva, o acaso n ão é u m a exp l icação, mas a au sên cia 
d e la . 1 2 U m even to ocor r e. N e n h u m a causa pode ser deter-
m in ad a. Est e é u m even to ao acaso. N ã o apenas t al even to 
poder ia n ão ter acon t ecido, com o sua ocor r ên cia poder ia 
jam ais ser esperada. Assi m , em bor a o acaso pr odu za a apa-
r ên cia de liberdade, n a realidade, ele in t r odu z o absurdo. 
O acaso é sem causa, sem p r op ósi t o e sem d i r e ção . 1 3 É u m 
in esperado gratu it o — gratu idade en car n ada em t empo e 
e sp aço . 
Todavia, como afir ma M on od , o acaso in t r odu ziu u m 
em p u r r ão no t empo e n o espaço em u m a n ova d ir eção. U m 
even to ao acaso n ão possui u m a causa, mas é, em si mesmo, 
u m a causa, sendo agora u m a parte in t egral do un iver so fe-
ch ado. O acaso abre o un iver so n ão para a r azão, o sen t ido e 
o p r op ósi t o , mas ao absurdo. Repen t in amen t e , n ão sabemos 
onde estamos, n ão somos mais u m a flor n o tecido sem cos-
t u r a do un iver so, mas u m a ver ruga ocasion al n a pele lisa do 
impessoal. 
O acaso, en t ão , n ão fornece ao n aturalist a o que é 
n ecessár io para u m a pessoa ser tan to autocon scien te quan to 
livr e, p o r é m apenas permit e que algu émseja autoconscien te 
e sujeito ao capr ich o. Ação capr ich osa n ão é u m a expr essão 
livre de u m a pessoa com carátet . Simplesmen t e é gratuit a, 
sem u m a causa. Por defin ição, a ação capr ich osa n ão é u m a 
120 • 
Marco zero 
resposta à au t od e t e r m in ação e, por t an to, isso ain da nos deixa 
sem u m a base para a mor alidade.1 4 Ta l ação simplesmen te é. 
E m suma: a pr im eir a r azão para o n aturalismo tornar-se 
n ii l ism o é que o n aturalismo n ão fornece u m a base sobre a 
qual a pessoa pode agir de modo sign ificat ivo. A o con t r ár io, 
ele nega a possibilidade de u m ser autodetermin an te que pode 
escolher sobre a base de u m caráter autoconscien te in ato. 
Somos m áqu in as - determin adas ou capr ichosas. N ã o somos 
pessoas dotadas de au t ocon sciên cia e au t od e t e r m in ação . 
A segunda p ont e: a g rande nuvem do des-
co nhecid o 
A pr essu posição m et afísica de que o cosmo é u m sistema 
fechado possui im pl icações n ão apenas met afísicas, mas 
t am b é m ep ist em ológicas. E m resumo, o argumen to é esse: 
se qualquer pessoa é o resultado de forças impessoais, seja 
surgin do aciden talmen te ou por u m a lei in exor ável, essa 
pessoa n ão possui meios de saber se o que ela con h ece é ver -
dadeiro ou ilu sór io. Vejamos como isso ocorre. 
O n at u r al ism o sust en ta que a p e r cep ção e o con h eci-
men t o são ou idên t icos ao cér ebr o ou subprodu t os dele, 
su r gin do a par t ir do fu n cion am en t o da m at é r ia . Sem esse 
fu n cion am en t o n ão h aver ia pen samen t o. Con t u d o , a m a-
t ér ia fu n cion a por sua p r óp r i a n at u r eza. N ã o h á r azão para 
se pen sar que a m at é r ia possui qualquer in teresse em levar 
u m ser con scien te à ver dadeir a p e r cep ção ou a con clu sões 
lógicas (isto é, cor retas) baseadas n a ob se r vação acurada e 
em p r e ssu p osições ver dadeir as. 1 5 O s ú n icos seres em todo 
• 121 
O u n i ver so ao l ad o 
o un iver so que se preocupam com tais assun tos são os h u -
m an os. Mas as pessoas est ão rest r itas aos seus corpos. A 
sua con sciên cia surge de u m a com plexa in t er - r e lação de 
m at é r ia alt amen t e "orden ada". Mas, por que essa m at é r ia , 
seja ela qu al for , t er ia con sciên cia de estar, de algu m a for -
m a, r elacion ada com o que r ealmen te é o caso? Exist e u m 
teste para se d ist in gu ir a i lu são da realidade. O s n at u r a-
listas apon t am para os m é t o d o s da in vest igação cien t ífica, 
dos testes p r agm át i co s, e assim por d ian t e. P or ém , todos 
eles u t i l i zam o cér ebr o que est ão t estan do. Cad a teste pode 
m u i t o bem ser u m exer cício in ú t il de pr olon gar a con sis-
t ên cia de u m a i lu são. 
Para o n at u r alismo n ada existe fora do p r óp r io sistema. 
N ã o h á Deu s - enganoso ou n ão , perfeito ou imper feit o, 
pessoal ou impessoal. Somen te existe o cosmo, e os seres 
h u m an os são os ú n icos seres conscien tes. Eles são os retar-
dat ár ios. Eles "su r gir am", mas h á quan to tempo? O s seres 
h u m an os podem con fiar em suas men tes, em sua razão? 
O p r óp r io Ch ar les D a r w i n afir m ou : "Sempr e surge a 
terr ível d ú vid a se as con vicções da men te h u m an a, que se de-
sen volveram da men te de an imais in fer iores, possuem algum 
valor ou são con fiáveis afin al. Al gu é m con fiar ia n a con vicção 
da men te de u m macaco, se é que h á qualquer con vicção em 
tal men t e?1 6 E m outras palavras, se o m eu cér ebr o n ada mais 
é que o cér ebr o evolu íd o de u m macaco, n ão posso n em 
mesmo ter a cer teza de que a m i n h a p r óp r ia t eor ia quan to à 
m in h a or igem é con fiável. 
Aq u i est á u m caso cur ioso: Se o n at u r alismo de D a r w i n 
for verdadeiro, n ão h á n em mesmo como estabelecer sua 
122 
Marco zero 
credibilidade, quan to mais pr ová- la. A con fian ça n a lógica é 
descar tada. Assim a p r óp r ia t eor ia de D a r w i n sobre a or igem 
do h om e m deve ser aceita por u m ato de fé. Al gu é m deve 
susten tar que u m cér ebr o, u m disposit ivo que su rgiu at ra-
vés da seleção n at u r al e pat rocin ado por m u t ações ao acaso, 
pode realmen te saber a veracidade de u m a p r op osição ou u m 
con ju n t o delas. 
C . S. Lew is apresen ta esse caso da seguin te for ma: 
Se tudo o que existe é Natureza, o grande evento entrela-
çador sem propósito, se nossas convicções mais profundas 
são apenas subprodutos de um processo irracional, en tão, 
claramente não existe o menor fundamento para supor que 
nosso senso de apt idão e nossa consequente fé na unifor-
midade nos revelam algo sobre a realidade externa a nós 
mesmos. Nossas convicções são simplesmente um fato sobre 
nós — como a cor de nossos cabelos. Se o naturalismo é 
verdadeiro, não temos razão para confiar em nossas convic-
ções de que a Natureza é un iforme.1 7 
O que necessitamos para t al cer teza é a exist ên cia de 
algu m "Esp í r i t o Rac ion al " extern o, t an to a n ós quan to à 
n atureza, do qual nossa racion alidade poder ia der ivar . O te-
ísm o p r essu põe t al fun damen t o; o n at u r alismo n ão. 
N ã o só estamos encaixotados pelo passado - nossa or i -
gem em m at ér ia in con scien t e e in an im ada - como t am b é m 
estamos encaixotados pela nossa atual si t u ação como pensa-
dores. Digam os que acabei de completar u m argumen to do 
t ipo: "Todos os h omen s são mor t ais. Ar ist ót eles On assis é 
h om em ; Ar ist ót eles On assis é m or t al". Essa é u m a con clu são 
demon st r ada, concorda? 
123 • 
O u n i ver so ao l ad o 
Bem, como sabemos que a conclusão está certa? Simples. E u 
obedeci às leis da lógica. Que leis? Como sabemos que elas são 
verdadeiras? Elas são autoeviden tes. Afin a l , qualquer pensa-
men t o ou com u n icação ser ia possível sem elas? Não. En t ão , 
elas n ão são verdadeiras? Não necessariamente. 
Qualquer argumen t o con st r u íd o por n ós im pl ica em 
tais leis - aquelas clássicas de iden t idade, n ão con t r ad ição 
e o meio excluden te. P or ém , esse fato n ão garan te a "vera-
cidade" dessas leis n o sen t ido de que n ada do que pensamos 
ou dizemos que obedecem-lhes necessar iamen te se relacio-
n a ao que é assim n o un iver so objet ivo e extern o. Alé m do 
mais, qualquer argumen to para ver ificar a validade de u m 
argumen to é, em si mesmo, u m argumen to que pode ser 
equivocado. Quan do co m e çam o s a pensar assim, n ão esta-
mos longe de u m regresso in fin i t o; nosso argumen to t en ta 
alcan çar sua p r óp r ia cauda nos sempre ret roat ivos corredores 
da men te. O u para m u dar a imagem, desor ien tamo-n os em 
u m m ar de in fin idades. 
Mas n ão estamos nos desvian do ao argumen tar con t r a 
a possibilidade de con h ecimen to? Parecemos capazes de tes-
tar nosso con h ecimen t o de u m a for m a que, em geral, nos 
satisfaz. Algu m as coisas que pensamos con h ecer podem se 
revelar falsas ou , pelo men os, m u it o im pr ováveis como, por 
exemplo, que m icr ób ios são gerados espon tan eamen te do 
lodo totalmen te in or gân ico . E todos n ós sabemos como fer-
ver águ a, aliviar nossas coceiras, reconh ecer nossos amigos e 
dist in gui- los den t re a m u l t id ão . 
Prat icamen te, n i n gu é m é u m n iil ist a ep ist em ológico ple-
n amen te con vict o. N ã o obstan te, o n at u r alismo n ão permite 
124 
Marco zero 
a u m a pessoa ter u m a sól ida r azão para con fiar n a r azão 
h u m an a. Assim , por t an t o, acabamos em u m ir ón ico para-
doxo. O n at u r alismo, n ascido duran t e o I l u m in i sm o, foi 
lan çad o sobre u m a sól ida aceit ação da capacidade h u m an a 
de conh ecer . Agor a, os naturalistas descobrem que n ão po-
dem depositar sua con fian ça em seu con h ecimen t o. 
Tod a a qu est ão en volven do esse argumento pode ser 
assim sumar izada: o n at u r alism o nos coloca como seres 
h u m an os em u m a caixa. P or ém , para t ermos qualquer con -
fiança de que nosso con h ecimen t o sobre estarmos den t ro de 
u m a caixa é verdadeiro, precisamos nos posicion ar fora da 
caixa ou receber essa in for m ação de qualquer ou t ro ser fora 
da caixa (os t eólogos ch am am a isso de "r evelação"). O cor r e 
que n ão h á n ada n em n in gu é m fora da caixa para nos for-
necer r evelação, e n ós n ão podemos t ran scen der a caixa. Por 
con seguin te, n i i l ism o ep ist em ológico . 
O n aturalist a que falh a em perceber isso é como o h o-
m em n o poema de Steph en Cr an e : 
V i um homem perseguindo o horizonte; 
Voltas e mais voltas e nunca se encontravam. 
Isso me perturbava; 
Abordei o homem. 
"Isso é fútil", disse, 
"Você jamais con seguirá." 
"Você está enganado", ele gritou, 
E con t inuou correndo.18 
N a est ru tura n aturalist a, as pessoas perseguem u m co-
n h ecimen t o que sempre recua dian te delas. Jamais podemos 
conhecer. 
125 
O u n i ver so ao l ad o 
U m a das piores con sequ ên cias de se levar a sér io o n i i l is-
m o ep ist em ológico é que isso t em levado alguns a quest ion ar 
a p r óp r ia fact icidade do u n iver so. 1 9 Para algun s, n ada é real, 
n em eles mesmos. As pessoas que ch egam nesse estado es-
t ão em grandes apuros, pois elas n ão podem mais fun cion ar 
como seres h u m an os. O u , como dizemos com fr equên cia, 
elas su r t am . 
Nor m alm en t e , n ão r econ h ecemos essa si t u ação com o 
n i i l i sm o m et afísico ou e p i st e m ológico . A o con t r ár io , n ós a 
ch am am os de esqu izofr en ia, a lu c in ação , fan t asia, devan eio 
ou viver e m u m m u n d o ir r eal . E t r at amos a pessoa com o 
u m "caso", e o p r ob lem a com o u m a "d oe n ça". N ã o t en h o 
n e n h u m a ob je ção , em par t icu lar , co m t al pr oced im en t o, 
pois r ealmen t e acredito n a realidade de u m m u n d o exter ior , 
que com par t i lh o com out ros em m i n h a est r u t u r a de t empo 
e e sp aço . O s que n ão con seguem recon h ecer esse fato est ão 
in capacit ados. P o r é m , en quan t o p r im ar iam en t e pen samos 
nessa si t u ação em t ermos p sico lógicos e en quan t o en via-
mos tais pessoas a in st i t u ições on de algun s as m an t e r ão 
vivas e out ros as a ju d ar ão a r et orn ar de suas viagen s in t e-
r iores e volt ar à r ealidade, d eve r í am os compr een der que 
algun s desses casos ext r emos podem ser exemplos perfeitos 
do que acon tece quan do u m a pessoa n ão mais con h ece n o 
sen t ido c o m u m de con h ecim en t o. É o estado "adequado", 
o result ado lógico , do n i i l i sm o e p i st e m ológico . Se eu n ão 
posso con h ecer , e n t ão , qualquer p e r ce p ção , son h o, im a-
gem ou fan tasia torna-se igualmen t e real ou ir r eal . A v id a 
n o m u n d o c o m u m é baseada em nossa capacidade de fazer 
d ist in ções. Pergun te ao h om e m que acabou de en golir u m 
126 
Marco zero 
l í q u id o in color que ele pen sou ser águ a , mas que n a ver da-
de era m et an ol . 
A m aior ia de n ós jamais t est emun h ou os "casos" extre-
mos. Eles são r apidamen te in t ern ados. P or ém , exist em, e 
eu t en h o con h ecido algumas pessoas cujas h ist ór ias são de 
arrepiar . A m aior ia dos n iilist as ep ist em ológicos con victos, 
en t ret an to, recai n a classe descr ita por Rober t Far r ar Cap on , 
que simplesmen te n ão t em t empo a perder com tais tolices: 
O cético nunca é real. Lá ele permanece, coquetel em uma 
das mãos, braço esquerdo languidamente apoiado sobre a 
quina da lareira, dizendo a você que não tem certeza de 
coisa alguma, nem mesmo de sua própria existência. Eu 
lhe revelarei o meu mét odo secreto de acabar com o ceti-
cismo universal em quatro palavras. Sussurre para ele: 'Sua 
braguilha está aberta'. Se ele acha o conhecimento tão im -
possível assim, por que ele sempre olha?20 
Co m o observado acim a, h á evidên cias de sobra de que o 
con h ecimen t o é possível. O que precisamos é de u m modo 
de explicar porque o p ossu ím os. Isso o n at u r alismo n ão faz. 
Assim , aquele que perman ece u m n aturalist a consisten te 
deve ser u m n iil ist a. 
A t ercei ra pont e: ser e dever 
Mu it os n aturalistas - a m aior ia, pelo que me con sta - são 
pessoas ext r emamen te morais. Eles n ão são ladr ões, n ão t en -
dem a ser liber t in os. Mu it os são fiéis em seus casamen tos. 
Algu n s ficam escandalizados com a imoralidade pú b l ica e 
pessoal de nossos dias. O problema n ão é que os valores 
127 
O u n i ver so ao l ad o 
morais n ão são recon h ecidos, mas o fato de n ão possu í-
r em fun damen t o algum . Resu m in do a posição adotada por 
Niet zsch e e M a x W eber , Al l an Bloom observa: "A r azão n ão 
pode estabelecer valores, e sua cr en ça de que pode é a mais 
est ú p id a e pern iciosa de todas as i lu sões". 2 1 
Relem br an do que para u m n aturalist a o m u n d o apenas 
existe, ele n ão concede u m sen t ido de ju st iça à h um an idade, 
mas somen te é. En t r e t an t o, a ét ica versa sobre o que deve ser, 
seja sim seja n ã o . 2 2 O n d e , en t ão , pode-se ir em busca de u m a 
base para a moralidade? O n d e a justiça é en con t rada. 
Co m o observamos, todas as pessoas possuem valores 
morais. N ã o h á t r ibos sem tabus, mas esses são meramen t e 
fatos de n atureza social, e os valores específicos var iam gran -
demen te. D e fato, mu it os desses valores con fii t am en tre si . 
Por t an t o, somos for çados a pergun tar : Que valores são os 
verdadeiros, os mais elevados? 
An t r op ó logos cu lt u r ais, recon h ecen do que t al si t u ação 
prevalece, r espon dem claramen te: valores morais são rela-
t ivos à cu lt u r a da pessoa. O que a t r ibo, n ação ou un idade 
social afirmar é valioso. P or ém , h á u m a sér ia falh a aqu i. Essa 
é ou t r a man eir a de afirmar que ser (o fato de u m valor es-
pecífico) equivale a dever (o que dever ia ser assim). Além do 
mais, isso n ão con sidera a si t u ação dos rebeldes cu lt u r ais, 
cujos valores morais n ão são os mesmos dos seus vizin h os. 
O ser do rebelde cu lt u r al n ão é con siderado dever. Por quê? 
A resposta do r elat ivismo cu lt u r al é que os valores morais 
do rebelde n ão podem ser permit idos se eles per t u r bam a 
coesão social, colocan do em r isco a sobr evivên cia cu lt u r al . 
Assim , descobr imos que ser n ão é dever, afin al de con tas. 
• 128 • 
Marco zero 
O relat ivista cu lt u ral r at ificou u m valor - a pr eservação de 
u m a cu lt u r a em seu estado atual - como mais valioso que sua 
dest r u ição ou t r an sfor m ação por u m ou mais rebeldes den tro 
dela. U m a vez mais, somos obrigados a pergun tar por quê. 
Disso ad v é m que o r elat ivismo cu lt u r al n ão é relat ivo 
para sempre, mas repousa sobre u m valor p r im ár io con -
firmado pelos p r óp r ios relat ivistas cu lt u r ais: que a cu l t u r a 
deve ser preservada. Por t an t o, o r elat ivismo cu l t u r al n ão 
con fia apenas n o ser, mas n o que seus adeptos pen sam dever 
ser o caso. O pr oblema aqu i é que alguns an t r op ó logos n ão 
são relat ivistas cu lt u r ais. Algu n s pen sam que cer tos valores 
são t ão impor t an t es que as cu lt u r as que n ão os r econ h ecem 
deveriam r econ h ecê- los. 2 3 Dessa for m a, os relat ivistas cu l t u -
rais devem, se qu iser em con ven cer a seus colegas, most r ar 
porque seus valores são os ver dadeir os.2 4 Novam en t e , apro-
xim am o- n os do in fin i t o cor redor on de perseguimos nossos 
argumen tos. 
Con t u d o , olh emos de n ovo. Devem os nos assegurar de 
ver o que est á in fer ido pelo fato de os valores realmen te n ão 
var iar em m u it o . En t r e t r ibos vizin h as, os valores são con -
flitantes.U m a t r ibo pode promover "guerras religiosas" 
para dissemin ar os seus valores. Tais guerras existem. Elas 
deveriam exist ir? Talvez, mas somen te se h ouver , de fato, u m 
p ad r ão n ão relat ivo por meio do qual se pode m edir os valo-
res em con flit o. Todavia, u m n aturalist a n ão d i sp õe de meios 
para det er min ar que valores den t re aqueles n a exist ên cia são 
os básicos, os que d ão sign ificado às var iações t r ibais espe-
cíficas. U m n aturalist a pode apenas in dicar o fato de valor , 
jamais u m p ad r ão absoluto. 
129 
O u n i ver so ao l ad o 
Essa si t u ação n ão ser á t ão cr ít ica en quan to h ouver 
espaço suficien te separando as pessoas de valores r adical-
men te diferen tes. P or ém , n a comun idade global do presente 
sécu lo n ão podemos mais con tar com isso. Somos for çados 
a lidar com valores em con flit o, e os n aturalistas n ão t êm 
qualquer p ad r ão , n en h u m a for m a de saber quan do a paz é 
mais impor t an t e que preservar ou t ro valot . Devem os abr ir 
m ã o de nossa propr iedade para evitar a violên cia con t r a o 
lad r ão. N o en tan to, o que devemos dizer a racistas bran cos 
que possuem propr iedades alugadas n a cidade? Que valores 
devem governar as suas ações quan do u m a pessoa da r aça 
negra t en ta alugar u m a de suas propriedades? Q u em deve 
dizer? Co m o devemos decidir? 
O argumen to pode n ovamen te ser r esumido como an te-
t iot men t e: O n at u r alismo nos coloca como seres h u m an os 
em u m a caixa et icamen te relat iva. Para con h ecermos que 
valores den t ro daquela caixa são valores reais, necessitamos 
de u m a m edida a n ós impost a de fora da caixa; precisamos 
de u m p r u m o m or al por meio do qual seja possível avaliar 
os valores morais con flit an tes que observamos em n ós e nas 
demais pessoas. Con t u d o , n ão h á n ada fora da caixa; n ão 
existe n en h u m p r u m o m or al ou qualquer p ad r ão de valor 
im u t ável e supremo. Logo: n i i l ism o é t i c o 2 5 
Mas, o n i i l ism o é u m sen t imen t o, n ão apenas u m a filoso-
fia. E , no n ível da per cepção h u m an a, Fr an z Kafk a capta, em 
u m a breve par ábola, o sen t imen to de v id a em u m un iver so 
sem u m a l in h a de r eferên cia, sem u m p r u m o m or al . 
Passei correndo a primeira sentinela. En tão, fiquei horrori-
zado, voltei novamente e disse à sentinela: "Passei por aqui 
• 130 
Marco zero 
enquanto você estava olhando para o outro lado". A senti-
nela ignorou a minha presença e nada disse. "Suponho que 
realmente não deveria ter feito isso", disse. A sentinela ainda 
permaneceu calada. "O seu silêncio significa permissão para 
passar? . 
Quan do as pessoas t in h am con sciên cia de u m Deu s cu jo 
carát er era a lei m or al , quan do suas con sciên cias er am i n -
lormadas por u m senso de ju st iça, suas sen t inelas gr it ar iam 
alto, quan do elas t r an sgrediam a lei. Agor a, as sen t inelas 
est ão silenciosas, n ão servem a n e n h u m rei e n ão protegem 
n en h u m rein o. O m u r o é u m fato desprovido de sign ifica-
do. As pessoas o escalam, at ravessam-no, quebr am-n o, mas 
n en h u m a sen t in ela sequer r eclama. A pessoa é deixada n ão 
com o fato, mas com o sen t imen to de cu lp a . 2 7 
E m u m a sequ ên cia assustadora, n o filme de In gm ar 
Kcr gm an , Morangos silvestres, u m velh o professor é levado 
a ju lgamen to dian te do t r ibu n al . Quan do ele pergun ta do 
que est á sendo acusado, o ju iz responde: "Você é cu lpado 
d.i cu lpa". 
"Isso é sér io?", quest ion a o professor. 
"M u i t o sér io", afir ma o ju iz . 
Con t u d o , isso é tudo o que é dito sobre a qu est ão da 
<. u lpa. E m u m un iver so on de Deu s est á m or t o, as pessoas 
n.10 são culpadas de violar a lei m or al ; apenas são culpadas 
da cu lpa, e isso é m u it o sér io, pois n ada pode ser feito a 
respeito. Se a lgu ém pecou , pode h avet exp iação. Se a lgu ém 
in l r in giu a lei, o legislador pode perdoar o in fr a to r. Mas se 
algu ém apenas for cu lpado da cu lpa, n ão h á como solucio-
nar esse problema ext r emamen t e pessoal.2" 
131 
O u n i ver so ao l ad o 
Esse é o caso de u m n iil ist a, pois n i n gu é m pode evitar 
agir como se valores morais exist issem e como se houvesse 
algum t r ibu n al de ju st iça que avaliasse a cu lpabilidade por 
pad r ões objet ivos. N o en tan to, n ão existe n e n h u m t r ibu n al 
de ju st iça e somos deixados, n ão em pecado, mas em cu lpa. 
Deveras sér io, de fato. 
A perda de sign i f i cad o 
O s fios do n iil ismo ep ist em ológico, met afísico e ét ico se en -
t r elaçam para formar u m a corda lon ga e forte o suficien te para 
envolver toda u m a cu lt u r a. O n ome dessa corda é perda de 
sign ificado. Acabamos n o completo desespero de jamais ver-
mos a n ós mesmos, o m u n do e os outros como totalmen te 
insign ifican tes. Nada possui sign ificado, sen t ido. 
Ku r t Von n egu t Jr . , em u m a p ar ód ia do livr o de Gén esis, 
capta esse moder n o d ilem a: 
No pr incípio Deus cr iou a terra e olhou para ela em sua 
solidão cósmica. E Deus disse: "Façamos criaturas do bar-
ro, de modo que o barro possa ver o que nós fizemos". E 
Deus cr iou cada ser vivente que agora se move, e um deles 
era o homem. O barro só podia falar como homem. Deus 
inclinou-se o mais próximo possível, olhou em derredor e 
falou. O homem piscou e polidamente perguntou: 
"Qual é o propósito de tudo isso?". 
"Tudo deve ter um propósito?", replicou Deus. 
"Certamente", disse o homem. 
"En t ão, deixo para você pensar em um propósito para tudo 
isso", disse Deus. E foi embora.29 
• 132 
Marco zero 
A pr in cíp io , isso pode parecer u m a sát ir a à n oção do 
t e ísm o quan to à or igem do un iverso e dos seres h u m an os, 
mas é exatamen te o con t r ár io . Essa é u m a sát ir a da visão 
n aturalist a, pois most r a o d ilem a que n ós, seres h u m an os, 
en fren tamos. Fomos lan çad os em u m un iver so impessoal. 
N o in stan te que u m ser autocon scien te e au todetermin ado 
surge em cen a, aquele ser in daga a grande qu est ão : Q u al 
é o sign ificado de tudo isso? Qu al o p r op ósi t o do cosmo? 
P or ém , o cr iador da pessoa - as forças impessoais de m at ér ia 
roch osa - n ada pode responder. Se o cosmo t iver u m p r o p ó -
sito, en t ão , temos que descobr í- lo por n ós mesmos. 
Co m o bem colocou Steph en Cr an e n o poema, m en -
cion ado n o pr im eir o cap í t u lo , a exist ên cia de pessoas n ão 
cr iou n o un iver so u m "senso de ob r igação". Precisamen te: 
exist imos, e pon t o final. Nosso fabr ican te é desprovido de 
qualquer senso de valor , de qualquer sen t ido de ob r igação . 
Cr iam os os valores sozin h os. São nossos valores valiosos? Por 
qual pad r ão? Somen te o nosso p r óp r io . D e quem? D e cada 
pessoa? Cad a u m de n ós é o rei e o bispo de nosso p r óp r io 
r ein o, p o r é m nosso rein o é t ão ín fim o quan to u m pon t o, 
pois n o in stan te em que en con t r amos ou t r a pessoa, estuda-
mos ou t t o rei e out ro bispo. N ã o h á meios de arbit r ar en t te 
dois produtores de valor livr es. N ã o h á rei para o qual am -
bos devam prestar r everên cia. Exist em valores, mas n en h u m 
valor . A sociedade é apenas u m a pen ca de m ô n ad as in com u -
n icáveis, u m a coleção de pon tos, n ão u m corpo or gân ico , 
obedecendo a u m a for m a super ior , abrangen te, que arbit r a 
os valores de seus b r aços, pern as, verrugas e rugas separada-
men te. A sociedade n ão é, de man eir a alguma, u m corpo, 
mas somen te u m ajun t amen t o. 
133 • 
O u n i ver so ao l ad o 
Por t an t o, o n at u r alismo leva ao n i i l ism o. Se con si-
derarmos ser iamen te as im plicações da mor t e de Deu s, o 
desaparecimen to do t ran scen den te, o h er met ismo do u n i -
verso, acabamos exatamente lá. 
Por que, en t ão , a m aior ia dos n aturalist as n ão é n i i l ist a . 
A tesposta mais ób via é a m elh or : a m aior ia dos n aturalist as 
n ão leva seu n at u r al ism o a sér io. Eles são in con sist en t es. 
O s n aturalist as afi r m am u m con ju n t o de valores, possuem 
amigos que asseveram u m con ju n t o sim ilar . Eles aparen -
t am saber e n ão quest ion am com o eles sabem que sabem. 
Par ecem capazes de escolh er e n ão per gun t ar a si mesmos 
se a aparen te liberdade da qu al gozam é r ealmen te u m ca-
pr ich o ou de t er m in ism o. Sócr at e s disse que u m a v id a n ão 
exam in ada n ão é d ign a de viver , mas, par a u m n at u r alist a, 
ele est á er rado. Par a ele, a v id a exam in ada é que n ão vale a 
pen a viver . 
Tensões in t ernas no n i i l i smo 
O problema é que n i n gu é m consegue viver u m a vida exam i-
n ada, se esse exame levar ao n i i l i sm o, pois n ão é possível se 
viver u m a vida consisten te com ele. A cada passo, a cada in s-
tan te, os n iilist as pen sam, imagin an do que seu pen samen to 
possui su bst ân cia e, assim, lu d ib r iam sua p r óp r ia filosofia. 
Exist em , creio eu , pelo men os cin co r azões pelas quais o 
n ii l ism o impossibilit a a vida. 
A pr im eir a é que n ada procede da falta de sign ificado, ou 
melh or , qualquer coisa procede. Se o un iver so é sem pro-
pósi t o , a pessoa n ão pode con h ecer e n ada é im or al , en t ão , 
134 
Marco zero 
qualquer curso de ação é possível. Pode-se responder à falta 
de sen t ido por qualquer ato que seja, pois n e n h u m é mais ou 
men os apropr iado. O su icíd io é u m ato, mas n ão "procede" 
como mais apropr iado do que ir ao cin em a, assist ir a u m 
filme da Disn ey. 
N ã o obstan te, sempre que nos l an çam os a u m a ação, co-
locan do u m p é à fren te do ou t r o, a esmo, estamos defin in do 
u m objet ivo, afirman do o valor de u m curso de ação, mesmo 
que seja para n i n gu é m mais a n ão ser n ós mesmos. Por t an -
to, n ão estamos viven do pelo n i i l ism o, mas cr ian do valor 
pela escolh a. Desse t ipo de argumen to procede a t en tat iva de 
Alber t Car n u s de i r além do n i i l ism o para o exist en cialismo, 
que consideraremos n o p r ó xi m o cap í t u lo . 3 0 
Segun da, toda vez que os n iilist as pen sam e con fiam em 
seu pen samen to, eles est ão sendo in con sisten tes, pois t êm 
negado que aquele pen samen to possui valor ou que pode le-
var ao con h ecimen t o. P or ém , n o âm ago da afi r m ação de u m 
n iil ist a repousa u m a au t ocon t r ad ição . Não existe significado 
no universo, gr it am os n iilist as. Isso quer dizer que a p r ópr ia 
afir m ação deles é desprovida de sen t ido, pois se significasse 
alguma coisa, isso ser ia falso.3 1 O s n iilist as est ão, de fato, 
en caixotados, n ão podem chegar a lugar algum . Simples-
men te eles são, apenas pen sam; e n ada disso t em qualquer 
sign ificado. Excet o por aqueles cujas ações os colocam em 
in st i t u ições, n in gu é m parece levar a sér io seu n i i l ism o. O s 
que o fazem n ós t ratamos como pacien tes. 
Terceir a, embora u m limit ado t ipo de n iil ismo prát ico 
seja possível por u m tempo, u m limit e é, finalmente, alcan -
çado. A com éd ia Ardil22 repousa exatamente nessa premissa. 
135 • 
O u n i ver so ao l ad o 
O capit ão Yossar ian est á t ravando u m a arrasadora d iscussão 
t eológica com a esposa do tenente Scheisskopf, quan do Deus 
é en volvido em u m a boa dose de con t rovér sia. Yossar ian est á 
falando: 
"[Deus] não está operando de forma alguma. Ele está se 
divert indo. Se n ão, ele esqueceu tudo sobre nós. Este é o 
tipo de Deus que vocês estão falando - um matuto caipira, 
um desajeitado, inábil, desmiolado, convencido, um cam-
ponês rude". 
Bom Deus, quanta reverência pode-se ter por um Ser Su-
premo que acha necessário incluir tais fenómenos como 
catarro e queda de dentes em seu sistema de cr iação?3 2 
Após inúmeras tentativas infrutíferas de lidar com parci-
môn ia o ataque verbal de Yossarian, a esposa do tenente 
Scheisskopf reage com violência. 
"Pare com isso! Pare!", gritou repentinamente a esposa do 
tenente Scheisskopf, batendo a sua própr ia cabeça com os 
dois punhos, inut ilmente. "Pare com isso!". 
"Por que diabos você está ficando tão perturbada?", pergun-
tou o espantado capitão, em um tom de contrito deleite. 
"Pensei que você não acreditava em Deus". 
"E u não acredito", soluçou ela, irrompendo violentamente 
em lágrimas. "Mas o Deus em que não acredito é bom, um 
Deus justo e misericordioso. Ele não é esse Deus malvado 
e estúpido que você está retratando".33 
Aq u i est á ou t ro paradoxo: para se negar a Deu s é preciso 
h aver u m Deu s para ser negado. A fim de ser u m n iil ist a 
praticante, deve h aver algo con t r a o qual batalhar . Ta l n iil ist a 
prat ican te é u m parasita em sign ificado. Ele fica sem energia 
quan do n ão se h á mais n ada a ser negado. O cín ico sai da 
d iscu ssão quan do é o ú l t im o a sobrar. 
• 136 • 
Marco zero 
A quar t a r azão é que o n i i l ism o sign ifica a mor t e da ar te. 
Aq u i t am b é m en con t r amos u m paradoxo, pois m u i t o da 
arte m oder n a - lit er at u r a, p in t u r a, teat ro, c in em a — possui o 
n i i l ism o como seu â m a go ideológico. E m u it o dessa lit er at u -
ra é excelen te p e l o scân o n e s t r adicion ais da ar te. Fim de jogo, 
de Sam u el Becket t , Luz de inverno, de In gm ar Ber gm an , 
O julgamento, de Fr an z Kafk a , bem como vár ias cabeças de 
papas de Fr an cis Bacon , v ê m imediat amen t e à men te. O n ó 
da qu est ão é esse: tan to mais tais obras de arte exibem a i m -
plicação h u m an a de u m a cosm ovisão n iil ist a, t an to men os 
elas são n iilist as; t an to mais tais obras de arte são desprovidas 
de sign ificado, t an to men os são obras de ar te. 
A ar te n ada é sen ão for m al , isto é, dotada de u m a est ru tu-
ra pelo ar t ist a. Mas a est ru tura por si só im p l ica sign ificado. 
Assim , se u m t rabalh o ar t íst ico for dotado de est ru tura, ele 
possui sign ificado e, por t an t o, n ão é n ii l ist a. U m mon t e de 
fer ro-velh o, o lixo em u m m on t e de en t u lh o, u m a m on t a-
n h a de pedras, que acabaram de ser din amit adas em u m a 
pedteira, n ão possui est ru tura. Elas n ão são ar te. 
Algu m as artes con t em p or ân eas t en t am ser an t iar t e sendo 
aleat ór ias. Mu i t o da m ú sica de Joh n Cage é desen volvida ao 
completo acaso, r an domicamen t e. P or ém , isso é t an to obtu-
so quan to desagr adável , e poucas pessoas conseguem ouvi- la. 
En t ão , h á "H u n ger ar t ist " [ar t ista fam in t o], de Fr an z Kafk a , 
u m a br ilh an t e, embor a dolorosa h ist ór ia sobre u m ar t ista 
que t en ta fazer ar te ut ilizan do-se da abst in ên cia pú b l ica, 
ou seja, do n ada. P or ém , n in gu é m olh a para ele; todos pas-
sam por sua most r a n o cir co, in teressadas em ver u m jovem 
leopardo m ar ch an do em sua jau la. At é mesmo a "n atureza" 
137 
O u n i ver so ao l ad o 
do leopardo é mais in teressan te que a "ar t e" do n iil ist a. 
Igualmen t e, a p eça Breath [sopro], por mais m in im al ist a que 
seja, apresen ta u m a est ru tura e sign ifica algo. Mesm o que 
sign ifique apenas que os seres h u m an os n ão t êm sign ificado 
algum, ela par t icipa n o paradoxo que exam in ei an tes. E m 
sum a, a arte im p l ica em sign ificado e, em ú l t im a an álise, n ão 
pode ser n ii l ist a, apesar da ir ón ica t en t at iva destes em exibir 
seus produtos por meio dela. 
Q u in t a e ú l t im a r azão, o n i i l ism o apresen ta severos pr o-
blemas psicológicos. As pessoas n ão con seguem viver com 
isso porque o n i i l i sm o nega o fato de que cada fibra de seu 
ser desperto clama por sen t ido, valor , sign ificân cia, d ign i-
dade, valia.Bl o o m escreve: "Niet zsch e subst it u i o at e í sm o 
in dolen t e ou autograt ifican te por u m at e í sm o agon izan te, 
sofrendo as con sequ ên cias h uman as in eren tes. O anseio em 
crer, em con jun t o com a in t ran sigen te recusa de satisfazer tal 
anseio, segundo ele, é a profun da resposta de toda a nossa 
con d ição esp ir i t u al". 3 4 
Niet zsch e t e r m in ou seus dias em u m asilo. Er n est 
H e m in gw ay con fi r m ou u m "est ilo de v id a" e, por f im , co-
m et eu su icíd io. Becket t dedica-se a escrever com éd ias de 
h u m or negro. Von egu t t e Ad am s desvair am em bizar r ices. 
E Kafk a , talvez o m aior ar t ista den t re todos eles, v iveu u m a 
vida quase im possível de t éd io, escrevendo roman ces e h ist ó-
rias que t er m in avam em u m prolon gado clamor : "Deu s est á 
mor t o! Deu s est á mor t o! N ã o está? Quero dizer , cer tamen te 
que est á, n ão? Deu s est á m or t o. O h , como eu gostar ia que 
n ão estivesse". 
Assim é que o n ii l ism o for ma o pon to cr ít ico para as pessoas 
modernas. N i n gu é m que n ão t en h a invest igado o desespero 
138 • 
Marco zero 
dos n iilist as, ouvido suas palavras, sen t ido o que eles sen t ir am 
- mesmo vicar iamen te, por meio de sua arte - consegue en -
tender o sécu lo passado. O n ii l ism o é aquele vale profun do e 
enevoado pelo qual as pessoas modern as devem atravessar se 
queremos con st ru ir u m a vida n a cu lt u r a ociden tal. N ã o exis-
tem respostas fáceis aos nossos quest ionamen tos, e n en h u m a 
dessas respostas é de alguma valia, exceto se considerar com 
seriedade os problemas suscitados pela possibilidade de n ão 
exist ir algo de valor , seja lá o que for. 
139 • 
Capítulo seis 
ALÉM DO NIILISMO 
Exist encial ismo 
Tudo o que existe nasce sem razão, prolonga sua existência, ape-
sar da fragilidade, e morre por acaso. Reclinei-me e fechei meus 
olhos. As imagens, pressentidas, imediatamente saltaram e enche-
ram meus olhos fechados com existências: existência é a plenitude 
que o homem jamais pode abandonar... Eu sabia que isso era o 
Mundo, o Mundo nu subitamente, revelando-se a si mesmo, e eu, 
calçado com raiva diante desse ser rude e absurdo. 
Jean Paul Sar t r e, Náusea 
NUM ENSAIO, PUBLICADO EM 1950, Albert Carnus escreveu: "A literatura do desespero é uma contradição em termos. 
[...] Nas trevas mais profundas do nosso niilismo, eu apenas 
buscava transcendê-lo".1 Aqui a essência do objetivo mais 
importante do existencialismo é resumida em uma única 
frase: transcender o niilismo. De fato, todas as cosmovisões 
O u n i v e r s o a o la d o 
importantes, surgidas desde o começo do século X X , 
têm esse mesmo objetivo principal. Pois o niilismo, 
surgindo como surgiu, diretamente de uma cosmovisão 
culturalmente penetrante, é o problema de nossa era. Uma 
cosmovisão que ignore esse fato tem chances diminutas de 
provar sua relevância às pessoas de pensamento moderno. 
O existencialismo, especialmente em sua forma secular, não 
apenas leva a sério o niilismo, mas é uma resposta a ele. 
Logo de início, é importante reconhecer que o existen-
cialismo assume duas formas básicas, dependendo de sua 
relação com as cosmovisões anteriores, porque o existen-
cialismo não é uma cosmovisão totalmente amadurecida. 
O existencialismo ateísta é um parasita do naturalismo, 
enquanto o existencialismo teísta é um parasita do teísmo.2 
Historicamente, temos uma situação estranha. De um 
lado, o existencialismo ateísta se desenvolveu para solucio-
nar o problema do naturalismo que leva ao niilismo, porém 
ele não aparece em sua plenitude até o século X X , a menos 
que contemos um tema principal em Nietzsche, que rapida-
mente foi distorcido.3 Do outro lado, o existencialista teísta 
nasceu na metade do século X I X , quando Soren Kierkegaard 
reagiu à ortodoxia morta do luteranismo dinamarquês. Não 
obstante, somente após a Primeira Guerra Mundial é que 
uma das formas de existencialismo tornou-se culturalmente 
importante, pois foi apenas então que o niilismo finalmente 
chamou a atenção do mundo intelectual e começou a afetar 
as vidas e atitudes de homens e mulheres comuns.4 
A Primeira Grande Guerra não tornou o mundo um 
lugar seguro para a democracia. A geração das melindrosas 
1 4 2 
Além do niilismo 
e das bebidas ilegais, resultado da excessiva violação de uma 
absurda lei seca, a quixotesca bolsa de valores que tanto pro-
metia - tais acontecimentos precederam o grande período de 
secas e tempestades de areia que caracterizaram os Estados 
Unidos na década de 1930. Com a ascensão do nacional-so-
cialismo, na Alemanha, e sua incrível caricatura de dignidade 
humana, estudantes e intelectuais do mundo afora estavam 
prontos a concluir que a vida é absurda e que os seres huma-
nos não tinham qualquer propósito. No solo de tal frustração 
e desencanto cultural, o existencialismo em sua forma ateísta 
fincou suas raízes culturais. Ele floresceu como uma impor-
tante cosmovisão na década de 1950. 
Até certo ponto, todas as cosmovisões possuem sutis 
variações, e o existencialismo não constitui uma exceção. 
Carnus e Sartre, ambos existencialistas e outrora amigos, ti-
veram uma desavença por causa de importantes diferenças, 
e o existencialismo de Martin Heidegger é deveras distinto 
do de Sartre. Porém, como fizemos com outras cosmovi-
sões, nós nos deteremos em suas características principais e 
tendências gerais. A linguagem da maioria das proposições 
listadas abaixo deriva ou de Sartre ou de Carnus. Isso é inten-
cional, porque é a forma na qual tem sido mais bem digerida 
pela classe intelectual de nossos dias, e por seus trabalhos 
literários muitos mais que por seus tratados filosóficos. Para 
muitas pessoas modernas, as proposições do existencialismo 
aparentam ser tão óbvias que elas "não sabem o que estão 
aceitando porque nenhum outro meio de expressar aquilo 
lhes ocorreu".5 
1 4 3 • 
O u n i v e r s o ao la d o 
Exist encial i sm o at eíst a básico 
O existencialismo ateísta principia com a aceitação de to-
das as proposições do naturalismo a seguir mencionadas: 
A matéria existe para sempre; Deus não existe. O cosmo existe 
como uma uniformidade de causa e efeito, em um sistema 
fechado. A história é uma corrente linear de eventos conectados 
por causa e efeito, mas sem um propósito abrangente. A ética 
é relacionada apenas a seres humanos. E m outras palavras, 
o existencialismo ateísta confirma todas as proposições do 
naturalismo, exceto aquelas relacionadas à natureza huma-
na e nosso relacionamento com o cosmo. De fato, o maior 
interesse do existencialismo está em nossa humanidade e 
como podemos ser significantes em um, por outro lado, 
insignificante mundo. 
1. 0 universo é composto apenas de matéria, porém para 
o ser humano a realidade se apresenta em duas formas -
subjetiva e objetiva. 
Assume-se que o mundo existia muito antes de o homem 
entrar em cena. É estruturado ou caótico, determinado pela 
lei inexorável ou sujeito a mudanças. Qualquer coisa que seja 
não faz a menor diferença. O mundo simplesmente existe. 
Então, surgiu algo diferente, seres conscientes - aqueles 
que distinguiam ele e ela do isto, que pareciam determinados 
a determinar o seu próprio destino, a questionar, a pon-
derar, a maravilhar-se, a buscar sentido, a dotar o mundo 
exterior com um valor especial, a criar deuses. E m suma, 
então, surgiram os seres humanos. Agora vemos, ninguém 
sabe por que razão, dois tipos de ser no universo, aquele que 
1 4 4 
Além do niilismo 
aparentemente expulsou o outro para fora de si mesmo e se 
lançou a uma existência separada. 
O primeiro tipo de ser é o mundo objetivo - o mundo 
das coisas materiais, da lei inexorável, da causa e efeito, do 
tempo cronológico, do fluxo, do mecanismo. O maquinário 
do universo -elétrons giratórios, galáxias em espiral, corpos 
que caem, gases que se elevam e águas que fluem - cada 
qual realizando sua função, eternamente inconscientes, para 
sempre apenas existente. Aqui, afirmam os existencialis-
tas, a ciência e a lógica mostram sua utilidade. As pessoas 
conhecem o mundo objetivo e exterior pela virtude de uma 
observação atenta, registrando, levantando hipóteses e verifi-
cando-as por meio de experimentos, sempre refinando teorias 
e comprovando conjecturas sobre o mundo em que vive-
mos. 
O segundo tipo de ser é o mundo subjetivo — o mun-
do da mente, da consciência, da percepção, da liberdade, 
da estabilidade. Aqui a percepção interior da mente é uma 
consciência presente, um agora constante. O tempo não tem 
significado algum, pois para si mesmo o assunto está sempre 
presente, nunca passado ou futuro. A ciência e a lógica não 
penetram esse domínio; nada tem a dizer sobre subjetivida-
de, pois ela é a compreensão do eu pelo não eu; subjetividade 
é fazer do não eu parte de si mesmo. O sujeito absorve o 
conhecimento não como a garrafa armazena o líquido, mas 
como um organismo ingere o seu alimento. O conhecimento 
se transforma no conhecedor. 
O naturalismo enfatizou a unidade dos dois mundos, con-
siderando o mundo objetivo como real e o mundo subjetivo 
• 1 4 5 • 
O u n i v e r s o a o la d o 
como a sua sombra. Como afirmou Pierre Jean Georges 
Cabanis: "A mente secreta pensamento como o fígado 
secreta bílis". O real é o objetivo. Sartre disse: "O efeito de 
todo o materialismo é tratar a todos os homens, incluindo os 
que filosofam, como objetos, ou seja, como um conjunto de 
reaçÕes determinadas, de maneira alguma distintas do con-
junto de qualidades e fenómenos que constituem uma mesa, 
cadeira ou uma pedra".6 Nessa rota, como vimos, caminha o 
niilismo. Os existencialistas tomaram outra rota. 
O existencialismo enfatiza a desunião desses dois mun-
dos e opta, vigorosamente, em favor do mundo subjetivo, o 
que Sartre denomina como "um conjunto de valores distin-
tos do reino material".7 Pois pessoas são os seres subjetivos. 
Exceto se existirem seres extraterrestres, uma possibilidade 
que a maioria dos existencialistas nem mesmo considera, 
nós somos os únicos seres dotados de autoconsciência e au-
todeterminação em todo o universo. A razão porque nos 
tornamos assim é inescrutável. Porém, o fato é que nos per-
cebemos conscientes e determinados e, assim, nos valemos 
dessas dádivas. 
A ciência e a lógica não penetram a nossa subjetivida-
de, mas não há problema porque o valor, o propósito e 
a significância não estão conectados à ciência e à lógica. 
Nós podemos ter significado; possuir valor, ou melhor, nós 
podemos ter significado e valor. Nossa significância não 
depende dos fatos do mundo objetivo sobre os quais não 
temos controle algum, mas da consciência do mundo 
subjetivo sobre os quais possuímos controle total. 
1 4 6 • 
Além do niilismo 
2 . Para os seres humanos a existência precede a essência; as 
pessoas fazem de si mesmas o que são. 
Essa frase, proveniente de Sartre, é a mais famosa defini-
ção do âmago do existencialismo. Expressando nas palavras 
de Sartre: "Se Deus não existe, há pelo menos um ser no 
qual a existência precede a essência, um ser que existe antes 
que possa ser definido por qualquer conceito, e... tal ser é o 
homem". Sartre prossegue: "Antes de tudo, o homem existe, 
cresce, surge em cena e, somente depois, é que se define".8 
Perceba novamente a distinção entre os mundos objeti-
vo e subjetivo. O primeiro é um mundo de essências. Tudo 
surge trazendo a sua natureza. Sal é sal; árvores são árvores; 
e formigas são formigas. Apenas os seres humanos não são 
humanos antes de se fazerem assim. Cada um de nós faz a 
si mesmo por aquilo que fazemos com a nossa autoconsci-
ência e autodeterminação. Voltando a Sartre: "No início o 
homem não é nada. Apenas mais tarde será alguma coisa, e 
ele será o que tiver feito de si mesmo".9 O mundo subjetivo 
é totalmente subserviente de todo ser subjetivo, isto é, de 
toda a pessoa. 
Como isso funciona na prática? Digamos que John, um 
soldado, teme ser covarde. Ele é covarde? Somente se agir 
como covarde, e suas ações procederão não de uma natureza 
definida de antemão, mas de suas escolhas, quando as balas 
começarem voar de todos os lados. Podemos chamá-lo de 
covarde se, e somente se, ele cometer atos covardes, e tais 
atos serão suas escolhas. Portanto, se John receia ser covarde, 
mas não deseja ser um, que ele aja com bravura quando tais 
ações se fizerem necessárias.1 0 
1 4 7 • 
O u n i v e r s o a o la d o 
3. Cada pessoa é totalmente livre com respeito à sua natureza 
e ao destino. 
Da segunda proposição, segue que cada pessoa é totalmen-
te livre. Cada um de nós não é coagido, mas radicalmente 
capaz de fazer tudo que for imaginável com nossa subjeti-
vidade. Podemos pensar, desejar, imaginar, sonhar, projetar 
visões, considerar, ponderar, inventar. Cada um de nós é so-
berano de nosso próprio mundo subjetivo. 
Encontramos tal compreensão da liberdade humana na 
defesa que John Platt faz do behaviorismo naturalista de 
B . E Skinner: 
O mundo objetivo, o mundo de experimentos isolados 
e controlados, é o mundo da física; o mundo subjetivo, 
o mundo do conhecimento, valores, decisões e atos — de 
propósitos os quais esses experimentos são, na verdade, 
designados a servir — é o mundo da cibernética, de nosso 
próprio comportamento orientado a um objetivo. Deter-
minismo ou indeterminismo repousam daquele lado da 
fronteira, enquanto que a ideia usual de "livre arbítrio" per-
manece deste lado. Eles pertencem a universos diferentes, e 
nenhuma afirmação sobre um exerce qualquer influência 
no outro.11 
Assim somos livres interiormente e, portanto, podemos 
criar o nosso próprio valor pela afirmação de nosso mérito. 
Não somos restringidos pelo mundo objetivo dos tique-
-taques de relógios, de quedas d'água e de elétrons giratórios. 
O valor é interno, e o interior pertence a cada pessoa. 
1 4 8 
Além do niilismo 
4. O altamente elaborado e firmemente organizado mundo 
objetivo se coloca contra os seres humanos e parece 
absurdo. 
O mundo objetivo considerado em si mesmo é como 
disse o naturalista: um mundo de lei e ordem, talvez levado a 
novas estruturas pelo acaso. Esse é o mundo da existência. 
Para nós, entretanto, a existência dura, fria e calcada em 
fatos do mundo, aparenta ser hostil. Como formamos a nós 
mesmos, moldando nossa subjetividade, vemos o mundo 
objetivo como absurdo. Ele não tem lugar para nós. Nossos 
sonhos, visões, desejos, todo nosso mundo interior de valor 
colide em cheio contra um universo que é impenetrável aos 
nossos desejos. Pense o dia todo que você é capaz de escalar 
um edifício de dez andares e depois flutuar em segurança até 
o chão. Então, tente fazer isso. 
O mundo objetivo é regido por leis; os corpos caem se não 
forem apoiados. O mundo subjetivo não conhece nenhuma 
regra. O que é presente a ele, o que está aqui e agora, é. 
Assim somos todos estrangeiros em uma terra estranha, 
e quanto mais cedo aprendermos a aceitar esse fato, tanto 
mais cedo transcendemos nossa alienação e superamos o de-
sespero. 
O fato mais difícil a ser superado é o absurdo final - a 
morte. Somos livres enquanto permanecermos como sujei-
tos. Ao morrermos, cada um de nós é apenas um objeto entre 
outros objetos. Portanto, diz Carnus, devemos sempre viver 
lace ao absurdo. Não devemos esquecer a nossa tendência à 
não existência, mas viver fora da tensão entre o amor pela 
vida e a certeza da morte. 
1 4 9 • 
O u n i v e r s o a o la d o 
5. No pleno reconhecimento e contra o absurdo do mundo 
objetivo, a pessoa autêntica deve revoltar-se e criar valores. 
Aqui está como um existencialista vai além do niilismo. 
Nadapossui valor no mundo objetivo no qual nos tornamos 
conscientes, mas enquanto somos conscientes, criamos va-
lor. A pessoa que vive uma autêntica existência é aquela que 
se mantém cônscia da condição absurda do cosmo, mas que 
se rebela contra essa condição, criando significado. 
O "homem subterrâneo", de Fyodor Dostoievski, é um 
paradigma do rebelde sem uma causa aparentemente razoá-
vel. Na história, o homem subterrâneo é desafiado: 
Dois e dois são quatro. A natureza não pede o seu conselho. 
Ela não está interessada em suas preferências, ou se aprova 
ou não as suas leis. Você deve aceitar a natureza como ela é, 
com todas as consequências que isso implica. Desse modo, 
uma parede é uma parede, etc, etc. 
As paredes mencionadas no texto são as "leis da natu-
reza", "as conclusões das ciências naturais, da matemática". 
Porém, o homem subterrâneo é semelhante ao desafio. 
Mas, bom senhor, por que devo me importar com as leis 
da natureza e aritmética se tenho minhas razões para não 
gostar delas, incluindo aquela sobre dois e dois perfazerem 
quatro! Claro, não serei capaz de romper essa parede se mi-
nha cabeça não for forte o suficiente. Porém, eu não tenho 
de aceitar uma parede de pedras apenas porque está lá e não 
possuo força suficiente para rompê-la.12 
Portanto, não basta contrapor o mundo objetivo ao 
subjetivo e apontar para sua arma definitiva, a morte. 
1 5 0 
Além do niilismo 
A pessoa autêntica não é impressionada. Ser uma engre-
nagem no maquinário cósmico é muito pior que a morte. 
Como o homem subterrâneo diz: "O significado da vida de 
um homem consiste em provar todo o tempo a si mesmo 
que ele é um homem, e não uma tecla de piano".1 3 
A ética, ou seja, um sistema de compreensão do que é 
bom, está simplesmente solucionada para um existencialis-
ta. A boa ação é aquela conscientemente escolhida. Sartre: 
"Escolher ser isto ou aquilo é afirmar, ao mesmo tempo, o 
valor do que escolhemos, porque jamais podemos escolher 
o mal. Sempre escolhemos o bem".14 Assim, o bem é tudo 
o que uma pessoa escolhe; o bem é parte da subjetividade; 
não é aferida por um padrão fora da dimensão individual 
humana. 
Essa posição duplica o problema. Primeiro, a subjetivida-
de leva ao solipsismo, ou seja, a afirmação de que cada pessoa 
isoladamente é o determinador de valor e que, portanto, há 
tantos centros de valor quantas pessoas existentes no cosmo 
a qualquer tempo. Sartre reconhece essa objeção e reage, in-
sistindo que cada pessoa ao encontrar outras encontra um 
centro reconhecível de subjetividade.15 Portanto, vemos que 
outros, como nós, devem estar envolvidos em fazer sentido 
para si mesmos. Estamos todos juntos nesse mundo absurdo, 
nossas ações afetam uns aos outros de tal forma que "nada 
pode ser bom para nós sem que seja bom para todos".16 Além 
do mais, quando ajo, penso e afeto a minha subjetividade, 
estou envolvido em uma atividade social: "Estou criando 
uma certa imagem de homem de minha própria escolha, 
estou escolhendo a mim mesmo, eu escolho o homem".17 
O u n i v e r s o a o la d o 
Conforme Sartre, portanto, as pessoas que vivem vidas 
autênticas criam valor não apenas para si mesmas, mas para 
as demais também. 
A segunda objeção, Sartre não aborda, e isso parece ainda 
mais revelador. Se, como Sartre afirma, criamos valor simples-
mente pela escolha e, portanto, "jamais podemos escolher o 
mal", o bem faz algum sentido? A primeira resposta é sim, 
pois o mal é a "não escolha". E m outras palavras, o mal é a 
passividade, viver na direção dos outros, ser soprado a esmo 
pela sociedade de outrem, não reconhecendo o absurdo do 
universo, isto é, não mantendo o absurdo vivo. Se o bem está 
na escolha, então escolha. Certa vez, Sartre aconselhou um 
jovem rapaz que buscou seu conselho: "Você é livre, escolha, 
isto é, invente".18 
Essa definição satisfaz a nossa sensibilidade moral hu-
mana? O bem é meramente qualquer ação passionalmente 
escolhida? Muitos podem se lembrar de ações aparentemen-
te escolhidas de olhos bem abertos, mas que se mostraram 
totalmente equivocadas. E m que estado de espírito os 
massacres dos russos contra os judeus foram ordenados 
e executados? E os bombardeios nas vilas vietnamitas, a 
explosão de um edifício do governo em Oklahoma ou os 
alvos do Unabomber? E quanto ao atentado terrorista con-
tra o World Trade Center, no trágico 11 de setembro de 
2001? O próprio Sartre abraçou causas que aparentam ser 
morais em bases que muitos moralistas tradicionais acei-
tam. Porém, nem todo existencialista tem agido como 
Sartre, e o sistema parece deixar aberta a possibilidade de 
o Unabomber vir a reivindicar imunidade ética por seus 
1 5 2 
Além do niilismo 
assassinatos ou para os responsáveis pelos eventos de 11 de 
setembro se gloriarem na nobreza de sua causa. 
Posicionar o lugar da moralidade em cada subjetividade 
individual leva à incapacidade de distinguir o ato moral do 
imoral em bases que satisfaçam nosso senso de certo e errado 
inato, a noção que diz que os outros possuem os mesmos 
direitos que eu. Minha escolha não pode ser a escolha dese-
jada pelos outros, visto que estou escolhendo pelos outros, 
como afirma Sartre. Algum padrão externo aos "sujeitos" 
envolvidos se faz necessário para moldar verdadeiramente as 
ações e relacionamentos entre os "sujeitos". 
Ainda, antes de abandonarmos o existencialismo sob a 
acusação de solipsismo e um relativismo que fracassa em 
prover um fundamento para a ética, deveríamos dar mais do 
que o reconhecimento à nobre tentativa de Albert Carnus 
em mostrar como uma boa vida pode ser definida e vivencia-
da. Essa, parece-me, é a tarefa que Carnus atribui a si mesmo 
em A peste. 
Um sant o sem Deus 
Na obra Os irmãos Karamazov (1880), Dostoievski faz 
Ivan Karamazov dizer que se Deus está morto, então tudo 
é permitido. E m outras palavras, se não existe um padrão 
transcendente do bem, então, não há meios de se fazer dis-
tinção entre o certo e o errado, o bem e o mal, e não poderá 
haver santos ou pecadotes, tampouco pessoas boas ou más. 
Se Deus está morto, a ética torna-se impossível. 
• 1 5 3 
O u n i v e r s o a o la d o 
Albert Carnus encara esse desafio em A peste (1947), que 
relata a história de Oran, uma cidade localizada na África 
do Norte, na qual uma doença infecciosa mortal se alastra. 
A cidade fecha seus portões ao tráfego, portanto, torna-se 
um símbolo do universo fechado, um universo sem Deus. 
A enfermidade, por outro lado, vem a simbolizar o absurdo 
desse universo. A peste é arbitrária; é impossível prever-se 
quem será contaminado e quem permanecerá ileso. Não 
é "uma coisa feita para a medida do homem".1 9 A doença 
é terrível em seus efeitos - dolorosa física e mentalmen-
te. Suas origens são desconhecidas, não obstante, torna-se 
tão familiar quanto o pãozinho de todas as manhãs. Na há 
como evitá-la. Portanto, a peste passa a representar a própria 
morte, pois tal como a morte, a doença é inevitável, e seus 
efeitos, terminais. A peste ajuda as pessoas em Oran a viver 
uma existência autêntica, porque ela torna a todos conscien-
tes do absurdo que é o mundo no qual habitam. Isso aponta 
para o fato de que as pessoas nascem com o amor pela vida, 
mas vivem em um referencial da certeza da morte. 
A história principia quando ratos começam a sair de seus 
esconderijos, morrendo nas ruas, e termina um ano depois, 
quando a peste desaparece, e a vida na cidade retoma a nor-
malidade. Durante os meses de intervenção, a vida em Oran 
torna-se viver diante do absurdo total. A genialidade de 
Carnus está em utilizar isso como pano de fundo, a fim de 
mostrar as reações de um elenco de personagens, cada qual 
representando, de algum modo, uma atitude filosófica. 
Monsieur Michel, por exemplo, é o porteiro de um prédio 
de apartamentos. Ele se sente indignado pelofato de os ratos 
• 1 5 4 • 
Além do niilismo 
estarem abandonando suas tocas e morrerem no seu edifício. 
A princípio, ele nega que haja ratos em seu prédio, mas, com 
o tempo, vê-se forçado a admitir essa realidade. M . Michel 
morre logo no começo do romance, amaldiçoando os ratos. 
Esse personagem representa o homem que se recusa a reco-
nhecer o absurdo do universo. Quando é forçado a admitir 
isso, ele morre, pois não consegue viver diante do absurdo. 
Ele representa aqueles que são capazes de viver apenas vidas 
sem autenticidade. 
O velho espanhol reage de uma forma totalmente diferen-
te. Ele aposentou-se com a idade de 50 anos e foi diretamente 
para a cama. Então, ele mensurou o tempo, dia após dia, 
transferindo ervilhas de um recipiente ao outro. Ele disse: 
"a cada quinze ervilhas, é tempo de comer. O que poderia 
ser mais simples?".20 O velho espanhol jamais se levanta da 
cama, mas sente um sádico prazer nos ratos, no calor e na 
peste, que ele chama de "vida".2 1 Ele é o niilista na visão de 
Carnus. Nada em sua vida — interior ou exterior, mundo 
subjetivo ou objetivo — possui valor. Assim ele experimenta 
uma existência totalmente desprovida de significado. 
Monsieur Cottard representa uma terceira posição. Antes 
de a peste atingir a cidade, ele está nervoso, pois é um cri-
minoso e sujeito a ser preso se identificado. Porém, quando 
a peste se torna severa, todos os empregados da cidade estão 
ocupados em aliviar aquele sofrimento, e Cottard se vê livre 
para fazer tudo o que deseja. E tudo o que ele mais quer é 
se aproveitar da peste. Quanto mais a situação piora, tanto 
mais rico, feliz e amigo se torna. Ele diz: "Piorando a cada 
dia', não é? Bem, de qualquer modo, todos nós estamos no 
1 5 5 • 
O u n i v e r s o a o l a d o 
mesmo barco". Jean Tarrou, um dos personagens principais 
no romance, explica a felicidade de Cottard da seguinte ma-
neira: "Ele está sob risco de vida como todos os demais, mas 
esse é exatamente o ponto: ele está nisso com os outros"P 
Quando a peste começa a ceder, Cottard perde o seu sen-
timento de comunidade porque novamente passa a ser um 
homem procurado. Ele perde o autocontrole, aterroriza toda 
uma rua e é levado à força em custódia. Ao longo de todo 
o período da doença, as suas ações foram criminosas. Ao 
invés de aliviar o sofrimento do próximo, ele se aproveitou 
dele. Ele é o pecador de Carnus em um universo sem Deus — 
prova, se assim desejar, em forma romanceada, de que o mal 
é possível em um universo fechado. 
Se o mal é possível em um cosmo fechado, então tal-
vez o bem igualmente seja possível. Através de dois dos 
principais personagens, Jean Tarrou e dr. Rieux, Carnus de-
senvolve esse tema. Jean Tarrou foi inserido na companhia 
de niilistas ao visitar seu pai no trabalho, ouví-lo reivindicar, 
como advogado de acusação, a morte de um criminoso, para 
então ver uma execução. Essa experiência produziu um pro-
fundo efeito em seu interior. Como ele mesmo expressou: 
"Aprendi que tinha uma participação indireta nas mortes 
de milhares de pessoas... Todos nós contraímos a peste".24 
Assim ele perdeu sua paz. 
A partir dessa experiência, Jean Tarrou fez de sua vida 
uma busca por algum caminho que o tornasse "um santo sem 
Deus".2 5 Carnus dá a entender que Tarrou obtém sucesso em 
sua busca. Seu método repousa na compreensão, simpatia e, 
por fim, questões de ordem prática. 2 6 Ele é o que sugere a 
1 5 6 
Além do niilismo 
formação de um grupo de voluntários para combater a praga 
e confortar suas vítimas. Tarrou trabalha ininterruptamente 
com toda a sua capacidade. Não obstante, ainda permanece 
um traço de desespero em seu estilo de vida: "vencer a parti-
da" significa para ele viver "apenas com o que se conhece e se 
lembra, eliminando aquilo que se espera!" Dessa forma, es-
creve o dr. Rieux, o narrador da história, Tarrou "constatou 
a gélida esterilidade de um vida sem ilusões".2 7 
O próprio dr. Rieux é outro estudo de caso referente a 
um bom homem em meio a um mundo absurdo. Desde 
o princípio, ele se dispõe a lutar contra a peste com todas 
as suas forças - a se rebelar contra o absurdo. No início, 
sua atitude é desapaixonada, distante e indiferente. Mais 
tarde, quando sua vida é tocada profundamente pelas v i -
das e mortes das outras pessoas, ele se comove, tornando-se 
compassivo. Filosoficamente, ele vem a compreender o que 
está fazendo. Ele é totalmente incapaz de aceitar a ideia 
de que um bom Deus poderia estar no controle de tudo. 
Como afirmou Baudelaire, isso faria de Deus o mal. Antes, o 
dr. Rieux assume como tarefa sua "lutar contra a criação à 
medida que a descobre".28 Ele diz: "Uma vez que a ordem do 
mundo é moldada pela morte, não poderia ser melhor para 
Deus se nos recusássemos a crer nele e lutássemos com todas 
as forças contra a morte, sem elevar nosso olhar para os céus, 
onde ele está sentado em silêncio?"2 9 
O dr. Rieux faz exatamente isso: ele luta contra a morte. 
E a história que ele relata é um registro do "que tinha de ser 
feito, e o que certamente teria de ser feito novamente na 
luta interminável contra o terror e seus inexoráveis ataques, 
• 1 5 7 
O u n i v e r s o a o la d o 
apesar de suas aflições pessoais, por todos aqueles que, em-
bora incapazes de ser santos, mas se recusando a curvar 
diante das pestilências, esforçam-se ao máximo para ser os 
curadores".30 
Tenho me detido longamente em A peste (embora não 
tenha, de modo algum, esgotado suas riquezas seja como 
arte seja como lição de vida)3 1 porque não conheço qualquer 
outro romance ou trabalho sobre filosofia existencial que 
tome mais atraente um caso sobre a possibilidade de viver 
uma vida boa em um mundo onde Deus jaz morto e os 
valores não são alicerçados em uma estrutura moral que 
transcende a estrutura humana. Essa obra é, para mim, quase 
convincente, mas não totalmente, pois ocorrem as mesmas 
questões dentro de sua estrutura intelectual, como dentro 
do sistema da obra de Sartre, "existencialismo". 
Por que a afirmação de vida, conforme a visão do 
dr. Rieux e Jean Tarrou, deveria ser boa, e a vantagem que 
Cottard tirou da peste ser má? Por que a reação niilista do 
velho espanhol deveria ser menos correta que a ação posi-
tiva do dr. Rieux? É bem verdade que a nossa sensibilidade 
humana tende a ficar do lado de Rieux e Tarrou, porém 
reconhecemos que o velho espanhol não está sozinho em 
seu julgamento. Quem, então, está certo? Os que se alinha-
rem ao lado do velho espanhol não serão convencidos por 
Carnus ou qualquer leitor que se posicionar com Rieux, 
pois sem uma moral de referência externa não há uma 
base comum para discussão. O que existe é uma convicção 
contra a outra. A obra, A peste, é atrativa àqueles cujos 
valores morais são tradicionais, não porque Carnus oferece 
1 5 8 
Além do niilismo 
uma base para tais valores, mas pelo fato de ele continuar a 
afirmá-los, mesmo que não haja base para eles. Infelizmen-
te, a afirmação não é suficiente. Ela pode ser combatida 
com uma afirmação oposta. 
Pode ser que nos dois últimos anos de sua vida, Carnus 
tenha reconhecido sua falha em ir além do niilismo. Howard 
Mumma, o pastor de verão da Igreja Americana em Paris, 
relata conversas privadas travadas com Carnus durante esses 
dois anos nos quais o autor, pouco a pouco, veio a sentir 
que a explicação cristã era verdadeira. Ele perguntou a 
Mumma o que significava "nascer novamente" e se o pastor 
o batizaria. O batismo não aconteceu, primeiro, porque 
Mumma considerou o batismo de infância de Carnus válido 
e, segundo, porque Carnus não estava pronto para exibição 
pública de sua conversão. A questão permaneceu sem solução, 
quando Mumma deixou Paris, ao fim do verão, esperando 
rever Carnus no verão seguinte. Carnus faleceu em um 
acidente automobilístico em fevereiro do anoseguinte.32 
Quant o além do n i i l i smo? 
O existencialismo ateísta transcende o niilismo? Certamente 
unta isso - com paixão e convicção. Não obstante, falha 
em prover uma referência para uma moralidade que vá além 
de cada indivíduo. Ao fundamentar a significância huma-
na na subjetividade, ele a coloca em um plano divorciado 
(U realidade. O mundo objetivo mantém-se penetrante: a 
morte, a sempre presente possibilidade e a derradeira certeza, 
coloca um paradeiro em qualquer outro significado que, caso 
1 5 9 • 
O u n i v e r s o a o la d o 
contrário, pudesse ser possível. Ele força um existencialista a 
afirmar, afirmar e afirmar; quando a afirmação cessa, assim 
também cessa a autêntica existência. 
Considerando precisamente essa objeção à possibilidade 
de valor humano, H . J . Blackham concorda com os ter-
mos do argumento. A morte, de fato, põe um fim em tudo. 
Porém, toda vida humana é mais que si mesma, pois descen-
de de uma humanidade passada e influencia o futuro dessa 
humanidade. Além do mais, "existe um céu e um inferno 
na economia de toda a imaginação humana".33 Isto é, diz 
Blackham, sou o autor de minha própria experiência".3 4 Após 
todas as objeções terem sido levantadas, Blackham retrocede 
ao solipsismo. Isso me parece o fim de todas as tentativas éti-
cas do ponto de vista do existencialismo ateísta. 
O existencialismo ateísta vai além do niilismo apenas para 
alcançar o solipsismo, o eu solitário que existe por 87 anos 
(se não contrair a peste mais cedo), então cessa de existir. 
Muitos diriam que isso não é, de forma alguma, ir além do 
niilismo; significa apenas vestir uma máscara chamada valor, 
uma máscara despida pela morte. 
Exist encial i smo t eíst a básico 
Como indicado acima, o existencialismo teísta surgiu de 
raízes filosóficas e teológicas muito distintas daquelas que 
deram origem à sua contrapartida ateísta. Ele foi a resposta 
de S0ren Kierkegaard ao desafio de um niilismo teológico 
- a ottodoxia morta de uma igreja idem. Como os temas 
de Kierkegaard foram recuperados duas gerações após 
1 6 0 
Além do niilismo 
a sua morte, eles foram a resposta a um cristianismo que 
havia perdido totalmente a sua teologia e estabelecido um 
evangelho diluído de moralidade e de boas obras. Deus 
havia sido reduzido a Jesus que, por sua vez, foi reduzido 
a um homem puro e simples. A morte de Deus na teologia 
liberal não produziu entre os liberais o mesmo desespero de 
Kafka, mas o otimismo de um bispo inglês que, em 1905, 
quando instado sobre o que imaginava ser capaz de prevenir 
a humanidade de alcançar uma perfeita união social, nada 
conseguiu responder. 
Mais tarde, na segunda metade do século X X , entretanto, 
Karl Barth, na Alemanha, vislumbrou o que poderia acon-
tecer quando a teologia se transformasse em antropologia, 
respondendo com a reforma do cristianismo por meio de 
linhas existenciais. O que ele e os teólogos subsequentes, 
como Emi l Brunner e Reinhold Niebuhr, afirmaram pas-
sou a ser chamado de neo-ortodoxia, que por um pouco foi 
significantemente distinta da ortodoxia, e colocava Deus em 
um plano secundário. 3 5 Não é meu objetivo abordar especi-
ficamente uma forma de neo-ortodoxia, mas, ao contrário, 
procurarei identificar proposições que sejam comuns à posi-
ção existencial teísta. 
O existencialismo teísta começa com a aceitação das 
seguintes pressuposições do teísmo: Deus é infinito e pessoal 
(trino), é transcendente, imanente, onisciente, soberano e bom. 
I )eus criou o cosmo ex nihilo para operar com uma uniformida-
de de causa e efeito em um sistema aberto. Os seres humanos são 
criados à imagem de Deus, assim podem conhecer algo de Deus e 
ilo cosmo epodem agir com significado. Deus pode e se comunica 
1 6 1 
O u n i v e r s o a o la d o 
conosco. Nós fomos criados bons, mas agora somos decaídos e 
precisamos ser restaurados por Deus por meio de Cristo. Para os 
seres humanos, a morte é ou o portão para a vida com Deus e 
seu povo ou para a vida para sempre separada de Deus. A ética é 
transcendente e baseada no caráter de Deus. 
Se compararmos a lista anterior com aquela mencionada 
no capítulo 2 sobre o próprio teísmo, podemos nos ques-
tionar o que torna o existencialismo teísta especial. Já não 
temos o teísmo? Sou tentado a dizer que isso é o que temos, 
mas isso seria uma injustiça para com as variações e as ên-
fases especiais dentro do existencialismo. O teísmo em sua 
versão existencial é muito mais um conjunto particular de 
ênfases dentro do teísmo que propriamente uma cosmovisão 
distinta. Ainda, devido ao seu impacto na teologia do século 
X X e sua confusa relação com o existencialismo ateísta, ele 
merece um tratamento especial. Além do mais, algumas ten-
dências dentro da versão existencial de teísmo colocam-no 
em desacordo com o teísmo tradicional. Tais tendências se-
rão enfatizadas à medida que forem surgindo na discussão. 
Tal como o existencialismo ateísta, os elementos mais ca-
racterísticos do existencialismo teísta estão relacionados não 
com a natureza do cosmo ou Deus, mas com a natureza hu-
mana e nossa relação com o cosmo e Deus. 
1. Os seres humanos são seres pessoais que, quando chegam 
à plena consciência, descobrem-se em um universo hostil; 
se Deus existe ou não é uma questão difícil a ser resolvida, 
não pela razão, mas por meio da fé. 
O existencialismo teísta não começa com Deus, sen-
do essa a mais importante variação em relação ao teísmo. 
1 6 2 
Além do niilismo 
Com o teísmo, assume-se certamente que Deus está pre-
sente e dotado de determinado caráter; então, as pessoas 
são definidas em relacionamento com Deus. O existen-
cialismo teísta chega à mesma conclusão, mas começa em 
outro lugar. 
O existencialismo teísta enfatiza o lugar no qual os seres 
humanos descobrem a si mesmos, quando, pela primei-
ra vez, alcançam a autoconsciência. Autorreflexão por um 
momento. Sua certeza quanto a própria existência, sua 
própria consciência e autodeterminação - esses são os seus 
pontos de partida. Quando você olha em derredor, analisa 
seus desejos em relação à realidade que encontra e busca 
por um sentido para â sua existência, não é abençoado com 
respostas certeiras. O que você descobre é um universo 
no qual você não se encaixa, uma ordem social que esfre-
ga onde não está coçando e falha em esfregar onde coça. 
E , pior ainda, você não percebe Deus imediatamente. 
A situação humana é ambivalente, pois a evidência de 
ordem no universo é ambígua. Algumas coisas parecem ex-
plicáveis pelas leis que parecem governar os eventos; outras 
coisas não. A realidade do amor e da compaixão fornece 
evidência para uma deidade benevolente; a realidade do 
amor e da violência, além desse universo impessoal aponta 
na direção contrária. 
E aqui que o padre Paneloux, em A peste, simboliza para 
nós uma posição existencial cristã. O dr. Rieux, como vi -
mos, recusa-se a aceitar a "ordem criada" porque constituía 
"um esquema de coisas na qual crianças eram levadas à tor-
tura".3 6 Por outro lado, o padre Paneloux diz: "Mas, talvez 
1 6 3 
O u n i v e r s o a o la d o 
devêssemos amar aquilo que não compreendemos".37 Ele 
deu um "salto" em fé e amor pela existência de um Deus 
bom, ainda que a evidência imediata apontasse para outra 
direção. E m lugar de relacionar o absurdo do universo à 
queda, como faria um teísta cristão, padre Paneloux assume 
que Deus é imediatamente responsável por este universo ab-
surdo; portanto, ele conclui que deve acreditar em Deus a 
despeito desse absurdo. 
Carnus, em outro lugar, chama tal fé de "suicídio inte-
lectual", e estou inclinado a concordar com ele. Porém, a 
questão é que, embora a razão possa nos levar ao ateísmo, 
sempre nos será possível recusar as conclusões da razão e dar 
um salto rumo à fé. 
Na verdade, se o Deus judaico-cristãorealmente existe, 
seria melhor reconhecer tal fato, porque, nesse caso, nosso 
destino eterno depende disso. Porém, dizem os existencia-
listas, a informação não está completa e jamais estará e, 
assim, toda a pessoa que deseja ser teísta deve dar um passo 
à frente e escolher crer. Deus jamais revelará a si mesmo de 
uma forma que não seja ambígua. Por conseguinte, cada 
pessoa, na solidão de sua própria subjetividade, envolta 
muito mais em trevas que em luz, deve escolher. E essa 
escolha deve ser um ato radical de fé. Quando a pessoa 
realmente escolhe crer, todo um panorama se descortina 
para ela. A maioria das proposições do teísmo tradicional 
aflora. Ainda, a base subjetiva e centrada na escolha pela 
cosmovisão colore o estilo de cada postura do existencia-
lista cristão, dentro do teísmo. 
1 6 4 
Além do niilismo 
2. O pessoal é que possui valor. 
Como no existencialismo ateísta, o existencialismo teísta 
enfatiza a disjunção entre os mundos objetivo e subjetivo. 
Martin Buber, um existencialista judeu, possui os termos 
Eu-Tu e Eu-Isso para distinguir entre as duas maneiras de 
uma pessoa relacionar-se com a realidade. No relacionamen-
to Eu-Isso, o ser humano é um objetivador. 
Agora, com a lente de aumento da observação meticu-
losa, ele se inclina sobre particularidades e as transforma 
em objetivos, ou com o binóculo para inspeção remota 
ele as objetiva e torna em cenário, isolando-as em obser-
vação, sem qualquer sentimento de sua exclusividade, ou 
as entretece em um esquema de observação sem qualquer 
sentimento de universalidade.38 
Esse é o campo da ciência e da lógica, do espaço e tem-
po, de mensurabilidade. Como afirma Buber: "Sem o Isso, o 
homem não pode viver. Porém, se ele vive apenas por Isso ele 
não é um homem".3 9 O Tu é necessário. 
No relacionamento Eu-Tu, um sujeito encontra outro 
sujeito: "Quando o Tu é verbalizado [Buber quer dizer v i -
venciado], o que verbaliza não tem nada para seu objeto".40 
Ao contrário, os que verbalizam têm um sujeito como eles 
mesmos com os quais podem compartilhar uma vida mútua. 
Nas palavras de Buber: "Todo viver real é um encontro".41 
A afirmação de Buber sobre a primazia da relação 
Eu-Tu, pessoa a pessoa, é agora reconhecida como clássica. 
Nenhum resumo simples lhe fará justiça, por isso, encorajo 
os leitores a lidar consigo mesmos na leitura daquele livro. 
1 6 5 
O u n i v e r s o a o la d o 
Por ora, devemos nos contentar com mais uma menção so-
bre o relacionamento pessoal que Buber considera possível 
entre Deus e as pessoas: 
Os homens não descobrem Deus se permanecerem no mun-
do. Eles não O encontrarão se não deixarem este mundo. 
Aquele que sai com todo o seu ser a encontrar o seu Tu, 
carregando todo o ser que está no mundo, encontrará aque-
le que não pode ser buscado. Claro, Deus é "Totalmente 
Outro"; porém ele também é o totalmente Mesmo, o To-
talmente Presente . Por certo, ele é o Mysterium Tremendum 
que aparece e desaparece; mas também é o mistério do auto-
evidente, mais próximo a mim que meu Eu.42 
Portanto, os existencialistas teístas enfatizam o pessoal 
como valor primário. O impessoal está lá; é importante, mas 
é para ser elevado a Deus, elevado ao Tu que está acima de 
todos os outros. Agir assim satisfaz o Eu e serve para erra-
dicar a alienação tão fortemente vivenciada pelas pessoas, 
quando elas se concentram em relações Eu-Isso com a natu-
reza e, infelizmente, com outras pessoas também. 
Essa discussão parece pouco abstrata aos cristãos cuja fé 
em Deus é uma realidade diária na qual vivem, ao invés de 
refletirem sobre ela. Talvez o quadro seguinte, comparando 
duas maneiras de olhar para alguns elementos básicos do 
cristianismo, possa deixar as ideias mais claras. Esse quadro 
foi adaptado de uma palestra proferida pelo teólogo Harold 
Englund, na Universidade de Wisconsin, no início da década 
de 60. Imagine na coluna da esquerda a descrição de uma 
ortodoxia morta em contraste com a coluna da direita, que 
descreve um existencialismo teísta vivo. 
1 6 6 
Além do niilismo 
De s p e r s on a liza d o Pe r son a lizad o 
Pecado Qu ebr a r u m a r egra Tr air u m r e lacionamen to 
Arrependimento Ad m it ir a cu lp a Tr is t eza q u an t o à t r a ição pessoal 
Perdão Suspender a penalidade Renovar a amizade 
Fé 
Cr er em u m con ju n t o de 
p r op os ições 
Compr ometer -se com u m a 
pessoa 
Vida cristã Obed ecer às r egras Agr adar ao Senhor , u m a pessoa 
Quando colocada dessa forma, a versão existencial é, 
nitidamente, mais atraente. Claro que os teístas tradicionais 
podem reagir de duas maneiras: primeira, a segunda colu-
na demanda ou implica na existência da primeira coluna 
e, segunda, o teísmo sempre incluiu a segunda coluna em 
seu sistema. Ambas as respostas são bem fundamentadas. 
0 problema é que a cosmovisão total do teísmo nem sem-
pre é bem compreendida e as igrejas apresentam a tendência 
de se concentrarem na primeira coluna. Isso levou o exis-
tencialismo a resgatar muitos teístas com respeito ao pleno 
u conhecimento da riqueza de seu próprio sistema. 
3. 0 conhecimento é subjetividade; a verdade total é com 
frequência, paradoxal. 
A ênfase existencialista na personalidade e integridade 
leva a uma igual ênfase na subjetividade do genuíno conhe-
1 i mento humano. O conhecimento sobre objetos envolve 
n-Licionamentos do tipo Eu-Isso; eles são necessários, po-
rém insuficientes. O conhecimento pleno é caracterizado 
por uma inter-relação íntima, envolvendo o Eu-Tu, e está 
1 6 7 
O u n i v e r s o a o la d o 
firmemente conectada à autêntica vida do conhecedor. E m 
1835, quando Kierkegaard foi confrontado com a decisão 
sobre qual seria o trabalho de sua esposa, ele escreveu: 
O que realmente necessito é tornar mais claro em minha 
própria mente o que devo ser, não o que devo conhecer 
- exceto até o ponto em que o conhecimento deve prece-
der a açao. O importante é compreender para o que sou 
destinado, perceber o que a divindade quer que eu faça; o 
ponto é descobrir a verdade para mim, encontrar aquela 
ideia pela qual estou pronto a viver e morrer. Que bem 
me faria descobrir a assim chamada verdade objetiva, ain-
da que precisasse abrir meu caminho por entre os sistemas 
dos filósofos e fosse capaz, se necessário, de passá-los em 
revisão?43 
Alguns de seus leitores entenderam que Kierkegaard 
abandonou totalmente o conceito de verdade objetiva; 
certamente alguns existencialistas fizeram exatamente isso, 
desunindo o objetivo e o subjetivo tão completamente que 
um não tem qualquer relação com o outro.4 4 Isso foi espe-
cialmente verdadeiro com respeito a existencialistas como 
John Platt.4 5 Não é que os fatos sejam insignificantes, mas 
que eles devem ser fatos para alguém, fatos para mim. E 
isso muda o caráter deles e faz com que o conhecimento 
(orne-se o conhecedor. A verdade em sua dimensão pessoal é 
subjetividade; é verdade diferida e vivenciada nos terminais 
nervosos da vida humana. 
Quando o conhecimento se torna tão intimamente 
conectado com o conhecedor, há uma ponta de paixão, de 
simpatia e a tendência é ser difícil separá-lo logicamente 
1 6 8 • 
Além do niilismo 
do próprio conhecedor. Buber descreve a situação de uma 
pessoa diante de Deus: "A situação religiosa do homem, seu 
ser lá na Presença, é caracterizada por sua essencial e indis-
solúvel antinomia". O que é a relação de uma pessoa com 
1 )eus quanto à liberdade ou necessidade? Kant, afirma Buber, 
resolveu o problema ao designar a necessidade ao domínio 
cias aparências e a liberdade ao domínio do ser. 
Todavida, se considerar a necessidade e a liberdade não em 
mundos de pensamento, mas na realidade de estar dian-
te de Deus, se eu sei que "estou entregue à alienação" e, 
ao mesmo tempo, sei que "isso depende de mim mesmo", 
então não possoescapar do paradoxo que deve ser vivido, 
atribuindo proposições irreconciliáveis a dois domínios 
distintos de validade; tampouco não há como evitar uma 
reconciliação ideal por qualquer dispositivo teológico: mas 
sou compelido a tomar ambos para mim, para serem vivi-
dos em conjunto e, ao viver assim, eles se tornam um.4 6 
A verdade plena reside no paradoxo, não em Uma asserção 
de apenas um dos lados da questão. Presumivelmente, esse pa-
radoxo está solucionado na mente de Deus, mas não na mente 
humana. Ele é para ser vivenciado: "Deus, confio totalmente 
cm ti; faça a tua vontade. Estou me dispondo a agir". 
A força de expressar a nossa compreensão quanto a nos-
sa posição diante de Deus em tal paradoxo é, pelo menos 
em parte, resultado da incapacidade que a maioria de nós 
tem em expressar nossa posição de forma não paradoxal. 
A maioria das declarações desse tipo termina por negar tanto 
a soberania de Deus quanto à significação humana, isto é, 
elas tendem ou ao pelagianismo ou ao hipercalvinismo. 
• 1 6 9 • 
O u n i v e r s o a o la d o 
A fraqueza em se conformar, no paradoxo, reside na 
dificuldade de reconhecer onde parar. Que conjuntos de 
afirmações aparentemente contraditórias devem ser vividos 
como verdade? Decerto nem todos. "Ame o seu próximo; 
odeie o seu próximo". Faça o bem aos que o perseguem. 
Reúna seus amigos e os faça seus inimigos". Não cometa 
adultério. Tenha todas as relações sexuais ilícitas que pu-
der". 
Dessa forma, além de paradoxal, pareceria dever exis-
tir alguma proposição não contraditória, governando os 
paradoxos que tentamos vivenciar. Na forma cristã de exis-
tencialismo, a Bíblia, considerada como revelação especial 
de Deus, tem estabelecido os limites. Ela proíbe muitos pa-
radoxos e parece encorajar outros. A doutrina da Trindade, 
por exemplo, pode ser um paradoxo insolúvel, porém faz 
justiça aos dados bíblicos.4 7 
Entre aqueles que não possuem autoridade externa obje-
tiva a delimitar as fronteiras, o paradoxo tende a correr solto. 
Marjorie Grene tece comentários a respeito de Kierkegaard: 
"Muitos dos escritos de Kietkegaard aparentam ser moti-
vados não tanto por uma reflexão sobre as conveniências 
religiosas ou filosóficas do paradoxo quanto a um problema 
peculiar, porém mais pelo puro deleite intelectual no absur-
do por seu próprio interesse".48 Portanto, esse aspecto do 
existencialismo teísta surgiu sob críticas intensas por parte 
dos que sustentam a cosmovisão teísta tradicional. A men-
te humana é feita à imagem de Deus e, assim, a despeito 
de ser finita e incapaz de abranger a totalidade do conhe-
( [mento, ainda assim é capaz de discernir alguma verdade. 
1 7 0 
Além do niilismo 
< orno expressou Francis A. Schaeffer, podemos obter uma 
lubstancial verdade, mas não toda ela, e podemos discernir 
i verdade da tolice por meio do uso do princípio da não 
• IH ii i adição.4 9 
4. A história como registro de eventos é incerta, sem 
importância, mas a história como modelo, tipo ou mito a 
ser feito presente e vivenciado é de suprema importância. 
O existencialismo teísta deu dois passos à frente do te-
jimo tradicional. O primeiro foi começar a desconfiar da 
precisão da história registrada. O segundo foi perder o in-
11 i sse em sua facticidade e enfatizar a sua implicação ou 
.i] ,iiificado religioso. 
( ) primeiro passo está associado ao maior criticismo a 
partir da metade do século X I X . E m vez de assumir os re-
inos bíblicos como verazes, aceitando os milagres e tudo 
<> mais, os críticos mais contumazes, como D . F. Strauss e 
I i ncst Renan, partiram da pressuposição naturalista de que 
milagres não podem acontecer. Portanto, seus relatos devem 
lei lalsos, não necessariamente inventados pelos escritores 
I <>m o propósito de enganar, mas apresentados por pessoas 
i rédulas dotadas de mentes primitivas. 
Essa posição, claro, tendeu a enfraquecer a autoridade 
i l o s relatos bíblicos, mesmo que não estivessem envolven-
do eventos miraculosos. Outros críticos, mais notadamente 
lulius Wellhausen, também voltaram sua atenção para a 
unidade interna do Antigo Testamento e descobriram, as-
i i n estavam convictos, que o Pentateuco não foi escrito pot 
Moisés. De fato, os textos mostraram que inúmeras mãos 
1 7 1 
O u n i v e r s o a o l a d o 
foram utilizadas, ao longo de vários séculos. Isso enfraque-
ceu o que a Bíblia afirma de si mesma e, portanto, colocou 
em dúvida a verdade de toda a mensagem nela contida.5 0 
E m lugar de mudar suas pressuposições naturalísticas, 
compatibilizando-as com os dados bíblicos, eles concluíram 
que a Bíblia era historicamente indigna de confiança. Isso 
poderia ter resultado em um abandono da fé cristã em sua 
totalidade. Mas, ao contrário, isso levou ao segundo passo 
- uma radical mudança de ênfase. Os fatos registrados no 
texto bíblico não eram importantes, mas os seus exemplos 
de um bom viver e suas imortais verdades morais é que o 
eram. 
E m 1875, Matthew Arnold escreveu que o cristianismo 
"viverá, porque depende de uma ideia verdadeira e incan-
savelmente frutífera, a ideia da morte e ressurreição como 
concebida e executada por Jesus... A importância da fé dos 
discípulos na ressurreição do Mestre reside em sua convicção 
de que ela realmente ocorreu, embora a tenham materializa-
do. Jesus havia morrido e se levantado novamente, mas em 
seu próprio sentido, não no dos discípulos".5 1 A história, ou 
seja, os eventos ocorridos no tempo e espaço, não eram im-
portantes, mas a crença é que o era. E a doutrina da morte e 
ressurreição surgiu não para a expiação da humanidade pelo 
Deus-homem Jesus Cristo, mas para dar o exemplo de uma 
"nova vida" de serviço e sacrifício humano em benefício de 
outros. O grande mistério da invasão do tempo e espaço pot 
Deus foi alterado do fato para o mito, um mito poderoso, 
claro, que podia transformar pessoas comuns em gigantes 
morais. 
1 7 2 
Além do niilismo 
Tais passos ocorreram muito antes de o niilismo de 
Nietzsche ou do desespero de Kafka. Eles foram reações aos 
"resultados assegurados do conhecimento" (os quais, como 
os que agora perseguem o materialismo descobrirão, não são 
tão garantidos assim). Se a verdade objetiva não puder ser 
encontrada, não importa. A verdade real está poeticamente 
contida na "história", a narrativa. 
É interessante observar o que logo aconteceu com 
Matthew Arnold. E m 1875, ele afirmava que deveríamos ler 
a Bíblia como poesia; se assim fizéssemos, ela nos ensinaria a 
boa vida. Cinco anos depois, ele deu o próximo passo e pas-
sou a advogar que nós tratamos a poesia da mesma forma com 
qu e costumávamos tratar a Bíblia: "Mais e mais a humanida-
de descobrirá que temos nos voltado à poesia para interpretar 
,i vida para nós, para nos consolar, para nos sustentar... 
A maioria do que agora nos transmitem como religião e fi-
losofia será substituída pela poesia".52 Para Arnold, a poesia 
em geral, havia se tornado Escritura. 
De todo modo, quando os existencialistas teístas (Karl 
Barth, Reinhold Niebuhr, Rudolf Bultmann e outros de 
eus colegas) começaram a surgir no cenário teológico, eles 
tinham uma solução já pronta para o problema apresenta-
do pelos ortodoxos à alta crítica. Assim, a história bíblica 
passou a ser alvo de suspeitas. Que importa? Os relatos são 
K ligiosamente" (isto é, poeticamente) verdadeiros. Assim, 
• ni |uanto a doutrina dos neo-ortodoxos se parece mais com a 
I il mdoxia de Calvino do que com o liberalismo de Matthew 
\ i nold, a base histórica para as doutrinas foi reduzida, e as 
próprias doutrinas começaram a ser removidas da história. 
1 7 3 
O u n i v e r s o a o la d o 
Dizia-se sobre a queda que ela não teria ocorrido lá atrás, 
no tempo e espaço, mas cada pessoa reproduz essa histó-
ria em sua própria vida. Cada um entra no mundo como 
Adão,sem pecado; cada um se rebela contra Deus. A queda 
é existencial - uma proposição aqui e agora - Edward John 
Carnell resume a visão existencial da queda como "uma des-
crição mitológica de uma experiência universal da raça".5 3 
Da mesma forma, a ressurreição de Jesus pode ou não 
ter ocorrido no tempo e espaço. Barth acredita que ocorreu, 
mas, por outro lado, Bultmann afirma: "Um fato histórico 
que envolve uma ressurreição dos mortos é totalmente in-
concebível!"5 4 Novamente isso não importa. A realidade por 
trás da ressurreição é a nova vida em Cristo vivenciada por 
seus discípulos. O "espírito" de Jesus vivia neles; a vida foi 
transformada. De fato, eles estavam vivendo o "estilo de vida 
cruciforme".55 
Outras doutrinas sobrenaturais são, igualmente, "demi-
tologizadas", entre elas, a criação, a redenção, a ressurreição 
do corpo, a segunda vinda, o anticristo. Cada uma expressa 
como um símbolo de importação "religiosa". Seja conside-
rando-as de forma literal ou não, o significado delas não está 
em sua facticidade, mas naquilo que indicam sobre a nature-
za humana e nosso relacionamento com Deus.5 6 
É aqui, na compreensão da história e da doutrina, que os 
teístas mais encontram falhas em suas contrapartes existen-
ciais. A acusação é dupla. Primeiro, os teístas afirmam que 
os existencialistas partem de duas pressuposições falsas ou, 
pelo menos, altamente suspeitas: (1) que milagres são im-
possíveis (aqui Bultmann, mas não Barth) e (2) que a Bíblia 
1 7 4 
Além do niilismo 
não é confiável historicamente. Na esfera das pressuposições, 
Bultmann simplesmente empresta a noção naturalista do 
universo fechado; Bultmann, embora normalmente as-
sociado com os teólogos neo-ortodoxos, não é, portanto, 
realmente um existencialista "teísta", afinal. Muito do co-
nhecimento recente avançou um longo caminho à frente, 
icsiaurando a confiança no Antigo Testamento como um re-
gistro preciso de eventos, porém teólogos existenciais ignoram 
esse conhecimento ou desconsideram a importância de seus 
resultados. E isso nos leva à segunda maior crítica teísta. 
Os teístas acusam os existencialistas de edificar uma 
teologia sobre a areia movediça do mito e do símbolo. Como 
um comentarista disse sobre Resurrection: A Symbol ofHope 
| Ressurreição: um símbolo de esperança], de Lloyd Geering, 
uma obra existencial: "Como pode um não evento [a ressur-
reição que não aconteceu] ser considerado um símbolo de 
esperança ou, na verdade, de qualquer outra coisa? Se algo 
.uontece, tentamos ver o que significa. Se não aconteceu, a 
questão não pode ser suscitada. Somos levados de volta para 
.1 necessidade de um evento Pascal".5 7 
Deve haver um evento para se haver propósito. Se Jesus 
[eyantou dentre os mortos no modo tradicional em que esse 
evento é compreendido, então nós temos um evento com 
um significado. Se Jesus permaneceu na tumba ou se o cotpo 
foi transportado para outro lugar, temos um outro evento 
e, assim, ele deve ter um outro significado qualquer. Dessa 
forma, um teísta se recusa a desistir da base histórica para a 
le e desafia o existencialista a considerar com maior serieda-
d e as implicações de abandonar a facticidade histórica como 
1 7 5 
O u n i v e r s o a o la d o 
religiosamente importante. Tal abandono deve levar à dúvi-
da e à perda da fé. Pelo contrário, isso tem levado a um salto 
de fé. O significado é criado no mundo subjetivo, porém 
não possui referência objetiva. 
Nessa área o existencialismo teísta se aproxima do existen-
cialismo ateísta. Talvez, quando os existencialistas abandonam 
a facticidade como base de significado, eles deveriam ser enco-
rajados a dar o próximo passo e abandonar completamente o 
significado. Isso os colocaria de volta nos desperdícios apaga-
dos do niilismo, e eles deveriam buscar outra saída. 
A p ersi st ência do exi st encial i sm o 
As duas formas de existencialismo são interessantes para 
estudo, pois formam um par de cosmovisões que sustentam 
um relacionamento fraternal, porém são filhos de pais dife-
rentes. O existencialismo teísta surgiu com Kierkegaard como 
uma resposta ao teísmo morto e a uma ortodoxia morta, e 
com Karl Barth, como uma resposta à redução do cristianis-
mo a uma mera moralidade. Isso deu lugar ao subjetivismo, 
elevou a religião da história e concentrou sua atenção no 
significado interior. O existencialismo ateísta veio à tona 
com Jean Paul Sartre e Albert Carnus, como uma reação ao 
niilismo e a redução das pessoas a insignificantes engrena-
gens dentro do maquinário cósmico. Isso levou a uma volta 
subjetivista, elevou a filosofia da objetividade e ctiou signifi-
cado a partir da afirmação humana. 
Irmãos em estilo, porém diferentes em conteúdo, essas 
duas formas de existencialismo ainda atraem a atenção e 
1 7 6 
Além do niilismo 
angariam partidários. Enquanto aqueles que seriam crentes 
em Deus ansiarem por uma fé que não demanda muita crença 
no sobrenatural ou na precisão da Bíblia, o existencialismo 
teísta será uma opção viva. Enquanto os naturalistas, que 
não podem (ou se recusam) a crer em Deus, buscarem por 
um caminho, visando encontrar significado em sua vida, o 
existencialismo ateísta terá a sua serventia. Prevejo que as 
duas formas - provavelmente em versões sempre novas e 
variáveis - estarão conosco por um longo tempo. 
• 1 7 7 • 
C a p í t u l o s e t e 
JO RN A D A RU M O A O O RI EN TE 
M onismo pant eíst a or ient al 
E tod as as vozes, todos os objetivos, todos os anseios, todas as 
tristezas, todos os p razeres, tod o o bem e tod o m a l.. . A grand e 
canção com m ilhares de vozes consistia de u m a ú n ica p alavra: 
O M - p erfeição. 
H erm an H esse, Sidarta 
NO CURSO DO PENSAMENTO OCIDENTAL, n ó s , p o r fim, ch egam os a u m im p asse. O n a t u r a l ism o lev a ao n i i l i s -
m o , e este, p o r su a v ez , é d ifícil d e t r an scen d er nos term os 
Que o m u n d o ocid en t a l , p er m ead o p elo n a t u r a l ism o , d eseja 
u t it a r . O exis t en cia lism o a teísta , co m o v im o s , é u m a ten ta -
nv.i , m as ele ap resen ta a lgu n s p r ob lem as sér ios. O teísm o é 
Uma op çã o , m a s , p a r a u m n a tu r a lis t a , n ão é a t raen te. C o m o 
Dode u m n a tu r a lis t a aceita r a existên cia d e u m D e u s t r an s-
I en d en te, in fin i t o e p essoal? Por qu ase u m sécu lo essa qu estão 
O u n i v e r s o a o l a d o 
ap resen tou -se com o u m sér io obstácu lo . M u i t a s pessoas h oje 
p r efer em agarrar -se ao seu n a t u r a l ism o , p o is ele a in d a p are-
ce ser u m avan ço d ecis iv o sobre a fa bu losa religião qu e ele 
m esm o r e je itou . A lém d o m a is , a cr is t an d ad e m o d e r n a , co m 
su as igrejas h ip ócr ita s e su a fa lt a d e co m p a ixã o , co n s t i t u i 
u m p obre t es t em u n h o q u a n t o à v ia b il id a d e d o t e ísm o. N ã o , 
m u it o s r efle tem , p o r esse ca m in h o n ã o segu ir em os. 
Ta lv ez d evêssem os o lh a r n ov am en te p a r a o n a tu r a lism o . 
O n d e fo i qu e er ram os? Be m , d escobr im os qu e, ao segu ir a 
razão, nosso n a t u r a lism o nos leva ao n i i l i s m o . Por ém , n ão 
p recisam os n ecessar iam en te aban d on a r o nosso n a tu r a lism o ; 
p od em os s im p lesm en te d izer qu e a razão n ão é con fiável. O 
exis ten cia lism o segu iu essa ro ta p a r cia lm en te e, ta lvez, en tã o , 
d evêssem os segu í-la a té o fim. Segu n d o , u m a vez qu e n ós , 
ocid en ta is , ten d em os a nos d eter em d iscu ssões sobre "d o u -
t r in a s", id eias e a ss im p or d ian te , d ecla rem os u m a m or a tór ia 
n ão ap enas sobre as d iscu ssões, m as sobre tod a e q u a lq u er 
d iscr im in ação in t e lectu a l. Ta lv ez a lg u m a d o u t r in a "ú t i l" d e-
vesse ser con sid erad a co m o v er d ad eir a . Ter ce ir o ,tod o nosso 
a t iv ism o e m p r o l d e gerar m u d an ças p or m eio d a m a n ip u la -
ção d o sistem a d o u n iv er so p r od u z p olu ição e nossos esforços 
q u an to a m elh or ia s sociais n ão se m o s t r a m recom p en sad ores, 
p o r qu e razão n ão aban d on am os tod o esse a t iv ism o? Va m o s 
p a ra r d e ten tar elevar n ossa qu a lid ad e d e v id a e ap enas ser. 
Fin a lm en t e , se as d iscu ssões d o O cid en t e acabam r ed u n d a n -
d o e m con flitos a r m ad os, p or qu e n ã o ba term os e m ret ir ad a 
com p letam en te? D ev em o s segu ir e d eixa r acon tecer : n o qu e 
isso p od e ser p io r d o qu e tu d o o qu e tem os ob t id o até agora? 
É possível qu e o O r ie n t e t en h a u m ca m in h o m elh or ? 
180 • 
Jornada rumo ao oriente 
C o n s id e r a n d o e m ter m os socio lóg icos, p od em os rastrear 
0 in teresse sobre o O r ie n t e a p a r t i r d a rejeição d os va lores d a 
classe m éd ia p ela geração jo v e m d os an os sessen ta. P r im e i r o , 
a t ecn olog ia ocid en ta l (is to é, a razão e m su a ap licação p r á -
t ica ) t o r n o u p ossível a gu er r a m o d e r n a . A G u e r r a d o Vie t n ã 
(os jov en s am er ican os n u n ca h a v ia m v iv en cia d o p essoa lm en -
te os con flito s an ter ior es) é o r esu ltad o d a razão. P o r t a n t o , 
a ba n d on em os a razão. Seg u n d o , a eco n o m ia ocid en ta l t em 
resu ltad o e m gran d e d esigu a ld ad e socia l e a op ressão eco-
n óm ica sobre as m assas m a is caren tes. A s s i m , r ejeitem os as 
p ressu p osições a p a r t i r d as qu a is t a l s is tem a fo i d esen v o lv i-
d o. Te r ce ir o , a religião ocid en t a l p arece ap oia r fo r t em en te 
.iqu eles e m con t r o le d a tecn olog ia e d o s is t em a e co n ó m ico . 
1 )essa fo r m a , n ã o v a m os ca ir nessa a r m a d i lh a . 
A m u d a n ça ao p en sam en to o r ien ta l d esd e os anos ses-
len t a é, p o r t a n t o , p r im a r ia m en t e u m a fu ga d o p en sa m en to 
ocid en ta l. O O cid e n t e acaba e m u m la b ir in t o d e co n t r a d i-
ções, atos d e su icíd io in t e lectu a l e u m esp ectro d e n i i l i s m o 
qu e a ssom br a os can tos escu ros d e tod o o nosso p en sa m en -
t o . Exis t e a lg u m ou t r o ca m in h o ? 
D e fa to , h á - u m ca m i n h o m u i t o d ife r en t e . C o m seu 
i M i i r r a c i o n a l i s m o , seu s in cr e t i s m o , su a q u ie t u d e , su a 
n isên cia d e t ecn o log ia , seu est ilo d e v i d a s im p les e d esco m -
1 ' lu a d o , b e m co m o su a e s t r u t u r a r e lig iosa r a d ica lm en t e 
d d cr en t e , o O r i e n t e to r n a -se a lt a m en t e a t r aen te . A lém d is -
10, o O r i e n t e goza d e u m a t r a d içã o m u i t o m a is lon ga q u e 
O < )cid en t e . Sen d o n ossos v iz in h o s p or sécu los , o O r i e n t e 
possui m é t o d o s d e con ceber e en xer ga r o m u n d o diame-
t r a lm en t e co n t r á r io aos n ossos. Ta lv e z o O r i e n t e , aq u ela 
181 
O u n i v e r s o a o l a d o 
t e r r a d e g u r u s m ed it a t iv o s e v i d a s im p les , t en h a a r esp osta 
aos n ossos an seios d e s ig n ificâ n cia e p r o p ó s it o . 
Po r cer ca d e u m sécu lo , o p en sa m en t o o r ien t a l v e m 
fluindo p a r a o O cid e n t e . A s escr itu r a s h in d u ís t a s e b u d is -
tas fo r a m t r a d u z id a s e c i r cu l a m agora e m ed ições d e bolso 
d e b a ixo cu s to . Já n o an o d e 1893, n o p r im e i r o P a r la m en t o 
d e Relig iões M u n d i a i s , r ea lizad o e m C h ica g o , Sw a m i 
Vi v e k a n a n d a co m e ço u a in t r o d u z i r os en s in a m en t o s d e seu 
g u r u p essoa l, Sr i R a m a k r i s h n a P a r a m a h a n s a . D . T . Su z u k i , 
d o Ja p ã o , i n t r o d u z i u o Z e n n as p u b lica ções o cid en t a is . E 
A l a n W a t t s , u m o cid e n t a l , a b so r v eu o Z e n e r e t o r n o u ao 
O cid e n t e p a r a p r op aga r ta is en sin os en t r e seu s colegas o ci -
d en t a is . N a d éca d a d e 1960, estu d os o r ien t a is já t in h a m 
p en et r a d o n as escolas d e en s in o m é d io . G u r u s in d ia n o s 
cr u z a r a m , r ep et id as v ezes, os Es t a d o s U n i d o s e Eu r o p a , p or 
m u it a s d écad as. O co n h e cim e n t o o r ien t a l p assa a ser d e fá-
c i l o b t e n çã o , sen d o q u e , m a is e m a is , su a v isão d e r ea lid ad e 
to r n a -se u m a o p çã o d e v i d a n o O cid e n t e . 1 
M o n ism o p ant eíst a o r ien t al básico 
C la r o qu e o O r ie n t e é tão r ico e d ifícil d e r o tu la r e cate-
gor iza r q u a n to o O cid e n t e , co m o p od er á ser fa cilm en te 
con sta tad o p or q u a lq u er u m qu e ap enas fo lh ea r o su m ár io 
d e u m estu d o, co m o os cin co v o lu m es qu e fo r m a m a obn i 
History of Indian Philosophy [História da filosofia indiana], 
d e Su r en d r a n a t h D a s g u p t a . 2 A segu in te d escr ição é restr ita ;) 
cosm ov isão m a is p op u la r n o O cid en t e : o m o n is m o p an teísta , 
Essa é a cosm ov isão r a iz qu e fo r m a a base d o s is tem a h in d u 
182 
Jornada rumo ao oriente 
d e Sh a n k a r a (A d v a i t a Ved a n t a ), a m ed it a ção t r a n scen d en ta l 
d e M a h a r i s h i M a h e s h Yo g i , m u i t o d os u p an ixad es e v isões, 
belam en te cap tu rad as p o r H e r m a n H esse e m seu r o m a n ce , 
Sidarta. O b u d ism o co m p a r t i lh a m u it a s caracter íst icas d o 
h in d u ísm o , m as d ifere d ele e m u m p on to -ch a v e: a n a tu r e-
za d a r ea lid ad e su p r em a . Seg u ir e i, p o r t a n to , a ap resen tação 
n a t u t a l co m a d escr ição d o Z e n , a fo r m a p r ed o m in a n t e d o 
Bu d is m o n o O cid en t e . 
O m o n is m o p an teísta é d ifer en ciad o d as d em a is co sm o v i-
sões r elacion ad as co m o O r ie n t e p o r seu m o n i s m o , a n oçã o 
d e qu e ap enas u m elem en to im p essoa l co n s t i t u i a r ea lid ad e. 
H a r e K r i s h n a n ão se en q u a d r a nessa cosm ov isão , p ois em b o -
ra co m p a r t i lh e m u it a s caracter íst icas d o m o n is m o p an teísta 
o r ien t a l , d ecla r a qu e a r ea lid ad e, e m ú lt im a an álise, é p essoal 
(e, p o r t a n t o , co m p a r t i lh a u m a s im ila r id a d e co m o t e ísm o, 
to ta lm en te au sen te e m A d v a i t a Ved a n t a ). 
Esp e r a m o s qu e essas observações cod ificad as se t o r n em 
m ais cla ras à m ed id a qu e p r ossegu ir m os. Po r ém , p r im e ir o , 
nós d evem os ser a in d a m a is en ig m á t icos . 
Atma é Brahma, isto é, a alma de cada um e de todo ser 
humano é a alma do cosmo. 
A t m a (a essência, a a lm a d e qu a lqu er p essoa) é Br a h m a 
(a essência, a a lm a d e tod o o cosm o). O qu e é u m ser h u m an o? 
Isto é, o qu e está n o âm ago d e cad a u m de nós? C a d a pessoa 
abrange tod o o u n iver so . C a d a p essoa é D e u s (exp ressand o d e 
lo r m a ou sad a , p or ém p recisa , e m term os or ien ta is). 
M a s é p reciso d efin ir D e u s e m term os p an teístas. D eu s 
i a rea lid ad e ú n ica , in fin i t a , im p essoa l e su p r em a . O u seja , 
• 183 • 
O u n i v e r s o a o l a d o 
D e u s é o cosm o. D e u s está e m tu d o o qu e existe; n a d a existe 
qu e n ão seja D e u s . 3 Se q u a lq u er co isa qu e n ão seja D e u s 
ap aren te exist ir , isso é maya, o u seja , ilu são, e n ã o existe 
r ea lm en te . E m ou tras p a lav r a s , t u d o o q u e existe co m o u m 
objeto d is t in to e sep arad o - essa ca d eir a , n ão aqu ela ou t r a ; 
essa r och a , n ão aqu ela árvore; e u , n ão v ocê - é u m a ilu são. 
N ã o é a n ossa d is t in ção qu e n os con ced e r ea lid ad e, m as a 
n ossa u n icid a d e , o fa to d e serm os Br a h m a , e Br a h m a é u m . 
S i m , Br ah m a é o u m . 
A rea lid ad e su p r em a está a lém d e d is t in ção ; ap enas é. D e 
fa to , com o v er em os n a d iscu ssão sobre ep is t em olog ia , n ão 
p od em os n os exp ressar n a lin g u a g em d a n a tu r ez a d essa u n i c i -
d ad e. N ó s p od em os ap enas "com p r een d ê-la ", t o r n a n d o-n os 
ela , ap od eran d o-se d e n ossa u n id a d e , n ossa "d eid a d e" e a li 
p erm an ecer , a lém d e q u a lq u er d ist in ção o u o qu e qu er qu e 
seja . 
N ó s ocid en ta is n ão estam os acostu m ad os a esse t ip o 
d e s is tem a . D i s t i n g u i r isso é p en sar . A s leis d o p en sa m en -
to d e m a n d a m d is t in ção : A é A; p o r ém A n ão é o n ão A . 
C o n h e ce r a r ea lid ad e é d ifer en cia r u m d o o u t r o , r o tu lá -lo , 
ca ta logá -lo , r econ h ecer a su a su t i l relação co m ou t ros obje-
tos n o cosm o. N o O r ie n t e , "con h ecer " a r ea lid ad e é ir além 
d a d is t in ção , "com p r een d er " a u n icid a d e d e tu d o sen d o u m 
co m tod os. Esse t ip o d e con ceito — até o p on to e m qu e nossa 
m en te é cap az d e com p r een d er - é m e lh o r exp resso in d ir e -
t am en te . 
O s u p an ixad es são r icos e m ten ta t ivas d e exp ressar o 
in exp r im ível in d ir e t a m en te p o r m eio d e p arábolas. 
184 • 
Jornada rumo ao oriente 
"Traga-m e u m fru to dessa figueira." 
"Aqu i está, p a i." 
"Qu ebre-o." 
"Está qu ebrad o, senhor." 
" O que você vê d entro d ele?" 
"Sem entes m u ito pequenas, senhor." 
"Qu ebre u m a delas, m eu filho." 
"Está quebrad a, senhor." 
" O que você vê d entro d ela?" 
"Absolu tam ente nad a, senhor." 
En t ã o , seu p a i fa lou -lh e : "M e u filho, d a p r óp r ia essên cia 
d a sem en te qu e v ocê n ã o p od e ver , su rge e m v erd ad e esta 
gran d e á rv ore". 
"Acred ite-m e, m eu filho, u m a invisível e su til essência é o 
esp írito de todo o u n iverso. Isso é realid ad e. Isso é A t m a . 
T u és isso".4 
A s s i m o p a i , u m g u r u , en s in a a seu filho, u m a p r en d iz , 
qu e m esm o u m a p r en d iz é su p r em a rea lid ad e. N ã o obstan te, 
tod os n ós — or ien ta is e ocid en ta is — p ercebem os d ist in ções. 
N ós n ã o "com p r een d em os" n ossa u n icid a d e . E isso n os lev a 
á segu n d a p r op osição : 
2. A lgumas coisas são mais únicas que outras. 
A q u i p arecem os v er a m u lt ip licaçã o d as observações en ig -
m áticas qu e lev a m a lu ga r n e n h u m . Por ém , n ã o d ev em os 
en t r a r e m d esesp ero. O "p en sa m en to" o r ien t a l é a ss im . 
"Algu m as coisas são m ais únicas que ou tras" constitu i u m a 
ou tra m aneira de expressar que a realidad e é u m a h ierar-
qu ia de aparências. Algu m as "coisas", algumas aparências 
• 185 
O u n i v e r s o a o l a d o 
ou ilusões estão m ais p róximas de ser u m com o u m . A 
h ierarqu ia orien tal com u m se parece com aquela que os 
ocid entais p od em constru ir , mas por u m a razão d iferente. 
A m atéria p u ra e sim p les (isto é, m ineral) o mesm o real; 
en tão, segue-se a v id a vegetal, a v id a an im al e, por fim, a 
hu m an id ad e. Porém , a hu m anid ad e tam bém é hierárqu i-
ca; algumas pessoas estão m ais p róximas d a u nid ad e que 
ou tras. O mestre p erfeito, o ilu m in ad o, o gu ru são os seres 
hu m anos m ais p róxim os do ser p u ro. 
E m p a r te , a con sciên cia ap aren ta ser o p r in cíp io d e h ie -
r a r q u ia a q u i . "C o m p r e e n d e r " a u n icid a d e p arece im p l ica r 
con sciên cia . N o en ta n to , co m o v er em os, q u a n d o a lgu ém é 
u m co m o u m , a con sciên cia d esap arece p or com p leto e a 
p essoa p assa a ser s im p lesm en t e u m Ser in fin i t o -im p esso a l . 
A con sciên cia , t a l co m o as técn icas d e m ed it a çã o , é ap enas 
m a is u m elem en to a ser d escar tad o, q u a n d o su a u t ilid a d e 
n ão é m a is n ecessá r ia .5 A i n d a , a m a tér ia p u r a está m u i t o 
a lém d a com p r een sã o d e su a u n icid a d e qu e a h u m a n id a d e , 
e isso é o qu e con ta . 
O m a is lo n g ín q u o a lcan ce d a ilu são , en t ã o , é a m a tér ia . 
E m b o r a su a essên cia seja A t m a , ela n ã o é. N ã o obstan te, 
d ev er ia ser a s s im . D e v e m o s ser cau telosos a q u i a fim d e 
n ã o con ecta r q u a lq u e r n o çã o d e m o r a l id a d e à n ossa co m -
p r een são d a exig ên cia d e q u e tod as as coisas se ja m u m co m 
o u m . A q u i isso ap en as s ig n ifica q u e o p r óp r io ser r equ er 
u n id a d e co m o u m , a r ea lid ad e s u p r e m a , e t u d o o qu e n ão 
fo r o u m n ã o é r ea lm en t e im p o r t a n t e . N a v er d a d e , n ão 
p ossu i v a lo r a lg u m , p o r é m , m a is im p o r t a n t e , isso n ão p os-
s u i ser a lg u m . 
• 186 • 
Jornada rumo ao oriente 
P o r t a n t o , r e to r n am os à p rop osição o r ig in a l : a lgu m as 
coisas são m a is ú n icas, isto é, m a is reais qu e ou t r a s . A p r ó-
x i m a qu estão é óbv ia : co m o u m in d iv íd u o, u m ser sep arad o 
torn a-se u m co m o U m ? 
3. Muitos (se não todos) caminhos levam ao um. 
C h e g a r à u n id a d e co m o U m n ão é u m a qu estão d e 
en con t r a r o v er d ad eir o ca m in h o . H á m u it o s ca m in h o s d es-
d e o maya a té a r ea lid ad e. Posso segu ir u m ca m in h o ; v ocê, 
ou t r o ; u m a m ig o , u m ter ceir o , ad infinitum. O ob jet iv o n ão 
é estar co m o u t r a p essoa n o m esm o ca m in h o , m as ser levad o 
na d ir eção cor r eta e m seu p r óp r io ca m in h o . Is to é, d evem os 
ler or ien tad os cor r etam en te . 
Es s a o r ien tação n ã o é tan to u m a qu estão d e d o u t r in a , 
p orém d e t écn ica . N esse q u esito , o O r ie n t e é in flexível. E m 
til ti m a an á lise, as id eias n ão são im p o r t a n t e s . 6 C o m o a fi r m o u 
Sr i Ra m a k r i s h n a : "N ã o d iscu t a sobre d ou t r in a s e religiões. 
I l.i som en te u m a . To d o s os r ios fluem p a r a o ocean o. F l u a e 
d eixe ou t ros flu ir t a m b é m !"7 
D e u m a p er sp ect iv a d ou t r in á r ia , você e eu p od em os 
ip en a s oca sion a lm en te con co r d a r sobre o qu e é verd ad e a 
resp eito d e a lg u m a coisa - n ós m esm os, o m u n d o exter n o , 
.1 religião. N ã o im p o r t a . N o final, as religiões lev a m ao m es-
m o h m . C o m p r e e n d e r a u n id a d e co m o U m n ã o se t r a ta d e 
Uma qu estão d e cr en ça , m as d e t écn ica , e m esm o as técn icas 
\ ii ia m . 
A lg u n s g u r u s , co m o M a h a r i s h i M a h e s h Yo g i , en fa t iz a m 
0 cân t ico d e m a n t r a s , u m a p a la v r a e m sân scr ito ap aren te-
m e n t e sem s ig n ifica d o , p or vezes, selecion ad a p or u m m estre 
187 
O u n i v e r s o a o l a d o 
esp ir it u a l e d ad o e m secreto a u m in icia d o . O u t r o s r eco m en -
d a m a m ed it a çã o sobre u m a m a n d a la , u m a bela im a g em 
cir cu la r , a lt am en te elaborad a e, e m gera l, fa scin a n tem en te 
o r n a d a , s ím b o lo d a to ta lid ad e d a r ea lid ad e. O u t r o s a in d a 
exig em rep et ições in term in áv eis d e orações o u atos d e reve-
r ên cia . 
Q u a se tod as essas técn icas , en t r e tan to , exig em q u ietu d e 
e iso la m en to . Sã o m étod os d e m ed it a çã o in t e lectu a lm en te 
sem co n t eú d o . U m a p essoa ten ta a t in g ir o n ível d e v ibração 
co m a rea lid ad e p a r a levar su a a lm a a u m a h a r m o n ia co m o 
cosm o e, p or fim, co m o sólid o, n ã o h a r m ó n ico , n ão d u a l , a 
v ib r ação su p r em a — Br a h m a , o u m . 
D e tod os os "ca m in h o s", u m d os m a is co m u n s en volve 
en toar em cân t ico a p a lav r a Om o u u m a frase con ten d o essa 
p a la v r a co m o , p or exem p lo , " O m M a n i Pa dm e H u m " . Ta n t o 
a p a la v r a O M q u an to o restan te d a frase são essen cia lm en -
te in trad u zíveis p or qu e são in te lectu a lm en te d esp rov id os d e 
con t eú d o . A lg u n s t êm su ger id o p a r a o t e r m o Om a segu in -
te t r ad u ção: sim, perfeição, realidade suprema, tudo, a palavra 
eterna. M a h a r i s h i M a h e s h Yogi d iz qu e Om é o "m an ten ed or 
d a v id a ", "o p r in cíp io e o fim d e tod a a cr iação", "aqu ele hum, 
q u e é o p r im e ir o som silen cioso, a p r im e ir a o n d a silen ciosa 
q u e se in icia d aqu ele silen cioso ocean o d e v id a n ão m an ifes-
t a ". 8 C h t is t m a s H u m p h r e y s com en t a q u e Om é "a p r im eir a 
sílaba d a fó r m u la t ibetan a Om Mani Padme Hum, o s ign ifi-
cad o extern o qu e é m er a m en te: "Sa lv e! Ó Jó ia d o Ló tu s", e 
seu sign ificad o in t e r n o , qu e é o s ign ificad o d o u n iv e r so ". 9 
O b v ia m en t e , o t er m o significado n ão é u t ilizad o nesse sis-
t em a or ien ta l d a m esm a fo r m a qu e é u t ilizad o n o teísm o ou 
188 • 
Jornada rumo ao oriente 
n a tu r a lism o . N ã o estam os d iscor ren d o a q u i sobre con teú d o 
r acion a l, m as u n ião m etafísica . Pod em os verd ad eir am en te 
"p r o n u n cia r " Om e "en ten d er" seu sign ificad o som en te q u a n -
d o for m os u m co m o u m , q u a n d o: "A t m a é Br a h m a ", n ão 
for u m a d eclaração ep istem ológica , m as u m a com p reen são 
on to lóg ica , isto é, "torn ar -se r ea l". 
O m u n d a k a u p a n ixa d e a fi r m a isso d a segu in te m a n e ir a : 
O M . Essa p alavra eterna é tu d o; o que era, o que é e o que 
há de ser, e o que está além n a eternid ad e. Tu d o é O M . 
Brah m a é tu d o, e A t m a é Brah m a. A t m a , o eu , possu i qu a-
tro estados. 
O p r im eiro estado é a v id a vigilan te da consciência voltad a 
p ara o externo, d esfru tand o os sete elementos m ais exter-
nos e grosseiros. 
O segundo estado é a v id a sonhad ora d a consciência v o l-
tada para o in tetior, d esfru tand o os sete elementos m ais 
in ternos e su tis em su a p róp ria lu z e solidão. 
O tetceiro estado é a v id a ad orm ecid a d a consciência silen -
ciosa, qu and o a pessoa não possu i desejos e não alim en ta 
sonhos. Essa cond ição de sono p rofu nd o é a de u n id ad e, 
u m a massa de silenciosa consciência feita de paz e d esfru -
tand o a paz. 
Essa consciência silenciosa é onip otente, on iscien te, o go-
vernad or in terno, a fonte de tu d o, o p tincíp io e o fim de 
todos os seres. 
O quarto estado é A tm a em seu próprio estado p u ro: a vid a 
desperta de suprema consciência. Ela não é a consciência 
exterior ou interior, nem semiconsciência ou consciência 
ad ormecid a, tampouco é consciência ou inconsciência. Ele é 
Atm a, o próprio Esp írito, que não pode ser visto ou tocado, 
• 189 • 
O u n i v e r s o a o l a d o 
que está acim a de toda a d istinção, além do pensamento e 
inefável. N a união com ele reside a sup rem a p rova d a sua 
realidade. Ele é o fim d a evolução e d a não d ualid ad e. Ele é 
paz e amor. 
Esse A t m a é a p alavra eterna O M . Seus três sons, A , U e 
M , são os três p rim eiros estados de consciência, e esses três 
estados constitu em os três sons. 
O p r im eiro som , A , é o p r im eiro estado d a consciência 
vigilan te, com u m a todos os hom ens. É encontrad o nas 
palavras Apti (realizar) e Adimatvam, "sendo p r im eiro". 
Q u em conhece isso realiza em verdade todos os seus dese-
jos, e, em todas as coisas, torna-se o p r im eiro. 
O segundo som , U , corresponde ao segundo estado 
de consciência sonhad ora. É encontrad o nas palavras 
Utkarsha, "elevação", e Ubhayatvam, "d u bied ad e". Aqu ele 
que conhece isso eleva a trad ição do conhecim ento e 
alcança o equ ilíbrio. E m su a família jam ais nasce alguém 
que não conhece Br ah m a . 
O terceiro som , M , é o terceiro estado de consciência ad or-
m ecid a. Ta l som é encontrad o nas palavras Miti, "m ed id a", 
e n a raiz Mi "p ara o fim", que fornece Apti, "fim d errad ei-
ro". Aqu ele que conhece isso mede todas as coisas com su a 
mente e alcança o Objet ivo final. 
A palavra O M , com o u m som , é o qu atto estado de consci-
ência su p rem a. Está além dos sentidos e constitu i o fim d a 
evolução. É a não d u alid ad e e o amor. Ele vai com seu eu 
ao sup rem o E u , que conhece isso.1 0 
M en cio n e i esse u p an ixad e e m su a totalid ad e p orqu e ele 
con tém in ú m eras id eias-chave em u m a p assagem r ela t iv am en -
te cu r ta . N o m om en t o , estou m ais in teressad o n a p a lav ra O M 
190 • 
Jornada rumo ao oriente 
c e m com o ela rep resen ta a realid ad e su p rem a . D iz e r O M é n ão 
t r an sm it ir con teú d o in telectu a l. O M sign ifica qu a lqu er coisa 
B tu d o , p or tan to , send o a lém d e d ist in ção, p od e d izer-se qu e 
fcfio significa n ad a . D iz e r O M é, m ais p rop r iam en te, torn ar -se 
ou ten tar torn ar-se o qu e O M sim boliza . 
4. Perceber a unidade com o cosmo é ir além da personali-
dade. 
Por u m in s tan te , v a m o s r etor n a r à p r im e i r a p rop osição e 
ver on d e isso nos lev a q u a n d o v o lt a m os n ossa a t en çã o aos se-
res h u m a n o s neste m u n d o . A t m a é Br a h m a . Br a h m a é u m e 
im p essoa l. Po r t a n to , A t m a é im p essoa l. O b se r v e a con clu são 
n ov am en te: os seres h u m a n o s e m su a essên cia - n o seu m a is 
verd ad eiro e com p le to ser - são im p essoa is . 
Es s a n oçã o n o m o n is m o p an teísta é d ia m et r a lm en t e 
con t r á r ia ao t e ísm o. N o t e ísm o , a p er son a lid ad e é a caracte-
i ist ica p r in cip a l sobre D e u s , co m o t a m b ém sobre as p essoas. 
Sig n ifica qu e u m in d iv íd u o p ossu i com p lexid a d e n o âm ago 
de seu ser. A p er son a lid ad e d em a n d a a u tocon sciên cia e a u -
tod eter m in a çã o , e am bos en v o lv em d u a lid a d e - o p en sad or 
c a coisa p en sad a . N o t e ísm o , tan to D e u s q u a n t o a h u m a n i -
d ad e são com p lexos . 
N o p a n t e ísm o , a ca racter íst ica p r in cip a l sobre D e u s é a 
U n id a d e , abst r a ta , abso lu ta , in d ife r en cia d a e n ão d u a l u n i -
d ad e. Isso co loca D e u s a lém d a p er son a lid ad e. E u m a vez 
qu e A t m a é Br a h m a , os seres h u m a n o s estão, ig u a lm en te , 
l lé m d a p er son a lid ad e. Pa r a q u a lq u er u m d e n ós "co m p r e-
en d er" n osso ser é p reciso aban d on a r n ossa p er son a lid ad e 
l o in p lexa e en t r a r n o in d ife r en cia d o U m . 
191 
O u n i v e r s o a o l a d o 
Va m os agora retorn ar a u m a seção d o m u n d a k a u p an ixad e, 
m en cion ad o an ter iorm en te. O texto p r ocla m a qu e A t m a p os-
su i "qu atro con d ições": v id a v ig ilan te, v id a son h ad ora , sono 
p r ofu n d o e "v id a d esp er ta d e p u r a con sciên cia". A p rogressão é 
im p or tan te; a m a is elevad a con d ição é a qu e m a is se ap r oxim a 
d o tota l esqu ecim en to, p ois se v a i d a a t iv id ad e d a v id a co m u m 
n o m u n d o exter ior p a ra a a t iv id ad e d e son h ar , e d este p ara a 
in a t iv id ad e, a in con sciên cia , d e sono p r o fu n d o , cu lm in a n d o 
em u m a con d ição qu e e m su a d esignação soa com o o reverso 
d os p r im eiros três estad os - "p u r a con sciên cia". 
En t ã o , n otam os qu e "p u r a con sciên cia" n ad a t em qu e ver 
co m qu a lqu er t ip o d e con sciên cia qu e nos seja fam ilia r . "P u r a 
con sciên cia" é, m a is p r op r iam en te, a absolu ta u n ião co m o 
u m e a n ão "con sciên cia", p ois isso d em a n d a d u a lid ad e — u m 
su jeito p ara ser con scien te e u m objeto d o q u a l ser con scien -
te. M e s m o a au tocon sciên cia im p l ica e m d u a lid ad e n o eu. 
Porém , essa "p u r a con sciên cia" n ão é con sciên cia ; é p u r o ser. 
Es s a exp licação ta lvez n os a u xil ie a com p r een d er p o r qu e 
o p en sam en to o r ien t a l , e m gera l, lev a à q u ie tu d e e à in a t iv i -
d ad e. Ser n ão é rea lizar . A m ed it a çã o é a r o t a p r in cip a l p ara 
o ser, e m ed it a çã o , q u a lq u er qu e seja o est ilo , é u m estu d o de 
caso n a q u ie tu d e . U m s ím b o lo d isso é o g u r u h i n d u sen tad o 
e m p osição d e lótu s e m u m loca l e r m o n o p ico d o H i m a l a i a 
e m abso lu ta con t em p la çã o . 
5. Perceber a unidade de alguém com o cosmo é ir além do 
conhecimento. 0 princípio da não contradição não se 
aplica onde a suprema realidade está relacionada. 
A p a r t ir d a a fir m ação d e qu e A t m a é Br a h m a , segu e-se, 
ig u a lm en te , qu e os seres h u m a n o s e m su a essên cia estão além 
192 
jornada rumo ao oriente 
d o co n h ecim en t o . C o m o a p er son a lid ad e, o co n h ecim en t o 
exige d u a lid a d e — u m con h eced or e u m objeto co n h eci-
d o . P o r ém , o u m está a lém d a d u a lid a d e , p ois é u n id a d e 
absolu ta . N o v a m en t e , co m o a fi r m a a m a n d u k a u p a n ixa d e : 
"E l e é A t m a , o p r óp r io Esp ír it o ... qu e está a cim a d e tod a a 
d is t in ção , a lém d o p en sa m en to e in efável". E m ou t r as p a la -
v r as , ser é n ão con h ecer . 
E m Sidarta, p ossivelm en te o r om an ce m a is o r ien ta l já es-
cr ito p o r u m ocid en ta l, H esse faz o i lu m in a d o Sidarta d izer : 
O conhecim ento pode ser com u n icad o, p orém a sabedoria 
não... E m toda a verdade o oposto é igu alm ente verd ad eiro. 
Por exem p lo, u m a verd ad e somente pode ser expressa e en -
volv id a em palavras se for u n ilatetal. Tu d o o que é pensado 
e expresso em palavras é u n ila teral, apenas metade d a ver-
dade, falta-lhe totalid ad e, in tegralid ad e, u n id ad e.1 1 
O a r gu m en to é s im p les . A realid ad e é u m a ; a lin gu agem 
exige d u a lid ad e, n a verd ad e, in ú m eras d u alid ad es (orad or e 
ou v in te , su jeito e p r ed icad o); p or con segu in te, a lin gu agem 
não p od e t r a n sm it ir a verd ad e sobre a realid ad e. Ju a n Masca r ó 
exp lica o qu e isso s ign ifica p ara a d o u t r in a d e D e u s : 
Qu an d o o sábio de Upanixades é p ressionado a dar u m a 
d efinição de Deu s, ele permanece em silêncio, sign ificand o 
que Deu s é silêncio. Q u an d o instad o novam ente a expres-
sar Deu s em palavras, ele d iz : "N e t i , n et i", "N ão isso, não 
isso", porém qu and o pressionad o a dar u m a exp licação 
p ositiva, ele p ron u n cia as palavras su blim es: " T A T T V A M 
A S I " , ou seja, "T u és isso".1 2 
C la r o ! N ós já v im o s isso n a p rop osição 3. A g or a , vem os 
m ais n it id am en te p orqu e o m o n ism o p an teísta or ien ta l é 
193 • 
O u n i v e r s o a o l a d o 
n ão d ou tr in ár io. N e n h u m a d ou t r in a p od e ser verd ad eira. 
E possível qu e algu m as sejam m ais ú teis qu e ou tras e m au xilia r 
algu ém a alcançar a u n id ad e co m o cosm o, p orém isso é d ife-
ren te. N a verd ad e, u m a m en t ir a p od e até m esm o ser m ais ú til. 
C o n t u d o , d esv ia m o-n os u m a vez m a is e v o lt a m os a p en -
sar co m o u m o cid en t a l . Se n ão p od e h av er u m a afirm ação 
v er d a d eir a , t a m p o u co p od e h av er u m a m e n t i r a . E m ou tras 
p a lav r a s , a verd ad e d esap arece co m o u m a ca tegor ia , e a ú n i-
ca d ist in ção relevan te é in ú t i l . 1 3 E m s u m a , r e to r n am os à 
t écn ica - o qu e a t r a i a a ten ção d o O r ie n t e . 
6. Perceber a unidade com o cosmo é ir além do bem e do 
mal; o cosmo é perfeito a todo o momento. 
C h eg a m o s a q u i a u m assu n to d os m a is sensíveis. C o n s -
t i t u i u m d os p on tos m a is d elicad os n o p a n te ísm o o r ien t a l , 
p or q u e as p essoas se r ecu sa m a n egar a m o r a lid a d e . Ela s co n -
t i n u a m a ag ir co m o se a lgu m as ações fossem cer tas, e ou t r as, 
er rad as. A lém d isso, o con ceito d e ca r m a é qu ase u n iv er sa l 
n o p en sam en to o r ien t a l . 
C a r m a é a n o çã o d e qu e o p resen te d est in o d e a lgu ém , 
p razer o u d or , ser r e i , escravo o u u m m o sq u it o , é fr u to d e 
ações p assad as, e m esp ecia l e m u m a existên cia an ter ior . Isso 
está , p o r t a n to , con ectad o à n oçã o d e r een ca r n ação, qu e 
p r ov ém d o p r in cíp io gera l d e qu e n a d a qu e é rea l (o u seja , 
n e n h u m a a lm a ) ja m a is p erd e a con sciên cia d a existên cia . 
Pod e d em or a r sécu los e m a is sécu los p a r a en con t r a r seu ca -
m i n h o d e v o lt a ao U m , p o r ém n e n h u m a a lm a d eixará d e ser. 
To d a a lm a é etern a , p ois tod a a lm a é essen cia lm en te A l m a e, 
p o r t a n to , p a r a sem p re o u m . 
• 194 • 
Jornada rumo ao oriente 
E m su a t r a jetór ia d e v o l t a ao U m , en t r e tan to , ele p assa 
p or seja q u a l for a sér ie d e fo r m a s ilu sór ias q u e su a ação 
p assad a exige. C a r m a é a versão o r ien t a l d o d it a d o "você 
i o l he o qu e sem eia". P o r ém , o ca r m a im p l ica e m u m a es t r i-
I.I n ecessid ad e. Se v ocê "p eco u ", n ão h á D e u s p a r a can cela r 
lu a d ív id a e p erd oar . A con fissão p a r a n a d a se ap r ov eita . 
( ) p ecad o d eve ser r esolv id o e o será . É cla ro q u e a p essoa 
p od e escolh er seu s atos fu tu r os e, p o r t a n to , o ca r m a n ão i m -
p lica e m d e t e r m in ism o o u fa t a l i s m o . 1 4 
Isso p arece d everas s im i la r à d escr ição d e u m u n iv er so 
m or a l. A s pessoas d ev em fazer o b em . Se n ão o fa z em , elas 
I o lh erão as con seq u ên cia s , se n ão for n esta v id a , o será n a 
p róxim a , ta lvez r e t o m a n d o co m o u m ser in fe r io r n a h ie r a r -
q u ia . C o m o p o p u la r m en t e con ceb id o , u m u n iv er so m o r a l é 
0 qu e o O r ie n t e , d e fa to , p ossu i. 
En t r e t a n t o , h á d u as coisas qu e d ev em ser observad as so-
bre esse s is t em a . P r im e i r a , o fu n d a m en t o p a r a se p r a t ica r 
0 bem n ão é p a r a qu e o b em seja rea lizad o o u d e m o d o a 
ben eficia r o u t r a p essoa. O ca r m a d em a n d a qu e cad a a lm a 
lo fr a p o r seu s "p ecad os" p assad os, n ão h a v en d o , a ss im , v a lo r 
Cm a liv ia r o so fr im en t o . A a lm a qu e for a u xi l ia d a terá qu e 
lofr er m a is ta rd e. P o r t a n t o , n ã o existe o a m o r ágap e, o a m o r 
d oad or , n e m q u a lq u er ou t r o t ip o d e a m o r d eve ben eficia r 
I I i ecep tor . A p essoa d eve p r a t ica r boas obras a f im d e obter 
u n id ad e co m o u m . Fazer o b em é p r im e ir a e p r in cip a lm en t e 
u m m o d o d e v id a d e a u toa ju d a . 
Seg u n d a , tod as as ações s im p lesm en te fazem p ar te d e 
i o d o u m m u n d o d e ilu são. A ú n ica rea lid ad e "r ea l" é a s u -
p r em a rea lid ad e, qu e está a lém d e d is t in ção , a lém d o bem 
• 
O u n i v e r s o a o l a d o 
e d o m a l . Br a h m a está a lém d o b em e d o m a l . Po r t a n to , 
Sid a r t a d iz , co m e loq u ên cia : 
O m u n d o, Gov in d a , não é im p etfeito n em evolu i vagaro-
samente em u m longo cam inho ru m o à perfeição. N ão, ele 
é perfeito a cada m om en to; todo o pecado já carrega em 
si a graça, todas as crianças pequenas são hom ens velhos 
em p otencial, todas as crianças de peito já trazem a m orte 
d entro delas, todas são agonizantes — v id a eterna... Por tan -
to, parece-me que tu d o o que existe é bom — a m orte, bem 
com o a v id a , o pecad o, bem com o a santid ad e, a sabed oria, 
bem com o a estu lt ícia .15 
C o m o v er d ad eiro e fa lso , p o r f i m , a d is t in ção en tre b em e 
m a l se d esvan ece. Tu d o é b o m (o q u e, cla r o , é o m esm o qu e 
d izer : "N a d a é b o m ", o u : "T u d o é m a l ") . O lad rão é o san to; 
e o lad rão, o san to ... 
O qu e, en t ã o , d izer sobre tod a a ev id ên cia d e qu e pessoas 
d o O r ie n t e agem co m o se su as ações p u d essem ser co n s i-
d erad as cer tas o u errad as? P r im e i r o , o O r ie n t e n ão p ossu i 
m en os ad ep tos in gén u os e in con sisten tes qu e o O cid en t e . 
Seg u n d o , d i r i a m os teístas, seres h u m a n o s são seres h u m a -
n os; eles d ev em agir co m o se fossem seres m or a is , p o is , n a 
v erd ad e, é o qu e eles são. Te r ce ir o , su as ações, ap a ren tem en te 
m o r a is , p o d em ser p ra t icad as p or razões p u r a m en t e egoístas: 
q u e m d eseja r e tor n a r co m o u m m o sq u it o o u u m a p ed ra? 
C l a r o , e m u m sis tem a a m o r a l , o ego ísm o n ão ser ia con sid e-
rad o im o r a l . 
En t r e t a n t o , e m Sidarta, H esse faz seu h erói ap a r en tem en -
te d izer , n u m sen t id o co m u m , qu e "o a m o r é o qu e h á d e 
m ais im p o r t a n t e n o m u n d o ". 1 6 A m b o s , H esse e C h r i s t m a n s 
196 • 
jornada rumo ao oriente 
H u m p h r e y s in t r o d u z em u m a d ist in ção d e v a lo r q u a n d o 
a f i r m a m qu e é m e lh o r ser u m a p essoa i lu m in a d a o u cu lt a 
d o qu e ser u m a p essoa c o m u m . 1 7 Parece, en t ã o , qu e m esm o 
m u it o s d os i lu m in a d o s p ossu em u m a ten d ên cia a agir m o -
r a lm en te d o qu e v iv e r as im p licações d e seu p r óp r io sistem a. 
Ta lv ez essa seja u m a fo r m a d e d izer qu e a lgu m as pessoas são 
"m elh or es" qu e su a cosm ov isão con scien te p od er ia p e r m it ir . 
7. A morte é o fim da existência pessoal, individual, mas não 
altera nada de essencial na natureza do indivíduo. 
E u já d iscu t i co m o a m o r t e se r e la cion a co m o ca r m a e a 
r een ca r n ação . Po r ém , ela m er ece, co m o e m tod a cosm ov isão , 
u m t r a t a m en to d ifer en cia d o . A m o r t e h u m a n a s in a liz a o f i m 
d e u m a en ca r n açã o in d iv id u a l d e A t m a . Ig u a lm en t e s in a liz a 
o f i m d e u m a p essoa. M a s , a a lm a , A t m a , é in d est ru t ível. 
N o en tan to , observe: n e n h u m ser h u m a n o , n o sen t id o d e 
in d iv íd u o o u p essoa, sobrev ive à m or t e . A t m a sobrev ive, m as 
A t m a é im p essoa l. Q u a n d o A t m a é r een carn ad o , torn a-se 
o u t r a p essoa. En t ã o , o h in d u ísm o en s in a a im or t a lid a d e d a 
a lm a? Si m , m as n ão u m a im or t a lid a d e p essoal e in d iv id u a l . 
C l a r o qu e aos o lh os d o O r ie n t e , o p essoal e o i n d i v i d u -
a l são ilu sór ios d e q u a lq u er m a n e ir a . Som en te A t m a p ossu i 
va lor . P o r t a n t o , a m or t e n ão é gran d e coisa . N a d a d e v a lo r 
p erece, m as tu d o d e v a lo r é etern o. Isso p od e a ju d a r a e xp l i -
car a observação qu e os ocid en ta is , co m fr eq u ên cia , fazem 
sobre o ba ixo v a lo r d a v i d a n o O r ie n t e . En ca r n a ções i n d i v i -
d u a is d e v id a - esse h o m e m o u aqu ela m u lh e r , v ocê, eu - são 
d esp rov id as d e v a lor . P o r ém , e m essên cia , elas p ossu em u m 
v a lor in f in i t o , p ois e m essên cia elas são in fin i t a s . 
• 197 
O u n i v e r s o a o l a d o 
A s r am ificações d isso p a r a os ocid en ta is qu e r eco r r em ao 
O r ie n t e e m bu sca d e sen t id o e sign ificân cia n ão d ev er ia m ser 
ign or ad as. Pa r a u m ocid en t a l qu e v a lo r iz a a in d iv id u a l id a d e 
e a p er son a lid ad e - o v a lo r s in g u la r d e u m a v id a h u m a n a 
in d iv id u a l - o m o n is m o p an teísta o r ien t a l d em on st r a r á ser 
u m gran d e d esap on tam en to . 
8. Perceber a unidade com o um é ir além do tempo. 
O tempo é irreal. A história é cíclica. 
U m a d as im agen s cen t r a is p resen tes e m Sidarta é o r io . 
C o m o r io , ele ap ren d e m a is lições d o qu e co m tod as as 
técn icas d e Bu d a o u co m tod os os con ta tos co m seu p a i es-
p i r i t u a l , Va su d ev a . N o clím a x d o r o m a n ce , Sid a r t a se in c l in a 
e, a ten tam en te , escu ta o r io : 
Sid ar ta ten tou ou vir m elhor. A im agem de seu p a i, sua p ró-
p r ia im agem e a im agem de seu filh o, todas flu íram u m a 
d entro d a ou tra . A im agem de Kam a la tam bém su rgiu e 
flu ía, e a im agem de Gov in d a , além de ou tras, em ergiram e 
passaram. Tod as se tornaram parte do r io. Er a o objetivo de 
todas elas, aneland o, d esejand o, sofrend o, e a voz do r io era 
rep leta de anseio, de angústia p rofu n d a, p lena de desejos 
insaciáveis. O r io flu ía ru m o ao seu objetivo. Sid arta v iu 
o r io se acelerar, form ad o por si m esm o, por seus parentes 
e por todas as pessoas que já t in h a v isto. Tod as as ondas e 
águas se apressaram, sofrend o, ru m o a objetivos, m u ito d e-
les, para a queda d 'água, p ara o m ar, p ara a correnteza, para 
o oceano, e todos os objetivos foram alcançad os, e cad a 
u m foi suced id o pelo ou tro. A água se torn ou em vapor e 
su biu , tornou -se ch u va e p recip itou novam ente, tornou -se 
nascente, córrego e r io, transform ou -se e flu iu novam ente. 
198 • 
jornada rumo ao oriente 
Tod av ia , a voz anelante t in h a se alterad o. Ela aind a ecoava 
pesarosa e p erscru tad ora, mas ou tras vozes a acom p anha-
v a m , vozes de p razer e tristeza, vozes boas e m ás, sorrid entes 
e m u rm u rad oras, centenas, m ilhares de vozes.1 8 
Po r fim, tod as as vozes, im agen s e faces se en t r elaça r am . 
" E tod as as vozes, tod os os ob jet iv os , tod os os an seios, tod as 
as t r istezas, tod o b em e tod o m a l , tod os ju n t o s e r a m o m u n -
d o ... A gran d e ca n çã o d e m ilh a r es d e vozes con sis t ia d e u m a 
ú n ica p a la v r a OM — p e r fe içã o ". 1 9 N esse p on to é qu e Sid a r t a 
a lcan ça u m a u n id a d e in t e r io r co m o u m , e "a seren id ad e d o 
co n h ecim en t o " b r i lh a e m seu rosto. 
N essa lon g a p assagem , co m o e m tod o o l iv r o , o r io to r -
n a-se u m a im a g em p a r a o cosm o . Q u a n d o o lh a m os d e u m 
p on t o s itu ad o à su a m a r g em , o r io cor re (o t em p o exis t e), 
p o r ém , q u a n d o o lh a m os e m su a to ta lid ad e — d a n ascen te, 
p assan d o p elo cór r ego , p elo r io , p elo ocean o, p elo v ap or , 
p ela ch u v a a té a n ascen te — o r io n ão flu i (o t em p o n ã o 
exis te). E l e é u m a ilu são p r o d u z id a p or a lgu ém situ ad o à 
m a r g em , e m vez d e o lh a r p a r a o r io d os céu s. Sim ila r m e n t e , 
o t em p o é cíclico ; a h is tór ia é con st itu íd a d o qu e é p r o d u z i-
d o p elo flu i r d as águ as, p assan d o p or u m p on to n a m a r g em . 
Isso é ilu sór io . A h istór ia , en t ã o , n ão p ossu i s ign ificad o e m 
qu e a rea lid ad e está r e la cion a d a . D e fa to , n ossa tarefa co m o 
pessoas qu e p er cebem a p r óp r ia d iv in d a d e é t r an scen d er a 
h istór ia . 
Isso d eve exp lica r p o r q u e os cr istãos ocid en ta is , qu e 
d ep osit a m gran d e ên fase n a h istór ia , d escobrem qu e su a 
ap resen tação sobre a base h is tó r ica d o cr is t ia n ism o é p r a t i-
cam en te ign or ad a n o O r ie n t e . P a r a u m a m en te ocid en t a l, é 
• 199 • 
O u n i v e r s o a o l a d o 
ext r em a m en te im p o r t a n t e se Jesu s r ea lm en te exis t iu o u n ã o , 
se r ea liz ou m ilag r es , cu r o u en fer m os, m o r r e u e r essu scitou 
d en t r e os m o r t o s . Se t u d o isso oco r r eu , d eve h av er u m sig -
n ifica d o v i t a l p a r a esses even tos sobren a tu r a is e est r an h os. 
Ta lv ez exis ta u m D e u s , a fin a l d e con tas. 
Já p a r a u m a m en t e o r ien t a l , tod o esse a r g u m en t o é s u -
p ér flu o. O s fatos d o p assad o n ão são s ign ifica t iv os e m si 
m esm os. Ele s n ão exer cem in flu ên cia e m m i m n o p r esen -
te, a n ão ser qu e t e n h a m u m sen t id o im ed ia t o , t ip o a q u i e 
agora . C a so p ossu a m esse s ig n ifica d o , en tão su a fact icid ad e 
co m o h istór ia n ão t em q u a lq u er im p or t â n cia . A s escr itu ras 
o r ien ta is são rechead as d e ep ig r am as, p a rábolas, fábu las, h is -
tór ias, m it o s , ca n ções , h a ica is , h in o s e ép icos, p o r ém qu ase 
n ão h á h istór ia e m ter m os d e registros d e even tos, p or q u e 
eles oco r r e r a m e m u m con texto d e t em p o-esp a ço im p ossível 
d e se rep etir . 
Pr eocu p ar -se co m tais coisas ser ia co m o in v er t er t od a a 
o r d em h ier á rqu ica . O ú n ico n ão é o r ea l, m as som en te o 
absolu to e to ta lm en te abran gen te é r ea l. Se a h istór ia p ossu i 
v a lor , isso ocor r er á co m o m it o e m i t o ap en as, p ois o m i t o 
n os r em ov e d a p a r t icu la r id a d e e n os eleva à essên cia . 
U m a d as im agen s d a v i d a h u m a n a e d a bu sca p o r u n i -
d ad e co m o u m está in t im a m e n t e con ectad a às im agen s d e 
u m ciclo , a r o d a , a g ran d e m a n d a la . Sid a r t a d iz : "P a r a on d e 
m e u ca m in h o m e con d u zirá? Esse ca m in h o é estú p id o , p ois 
segu e e m esp ir a is , ta lvez e m cír cu los, p o r ém n ão im p o r t a p a r a 
on d e ele vá, eu o s e g u ir e i". 2 0 M a sca r ó rep ete: " O ca m in h o 
p a r a a verd ad e p od e n ã o ser u m ca m in h o d e lin h a s p ara lelas, 
m as u m ca m in h o qu e segu e u m cír cu lo : seja segu in d o p a r a 
200 • 
jornada rumo ao oriente 
a d ir e i t a e su b in d o o cír cu lo , seja in d o p a r a a esqu erd a e s u -
b in d o , estam os fad ad os a a lcan çar o top o , em b o r a t en h a m os 
co m eça d o e m d ireções ap a r en tem en te con t r a d it ó r ia s".2 1 
Esse s ím b o lo é t r aba lh ad o n o r om a n ce Sidarta; os ca -
m in h o s d e Bu d a , Va su d ev a , Sid a r t a e G o v i n d a cr u z a m -se 
in ú m er as vezes, p o r ém tod os ch egam ao m esm o lu gar . Pa r a 
m u d a r a im a g em , H esse a m o s t r a n a exa ta id en t id a d e d os 
sor r isos nas faces r ad ian tes d e Bu d a , Va su d ev a e Sid a r t a . 2 2 
Tod a s as u n id ad es i lu m in a d a s são u m a n o tod o . 
A d i f erença Zen 
Vis t o d e fo r a , o b u d ism o p od e d a r a im p ressão d e ser s im ila r 
ao h in d u ísm o . A cosm ov isão p or trás d e am bos en fa t iz a , p o r 
exem p lo , a s in g u la r id a d e d a rea lid ad e p r im ár ia . N o en tan to , 
h á u m a d ifer en ça ch av e. Pa r a obter u m sen t id o d o qu e está 
m a is co m u m en t e en v o lv id o , observe o con tr aste existen te 
en tre a d v a it a v ed a n ta (h in d u ísm o n ã o d u a lis t a ), qu e acaba-
m os d e d iscu t ir , e o zen b u d i s m o . 2 3 
O m o n is m o h i n d u d efen d e qu e a r ea lid ad e final é 
Br a h m a , o ú n ico . E l e t em , o u m elh or , é o p r óp r io ser - o 
final s in g u la r in d ife r en cia d o "q u a lq u er qu e seja". Fa z sen t i-
d o m e n cio n a r Br a h m a o u fa la r d o ú n ico . C o m o u m b u lb o 
d e lâm p ad a , e m it in d o fó ton s d e lu z cad a vez m a is d istan te 
d en t r o d as t revas, d isp er san d o seu s fó ton s ca d a vez m a is u n s 
d os ou t r os , d e Br a h m a (o ú n ico ) em a n a o cosm o (os in ú -
m er o s ). 
O m o n is m o z en -b u d is t a su sten ta qu e a rea lid ad e fin a l é 
o v a z i o . 2 4 Es s a rea lid ad e n ã o é n a d a qu e p ossa ser n om ead o 
201 
O u n i v e r s o a o l a d o 
o u co m p r een d id o . D iz e r q u e é o n a d a é in co r r e t o , p o r ém 
ig u a lm en te in cor r e to é a fir m a r qu e é a lgo. Isso d egr ad a r ia 
su a essên cia , r ed u z in d o -a a u m a coisa en tre ou t r as coisas. 
O ú n ico h i n d u a in d a é u m a coisa en tre coisas, em b o r a seja a 
p r in cip a l . O v a z io n ão é u m a coisa d e m o d o a lg u m , m a s , ao 
invés d isso , é a o r ig em d e tod as as coisas. 
A d is t in ção t a m b é m lev a a u m a d ifer en te com p r een são 
d os seres h u m a n o s . P a r a u m h i n d u , a p essoa in d iv id u a l é 
u m a a lm a (A t m a ) e, p o r t a n to , é d o tad a d e rea lid ad e su bs-
t a n cia l (esp ir i t u a l, n ão m a ter ia l) p or q u e é u m a em a n a çã o d e 
Br a h m a (a p róp r ia r ea lid a d e). N a m o r t e , a a lm a in d iv id u a l 
p erd e su a resid ên cia cor p ór ea , m as é r een ca r n ad a e m ou t r o 
in d iv íd u o - u m t ip o d e t r an sm igração d a a lm a . 
Pa r a u m b u d is t a , u m a p essoa in d iv id u a l é u m a n ão a lm a . 
N ã o h á n a tu r ez a qu e p ossa ser n o m ea d a n o â m a g o d e cad a 
p essoa. N a v erd ad e, cad a p essoa é u m a so m a d e pessoas a n -
ter iores. In exis t em tan to a t r an sm ig r ação d a a lm a , co m o o 
d esap arecim en to d e u m a p essoa n a m or t e e a r econ st itu ição 
d e o u t r a , a p a r t ir d e cin co agregad os o u "fa tores d e exis-
t ên cia : co r p o , sen t im en t o , p er cep ção , fo r m ações m en ta is e 
co n sciên cia ". 2 5 
Ig u a lm en t e , h á d iferen ças e m relação à p rá t ica r elig iosa , 
b em co m o às técn icas d e m ed it a çã o . E m gera l, os h in d u s 
r ep etem u m m a n t r a , co m o Om, e, p o r t a n t o , in d u z a u m 
êxtase o u estad o d e t r an se qu e é con s id er a d a u m a ascen são 
r u m o à d iv in d a d e . O z en -b u d ism o p od e, s im ila r m en t e , re-
p et it u m m a n t r a , p o r ém seu ob jet iv o é a lcan çar u m estad o 
d e com p r een sã o d e su a ra iz n o n ão ser - a n ão en t id ad e 
d e su a "face an tes d e eles t er em n a scid o ", p o r exem p lo .2 ' ' 
202 
Jornada rumo ao oriente 
U m m estre zen p od e d esafiar u m a p r en d iz co m koans, 
ch arad as o u qu estões en igm át icas co m o : "Ba t e n d o as d u as 
m ãos u m a n a o u t r a tem os u m s o m . Q u a l o s o m d e u m a 
m ã o ?"2 7 ; o u : " O qu e é o cor p o d o dharma d e Bu d a [isto é, 
o qu e é r ea l id a d e ]?"2 8 . O u a in d a , o m estre p od e in s t r u i r o 
a p r en d iz a fazer zazen ("sen tar -se n a p osição d e ló tu s"). E m 
q u a lq u er s itu ação, a t en ta t iv a é feita p a r a esvaziar a m en te d e 
tod o o p en sa m en to , p ois a r ea lid ad e su p r em a n ã o é ap en as 
n ão ser, m as t a m b é m "n ão m en t e". 
A i n d a , co m essas e ou t r as d iferen ças, o efeito d as d u as 
for m as n ão d u a lis ta s , o h in d u ísm o e o z en -b u d ism o , é co-
locar u m a p essoa e m u m estad o e m qu e tod as as d ist in ções 
d esap arecem — a q u i e a l i , agora e d ep ois, ilu são e r ea lid ad e, 
verd ad e e fa lsid ad e, b e m e m a l . A p esa r d o n obr e esforço d e 
m estres z en co m o D . T . Su z u k i e m in s is t ir qu e o zen n ã o é 
n i i l is t a , e m gera l, é a ss im qu e se ap resen ta aos leitores o ci -
d e n t a is . 2 9 
Or ien t e e Oci d en t e: um p ro b lem a de 
co m un i cação 
U m a h istór ia cíclica , ca m in h o s qu e se in t e r cr u z a m , d o u -
t r in as qu e d iv er g em , m a l qu e é b em , co n h ecim en t o qu e é 
ign orân cia , t em p o qu e é e ter n o , r ea lid ad e qu e é ir r ea l: tu d o 
isso co n s t i t u i as m áscaras m u táveis, p a r ad oxa is e m esm o 
con t r ad itór ia s qu e co b r em o Ú n ico . O qu e os ocid en ta is 
p od em d izer? Se eles a p o n t a m p a r a su a ir r a cion a lid a d e, o 
o r ien t a l r ejeita a razão co m o u m a ca tegor ia . Se elessa lien -
la m o d esap a recim en to d a m or a lid a d e , o o r ien ta l d esd en h a 
• 203 • 
O u n i v e r s o a o l a d o 
a d u a lid a d e qu e é r eq u er id a p a r a a d is t in ção . Se eles a legam 
a in con sis t ên cia en tre a ação m o r a l d os or ien ta is e a t eor ia 
a m o r a l , o o r ien t a l d iz : "Be m , n ã o h á v i r t u d e n a con sis tên cia 
exceto p ela razão, qu e já r ejeitei, e, a lém d isso, a in d a n ão 
sou p er feito . Q u a n d o est iver l iv r e d essa carga d o ca r m a , n ão 
m a is ag irei co m o se fosse m o r a l . N a v er d ad e, n ão m a is ag i-
rei d e m o d o a lg u m , m as ap enas m ed i t a r e i". Se o ocid en ta l 
r ep lica r : "Se v ocê n ã o com er , m or r e r á ". A o qu e o o r ien t a l 
r esp on d erá : " E d aí? A t m a é Br a h m a . Br a h m a é etern o. U m a 
m o r t e a se d esejar !" 
C r e io qu e n ão co n s t i t u i su rp resa o fa to d e m ission ár ios 
ocid en ta is ob ter em p ou cos p rogressos co m bu d istas e h i n -
d u s co m p r o m et id o s . Eles n ão fa la m a m e s m a lín gu a , p ois 
qu ase n a d a su s t en tam e m co m u m . É d o lor osa m en te d ifícil 
com p r een d er a cosm ov isão o r ien t a l , m esm o q u a n d o se t em 
u m a n oçã o d e qu e isso d e m a n d a u m m o d o d e p en sar d i s t in -
to d o O cid e n t e . A o s m u it o s qu e d eseja r iam qu e or ien ta is se 
to r n assem cr istãos (e, p o r t a n to teístas), p arece qu e os o r ien -
tais p ossu em u m a d ificu ld a d e a in d a m a io r e m com p r een d er 
qu e o cr is t ia n ism o é, d e a lg u m m o d o , s in gu la r , qu e a ressu r -
reição d e Jesu s C r i s t o n o esp a ço-t em p o está n o cor ação d as 
boas n ovas d e D e u s . 
Pa r ece-m e q u e, e m a m bos os casos, o m e lh o r lu ga r p a r a 
co m eça r é com p r een d en d o qu e o O r ie n t e e o O cid e n t e 
op er a m e m d ois cen ár ios d iferen tes d e p ressu p osições. Pa r a 
in icia r o d iá logo, p elo m en os u m d os lad os d eve con h ecer o 
q u ã o d iferen tes su as p ressu p osições básicas p o d e m se torn a r , 
m a s , p a r a u m a v er d a d eir a co m u n ica çã o h u m a n a , am bos os 
lad os d ev em con h ecer essas d iferen ças an tes d e o d iá logo ir 
204 • 
Jornada rumo ao oriente 
m u i t o ad ian te. A s s i m , ta lv ez , as d ificu ld a d es n o p en sam en to 
o r ien t a l qu e p a r ecem tão óbvias p a r a os ocid en ta is , p elo 
m en os , com eça r ã o a ser r econ h ecid as p elos o r ien ta is . Se u m 
o r ien t a l con segu ir v er qu e o co n h ecim en t o , a m or a lid a d e e 
a r ea lid ad e são v is ta s , d ig a m os, d o p on to d e v is t a d o te ísm o 
ocid en t a l , a a t r a t iv id ad e d o ca m in h o d o O cid e n t e p od e ser 
óbv ia . 
G e r a lm e n t e , en t r e tan to , o qu e o O r ie n t e vê d o O r ie n t e 
é m a is feio qu e Sh iv a , o p r óp r io d eu s d a d est ru ição . O s qu e 
d ev em co m u n ica r a beleza d a verd ad e e m C r i s t o t êm p ela 
fr en te u m a ta refa d ifícil, p o is as névoas d o h o r r en d o im p e -
r ia l ism o ocid en t a l , b em co m o d as gu er ras, d a v io lên cia e d a 
g lu t o n a r ia são, d e fa to , d en sas. 
O n d e , en t ã o , t u d o isso lev a o o cid en t a l q u e v a i ao 
O r i e n t e e m b u sca d e sen t id o e s ign ificad o? M u i t o s , cla r o , 
d es is t em ao lon g o d o ca m i n h o , t en t a m t o m a r u m a ta lh o 
a té o n i r v a n a p or m e io d e d rogas o u r e cu a m , v o l t a n d o 
p a r a casa e a s su m in d o os n eg ócios d a fa m ília , d e ixa n d o 
o O r i e n t e p a r a trás c o m p o u co m a is d o q u e ap en as u m a 
b a r b a p a r a exib ir su a exp er iên cia (q u e é a p a r a d a an tes d a 
p r im e i r a r eu n iã o d o con se lh o e r e t ir a d a an tes d a seg u n -
d a ) . O u t r o s p r ossegu em n o ca m in h o p a r a a v i d a , sen d o 
q u e a lg u n s ou t r os ta lv ez e n co n t r e m o n i r v a n a e p e r m a n e-
ça m extasiad os e m co n t e m p la çã o . P o r ém , s im p le sm en t e , 
m u it o s m o r r e m p o r in a n içã o , d isen t e r ia , overd oses e q u e m 
sabe o q u e m a is . A l g u n s n a u fr a g a m n as p r a ia s d e c o m u n i -
d ad es ocid en t a is e, p o u co a p o u co , t o r n a m -se bon s p a r a a 
n avegação n o v a m en t e c o m o au xílio d e a m ig os . 
205 
O u n i v e r s o a o l a d o 
Po r m u it a s d écad as, jov en s e v elh os t êm sid o a r r eb a n h a -
d os p or vár ios g u r u s . A s liv r a r ia s estão rep letas d e liv r os 
qu e a p o n t a m p a r a o O r ie n t e , co m as costas v oltad as p a r a o 
O cid e n t e , é cla r o . A m ed it a çã o t r a n scen d en ta l, b em co m o 
ou t r as técn icas esp ir itu a is o r ien ta is , t o r n a r a m -se co m u n s , 
a ssim co m o t r aba lh ad ores e m m ed it a çã o n o ca m in h o p a r a o 
t t a b a lh o , e au las sen d o oferecid as e m gran d es cor p or a ções . 
O s ocid en ta is co n t in u a m e m p eregr in ação r u m o ao 
O r ie n t e . En q u a n t o o O r ie n t e ap resen tar su as p rom essas - d e 
p az , d e sen t id o e d e s ign ificad o — as p essoas, m u i t o p r o v a -
v e lm en t e , con t in u a r ã o sen d o a tra íd as. O q u e elas receberão? 
N ã o ap enas u m cu r a t iv o o r ien t a l p a r a u m a fe r id a ocid en t a l , 
m as tod a u m a n o v a cosm ov isão e est ilo d e v id a . 
206 
Capítulo oito 
UM UNIVERSO SEPARADO 
A Nova Era 
Nó s estamos criando energia, matér ia e vida na interface entre o 
vazio e toda a cr iação conhecida. Estamos diante do universo co-
nhecido, criando-o, preenchendo-o. [...] Eu sou "um dos garotos 
na casa das máqu in as, bombeando a cr iação do vazio para dentro 
do universo conhecido; do desconhecido para o conhecido estou 
bombeando. 
Jo h n Lilly, The Center ofthe Cyclone [0 centro do ciclone] 
OMISTICISMO ORIENTAL PROPÕE u m a saída para as pessoas ociden tais aprisionadas no dilema n iilist a do 
n aturalismo. Por ém , o mist icismo do Or ien t e é estrangeiro. 
Mesm o u m a ver são d ilu ída como a m ed i t ação t ranscenden tal 
exige u m a radical e imediata r eor ien t ação do modo n ormal de 
compreender a realidade dos ociden tais. Ta l reorientação leva 
a novos estados de con sciên cia e sen t imen tos de sign ificân cia, 
O u n i v e r so ao l ad o 
como vimos, p o r é m o custo in telectual é elevado. É n ecessár io 
mor rer para o Ociden t e a fim de nascer no Or ien t e. 
H á u m cam in h o men os doloroso e custoso para se alcan -
çar p r op ósi t o e sign ificado? Por que n ão realizar u m a bu sca 
por u m a n ova con sciên cia den t ro de lin h as mais ociden tais? 
Isso est á sendo efetuado pot u m grande n ú m e r o de e r u -
ditos, profissionais da m edicin a, p sicólogos e exploradores 
religiosos. Exist e u m a van guatda em in ú m er as d isciplin as 
acad ém icas, abrangendo desde a ár ea de h uman as at é as c i -
ên cias exatas, e esse t r an sbordar sem l im it e n a cu lt u r a m ais 
parece u m d ilú vio. Esclarecen do melh or , estamos v iven cian -
do u m a cosm ovisão n o fim de sua adolescên cia. ' Lon ge de 
estar tot almen te formada, a cosm ovisão da Nova Er a a i n -
da con t é m muit as arestas por aparar, t en sões in t ern as e a t é 
mesmo con t t ad ições eviden tes. Devid o a seu car át er in er en -
temen te eclét ico, essa cosm ovisão pode ter at in gido, agota, 
u m a mat ur idade n u n ca antes alcan çada. N o en tan to, ela 
ain da est á em for m ação , e podemos visualizar t al co n d i ção 
em u m a sér ie de p r oposições, como fizemos em r elação a 
outras cosm ovisões. 
Por ocasião da p r im eir a pu b l icação deste l iv r o , h avia p ou -
cas ten tat ivas de con cen t r ar todas essas n oções da Nova Er a 
em u m mesmo lugar. O esboço que segue, n a ocasião, era 
quase ú n i co . 2 Desde essa época, muit as t en tat ivas t êm sido 
petpet radas, n otavelmen te as de M a r i l y n Fer guson em The 
Aquarian Conspiracy [A conspiração aquariana], Fr i t jo t Cap r a 
em The TurningPoint [O ponto de guinada] e Ke n W i l b e r e m 
A BriefHistory of Everything [ Uma história sucinta de tudo]. 
A pr im eir a obra é a mais en tusiasta e popular , sendo as out ras 
2 0 8 
Um universo separado 
duas mais comedidas e erudit as.3 Todos os t rês escritores 
exerceram u m grande impact o n o p r óp r io m ovim en t o Nova 
Er a , con ceden do- lh e u m senso de coer ên cia e foco que n ão 
h avia an tes. Al é m disso, Douglas Gr oot h u is em Unmasking 
the New Age [Desmascarando a Nova Era] e Confronting the 
New Age [Confrontando a Nova Era] m u i t o t em con t r ibu í -
do para u m a defin ição mais clara e abran gen te.4 James A . 
H e r r i ck t em escavado ain da mais fun do em dir eção às raí-
zes desse movimen t o, argumen tan do de for ma persuasiva 
que tais raízes t êm or igem no antigo gnost icismo e podem 
ser vistas nos est ágios subsequentes da civilização ociden -
t al, emergindo no que ele den om in a como Nova Sín t ese 
Religiosa. Sua obra, The Making of the New Espirituality 
[A criação da nova espiritualidade], pelo menos até agora, é a 
h ist ór ia defin it iva da espir itualidade da Nova Er a . 5 
N o meio da d écad a de 1970, art igos e reportagens de 
capa n a revista Time, bem como em outras pu b l icações de 
pr est ígio, cor r er am at rás do crescente in teresse n o mister ioso 
e ad m ir áve l . 6 Já n a metade da d écad a de 1980, o in teresse 
em fe n óm e n os psíqu icos tornou-se t ão d ifun dido que já n ão 
mais provocava o erguer surpreso de sobran celh a. Mu it as re-
vistas, como Body and Soul, W hat Is Enlightenment, e Yoga 
Journal propagavam as ideias da Nova Er a e se en con t r avam 
d ispon íveis em todas as bancas de jor n ais. 7 
Con for m e o calen dár io maia, u m a con ver gên cia h ar m ó-
n ica estava programada para ocorrer em agosto de 1987. 
A data despeitou grande intetesse n a m íd ia, p or ém , n en h uma 
evidên cia jamais surgiu dan do con ta que a Er a de Aqu ár io , 
u m p e r íod o de grande paz, teve in ício. 
• 209 
O u n i v e r so ao l ad o 
N o fim de 1987, a revista Time, u m a vez mais, deu at en ção 
ao movimen t o da Nova Er a , com sua capa exibin do Sh ir ley 
MacLain e e u m a h ist ór ia abordando "curandeiros da fé, ca-
nalizadores, viajan tes do tempo e cristais em ab u n d ân cia". 8 
A par t ir de en t ão, MacLain e parece assumir a posição de maior 
expoenre da Nova Er a . 9 E , por volt a da metade da década de 
1990, as h istór ias sobre a Nova Er a deixaram de frequentar 
as pr imeiras págin as do n ot iciár io n ão porque o movimen t o 
deixou de exist ir , mas porque tomou-se cor r iqueiro, n ão mais 
estranho e atraente aos leitores.1 0 Cer ca de vin t e publicações 
populares sobre a Nova Er a são dispon ibilizadas em m in h a 
livr ar ia local. 
A t ransformação radical da natureza 
h umana 
C o m suas esper an ças fun damen t adas n o modelo evo-
lu cion ist a - u m remanescen te do n at u r alismo ociden tal 
— in ú m er os pensadores de van guarda t êm profet izado a ch e-
gada de u m Novo H o m e m e u m a Nova Er a . E m 1973, Jean 
H ou st on , da Fu n d ação para Pesquisa da Men t e , em Pam on a, 
Nova Yor k , afir m ou que o que este m u n d o necessita é de u m 
"programa psicon aut a para colocar o pr im eir o h om em n a 
t er ra". P or ém , se n ão obtemos u m a con t r apar t ida psíqu ica 
da N A SA , nosso psicon auta est á ch egan do: "É quase como 
se a espécie [a h uman idade] estivesse dan do u m salto espe-
tacular em d ir eção a u m totalmen te in ovador jeito de ser "." 
E l a con clu i que se apren dermos a "atuar sobre o vasto espec-
t ro da con sciên cia, [...] teremos acesso a u m a h uman idade 
210 
Um universo separado 
com tal profun didade e r iqueza jamais dantes con h ecidas 
pelo m u n d o, de modo que nossos tataranetos nos ver ão 
com o neander tais de t ão diferen tes que eles se r ão". 1 2 
Por cerca de t r in t a anos, H ou st on t em propagado a mes-
m a men sagem: os seres h uman os evoluem em dir eção a u m a 
con sciên cia super ior ; as sociedades e culturas evoluem r u m o 
a u m a maior abr an gên cia. N a décad a de 1990, ela disse que já 
p od e r í am os estar viven do os p r im ór d ios de u m a "civilização 
de alto n ível do t ipo I " , duran te a qual "nossos tataranetos" 
est ar ão viajan do para out ros planetas ou colón ias espaciais, 
"cr ian do par aísos, u m a ecologia viável e u m m u n d o onde nos 
n u t r ir emos mut uamen t e e que nos su pr ir á para obtermos o 
m á xi m o de nossas capacidades". Ap ós isso, vir ão "civilizações 
de n ível t ipo I I , em que nos tornaremos r espon sáveis, ao n í-
vel sensor ial, pela or qu est r ação dos recursos do sistema solar. 
[...] E provável que, mit icamen t e, estaremos nos apr oximan -
do de encarnar , de algum modo, os ar qu ét ipos. Acabaremos 
torn an do-n os os deuses que temos in vocado". A seguir, sur-
gir ão as civilizações de n ível t ipo I I I , "em que nos un ir emos 
ao ambien te galáct ico e nos torn aremos cr iadores de m u n -
dos, capazes de realizar o Gén esis". E , por ocasião do advenro 
do terceiro m ilén io, ela passou a oferecer aconselh amen to 
sobre como viver e promover "esse salto", aqueles per íodos de 
t r an sição r u m o a estados mais elevados do ser .1 3 
E m 2003, Ke n W i lb e r e Ar t h u r Coh e n esboçar am uma 
escala de evolução ain da mais elaborada (oiro n íveis), in ician -
do cem m i l anos at rás (o est ágio in st in t ivo de sobt evivên cia) e 
chegando t r in t a anos at r ás, quan do umas poucas pessoas in i -
ciaram-se no est ágio h olíst ico. Mais da metade da popu lação 
211 
O u n i v e r so ao l ad o 
m u n d ial , en t retan to, est á abaixo da l in h a m éd ia dessa esca-
da evolucion ár ia. N o en tan to, quan do u m a pessoa descobre 
que "depende de m i m ", a evolu ção prossegue. Co m o afirma 
W ilber , reflet indo sobre a t r an sição: "Si m , é cocr iação, por-
que bem lá n a fr ívola, efervescente, caót ica e emergente pon ta 
da revelação do espír it o jaz ela, a ação ct iat iva". 1 4 A evolu-
ção da h uman idade (corpo e alma) depende de cada pessoa. 
P or ém , est á chegando. W i lb e r diz: " M i l anos à fren te, as pes-
soas olh ar ão para tudo isso n o passado como 'aquelas coisas 
de jar d im da in fân cia' que est ávam os repelin do n a é p oca". 1 5 
M u i t o embor a o t ema de u m a evolu ção pessoal e cu lt u r al 
t en h a estado ptesen te n o per íod o en tre as décadas de 1970 
at é o final do sécu lo, a ambiguidade de sua ên fase por par te 
dos propagadores da Nova Er a parece-me m u it o mais i m -
por tan te agora do que an tes. Isso é bem possível, pois nos 
ú l t im os vin t e anos n ada t em ocor r ido de modo a m u dar a 
nossa h um an idade. Lon ge de u m a t r an sfor m ação r adical, a 
r aça h u m an a con t in u a viven do u m a t r agéd ia sangren ta após 
ou t r a. Assim , esper an çosos par t idár ios da Nova Er a in ter -
pret am os relatos modern os daqueles que alegam ter feito 
u m a viagem à ou t r a d im en são . Eles in t er pr et am (ou melh or , 
n ão in t erpr et am) os an t igos líderes religiosos - Jesus, Bu da, 
Zoroast ro - que ain da gozam de credibilidade, ven do neles 
u m sin al do progresso que se aguarda para toda a h u m an ida-
de, con clu in do que u m a Nova Er a se ap r oxim a. 1 6 
U m impor t an te con t ingen te de ot imism o sobre a Nova Er a 
tornou-se, en t retan to, mais emudecido que t tansformado. N o 
in ício da década de 1970, o m éd ico An d r e w W e i l , pesquisa-
dor e t eór ico das drogas, argumentou em defesa de u m a nova 
212 
Um universo separado 
e mais relaxada abordagem sobre o uso de drogas psicodéli-
cas e de camin h os alternat ivos para se alcan çar novos estados 
de con sciên cia. A t evolução das drogas, ele imagin ava, seria o 
precursor de u m a Nova Er a u m per íodo no qual a h uman ida-
de - porque far ia uso sábio das drogas e de t écn icas míst icas 
- fin almen t e alcan çar ia saú de plen a. W e i l escreveu: " U m dia, 
quan do a t r an sfor m ação t iver acon tecido, com certeza, olh a-
remos para t rás sobre o problema das drogas da década de 
1970 como mot ivo de r iso e balan çar em os a cabeça, pergun-
(ando-nos: como n ão conseguimos ver o que realmente estava 
acon tecen do?"1 7 H oje essa op ção est á conectada com o que 
Douglas Gr oot h u is ch ama de "t ecn oxaman ismo". Pr omovida 
por seguidores do falecido T i m o t h y Leary, a grande esperan ça 
agora é perder o "eu" n or m al e assumir poderes divin os n a 
realidade vir t ual do ciber espaço. 1 8 
O p r óp r io W e i l t r ocou a ên fase n o uso seguro de drogas 
que alt et am a con sciên cia pela p r o m o ç ão de u m a "m edicin a 
in tegrat iva", que Br ad Lem le y descreveu como "u m mode-
lo m é d ico que ext rai o melh or dos sistemas t er apêu t icos, 
abrangendo a alopat ia (o regime de drogas e cirurgias dos 
profissionais amer ican os da ár ea de m ed icin a), h omeopat ia, 
acupun t u r a, h erbalismo, ciên cia n u t r icion al , h ipn ose e m u i -
tas ou t r as". 1 9 
Uma visão panorâmica do pensamento 
da Nova Era 
Pelo que falei at é aqu i, dever ia ser óbvio que a cosmovi-
são da Nova Er a n ão est á con fin ada a u m a estreita faixa da 
213 
O u n i v e r so ao l ad o 
h um an idade. Tem os aqu i mais do que u m a efém er a m oda 
passageira en t re os in telectuais de Nova Yor k ou gurus da 
Cost a Oeste. A list a seguin te de disciplin as e seus respect ivos 
represen tan tes cor r obor am esse fato. Pelas pessoas aqui m en -
cionadas, o pen samen to da Nova Er a é t ão n at u r al quan to o 
t e í sm o é para os cr ist ãos. 
N a psicologia, o pr imeir o t eór ico a reconh ecer a validade 
dos estados alterados de con sciên cia foi W i l l i a m James. Mais 
tarde, ele foi seguido por Ca r l Ju n g e Ab r ah am Maslow . H oje 
podemos cit ar Aldou s H u xley , r oman cist a e exper imen tador 
de drogas; Rober t Master s e Jean H ou st on , da Fu n d ação 
para a Pesquisa da Men t e , Stan islav Gr of, do Cen t r o de 
Pesquisa Psiqu iát r ica de Mar y lan d , que fornece L S D aos 
pacien tes em estado t er m in al com o p r op ósi t o de auxiliá-
los a obter u m sen t imen t o de un idade cósm ica e, por t an t o, 
p t epar á- los para a mor t e, e Joh n Li l ly , cujos t rabalh os i n i -
ciais en volviam golfin h os, mas que foi a lém , passando para 
exper imen tos com drogas, tendo a si mesmo como sujeito 
p r im ár io . 2 0 A sín t ese t ranspessoal de Ke n W ilb e r , en volven -
do vár ias escolas de psicologia e filosofia t or n am sua obra 
in t eligen temen te at raen te e o coloca n a van guarda da intelli-
gentsia da Nova Er a . Fin alm en t e , o p sicó logo Jon Kl i m o t em 
publicado u m am plo estudo sobre can alização (u m termo da 
Nova Er a para m ed iu n idade). 2 1 
N a sociologia e na história cultural temos Th eod o-
re Roszak, especialmen te em W here the W asteland Ends 
[Onde termina a época estéril] e Unfinished Animal [Ani-
mal inacabado], bem como W i l l i a m I r w i n Th o m p so n , 
cujas obras At the Edge of History [No limite da história] e 
214 
Um universo separado 
Passages About Earth [Passagens sobre a terra], t r açam sua 
pr ópr ia jor n ada in t elect ual, desde o cat olicismo, passando 
pelo n at u r alismo e cu lm in an d o em u m a ver são ocu lt a da 
Nova Er a . O t rabalh o de Th o m p so n é n ot ável porque como 
ex-professor de h ist ór ia n o M I T e Yor k Un iver si t y e deten tor 
de bolsas de estudos de W ood r ow W i l so n e O l d D o m i n i o n , 
ele foi r econ h ecido e aprovado pelos in telectuais do establish-
ment. Passages About Earth [Passagens sobre a terra], most r a 
como ele se r et ir ou tot almen te dos cír cu los oficiais. 2 2 
E m antropologia t emos Car los Cast an eda, cujos livros 
t êm sido best-sellers t an to nos meios un iver sit ár ios quan to 
nas livr ar ias em geral. A erva do diabo (1968) estabeleceu 
o cam in h o e foi r apidamen te seguido por Uma estranha 
realidade (1971) e Viagem a Ixtlan (1972) . Poster iormen te, 
out ros livros for am lan çad os, p o r é m , eles desper taram men os 
interesse n o p ú b l ico . Cast an eda, que com e ço u estudando os 
eleitos de drogas psicodél icas n a cu lt u r a in d ian a (ou in d íge-
n a), tornou-se apren diz de D o n Ju an , u m feit iceiro da t r ibo 
ile Yaqu i . Ap ó s complet ar os r itos de in iciação, depois de 
Iguns anos, Cast an eda torn ou-se u m feit iceito, cu ja alegada 
exper iên cia com vár ios t ipos de novas realidades e un iversos 
separados t or n a sua leit u r a fascinan te e, por vezes, assusta-
dora. As obras de Cast an eda t êm se con st i t u íd o em u m a das 
pr in cipais portas de en t rada a u m a n ova con sciên cia . 2 ' 
Mesm o n a área da ciência natural, elemen tos do pensa-
men to da Nova Er a podem ser en con rrados. 
C o m fr equ ên cia , pessoas pr ofission almen t e en volv i -
das e m física assu m em a l id e r an ça , t alvez pot essa área ser 
mais t eór ica e especu lat iva, men os pr open sa, por t an t o, à 
• 215 • 
O u n i v e r so ao l ad o 
falsificação pelo fato. O ar gu m en t o par a u m a r ein t er pr et a-
ção da física pela N o v a E r a é mais popu lar m en t e colocado 
pelo físico Fr i t jo f Ca p r a e o escr it or de ciên cia popu lar 
G a r y Z u k a v . 2 4 M ai s reservados e m seu apoio às ideias da 
No v a E r a são Le w i s T h o m a s e J . E . Love lock . O p r im eir o 
é b i ó l o go e m é d i c o , cu jo l ivr o As vidas de uma célula anga-
r i o u u m a só l id a p o si ção n o cam po da l i t e r at u r a cien t ífica 
popu lar . 2 5 Love lock é u m especialist a em cromatografia 
por gás, e seu l iv r o , Gaia: um novo olhar sobre a vida na 
terra, é u m t r abalh o or igin al sobre a m an e i r a de se ver a 
t et r a (Ga i a é a an t iga deusa grega da t er r a) com o u m siste-
m a si m b i ó t i c o ú n i c o . 2 6 
N o campo da saú d e , o n ú m e r o de terapias alt ern at ivas 
propostas n o que veio a se ch am ar "m ed icin a h ol íst ica" 
é dign o de n ot a. Acu p u n t u r a , m é t o d o Rol fin g, cu r a psí-
qu ica, cin esiologia, toque t e r apêu t ico - essas são apenas 
algumas t écn icas usadas pelos profission ais da saú d e da 
No v a E r a 2 7 Tan t o doutores com o en fermeir as t êm sen t ido 
os seus efeitos. A en fer magem, de fato, pode ser con sidera-
da a d iscip l in a mais afetada pelas ideias e t écn icas da Nova 
Er a . Sob o pretexto de "cu idados e sp i í i t u ai s", u m a ampla 
var iedade de t écn icas t e t apêu t icas da N o v a E r a esr ão sendo 
en sin ados aos estudan tes de en fer m agem . 2 8 W e i l , defensor 
da "cu r a e sp on t ân e a", afi r m ou que cerca de 30 , en t r e 134 
escolas de m ed icin a, oferecem algu m a in st r u ção n a área 
de m ed icin a alt er n at iva. At u alm en t e , ele dir ige u m pro-
gr am a de m ed icin a in t egr at iva ligado à Esco la de Med ic in a 
da Un ivet sidade do Ar i z o n a . 2 9 O m é d i co Deepak Ch o p r a , 
t a m b é m emer giu com o u m popu lar mest te da cu r a alter-
n at iva da Nova E r a . 3 0 
• 216 • 
Um universo separado 
A ficção cien t ífica é u m gén er o amplamen te dom in ado 
por n aturalistas cu ja esper an ça para o fu turo da h u m an idade 
repousa n a tecnologia. P or ém , poucos de seus escritores t êm 
sido pr ofé t icos. Ar t h u r C . Clar ke , por exemplo, escreveu dois 
cen ár ios para u m a t r an sfor m ação h u m an a r adical em conso-
n ân cia com a l in h a da Nova Er a . O fim da infância (1953) é 
u m a de suas obras de im agin ação mais bem-sucedidas. Seu 
roteiro para 2001 (1968) , cu ja ver são para o cin em a t em 
muit o mais do diretor Stan ley Ku b r i ck que propr iamen te 
dele, t er m in a com o aman h ecer da Nova Er a em u m a n ova 
d im e n são e com u m n ovo "h om em ", a cr ian ça- est r ela. 3 1 
E Um estranho numa terra estranha (1961) , de Rober t A . 
H e in le in , a p r in cíp io u m clássico da con t r acu lt u t a, t or n ou -
-se u m t ratado para a No v a Er a . Valen t in e Mich ae l Sm i t h , 
que capta a realidade em sua plen it ude, é u m p r o t ó t ip o para 
a n ova h u m an idade . 3 2 O s t rês ú l t im os roman ces de P h i l ip 
K. D i c k (Valis, A invasão divina e The Transfiguration of 
Timothy Archer [A tranfiguração de Timothy Archer}) são 
esfor ços ficcion ais para compreen der seu p r óp r io en con t ro 
com "u m raio de lu z r osa".3 3 
N a indústria cinematográfica, u m dos meios de com u n i-
cação mais eficazes do m u n d o moder n o, dign o de destaque 
é o t t abalh o do diretor Steven Spielberg, em especial o fi l -
me Contatos imediatos do terceiro grau, bem como George 
Lucas, especialmen te a sér ie Guerra nas estrelas. A força, o 
poder d ivin o que permeia o m u n d o desses filmes, é m u i-
to semelh an te ao deus h i n d u Br ah m a, in cor por an do tan to 
o bem quan to o m al , e Yoda, o amável gu t u de O império 
contra-ataca, expressa a pu r a m et afísica da Nova Era. Entre 
os filmes que tf azem em seu bojo o pen samen to da Nova Era 
217 
O u n i v e r so ao l ad o 
est á o n ão men os impor t an t e My Dinner with André [Meu 
jantar com André], u m a excu r são au t ob iogr áfica ao in t er ior 
da men te de An d r é Gr egor y.3 4 O s filmes da d écad a de 1990 e 
in ício do sécu lo X X I , que se aven t u r am em ret ratar cen ár ios 
futur istas, t en dem a ser mais p ós- m od e r n os que est r it amen -
te Nova Er a . Veja os filmes da sér ie Matrix. 
Pode-se facilmen te replicar que aqueles, cujos livros e 
ideias acabei de men cion ar , est ão à m ar gem da sociedade 
ociden t al — u m a margin alidade lu n át ica. Suas ideias n ão re-
presen tam a pr in cipal cor ren te. Ta l afir m ação é, em grande 
par te, veraz. Algu n s dos mais populares autores da Nova Er a 
são proven ien tes do jor n alism o sen sacion alista e, por isso, 
torna-se difícil levar suas ideias a sér io. Al é m disso, os cr ít i-
cos, revisores e in telectuais dos cír cu los oficiais - que em sua 
m aior ia são n aturalistas cu jo n at u r alismo ain da n ão é puro 
n i i l ism o - t êm sido cr ít icos ferrenhos dos livros da Nova 
Er a , seja qual for o t ipo . 3 5 P or ém , n a realidade, tudo isso 
ve m a ser u m t r ibu to ao poder que essas ideias c o m e ç a m a 
possuir . As pessoas cujas obras cit ei an t er iormen t e exercem 
u m a en orme in fluên cia, seja pela posição que ocu pam em 
un iversidades, h ospitais e cen tros de pesquisa impor t an t es, 
por seu car isma pessoal, por sua con d ição de celebridades, 
seja por todas elas em con ju n t o. E m resumo, u m a cosmovi-
são in sin uan t e e de imen so impact o cu l t u r al foi for mulada e 
est á sendo pr omovida. 
Relacionamento com outras cosmovisões 
A co sm o v i são da No v a E r a é alt amen t e sin cr é t ica e eclét ica, 
t om an do emprestado de todas as p r in cipais cosm ovisões. 
• 218 • 
Um universo separado 
Em b o r a suas mister iosas r am ificações e est ran h as d im en -
sões possuam raízes n o p an t e í sm o or ien t al e no an t igo 
an im ism o, sua con e xão com o n at u r al ism o forn ece u m a 
m elh or ch an ce de gan h ar novos adeptos que o mais pu r o 
m ist icism o or ien t al . 
Co m o o n aturalismo, a n ova con sciên cia nega a exist ên -
cia de u m Deus t ranscenden te. N ã o h á n en h u m Sen h or do 
un iverso exceto se ele for cada u m de n ós. Exist e somente o 
un iverso fechado. N a verdade, esse un iverso é "povoado" por 
seres de incr ível in t eligên cia "pessoal" e poder, e a "con sciên cia 
h u m an a n ão é encerrada pelo cr ân io". 3 6 Por ém , esses seres e 
at é mesmo a con sciên cia do cosmo n ão são de forma algu-
m a transcendentes no sen t ido imposto pelo t e ísm o. Além do 
mais, alguma linguagem sobre os seres h uman os r et êm a plen a 
força do n at u r alismo.3 7 Fr i t jo f Capr a, Gar y Z u k av e W i l l i a m 
I r w i n Th om p so n apon tam para os aparentes corolár ios en tre 
o fen óm en o psíqu ico e a física do sécu lo X X . 3 8 
Igualmen t e emprestada do n at u r alismo, en con t r amos a 
esper an ça da Tr an sfor mação evolu cion ár ia para a h u m an i -
dade. Vivem os n a im in ên cia do adven to de u m n ovo ser. 
A evolu ção se in cu m b ir á dessa t r an sfor m ação. 
Semelh an temen te ao t e ísm o e ao n aturalismo, por ém 
diferen te do mon ismo pan t eíst a or ien tal, a Nova Er a deposita 
grande valor n a pessoa como in d ivídu o. O t eísm o fun damen -
ta esse valor no fato de cada pessoa ter sido feita à imagem de 
Deus. O n aturalismo, reflet indo u m a m em ór ia de suas raízes 
teístas, con t in u a a sustentar o valor dos in d ivídu os, com base 
na n oção de que todos os seres h uman os são semelhantes em 
sua h uman idade com u m . Se u m é valioso, rodos são. 
219 
O u n i v e r so ao l ad o 
Co m o o m on ism o pan t e íst a or ien t al, a n ova con sciên cia 
t em o foco em u m a exper iên cia m íst ica, n a qual t empo, 
espaço e moralidade são t ran scen didos. Al gu é m poder ia 
defin ir n ova con sciên cia como u m a ver são ociden tal do 
m ist icism o or ien t al, n o qual a ên fase m et afísica do O r ien t e 
(sua afir m ação de que A t m a é Br ah m a) é su bst i t u íd a por 
u m a ên fase n a epistemologia (ver , exper imen t ar ou perceber 
a un idade da realidade é t udo em que a v id a con sist e). Alé m 
disso, como o O r ien t e , a n ova con sciên cia rejeita a r azão 
(o que W e i l ch am a de "pen samen to reto") como u m guia 
para a realidade. O m u n d o é, n a realidade, ir r acion al ou 
super - racion al, deman dan do novos modos de per cepção 
("pen samen to à base de drogas", por exem plo). 3 9 
Mas a n ova con sciên cia está t am b é m relacionada ao 
an im ism o, u m a cosm ovisão que ain da n ão abordei neste 
livro. An im ism o é a visão geral da vida que se en con t ra 
subjacente às religiões pr imais ou chamadas religiões pagãs. 
Afir m ar que a cosm ovisão é p r im ai n ão quer dizer que ela é 
simples. As religiões pagãs são in teraçÕes altamen te complexas 
de ideias, r ituais, liturgias, sistemas de sím bolos, objetos 
de culto e assim por dian te. N o en tan to, as religiões pagãs 
t en dem a reter certas n oções em com u m . En t r e tais n oções, as 
seguintes são refletidas pela Nova Er a : (1) o un iverso n atural 
é habitado por in con t áveis seres espit ituais, com fr equên cia, 
concebidos em u m a h ierarquia tosca, no topo da qual est á o 
Deu s- céu (lembran do vagamente o Deu s do t e ísm o, p or ém , 
desptovido de qualquer interesse pelos seres h uman os); (2) 
assim, o un iverso possui u m a d im en são pessoal, mas n ão 
u m Deus- Cr iador in fin it o e pessoal; (3) tais seres espir ituais 
var iam em temperamen to, in do de m alévolo e sór d ido a 
220 • 
Um universo separado 
cóm ico e benevolen te; (4) para as pessoas obterem sucesso n a 
vida, os maus espír itos necessitam ser apaziguados e os bons 
espír it os bajulados com presentes e oferendas, cer im ón ias 
e encan tamen tos; (5) curandeiros, feit iceiros e xam ãs, por 
in t er m éd io de u m longo e ár du o t t ein amen to, apren dem a 
con t rolar o m u n do dos espír it os até u m certo pon to, e pessoas 
comuns lhes são m u it o gratas pelo poder que possuem de 
expulsar espír it os de enfermidades, seca e assim por dian te; (6) 
n o fim das con tas, h á u m a un idade que permeia toda a vida 
- isto é, o cosmo consiste de u m a con t in u idade de espír it o e 
m at ér ia; "an imais podem ser ancestrais de h omen s, pessoas 
podem se t r an sformar em an imais, ár vor es, e pedras podem 
possuir a lm a". 4 0 
A n ova con sciên cia reflete cada aspecto do an im ism o, 
embora, em geral, dan do- lh e u m a con ot ação n aturalist a ou 
desmist ifican do-o por meio da psicologia. O fato de Roszak 
ch amar para u m retorn o à "velh a gnosis", bem como as 
visões de W i l l i a m Blake, além das de Cast an eda passarem 
por u m longo processo de apren dizado que, por fim , tor -
nou-o u m feit iceiro, t udo isso são in d icações de que aqueles 
en volvidos com a Nova E r a est ão bem conscien tes de suas 
raízes an imist as. 4 1 
Pode a Nova Er a , possuin do raízes em t rês cosm ovisões 
dist in t as, ser u m sistema un ificado? N ã o tealmen te. O u , pelo 
men os, n ão ain da. N a verdade, é m u i t o provável que n ão. 
N ã o obstan te, embora n em todas as p r oposições listadas 
adian te se en caixem per feit amen te, h á muit os em pratica-
men te todas as áreas da cu l t u r a que defendem algo similar a 
esse modo de se encarar a realidade. 
221 
O u n i v e r so ao l ad o 
As doutrinas básicas da nova consciência 
Recon h ecen do a sut ileza deste con ju n t o de p r oposições 
como u m a descr ição precisa da cosm ovisão da n ova con sci-
ên cia, podemos com eçar , a exemplo das out ras cosm ovisões, 
com a n oção de realidade fun damen t al. 
1. Qualquer que seja a natureza do ser (ideia ou maté -
ria, energia ou partícula), o eu é o centro, a realidade 
fundamental. Como os seres humanos crescem em sua 
consciência e c o mpre e n são desse fato, a raça humana 
está no limiar de uma transformação radical na nature-
za humana; mesmo agora vemos alguns precursores da 
humanidade transformada e protó t ipos da Nova Era. 
Se o Deu s t ran scen den te con st it u i a p r im eir a realidade 
fun damen t al no t e ísm o e o un iver so físico é a realidade fu n -
damen t al n o n at u r alismo, en t ão, essa realidade fun damen t al 
n a Nova Er a é o eu (a alm a, a essên cia cen t r al e in tegtada de 
cada pessoa). 
Aq u i , torna-se de grande valia u m a com p ar ação (e con -
traste) com a p r op osição cen t ral do m on ism o pan t eíst a 
or ien t al. E m essên cia, o O r ien t e diz: "At m a é Br ah m a", colo-
can do a ên fase em Br ah m a. Isto é, n o O r ien t e , perde-se o eu 
no todo; a in dividualidade de u m a gota d ' águ a (sím bolo da 
alma) é perdida quan do ela cai den t ro de u m balde d ' águ a 
(sím b olo do todo da realidade). N a Nova Er a , a mesm a sen-
t en ça é lida ao con t r ár io: "At m a é Br ah m a". É a sin gular idade 
do eu que se t or n a impor t an t e. Por t an to, vemos a in fluên cia 
do t e í sm o, n o qual o in d ivíd u o é impor t an t e por ser feito 
à imagem de Deu s. D e igual sorte, vemos a in fluên cia do 
222 
Um universo separado 
n at u r alismo, em especial do exist en cialismo n aturalist a, n o 
qual os in d ivídu os são impor t an t es porque são tudo o que 
resta para ser im por t an t e . 4 2 
O pr oblema reside n o que exatamen te con st it u i esse eu? 
Ser á u m a ideia, u m espír i t o, u m "campo p sicom agn é t i co" 
ou ain da a un idade que per meia a diversidade da energia 
cósm ica? O s proponen tes da Nova Er a d iscor dam, p o r é m 
,in sist em que o eu - o cen t ro de con sciên cia do ser h u m an o 
— de fato, é o cen t ro do un iver so. Seja o que for que exista, 
além do eu , se é que, n a verdade, existe algo - existe para o 
eu . O un iver so extern o existe n ão para ser m an ipu lado do 
lado de fora por u m Deu s t ran scen den te, mas para ser m a-
n ipu lado do lado de den t ro pelo eu . 
Jo h n Li l l y fornece u m a lon ga descr ição do que sign ifica 
compreen der que o eu , de fato, est á n o con t role de toda 
a realidade. A seguir est ão suas an ot ações, registradas após 
viven ciar o que ele acredita ser o mais elevado estado de 
con sciên cia possível: 
Nós [ele e outras personalidades] estamos ctiando energia, 
matér ia e vida na interface entre o vazio e toda a criação co-
nhecida. Estamos diante do universo conhecido, criando-o, 
preenchendo-o. [...] Sin to o poder da galáxia emanando 
através de m im . [...] Sou o própr io processo de criação, in -
crivelmente forte e poderoso. [...] E u sou "um dos rapazes 
na casa das máquin as, bombeando a criação do vazio para 
o universo conhecido; do desconhecido para o conhecido, 
estou bombeando".43 
Q u an do finalmente Li l l y at in ge o e sp aço in t er ior , ele 
d en om in a de "+3" — a mais plen a e pr ofu n da pen e t r ação 
223 
O u n i v e r so ao l ad o 
da realidade - ele se t or n a o p r óp r io "De u s". Li l l y se tor -
n a, por assim dizer , t an to o un iver so qu an t o o seu cr iador . 
En t ã o , ele d iz: "P or que n ão desfr u t ai de en levo e êxt ase , 
en quan t o ain da u m passageiro neste cor po, nesta espa-
çon ave? Di t e as suas p r óp r ias regras com o passageiro. A 
empresa de t r an spor t es possui algumas poucas regras, mas 
pode ser que in ven t em os a empresa, bem com o suas regras. 
[...] N ã o exist em m on t an h as, n e m m o n t í cu l o s [...] apenas 
u m n ú cleo cen t r al de m i m e êxt ase t r an scen den t e". 4 4 Para 
Jo h n Li l l y , a i m agi n ação é o mesmo que realidade: " Tudo 
e todas as coisas que alguém é capaz de imaginar existem" 
Par a ele, por t an t o, o eu est á t r iu n fan t em en t e n o con t r o-
le. A m aior ia das pessoas descon h ece isso; faz-se n ecessár ia 
u m a t écn ica de algu m t ipo para compr een der esse fato; po-
r ém , o eu , de fato, é r e i . 
Sh ir ley M acLain e especula sobre se, de fato, ela t em cr ia-
do sua p r ópr ia realidade (algo que ela m en cion a, repetidas 
vezes, em seus l ivr os). E l a escreveu: 
"Se eu criei a min h a própr ia realidade, en tão — em algum 
nível e dimen são que eu não compreendi - criei tudo o que 
v i , ouvi, toquei, cheirei, provei; tudo que amei, odiei, res-
peitei, abominei; tudo o que respondi ou que responderam 
a mim. En tão, eu criei tudo o que conheci. E u fui, portan-
to, responsável por tudo o que houve em min h a realidade. 
Se isso foi verdadeiro, en tão (sic) eu fui tudo, como os an t i-
gos textos haviam ensinado. Aquilo t ambém significou que 
eu criei Deus e que criei a vida e a morte? Isso aconteceu 
porque eu era tudo o que havia? [. . . ]" 
Assumir a responsabilidade pelo poder de alguém seria a 
expressão suprema do que chamamos de Deus-força. 
224 
Seria isso o que significava a afirmação E U SO U O Q U E 
SO U?4 6 
E l a con clu i que por todos os p r opósi t os pr át icos, esse 
era o caso. Pr esumo que a m aior ia dos leitores acabar á por 
descobr ir que t udo isso co n t é m mais que u m toque de me-
galoman ia. 
Já ouvim os a profecia de George Leon ar d e Jean H ou st on 
sobre a v in da de u m a No v a Er a . E eles n ão est ão sozin h os. 
A esper an ça — sen ão profecia — en con t r a eco nas palavras de 
M ar i l y n Ferguson , An d r e w W e i l , Oscar Ich azo e W i l l i a m 
I r w i n Th o m p so n . Ferguson en cer ra seu l ivr o , The Brain 
Revolution [A revolução cerebral] (1973) , com u m ot im ism o 
t r iun fan t e: "Est am os apenas co m e çan d o a compreen der que 
podemos verdadeiramen te abr ir as por tas da per cepção e sair 
da caver n a". 4 7 Sua mais recen te obra, A conspiração aqua-
riana (1980) , mapeia o progresso e con t r ibu i pat a ele. Que 
glor iosa Nova Er a est á r ompen do: u m n ovo m u n d o h abit a-
do por seres sau dáveis, bem-ajustados, per feit amen te felizes, 
emabsoluto êxt ase — livr e de d oen ças, guerras, fome, polu i-
ção , mas apenas alegr ia t ran scen den te. O que mais poder ia 
a lgu ém desejar? 
Cr í t icos dessa eufor ia u t óp ica qu er iam apenas u m a coisa: 
alguma garan t ia objet iva e r azoável de que t al visão é mais 
do que u m son h o m ovido a óp io . P or ém , duran t e os mo-
men tos em que o eu est á imer so n a cer teza subjet iva, n ão h á 
necessidade de r azões, n en h u m a objet ividade é requer ida. 
W ilb e r descreve essa autocer teza quan to à igualdade com 
in do o que existe: 
• 225 • 
O u n i v e r so ao l ad o 
Quando você pisa totalmente fora da escada, está em que-
da livre no vazio. Den t ro e fora, sujeito e objeto perdem 
todo o significado final. Você não está mais "aqui", olhan-
do para o mundo "lá fora". Você não está olhando para o 
cosmo, mas você é o cosmo. O universo do sabor ún ico 
anuncia a si mesmo, brilhante e óbvio, radiante e claro, 
sem nada externo, nada in terno, um gesto incessante de 
gtande perfeição, espontaneamente realizada. O própr io 
divino cin t ila em toda a visão, em todo o som, e você sim-
plesmente é isso. O sol dentro de seu coração. Tempo e 
espaço dan çam como imagens bruxuleantes sobre a face 
do radiante vazio, e todo o universo perde seu peso. Você é 
capaz de engolir a Via-Láctea de uma só vez, e colocar Gaia 
na palma de sua mão, aben çoan do-a, e isso é a coisa mais 
comum no mundo, e assim, você nada pensa disso.48 
E m vir t u de de sua absoluta subjet ividade, a posição do 
eu-sou-Deus ou eu-sou-o-cosmo perman ece além de qual-
quer cr ít ica ext er n a. 4 9 É fácil o suficien te para a lgu ém de fora 
estar con ven cido - e com base em sól ida evidên cia - de que 
MacLain e n ão é o in fin it o E U S O U O Q U E S O U e que 
W i lb e r n ão en goliu o un iver so. Todavia, como algu ém en t ta 
n a p r óp r ia con sciên cia- deu s? 
Aldou s H u xl e y sugere que tal r u pt u r a é possível. Pouco 
antes de sua mor t e, ele teve d ú vid as sobre a validade da nova 
con sciên cia. Lau r a , sua esposa, gravou em fita cassete muit os 
de seus derradeiros pen samen tos. Segue a t r an scr ição de sua 
con vet sa, dois dias antes de seu falecimen to: 
Isso [uma descoberta interior que ele acabara de fazer] mos-
tra [...] a natureza quase ilimitada da ambição do ego. Eu 
• 226 
Um universo separado 
sonhei, creio que duas noites atrás [...] que, de algum modo, 
eu estava em uma posição para fazer um absoluto [...] presente 
cósmico para o mundo. [...] Algum imenso ato de benevolên-
cia estava para ser realizado, no qual eu desempenharia o 
papel de estrela. [...] De algum modo, isso era absolutamen-
te amedrontador, mostrando que quando alguém pensa que 
superou a si mesmo, isso ainda não aconteceu.''0 
Ai n d a assim, H u xl e y n ão aban don ou a sua busca. Ele 
m or r eu duran te u m a "viagem", pois sua esposa, atendendo 
a u m pedido dele, admin ist r ou- lh e L S D , em con formidade 
com o Livro tibetano dos mortos, e falou ao seu espír it o para 
descansar em paz "do out ro lado". 
O perigo do autoengano - t eíst as, bem como n at ura-
listas acrescen tar iam a certeza do autoengan o — é a grande 
fraqueza da n ova con sciên cia nesse pon to. N e n h u m teíst a 
ou n aturalist a, de modo algum , pode negar a "exper iên cia" 
de perceber-se como deus, u m espír it o, u m d e m ó n i o ou 
u m a barata. Mu it as pessoas forn ecem tais relatos. P or ém , 
en quan to somen te o eu é r ei, assim t a m b é m a im agin ação 
é pressuposta como realidade; en quan to o ver é ser, a fan -
tasia e a visão do ser per man ecem guardados em segu r an ça 
em seu un iver so pr ivado — h á somen te u m . En qu an t o o eu 
gostar do que im agin a e est iver verdadeiramen te no con t role 
do que imagin a, out ros "do lado de fora" n ão t êm nada a 
oferecer. 
O pr oblema é que algumas vezes o eu n ão é o rei, mas 
escravo. Essa é u m a qu est ão que abordaremos na p r oposição 
S, mais adian te. 
227 • 
O u n i v e r so ao l ad o 
2. O cosmo, embora unificado no eu, é manifesto em duas 
dimensões mais: o universo visível, que é acessível por 
meio da consciência comum, e o universo invisível (ou 
mente expandida), acessível por estados alterados de 
consciência. 
En t ão , n o quadro básico do cosmo, o eu (n o cen t ro) est á, 
pr imeir amen t e, cir cun dado pelo un iver so visível ao qual ele 
possui acesso direto at r avés dos cin co sen t idos, obedecen-
do às "leis da n atureza", descobertas pela ciên cia n at u r al. 
Segun do, pelo un iver so in visível ao qual t em acesso por 
in t e r m éd io de "por tas da per cepção", tais com o, drogas, me-
d i t ação, t ranse, biofeedback, acu pu n t u r a, d an ça r it ualíst ica, 
certos t ipos de m ú sica e assim por dian t e. 
T a l esquema m et afísico levou H u xl e y a descrever cada 
grupo h u m an o com o "u m a sociedade de un iver sos- ilh a".5 1 
Cad a eu é u m un iver so flutuando em u m m ar de un iversos, 
mas pelo fato de cada un iver so- ilh a ser u m pouco como os 
demais, a co m u n icação en t re eles pode acontecer . Al é m do 
mais, porque cada un iver so é em sua essên cia (isto é, seu 
eu) o cen t ro de todos os un iversos, u m a gen u ín a compreen -
são é mais do que m er a possibilidade. Men cion an do C . D . 
Br oad , ele mesmo fun damen tado em Bér gson , H u xle y 
escreveu: "A fu n ção do cér ebr o, do sistema nervoso e dos 
ór gãos dos sen t idos é n a m aior par te e l im in at ór ia, e n ão pro-
du t iva. Cad a pessoa é, a cada m om en t o, capaz de relembrar 
tudo o que já lh e acon teceu e de perceber t udo que está 
acon tecen do em todos os lugares do u n iver so". 5 2 N o en tan to, 
por essa per cepção poder nos sobrepujar e parecer caót ica, o 
cér ebr o age como u m a "válvu la r edutora", filt r an do o que na-
quele m om en t o n ão é ú t il. Co m o H u xl e y afir m a: "D e acordo 
• 228 • 
Um universo separado 
com tal t eor ia, cada u m de n ós é u m a men te expan dida, em 
pot en cial". 5 3 E m out ras palavras, cada eu é pot en cialmen te o 
un iver so; cada A t m a é poten cialmen te Br ah m a. O que passa 
pela válvu la r edutora, d iz H u xley , é "u m ín fim o gotejar do 
t ipo de con sciên cia que nos aju d ar á a perman ecer vivos n a 
su per fície deste plan eta par t icu lar ". 5 4 
A cosm ovisão da Nova E r a é O cid en t al em grande escala, 
p o r é m , jamais em sua in sist ên cia de que o un iver so visível, 
o m u n d o externo co m u m , realmen te existe. N ã o é i lu são e, 
além do mais, é u m un iver so orden ado. El e obedece às leis 
da realidade, e essas leis podem ser con h ecidas, comun icadas 
e u t ilizadas. A m aior ia dos propon en tes da n ova con sciên -
cia possui u m saudável respeito pela ciên cia. Ke n W ilb e r , 
Aldous H u xley , Lau r en ce LeSh an e W i l l i a m I r w i n T h o m p -
son são os melh ores exemplos.5 5 E m sum a, o un iver so visível 
est á sujeito à un ifor midade de causa e efeito, p o r é m , o sis-
t ema est á aberto para ser reordenado pelo eu (em especial 
quan do percebe sua un idade com o u m ) , que, por fim, o 
con t rola, e por seres da men t e expan dida, os quais o eu pode 
recrutar como agentes de m u d a n ç a . 
A men te expan dida é u m t ipo de un iver so ao lado, a l -
t ern adamen te ch amado de "con sciên cia expan dida" ou 
"con sciên cia alt ern at iva" (M acLain e ) , "u m a realidade se-
parada" (Cast an eda), "realidade clar ividen t e" (LeSh an ) , 
"out ros e sp aços" ( Li l l y ) , "supermen t e" (Rosen feld), "vazio/ 
face or igin al" (W i lb e r ) ou "men te u n iver sal" ( Kl i m o ) . 5 6 Essa 
men te expan dida n ão obedece às leis do un iver so visível. 
A con sciên cia do eu pode viajar cen tenas de qu i lóm et r os 
pela super fície da ter ra e fazê- lo n u m piscar de olh os. Tem p o 
• 229• 
O u n i v e r so ao l ad o 
e espaço são elást icos; o un iver so pode vir ar do avesso, o 
t empo pode viajar para t r ás. 5 7 Poder e energia ext r aor d in á-
r ios podem surgir at r avés de u m a pessoa e ser t r an smit idos 
a out ras, e se formos in clu i r os prat ican tes de magia negta, 
curas físicas podem ser realizadas, os in imigos podem ser 
afligidos física, m en t al e emocion almen t e, levados à loucu r a 
ou at ingidos mor t almen t e . 
M acLain e descreve a men te expan dida dessa man eir a: 
"Est ava apren den do a recon h ecer a d i m e n são in visível em 
que n ão h á medidas possíveis. D e fato, essa é a d im e n são em 
que n ão h á alt u r a, largura, com pr im en t o, massa e, a bem 
da verdade, n ão h á t empo. Essa é a d im e n são do e sp í r i t o". 5 8 
A men te expan dida, en t retan to, n ão é totalmen te caót ica, 
mas apenas parece ser assim para o eu , que opera com o se 
as leis do un iver so invisível fossem as mesmas do un iver so 
visível. P or ém , a men te expan dida possui as suas pr ópr ias re-
gras, sua p r ópr ia or dem, e pode levar u m lon go t empo para 
u m a pessoa aprender que or dem é essa.5 9 
Descobr ir que o p r óp r io eu , n a lin guagem de Li l ly , ela-
bor ou as regras que govern am o jogo da realidade pode 
demorar algum t em po. 6 0 P or ém , quan do as pessoas desco-
br em isso, elas podem con t in uar a gerar qualquer or dem de 
realidade e qualquer un iver so que desejarem, o céu n ão é o 
l im it e : "N a pr ovín cia da men te, o que se acredita ser ver-
dadeiro é verdadeiro ou assim se t or n a, den t ro de limit es 
a serem en con t rados viven cial e exper imen t almen t e. Tais 
limit es são ct en ças adicion ais a serem t ran scen didas. N a 
pr ovín cia da men te, n ão h á l im i t es". 6 1 A obra de Joh n Li l ly , 
Center of Cyclone [Centro do ciclone], é sua autobiografia do 
230 • 
Um universo separado 
espaço in t er ior . Lê- la é seguir em jor n ada at r avés da geogra-
fia da men te de Li l ly , quan do ele abre in ú m er as "portas de 
p e r cep ção" e move-se de espaço em espaço , de un iverso em 
un iver so. 
O s que jamais visit ar am esses espaços devem con fiar nos 
relatos dos que já r ealizaram tais visit as. Li l l y regist ra u m 
grande n ú m e r o delas, e seu livr o t or n a a leit u r a fascinan te. 
Mu it os out ros, igualmen te, t êm visit ado tais espaços e seus 
r elat ór ios são similares n o t ipo, embora, r aramen te quan to 
a detalhes específicos. Abor dar ei os "sen t imen tos" associados 
com a per cepção da men t e expan dida n a p r op osição 3, a 
seguir. Aq u i , o aspecto m et afísico é o foco p r im ár io . Que 
"coisas" aparecem n á men te expandida? E que car act er íst icas 
essas "coisas" apresen tam? O r elatór io de H u xl e y con st it u i 
u m clássico porque seu t est emun h o estabeleceu o pad r ão 
para mu it os out ros. A pr im eir a car act et íst ica é sua cor e l u -
min osidade: 
Tu d o o que é visto por aqueles que visi t am as men tes an t í-
podas é br ilh an t emen t e i lu m in ad o, e o br i lh o parece sair de 
seu in t er ior . Todas as cores são in ten sificadas a u m grau m u i -
to a lém de tudo o que é visto n o estado n ot m al , sendo, ao 
m esm o t empo, a capacidade da men te de recon h ecer t én ues 
d ist in ções de ton alidade e mat iz n otavelmen te elevada/ ' 2 
Qu er as imagens n a men t e expan dida sejam de objetos 
comun s como cadeiras, mesas, h omen s e mulh eres, quer se-
jam de seres especiais, como fan tasmas, deuses ou espír it os, a 
lumin osidade é quase que u m a car act er íst ica un iver sal. Li l ly 
afir m ou : " V i elemen tos cin t ilan t es no ar como bolhas de 
ch ampan h e. A sujeira n o ch ão se assemelhava à poeira de 
231 
O u n i v e r so ao l ad o 
ou r o". 6 3 E m on ze de dezesseis relatos dist in tos men cion ados 
por Ferguson , especial m e n ção é con st i t u íd a de cores: "lu z 
dourada", "luzes br ilh an t es", "in t en sa lu z br an ca", "cores u l -
t r amist er iosas".6 4 Cast an eda descreve ter visto u m h om em 
cu ja cabeça era pu r a lu z, e n o cu lm in an t e even to em Viagem 
a Ixtlan, ele dialoga com u m lu m in oso coiote e vê as "l in h as 
do m u n d o". 6 5 
Essas exper iên cias de lumin osidade e cor emprest am for-
ça ao sen t imen to de que o que a pessoa est á percebendo é 
mais real que qualquer ou t r a pe r cepção n o un iver so visível. 
Co m o H u xl e y assim expressa: 
Eu estava vendo o que Adão viu na man h ã de sua criação 
— o milagre, momento a momento, da existência nua [...] 
htigkeit — não era essa a palavra que Meister Eckh ar t 
apteciava usat? "Existencialidade" [...] uma transiência 
que ainda não era eterna, um perecer perpétuo que era, 
ao mesmo tempo, puro ser, uma concen tração de minutos 
particulates nos quais, por algum impronunciável, porém, 
ainda assim, autoevidente paradoxo, deveria ser vista a for-
ça divina de toda a existência.6 6 
Par a H u xley , a men te expan dida n ão con sist ia t an to em 
u m a realidade separada quan to à realidade com u m , vist a 
com o ela realmen te é. Con t u d o , essa n ova per cepção é t ão 
dist in t a que d á a im pr essão de ser algo in t eir amen te n ovo, 
parecendo u m a coisa separada.6 7 
A segunda car act er íst ica d ist in t iva da men te expan dida 
é que seres especiais parecem h abit ar esse r ein o. Alé m de 
ver o que ela apreende para si m esm a e para os out ros em 
suas vidas passadas, M acLain e vê o seu eu super ior : u m a 
• 232 • 
O universo ao lado 
ouro".6 3 E m onze de dezesseis relatos distintos mencionados 
por Ferguson, especial menção é constituída de cores: "luz 
dourada", "luzes brilhantes", "intensa luz branca", "cores ul-
tramisteriosas".64 Castaneda descreve ter visto um homem 
cuja cabeça era pura luz, e no culminante evento em Viagem 
a Ixtlan, ele dialoga com um luminoso coiote e vê as "linhas 
do mundo".6 5 
Essas experiências de luminosidade e cor emprestam for-
ça ao sentimento de que o que a pessoa está percebendo é 
mais real que qualquer outra percepção no universo visível. 
Como Huxley assim expressa: 
Eu estava vendo o que Adão viu na manhã de sua criação 
— o milagre, momento a momento, da existência nua [...] 
Istigkeit — não era essa a palavra que Meister Eckhart 
apreciava usar? "Existencialidade" [...] uma transiência 
que ainda não era ererna, um perecer perpéruo que era, 
ao mesmo tempo, puro ser, uma concentração de minutos 
particulares nos quais, por algum impronunciável, porém, 
ainda assim, autoevidente paradoxo, deveria ser vista a for-
ça divina de toda a existência.6 6 
Para Huxley, a mente expandida não consistia tanto em 
uma realidade separada quanto à realidade comum, vista 
como ela realmente é. Contudo, essa nova percepção é tão 
distinta que dá a impressão de ser algo inteiramente novo, 
parecendo uma coisa separada.67 
A segunda característica distintiva da mente expandida 
é que seres especiais parecem habitar esse reino. Além de 
ver o que ela apreende para si mesma e para os outros em 
suas vidas passadas, MacLaine vê o seu eu superior: uma 
232 
Um universo separado 
pessoa "na forma de um ser humano muito alto, poderosa-
mente confiante e quase andrógino" . 6 8 Ele se torna seu guia 
e intérprete da experiência que ela vivência. Castaneda en-
contra "aliados", "auxiliadores", "guardiões" e "entidades da 
noite".6 9 Lilly, com frequência, mantém encontros com dois 
"guardiões" que o instruem sobre como obter o máximo de 
sua vida. 7 0 Semelhantemente, relato após relato, seres pesso-
ais - ou forças com uma dimensão pessoal — continuam a 
surgir, chame-os como quiser, demónios, espíritos ou anjos. 
Além do mais, alguns adeptos da nova consciência relatam 
experiências de serem transformados em pássaro ou algum 
animal, bem como de seremcapazes de voar ou viajar em 
grande velocidade, mesmo em viagens interplanetárias. 
De fato, mente expandida é um lugar muito estranho. 
Será que seus habitantes realmente existem? São eles in-
venções da imaginação do eu, projeções de seus medos e 
esperanças do subconsciente? Alguém realmente se trans-
lorma em pássaro ou é capaz de voar? Na cosmovisão da 
nova consciência tais questões não são importantes. Ainda 
assim, tanto para teístas quanto para naturalistas elas são as 
questões óbvias. No entanto, lidarei com elas mais tarde, na 
proposição 5. 
3. A essência da experiência da Nova Era é a consciência 
cósmica, na qual categorias comuns de espaço, tempo e 
moralidade tendem a desaparecer. 
Essa proposição é o outro lado epistemológico da moeda 
metafísica discutida na proposição anterior. Em certo sentido, 
.i terceira proposição não nos faz progredir muito em nossa 
• 233 • 
O universo ao lado 
compreensão da Nova Era, porém, ela acrescenta uma pro-
fundidade necessária. 
Subjacente à unidade que as proposições 2 e 3 comparti-
lham está a pressuposição discutida na proposição 1: que ver 
(ou perceber) é ser; qualquer coisa vista, percebida, concebi-
da, imaginada, crida pelo eu, existe. Sua existência é devida 
ao fato de que o eu está no comando de tudo o que é: "Creio, 
logo existo". Filosoficamente, a nova consciência oferece 
uma resposta simples e radical ao problema de discernir en-
tre aparência e realidade. Claramente, ela afirma que não há 
distinção. Aparência é realidade. Não existe i lusão. 7 1 
Claro que a percepção assume duas formas, uma para o 
universo visível e outra para o invisível. A primeira é de-
nominada de consciência comum, consciência desperta ou 
"pensamento reto". Essa é a maneira pela qual as pessoas co-
muns têm comumente visto a realidade prosaica. O espaço 
é visto em três dimensões. Dois corpos não podem ocupar o 
mesmo lugar no espaço ao mesmo tempo. O tempo é linear: 
o ontem é passado; aqui estamos agora; o amanhã está a 
caminho. Dois eventos incompatíveis não podem ocorrer a 
uma mesma pessoa ao mesmo tempo; embora possa sentar 
e pensar ao mesmo tempo, não me é possível sentar e per-
manecer de pé, ao mesmo tempo. Na consciência comum, 
algumas ações parecem boas, outras menos positivas, ainda 
outras, más, culminando com aquelas francamente malig 
nas. E , claro, nós assumimos que elas realmente são como as 
percebemos. Tudo isso nos soa deveras familiar. 
O segundo estado de consciência não nos é tão fami 
liar assim. De fato, a maioria de nós, do Ocidente, jamais 
234 • 
Um universo separado 
o imaginou. Para complicar ainda mais a situação, esse se-
gundo estado de consciência é, na verdade, composto de 
inúmeros e diferentes estados de consciência; uns dizem que 
são três, outros, seis, e ainda outros, que são oito.7 2 Porém, 
antes de abordarmos qualquer uma dessas várias subdivisões, 
deveríamos compreender suas características gerais. Algumas 
delas são sugeridas pelos vários cognomes dados à consciên-
cia cósmica. Eles somam uma legião: "êxtase eterno" (R. C . 
Zaehner), "consciência superior" (Weil), "experiência de pico" 
(Maslow), "nirvana" (budistas), "satori" (zen japonês), "cons-
ciência cósmica" (Wilber), "estados alterados de consciência" 
ou E A C (Masters e Houston), "visão cósmica" (Keen). 
Dois desses rótulos parecem mais adequados que os 
demais, sendo um por razões teóricas, e outro por razões 
históticas. Teoricamente, a expressão, estados alterados de 
consciência, carrega em seu bojo a compreensão mais uni-
versalmente aceita do fenómeno. Os estados de consciência 
envolvidos são, de fato, incomuns. O outro rótulo adequa-
do, consciência cósmica, com frequência, é utilizado porque é 
um dos mais antigos na literatura moderna sobre o assunto. 
Ele foi introduzido em 1901, pelo psiquiatra canadense, R. 
M. Bucke, e se tornou popular por sua inclusão no estudo 
clássico sobre misticismo de William James: 
A característica primária da consciência cósmica é uma 
consciência do cosmo, ou seja, da vida e da ordem do uni-
verso. Em conjunto com essa consciência do cosmo, ocorre 
uma iluminação intelectual que, por si só, transportaria o 
indivíduo para um novo plano de existência — o tornaria 
um membro de uma nova espécie. [...] Com isso surge o 
235 • 
O universo ao lado 
que pode ser chamado de um sentido de imortalidade, uma 
consciência da vida eterna, não uma convicção de que ele 
deve ter isso, mas a consciência de que ele já a possui.73 
O rótulo consciência cósmica surge trazendo em si uma 
explicação metafísica relativa à experiência, largamente aceita 
entre os proponentes da cosmovisão da nova consciência. A 
questão é essa: quando o eu percebe a si mesmo sendo um 
com o cosmo, torna-se um com ele. A autocompreensão, por-
tanto, é a percepção de que o eu e o cosmo não são apenas 
parte de uma peça, mas a mesma peça. E m outras palavras, a 
consciência cósmica é experimentar Atma como Brahma. 
Um ponto central na consciência cósmica é a experiência 
unitária: primeiro, a experiência de perceber a totalidade do 
cosmo; segundo, a experiência de se tornar um com todo o 
cosmo e, finalmente, a experiência de ir além daquela uni-
dade com o cosmo para reconhecer que o eu é o gerador de 
toda a realidade e que, nesse sentido, tanto é o cosmo como 
o seu criador.74 "Saiba que você é Deus; saiba que você é o 
universo", afirma MacLaine.7 5 
Ainda, outras "coisas" aparecem sob os estados de cons-
ciência cósmica. Mesmo após ler incontáveis relatos de tais 
experiências, o melhor que posso fazer é mencionar a exten-
sa lista de características de Ferguson: 
Perda dos limites do ego e a repentina identificação com 
toda a vida (uma fusão com o universo); luzes, percepção 
alterada de cor; ttemores; sensações elétricas; sensação de 
expandir como uma bolha ou saltar para cima; ausência de 
medo, em particulat, do medo da morte; som estrondo-
so; vento; sentimento de set separado do eu físico; êxtase, 
236 • 
Um universo separado 
consciência aguçada de padrões; uma sensação de liberta-
ção; mistura dos sentidos (sinestesia), como ouvir cores e 
visões produzirem sensações auditivas; um sentimento de 
amplitude; uma crença de alguém haver despertado; de 
que a experiência é a única realidade e que a consciência 
comum nada mais é que uma pobre sombra; bem como 
um senso de transcender o tempo e o espaço.7 6 
Ferguson prossegue mencionando um sem-número de 
interessantes relatos da consciência cósmica, cada um ilus-
trando muitas, senão todas essas características. 
E m um aspecto da proposição 3, entretanto, há desacordo. 
Nem todos os proponentes da nova consciência concordarão 
que a moralidade desaparece. Teoricamente, isso deve ocor-
rer, pois a consciência cósmica implica a unidade de toda a 
realidade, e essa deve ser uma unidade além de distinções 
morais, bem como metafísicas, como demonstrado na aná-
lise do monismo panteísta oriental, no capítulo anterior.77 
MacLaine, por exemplo, argumenta vigorosamente em 
lavor do desaparecimento da distinção entre o bem e o mal, 
quando ela se vê em acaloradas discussões com Vassy, um de 
seus amantes, que mantém uma ligação emocional com a 
Iortodoxia russa.78 Bucke, Thompson e Wilber se oporiam a isso, porém MacLaine, Lil ly e Huxley concordariam.7 9 Não obstante, como Sidarta, de Herman Hesse, e todas as pessoas que permanecem, de forma perceptível, pessoas, MacLaine, Huxley e Lilly falam como se fosse melhor ser iluminado — ou seja, consciente cosmicamente — do que não iluminado, melhor amar do que odiar e é melhor ajudar a promover a Nova Era do que simplesmente assistir a antiga colapsar. I •237 * 
O universo ao lado 
Finalmente, devemos observar que nem todo o estado 
alterado de consciência é eufórico. Ingénuos proponentes da 
cosmovisão da nova consciência,

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