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1 O DIREITO COMO PARTE DA ÉTICA Fábio Konder Comparato Bom dia a todos! A pergunta inicialmente formulada é esta: O que é a Filosofia do Direito? Eu vou formulá-la de forma diferente: Por que a Filosofia do Direito no curso jurídico? E minha resposta é dupla. Ela tem ligação com dois defeitos ou duas carências graves de todos os cursos jurídicos. Em primeiro lugar, a apresentação atomística do fenômeno jurídico. Em segundo lugar, a prevalência da técnica sobre a ética. Quanto ao primeiro ponto, o que a Filosofia do Direito traz aos estudantes é uma visão panorâmica do fenômeno jurídico no contexto social. O que se procura ver não é apenas o Direito nacional, mas também o Direito internacional. O que se procura examinar não é um ramo do Direito separado dos outros, mas todos os ramos do Direito em conjunto. Freqüentemente, os alunos me dizem: "É interessante como pela primeira vez percebemos a ligação entre direito penal, direito civil, direito nacional e direito internacional". A verdade é que a visão filosófica nos permite visualizar a oposição permanente entre direito ideal e direito vigente. Por mais que se faça, não é possível esconder ou sufocar a necessidade de uma crítica permanente do direito positivo. Nós só avançamos na medida em que fazemos essa auto-análise e também uma análise da realidade externa que nos cerca. Freqüentemente, o que se vê nos cursos jurídicos é uma consideração meramente factual da realidade como se o Direito fosse algo ligado à própria natureza, um dado que não precisa ter explicação e que de qualquer maneira não precisa ser justificado. A visão filosófica nos permite visualizar a oposição permanente entre direito ideal e direito vigente. Além disso, no âmbito dessa visão panorâmica do fenômeno jurídico, insere-se o reconhecimento de sua natureza histórica. Todas as vezes que nós nos debruçamos sobre um problema mais complicado, sentimos que há uma certa consideração relativa Danillo Realce Danillo Realce de valor naquela instituição que está sendo apresentada, e percebemos também que há uma evolução, que pode ser dar no bom ou no mau sentido, mas de qualquer maneira há sempre uma resposta a problemas surgidos num determinado momento histórico. De que maneira compreender o princípio de separação de poderes que surgiu como consideração puramente filosófica em Aristóteles? De que maneira ele voltou a surgir, fomentando o ardor revolucionário no século XVIII, sem a compreensão de uma evolução social que percorreu toda a Idade Média européia? É justamente esse caráter essencialmente histórico do Direito que é importante para a compreensão dos direitos humanos. A vida social neste país desenvolveu-se, durante quatro séculos, fundada na escravidão, e isso sempre nos pareceu algo natural até o final do século XIX. É sabido que as grandes corporações eclesiásticas, as grandes ordens religiosas eram proprietárias de fazendas e exploravam a mão-de-obra escrava, sem que isso suscitasse nenhum problema moral. Por que razão, num determinado momento, houve uma oposição crescente à exploração da mão-de-obra escrava? Por que razão durante milênios a mulher foi considerada inferior ao homem? Como se deu essa revolução extraordinária, talvez a mais importante de toda História, que foi a luta pela igualdade de gênero? Será possível considerar o conjunto dos direitos humanos como alguma coisa absolutamente racional, eterna e imutável? Ou devemos reconhecer que, a par da evolução biológica, há uma inegável evolução de ordem ética? É aí que eu entro na segunda grande deficiência dos cursos jurídicos, que é a visão excessivamente técnica, ou exclusivamente técnica do Direito. Nesses cinco anos de curso aqui na Faculdade, vocês ouvirão muito pouco sobre ética. É claro que o Direito é uma técnica, uma das mais delicadas , das mais complexas que o homem já criou. É evidente que não se pode trafegar no campo do Direito sem uma boa competência técnica, mas a técnica é mero instrumento; ela é neutra quanto aos valores, ela pode servir à vida, como pode servir à morte. É impossível tentar reduzir o Direito a uma mera técnica, pois dessa forma ele fica completamente desbussolado. Quando penso nos meus tempos de estudante, lembro-me como os professores procuravam sempre fugir desse debate ético, tal como os juizes, que, ao julgarem contra a sua consciência, refugiam-se no fato de que são meros servidores da lei. O juiz diz que não é legislador e, portanto, decide injustamente e tem consciência dessa injustiça. Danillo Realce Danillo Realce O Direito, quando reduzido a uma simples técnica, fica desbussolado. Nessa consideração do Direito como parte integrante da ética, o que o curso de Filosofia pode trazer de importante é a análise das fontes do Direito. O Direito tem sua fonte exclusivamente no poder, ou ele tem apoio necessariamente na consciência social, na consciência coletiva? Essas duas fontes podem produzir Direitos contraditórios? Nesse caso, qual delas deve prevalecer? Ainda aí, o estudo dos direitos humanos é importante, porque ele nos traz uma resposta a essas questões. Todos esses problemas que eu citei — a escravidão, a inferioridade da mulher, a exploração do trabalho humano, mesmo fora da escravidão o aviltamento da pessoa humana no Direito Penal antigo e moderno — tudo isso representou, na evolução histórica, um choque, uma contraposição entre aquilo que estava na consciência social e aquilo que era imposto pelo poder. Ainda dentro desse campo de considerações, o curso de Filosofia do Direito nos obriga a refletir sobre a relação constante entre Moral e Direito, tão simplesmente resolvida pelo positivismo jurídico. É inegável a influência incessante da Moral sobre o Direito. Em um determinado trecho do Evangelho segundo Lucas, conta-se a parábola do bom samaritano. Muito conhecida, eu não vou repeti-la. Eu gostaria apenas de frisar o fato de que, nessa parábola, o que se apresenta é uma oposição entre duas etnias, entre duas culturas, entre duas religiões, e uma oposição radical na época do começo da chamada Era Cristã. A rivalidade entre judeus e samaritanos era muito mais virulenta do que a oposição atual entre árabes e judeus na Palestina, e o que se apresentou foi isto — a necessidade de se prestar socorro. Muitos e muitos séculos depois, em todos os códigos penais, foi inscrita a figura da omissão de socorro. Agora é um delito. No Código Penal brasileiro, ela está no art. 135. Naquela época, a atitude do samaritano era uma manifestação de amor heróico, uma atitude considerada absolutamente utópica, irrealista, senão revolucionária. Hoje é um delito. Está nos códigos penais. É justamente aí que se põe o grande problema que é freqüentemente omitido nos cursos jurídicos: a contraposição entre justiça e realismo. Todos nós, que somos vitimados por essa decadência própria da idade, tendemos, como adultos e como professores, mais para o lado do realismo, com o sacrifício da justiça. Freqüentemente, nós sentimos entre os alunos uma reação quase que de desprezo; outras vezes, um certo cinismo latente, como se toda essa conversa sobre justiça fosse algo meramente literário, sem nenhuma aplicação na vida prática, onde o que importa é ganhar dinheiro. Esse envelhecimento precoce da juventude precisa ser combatido a ferro e fogo. Danillo Realce Com base nessas idéias, eu procurei dividir o curso em duas partes. A primeira é a antropologia filosófica aplicada ao Direito. Impressionante como até hoje, que eu saiba, ainda não foi instituído na universidade o curso de antropologia filosófica; e que eu saiba nunca, numa Faculdade de Direito, esse assunto foi inscrito noprograma. E, no entanto, pretende-se que o Direito seja uma ciência humana. Uma ciência humana sem o estudo em profundidade do ser humano? A todo momento, na vida profissional, nós lidamos com a extrema complexidade do ser humano. De que maneira podemos tratar um crime passional sem compreender a força dos sentimentos, das paixões? Spinoza, em vários trechos de sua obra, criticou a idéia comum de que as paixões e os sentimentos são vícios. Ora, se as paixões e os sentimentos são considerados vícios, o homem é um ser vicioso por natureza. Mas não seria exatamente o contrário? As paixões e os sentimentos fazem parte da própria natureza, são normais, e é o desconhecimento dessa normalidade que torna impossível muitas vezes a solução de problemas humanos. A partir de que momento há uma situação em que percebemos que as exigências de ordem moral já se tornaram exigências jurídicas? A segunda parte é a teoria fundamental dos direitos humanos. O professor Celso Lafer mostrou, na sua tese de concurso, como essa consideração dos direitos humanos é fundamental para a compreensão do Direito e dos rumos da civilização atual. E é nessa teoria fundamental dos direitos humanos que se põe o problema do fundamento do Direito. Qual é o modelo, qual é o critério que pode ser apresentado para fundar a validade do Direito, a vigência do Direito? A partir de que momento há uma situação em que percebemos que as exigências de ordem moral já se tornaram exigências jurídicas? É exatamente nesse ponto que quero terminar, dizendo que o verdadeiro curso de Direito não é uma simples preparação ao exercício profissional. É uma prepara ao exercício para a vida. Nós podemos ser reprovados na faculdade, mas jamais podemos nos resignar a sermos reprovados na vida. O verdadeiro curso de Direito não é uma simples preparação ao exercício profissional. É uma preparação para a vida. 2 DUAS PALAVRAS Goffredo da Silva Telles Junior Meu eminente e prezado amigo, Professor Eduardo Binar. Oportuno, muito oportuno, o ENCONTRO de que o caro amigo me deu notícia, para uma meditação dos mestres do Departamento de Filosofia sobre as questões: Que é a Filosofia do Direito? Qual é o papel da Filosofia do Direito? Devo confessar-lhe que me senti honrado e agradecido com a amabilíssima solicitação de meu pronunciamento sobre esses temas. Não podendo estar presente ao ENCONTRO, permita-me, prezado mestre, que lhe envie, por meio desta carta, duas palavras enxutas, para exprimir com simplicidade o que penso acerca de tais questões. Antes de mais nada, quero dizer-lhe que, para mim, a Filosofia do Direito é: A ciência da disciplina da convivência humana pelas primeiras causas. A Filosofia do Direito é: A ciência da disciplina da convivência humana pelas primeiras causas. Em verdade, todas as diversas matérias, que são estudadas nos cinco anos de um curso de Faculdade de Direito, versam, essencialmente, uma só disciplina: a Disciplina da Convivência Humana. E uma única matéria do curso cuida da convivência humana pelas primeiras causas. Tal matéria é, precisamente, a que constitui a Filosofia do Direito. Pelas primeiras causas! Ah! Sinto que isso me faz remontar a clássicos e perenes ensinamentos que — veja só! — nos vêm da eterna Escola de Athenas; avoengueiros princípios, que atravessaram os séculos e chegaram até nós com todo o vigor das verdades lógicas, assentadas para sempre. Que é uma causa? Quais são as espécies de causas? Perdoe-me, querido amigo, por estar aqui a evocar questões tão elementares e tão resolvidas. Devo, porém, referir-me a elas porque elas são prelúdio inevitável de todo conhecimento científico. Agora, neste momento, o que preciso relembrar é que certas causas são suscetíveis de serem reveladas pela experiência, enquanto outras não se encontram no plano da sensibilidade, só podendo ser descobertas pela inteligência. As primeiras se prendem diretamente — como todos sabens — às causas do conhecimento sensível: são causas próximas. As outras são causas remotas e se chamam causas primeiras. Certas causas são suscetíveis de serem reveladas pela experiência, enquanto outras não se encontram no plano da sensibilidade, só podendo ser descobertas pela inteligência. Pois bem, as ciências das causas experimentais (ou causas segundas) são as chamadas ciências da natureza; a ciência das causas intelectuais — ciência das primeiras causas — é a Filosofia. Diga-se, de passagem, que, modernamente, o uso tende a reservar o nome ciência para designar as ciências da natureza. Cumpre reafirmar, porém, que a Filosofia, como sistema de conhecimentos demonstrados, é ciência; é, mesmo, a ciência das ciências, por ser a ciência das causas de cujo conhecimento o conhecimento das outras causas depende. É evidente que o objeto da Filosofia não deve ser considerado um objeto particular dela. Por quê? Porque todos os objetos particulares das outras ciências são objeto da Filosofia. Só a Filosofia cuida de todo o real. A diferença entre a ciência da natureza e a Filosofia não é, propriamente, uma diferença de domínios, mas de pontos de vista. O que é da experiência sensível é também da Filosofia, porque a Filosofia depende da experiência sensível, como a idéia depende das sensações. Dos sentidos, como condição do conhecimento, a Filosofia é necessariamente tributária. Ela se alimenta do que lhe oferecem as ciências da natureza e o senso comum. Mas o que lhe é próprio é o seu modo intelectual de ver o que lhe é dado, ou seja, a sua perspectiva sobre as cousas. Define-se a Filosofia: ciência de todas as cousas pelas suas primeiras causas. Assim a definiu Aristóteles, em sua Metafísica (A, 1-98bb, 27-29). Eis por que se costuma dizer que a Filosofia é uma Weltanschauung, uma concepção do Universo, uma ciência da Unidade do Mundo, feito da Diversidade das cousas. Bem sei que toda essa matéria pode parecer, a olhos desprevenidos, algo distante das preocupações de muitos especialistas do Direito. Quero, porém, repetir, sem rebuços, que toda essa matéria é um precioso lastro daquilo que chamamos sabedoria, e que, embora tão refugado e achincalhado por uma certa mentalidade reinante, constitui o fundamento da cultura — da verdadeira e alta cultura, de que o jurista autêntico necessita, muitas vezes, para o correto desempenho de sua missão. Notemos que o jurista autêntico está sempre preocupado com Os problemas da ordem. Ora, o pensamento da ordem se inclui no pensamento da cultura. Sim, é exato, a palavra cultura, em seu sentido amplo, significa ordem, mas ordem mental, ordem das idéias. Significa ordenação das idéias, nas operações da inteligência. E significa, também, disposição humana das 'causas, em razão da ordem das idéias. Assim, tanto é cultura o conjunto ordenado de concepções, num conhecimento da ciência, como é cultura o sistema de valores que caracterizam a mentalidade e os códigos de uma certa civilização ou de um certo grupo humano. E é cultura, também — todos sabem —, a cultura dos campos, que é a ordem imposta pelo agricultor ao tamanho de uma gleba. O que imediatamente observamos é que toda cultura é um aperfeiçoamento. E todo aperfeiçoamento resulta de uma ordenação. Cultivar o espírito é aperfeiçoá-lo com uma ordenação de idéias. Que é a cultura dos campos? É uma certa ordenação dada às terras para obter safras melhores. As ordens das idéias e, também, as próprias cousas ordenadas pelo ser humano se chamam objetos de cultura. Sabemos que há um mundo que costuma ser chamado Mundo da Cultura. Sabemos que o chamado Mundo da Cultura é o mundodos intelectuais e de suas produções. E O mundo dos artistas (escritores, músicos, pintores, escultores...), dos cientistas, dos pesquisadores, dos professores. É o mundo dos filósofos. É, enfim, o mundo da intelectualidade: o mundo das obras de arte e de ciência. Em suma, o Mundo da Cultura é o mundo considerado, comumente, como aquele mundo privativo da inteligência, sobreposto ao Mundo Físico, ao chamado mundo da natureza, que é o mundo cuja existência independe da inteligência e da vontade do ser humano. Mas não podemos esquecer que a cultura, às vezes, se apresenta com outra outra conotação, é verdade, como nos casos em que dizemos: "uma pessoa culta". Que cultura é essa, daquela certa pessoa? A pergunta nos faz pensar. Um biólogo famoso, um geólogo famoso, um astrônomo famoso — tais celebridades, ouso indagar, podem receber, adequadamente, o título de "pessoas cultas"? Veja: todos os citados são especialistas. São especialistas renomados. Mas, pergunto, serão cultos? Aqui é que surge a outra conotação de cultura. Quando dizemos que uma pessoa é culta, não estamos dizendo, é claro, que essa pessoa é grande especialista numa determinada matéria. O que estamos dizendo, isto sim, é que essa pessoa tem uma visão global das cousas do mundo. Tem uma visão do Céu e da Terra, e do significado da vida. Tem consciência de que existe uma ordem universal e de que o ser humano se situa, com suas potencialidades e suas limitações, no seio dos seres do Cosmos. A cultura do "homem culto", da "mulher culta", é a concepção do todo, a percepção dos seres em geral: dos seres como participantes da ordem reinante, da ordem das sociedades humanas e da ordem cósmica. É um saber, uma compreensão de natureza especial. Essa cultura é a que se chama sabedoria. É a" sagesse" dos franceses, "wisdom" dos ingleses. Um especialista que for só especialista não é uma pessoa culta, uma pessoa "sage". Um especialista, mesmo o mais notável, o mais célebre, só pode ser tido como pessoa culta se, além de especialista, ele tiver percepção do todo a que pertence o elemento, a parte, em que se especializou. O especialista culto é especialista "sage". Note, meu prezado amigo, não pode ser considerada pessoa culta o bacharel em Direito que se especializou num determinado ramo de nossa atividade profissional, e que nada mais é do que um especialista: um especialista talvez competente e utilíssimo, mas esquecido dos valores visados pelo conjunto da disciplina da convivência na sociedade humana; cego para a árvore multívia da Ciência do Direito; desinteressado dos altos fins visados pela complexa ordem jurídica; e com mente desapegada das questões referentes às fragilidades do ser humano no jogo da vida; desligado, pois, dos perenes ideais da justiça. O bacharel especialista pode ser, sem dúvida, pessoa culta. Mas só é pessoa culta se for especialista "sage". O bacharel especialista pode ser, sem dúvida, pessoa culta. Mas só é pessoa culta se for especialista "sage". Saudemos o bacharel especialista, mas glorifiquemos o especialista culto! Devemos salientar, caro amigo, que a cultura, no sentido de sabedoria, de "wisdom", de "sagesse", não deve ser confundida com erudição. Um erudito pode não ser uma pessoa culta. Erudito é quem possui um número de conhecimentos superior ao que possuem as pessoas em geral. Mas o erudito somente será uma pessoa culta se seus conhecimentos estiverem em ordem. Em ordem? Sim, o homem culto é aquele que pôs ordem em sua mente, ordem em seus conhecimentos. É aquele que sabe os lugares ocupados pelos objetos de seus conhecimentos, dentro do conjunto das coisas. É aquele que conhece o valor das coisas e a relação existente entre elas. Um homem culto não é, necessariamente, um erudito. Um homem é culto não porque é erudito, mas porque seu saber é uma visão do Todo Universal, e porque essa visão é uma percepção íntima da realidade das cousas. Se os conhecimentos de um homem constituem um grande montão de leituras e de sabenças desarticuladas, esse homem pode ser considerado um erudito. Nunca, porém, uma pessoa culta. A erudição, muitas vezes, é o contrário da cultura. Observemos que a pessoa culta não se satisfaz, muitas vezes, com a explicação dos fenômenos. Ela o que quer, sempre que possível, é compreendê-los. Wilhem Dilthei, em seu livro Psicologia e teoria do conhecimento, foi quem primeiro apontou a diferença entre explicar e compreender. A pessoa culta não se satisfaz, muitas vezes, com a explicação dos fenômenos. Ela o que quer, sempre que possível, é compreendê-los. Com que sentido estou aqui a e verbos? Que é explicar? Explicar um objeto de conhecimento é revelar os nexos que o prendem aos objetos de que ele depende diretamente. Com precisão, é revelar suas causas próximas. Quando conhecemos tais causas, podemos dizer: "o objeto está explicado". A explicação permanece no mundo do ser e não cuida do dever ser. Quando explicamos, não dizemos como as coisas devem ser, mas como são. E compreender, que é? Compreender um objeto de conhecimento é saber o que ele vale, e para o que ele vale. É descobrir o que ele é, em confronto com o que ele deve ser. É julgá-lo. Em suma, é entendê-lo. Logo percebemos, em consonância com tais conceitos, que é impossível compreender os objetos do Mundo Físico, do chamado Mundo da Natureza. Por quê? Porque a causa primeira — o "Verbo" do Evangelho de São João — e os fins últimos, em razão dos quais existem, escapam do nosso limitado entendimento. Jamais saberemos o porquê do por que os átomos se compõem de elétrons, de nêutrons e de prótons. Jamais saberemos para que os astros percorrem os Céus. Jamais saberemos, em resumo, para que o Universo foi criado. Inescrutáveis são os desígnios de Deus, e além de nossa compreensão se situa seus atos. Quando explicamos, não dizemos como as coisas devem ser, mas como são. Mas os objetos desse mundo, nós os podemos explicar. Podemos descrevê-los e, muitas vezes, conseguimos descobrir as relações existentes entre eles, e traduzir, em palavras, as leis que ligam os efeitos às respectivas causas. O conhecimento do Mundo Físico se reduz à explicação dele. Ora, simples explicações são absolutamente insuficientes para revelar o Mundo Ético. Para conhecer o Mundo Ético, o Mundo Moral, o mundo do comportamento humano, é preciso compreendê-lo. De fato, para bem conhecer uma ação, um comportamento, uma obra de arte, uma plantação, uma ferramenta, não basta descrever objetivamente as coisas observadas. É preciso saber a intenção com que foram feitas, qual o fim a que se destinam. É preciso saber o seu valor. Numa palavra, é preciso compreendê-las. Se não as compreendermos, bem pouco delas saberemos. Se não soubermos o pensamento e a intenção que as inspiram, o que nelas é principal nos terá escapado. Pois o seu sentido e fim é o que nos revela o que realmente são. Explicações são absolutamente insuficientes para revelar o Mundo Ético. Para conhecer o Mundo Ético, o Mundo Moral, o mundo do comportamento humano, é preciso compreendê-lo. Que é um ato heróico? Um simples movimento físico? Um movimento deste ou daquele homem, desta ou daquela mulher? Saberemos, acaso, que um ato é um ato heróico se apenas soubermos que um homem caiu no mar, que esse homens se chamava José e que os fatos se deram nos rochedos da Enseada do Guarujá? É evidente que, só com essas informações, saberemos apenas o que houve de físico no ato: um certo movimento de um certo homem num certo lugar. Teremos a explicação do ato, mas só isto: o homem estava no mar porque, do alto dos rochedos,caiu n'água. Mas, esse ato, compreendê-lo-emos? Terá sido efeito de um crime, uma tentativa de suicídio? Só saberemos que o ato foi um ato heróico quando soubermos a intenção com que foi praticado; quando soubermos que aquele homem se atirou ao mar para salvar uma criança que se afogava; quando pudermos avaliar o ato, julgá-lo, dar-lhe valor, levando em consideração o fim que o determinou. Só saberemos o que o ato foi quando o tivermos compreendido. O Mundo Físico, nós o explicamos. O Mundo Ético, nós o compreendemos. Sem dúvida, para bem conhecer um objeto do Mundo Ético, convém conhecer o seu suporte no mundo da natureza. Para bem compreender, devemos antes explicar. Podemos explicar sem compreender. É o que acontece quando nosso conhecimento se limita ao Mundo Físico. Mas não podemos compreender sem explicar. Não podemos conhecer o sentido e o valor de uma coisa se não conhecermos a coisa em sua materialidade. Diante do que se acaba de expor, vê-se que as ciências físicas são explicativas e que as ciências éticas ou culturais são explicativas e compreensivas. Pois bem, o Filósofo do Direito é o cientista que não se adstringe à explicação da ordem jurídica, e se empenha na missão de compreendê-la. Não o satisfaz o conhecimento das causas imediatas da lei — os objetivos próximos da lei e as formalidades de sua elaboração —, e se esforça por desvendar o que eu chamaria "alma" (o ânimo, a intenção originária) da legislação positiva; ou seja, por penetrar a intimidade desse extraordinário fenômeno exclusivamente humano, que designamos com o nome de Direito. Em suma, a Filosofia do Direito é a reflexão aprofundada sobre os princípios de que se originou, na sociedade humana, a disciplina da liberdade, o regulamento do dever e da responsabilidade, ordenação incluída —maravilha das maravilhas! — no determinismo infrangível que dirige a movimentação de tudo, no imenso Universo. Reflexão, de fato, sobre a liberdade. Ou seja, reflexão sobre essa excelsa virtude do mais evoluído dos vivos; do ser apurado, resultante da permanente seleção natural das espécies, nas imensidões dos céus e no lento decurso de infinitos tempos. Quando o profissional do Direito passa a dedicar-se a uma tal reflexão, o simples bacharel se promove a jurista. Com a visão global das cousas do Mundo e da Vida, ele passa a ter consciência da ordem universal e da situação do ser humano dentro dela. Passa a refletir sobre o sentido do valor da Ordem da Liberdade, da Ordem da Convivência, dentro da sociedade humana. Adquire aquele saber, que define a pessoa culta. Passa a ser o Filósofo do Direito. Quando o profissional do Direito passa a dedicar-se a uma reflexão, o simples bacharel se promove a jurista. Com a formação espiritual de filósofo, ele interpreta as leis com uma lógica especial; com a lógica que é, precisamente, a lógica própria do jurista. Um leigo poderia, quem sabe, perguntar: teria, acaso, o jurista, uma lógica que não seja a lógica natural da razão? Que não seja a lógica formal, cientificamente descrita por Aristóteles; a lógica habitual de nossos raciocínios e argumentações, e que é a lógica do racional, a lógica da conseqüência correta? Terá o jurista uma lógica particular, dele somente? O Filósofo do Direito responderia, bem o sabemos, que o verdadeiro jurista, ao interpretar a lei, para aplicá-la ao caso concreto, é levado a conscienciosamente acrisolar a lógica do racional, aprimorando-a com a lógica do razoável. Ele está convicto de que a fiel interpretação da lei exige que ela seja vista dentro do conjunto de que participa, e seja considerada um componente de um sistema ético. A lei, para o Filósofo do Direito, não é uma proposição solta, e não é, apenas, o que se lê em seu texto. Ela é, também, aquilo que ela pretende, como elemento de ordem geral. O Filósofo do Direito sente que a lei tem letra e tem espírito. Quase poderíamos dizer que a letra tem corpo e tem alma. A verdade é que a lei, para o jurista, não se esgota em sua letra. A lei se acha, também, no seu pensamento e na sua intenção. Nem sempre o espírito da lei se exprime em sua letra. Pode a lei estar mal redigida, mal expressa. Mas, o que é certo é que a lei, seja qual for a sua letra, não deve ser aplicada contra o seu espírito. O Filósofo do Direito sente que a lei tem letra e tem espírito. Quero aqui ressaltar uma conclusão importante. Se a aplicação da letra da lei a um caso concreto produzir efeito contrário ao que a própria lei pretende, aplicá-la equivale a violá-la, porque será contrariar o seu pensamento, o seu espírito. O bacharel que a tenha aplicado assim não soube interpretá-la convenientemente: apegou-se à letra rígida da lei, desconhecendo o seu espírito. Miguel Reale escreveu: "uma norma é a sua interpretação". Impossível dizer melhor (Filosofia do Direito, 5.ed., Parte II, Título X, Capítulo XXXVIII, n. 124). Mas é evidente que a interpretação há de ser correta. Há de ser uma interpretação de jurista, ou seja, uma interpretação preocupada com a intenção e o espírito da lei, que nem sempre coincide com o estricto sentido literal dela. Na interpretação das leis, mais importante do que o rigor da lógica racional é o entendimento razoável dos preceitos, porque o que se espera inferir das leis não é, necessariamente, a melhor conclusão lógica, mas uma justa e humana solução. O que se espera é uma solução atenta às variegadas condições de cada caso concreto a que a lei interpretada se refere. Essa correta interpretação é, precisamente, a que exige uma lógica especial, a Lógica do Jurista. Ela assume, como bem sabem os profissionais do Direito, uma importância extraordinária, na atuação dos juízes. A experiência demonstra que, muitas vezes, os juízes conseguem melhorar, por meio de uma judiciosa interpretação, a qualidade das más leis. Já houve quem dissesse que não haveria motivo de se temer as más leis, se elas fossem sempre aplicadas por juízes competentes. Em regra, a sábia interpretação da lei é bastante para dar solução razoável ao desafio de quaisquer casos concretos, até mesmo dos casos mais melindrosos. A verdadeira compreensão das leis, a criteriosa interpretação delas, a sua aplicação prudente ao caso concreto não dependem de muita erudição. Mais dependem, do que chamamos sabedoria, isto é, daquele patrimônio da consciência, adquirido em segredo, no lento fluir da existência: "not knowledge, but wisdom", daquela "sabedoria profunda e silenciosa" de que falam os pensadores. Valendo-se da lógica do jurista, ou lógica do filósofo, os profissionais do Direito estarão aptos para "fazer justiça" — uma justiça humana, mas que certamente "excede a justiça dos escribas e dos fariseus", a que se referiu Jesus, no Sermão da Montanha. * * * Meu prezado professor Eduardo Bittar, permita que eu termine estas considerações sobre os temas propostos Para o projetado ENCONTRO dos mestres de nosso Departamento de Filosofia, com a narração singela de um ilustrativo episódio, de meu longínquo tempo de ginasiano. Um dia, Victor Brecheret — o célebre escultor da "Déscente de la Croix", meu especial amigo —, em pleno trabalho de criação, no seu ateliê, vendo-me boquiaberto ante o prodígio de sua cinzelagem e a magia do surgimento das primeiras formas de um rosto humano, saídas da pedra, me disse a sorrir: "Não se impressione! Eu não faço quase nada. A figura já está na pedra. O que eu faço é somente soprar com amor, para assustar a poeira". Soprar com amor... Assustar a poeira.... Essa lição eu jamais esquecerei. É meu vademecum. Nós — eternos estudantes de Direito — somos operários da convivência humana. A convivência humana é a nossa pedra — a pedra de nossas esculturas. No curso da Faculdade, estudamos essa pedra: enfronhamo-nos na disciplina da convivência. Depois, durante anos e anos, operamos como bacharéis dessa disciplina. Pois bem, os bacharéis que souberam soprar com amor sobre a nossa pedra saberão assustar as poeiras dos atrasos, equívocos e atrancamentos da obra, e se tornarão juristas. Não sei se me faço entender. O que eu quero dizer é simples. O que eu quero dizer é que o bacharel se promove a jurista quando ele se torna bacharel culto; quando ele passa a contemplar a ordem jurídica com olhos de experiente compreensão, e a manejá-la com a prudência de uma sabedoria curtida longamente, no caldo dos dias. Ele se torna jurista quando souber interpretar a lei com a lógica do humano — com aquela lógica definida como lógica do jurista. O bacharel se promove a jurista quando ele se torna bacharel culto. Esse olhar, esse manejo, essa interpretação, tudo isso é o que constitui o "sopro de amor" dos juristas. Em virtude de sua vocação — veja só o que acontece! — o jurista é um idealista inconcusso. O aprimoramento das normas da convivência é o anelo constante de seu coração. É o seu sonho. Todo jurista é um sonhador. Freqüentemente, ele sonha com o impossível, mas cumpre reconhecer que é graças a esse sonho que o impossível, às vezes, se torna realidade. Poder-se-ia dizer que um tal sonhador é um realista. Veja só! Ser realista é sonhar com o impossível! Sim, é verdade: o sonho do jurista é o que, muitas vezes, mostra o caminho. Tal é o mistério do sonho. Tal é o mistério do jurista. E é por essa razão que o jurista, em certas ocasiões históricas, se torna vanguardeiro, líder revolucionário, até incitador da subversão, em guerra aberta ou clandestina, contra ditadores e déspotas, inimigos da Cultura, da Liberdade e da Justiça. * * * Receba, caro professor Eduardo Bittar, a saldação afetuosa de Goffredo da Silva Telles Junior 3 O DIREITO POSTO, O DIREITO PRESSUPOSTO E A DOUTRINA EFETIVA DO DIREITO Eros Roberto Grau Meus caros: Após ouvir a manifestação do professor Goffredo, confesso que gostaria de vir a ser, um dia, um sage. Um dia, no futuro. O que, desde estudante, me perturbou — e disso resultou um inconformismo muito grande — foi a concepção que sempre me pareceu equivocada, do Direito como mero reflexo da economia. Essa concepção, eu a atribuo a uma leitura propositadamente distorcida de Marx, de que faz uso tanto a extrema direita quanto a extrema esquerda. Isso sempre me incomodou. Por outro lado, eu sempre me senti inconformado em relação ao caráter metafísico que perpassa a idéia do direito natural. E ao mesmo tempo — vejam que coisa aparentemente paradoxal! — eu me sentia inconformado com a visão positivista do Direito, insuficiente e contraditória. Sofri algumas influências — sofri no sentido positivo —, quer dizer, gozei de certas influências, mas fundamentalmente de duas leituras que tenho refeito de quando em quando: Pasukanis e um texto de Rui Fausto, que me ensinaram a compreender bem a diferença entre o posto e o pressuposto. Isso me fez compreender também o equívoco da tese mecanicista, que põe o Direito na superestrutura e a economia na infra-estrutura. Eu me sentia inconformado com a visão positivista do Direito, insuficiente e contraditória. Há um momento bem definido em nossas existências; aquele a partir do qual não nos angustia mais a necessidade de explicar, porque começamos a compreender. A partir daí, do discernimento da distinção entre o posto e o pressuposto, cessou a minha angústia de explicar, inconformado comecei a compreender. Passei a compreender que o Direito é uma instância, um nível da realidade,que nela se manifesta de forma imensamente rica, na medida em que se opera, na estrutura social global, uma contínua, constante e permanente interpenetração de instâncias. Isso me permitiu compreender — fazendo uso da quase infeliz metáfora da base e da superestrutura — que o Direito está e não está na base e, a um tempo só, está e não está na superestrutura. Por quê? Porque ele se manifesta na base corno Direito pressuposto e, na superestrutura, como Direito posto. Há um momento bem definido em nossas existências; aquele a partir do qual não nos angustia mais a necessidade de explicar, porque começamos a compreender. Isso de certa forma foi afirmado agora há pouco pelo professor Fábio Comparato, quando indagou qual seria a fonte de legitimidade do Direito. Seria o poder ou seria isso que ele chamou de consciência geral? Desejo sustentar que o legislador — quando atua como formulador do Direito posto — não é livre para criar qualquer Direito. E por quê? Porque o Direito, no seu momento de pressuposição, é um produto histórico-cultural que condiciona a formulação do direito posto. E assim é ainda que, concomitantemente, o Direito posto pelo Estado acaba por conformar novas manifestações do Direito pressuposto. Em suma, o que me parece ser um dos primeiros desafios da Filosofia do Direito é a compreensão de que o fenômeno jurídico é muito mais amplo do que o Direito posto pelo Estado, praticado nos tribunais e ensinado nas faculdades de Direito. O Direito, no seu momento de pressuposição, é um produto histórico- cultural que condiciona a formulação do direito posto. Também, por essa trilha de indagações e inquietudes, comecei a compreender queem cada sociedade manifesta-se um determinado Direito (Direito positivo, Direito posto), diverso e distinto dos outros direitos (Direitos postos, Direitos positivos) que se manifestam em outras sociedades. Por isso não falamos, concretamente, no "Direito", senão nos "Direitos". Só existem, concretamente, os Direitos de cada sociedade. Na medida em que compreendo que o Direito é urna instância da realidade, começo a compreender também que apenas existem, concretamente, os Direitos: o Direito curdo, o Direito alemão, o Direito brasileiro, e assim por diante. Por isso mesmo — e isso me parece muito oportuno, pois se aproxima o momento de uma comemoração de Túlio Ascarelli — é indispensável revisitarmos as exposições de Ascarelli a respeito do Direito comparado. Impõe-se exorcizarmos os portadores das síndromes de Harvard e de Chicago, esse jeito específico de raciocinar conforme padrões de conduta, de comportamento e de pensamento que não têm absolutamente nada a ver com a realidade brasileira. Pobres moços, esses moços engravatados que pouco sabem do Brasil e do Direito brasileiro. Meu caro professor Celso: está chegando mesmo o momento de lançarmos o movimento da antropofagia jurídica. Lembro que o Oswald de Andrade (quase pronunciei "Óswald", o que provocaria grande irritação nele), que o Oswald de Andrade, quando lança o Manifesto Pau-Brasil, refere-se ao Visconde de Cairu como um "grande antropófago". Aliás, estamos trabalhando em conjunto, a professora Paula Forgioni e eu, em um projeto sobre a antropofagia jurídica. Muito bem. Afirmado que não existe o direito, mera abstração — existe apenas cada direito concreto, porém nutrido pelo que está embaixo dele como Direito pressuposto —, quero mencionar os princípios e o fato de que, ao menos no meu discurso, a idéia de princípio do Direito não está ancorada na metafísica. Eu não cogito de metafísicos "princípios gerais do Direito", mas de princípios gerais de cada Direito. Princípios construídos historicamente, em cada sociedade. Princípios que compõem um sistema.Sistema que pressupõe ordenação e unidade e que, no caso do direito, é dominado pelos sentidos axiológico e teleológico. Aqui as idéias que o conduzem são as idéias de ordenação e de adequação — o que aliás foi há pouco dito pelo professor Fábio e afirmado na exposição do professor Goffredo. A idéia de princípio do Direito não está ancorada na metafísica. Sustento, pois, que o sistema jurídico deve ser concebido como um sistema aberto, uma ordem axiológica de princípios gerais de direito, entendidos esses princípios não como resultantes de abstrações, senão como construções sociais que se manifestam diversamente, em cada direito concretamente tomado. Princípios forjados historicamente, na medida em que cada sociedade constrói, cada sociedade inventa a sua própria cultura. Mostrar como se opera a transformação, no seio da sociedade, de uma norma ética, econômica, costumeira em norma jurídica, isso não será difícil. Basta recorrermos a Léon Duguit: a norma social transforma-se em norma jurídica quando a massa das consciências individuais admite que a reação social contra a sua violação seja socialmente organizada. O sistema jurídico deve ser concebido como um sistema aberto, uma ordem axiológica de princípios gerais de direito, entendidos esses princípios não como resultantes de abstrações, senão como construções sociais que se manifestam diversamente, em cada direito concretamente tomado. Então vejam vocês: estou a conceber o fenômeno jurídico na sua totalidade e, ao fazê-lo, dou-me conta de que o Direito não é apenas o que é estudado nos cursos universitários — a ponta do iceberg — e é interpretado e aplicado conscientemente nos tribunais. E por que digo "conscientemente"? Porque o juiz, sempre na formulação do seu processo de tomada de decisão, inconscientemente considera e pondera o que está para baixo do nível do mar, nesse iceberg. Vejam bem: isso bem compreendido, verificamos que pode existir direito pressuposto sem direito posto. Pode existir direito pressuposto sem direito posto. Lógico que não teria sentido eu vir aqui única e exclusivamente para repetir o que já andei escrevendo e que alguns de vocês já tiveram, eventualmente, a infelicidade de ler. Eu gostaria de ir um pouco mais adiante, para tentar mostrar o seguinte: o velho Hegel aponta, em uma exposição que lastimavelmente não é bem compreendida, que sociedade civil e Estado se encontram em planos distintos. Há quem imagine uma ordem de sucessão no tempo: a família, a sociedade civil e depois o Estado. Não é absolutamente nada disso. Na teologia hegeliana — porque é de uma teologia que na verdade se trata temos três momentos distintos, mas contemporâneos: a sociedade civil é o espaço do dissenso, é o espaço dos particularismos; ao passo que a forma mais elevada, o Estado, é o locus do consenso, é o locus da universalidade, onde se garante a unidade na diversidade, onde se garante a igualdade na diferença. Isso significa que a sociedade civil é o estado exterior onde se chocam os antagonismos; é o estado do entendimento, da razão analítica, para a qual as coisas são aprendidas na sua exterioridade, quantitativamente apenas; que supera as oposições pela conveniência, ou seja, sem nenhuma referência à eticidade fundada na cidadania. Num momento posterior —mas não posterior no tempo, porém em elevação —, o momento do Estado, manifesta-se o estado da razão, da racionalidade como razão efetiva; racionalidade para a qual, dialeticamente, o que dá sentido às partes é a totalidade. Não é o que ocorre no plano da sociedade civil, no qual as partes ou sua mera adição é que conferem sentido à totalidade. A sociedade civil é o estado exterior onde se chocam os antagonismos; é o estado do entendimento, da razão analítica, para a qual as coisas são aprendidas na sua exterioridade, quantitativamente apenas. Ora, meus amigos, retomando um ponto anterior de minha exposição, desejo dizer o seguinte: a relação jurídica manifesta-se no interior da sociedade civil. O Direito pressuposto está aí, no seio da sociedade civil. É aqui que ela — vamos dizer assim — que ela fermenta. Tomando uma imagem de um autor de que gosto muito, ate por razões de afetividade (ele é o autor do primeiro livro de Direito que li em minha vida), uma imagem de Von Ihering, diremos que é aí, nessa arena, que se dá a luta pelo Direito. Porque é aí que os sentidos normativos começam a ser forjados. A relação jurídica já está no econômico, no Direito pressuposto, no plano da sociedade civil. Mas o Estado Moderno, o Estado da Revolução Industrial, o Estado da Revolução Francesa põe o Direito posto, Direito positivo, Direito moderno, Direito formal, Direito burguês. Vê-se bem, então, que as relações de poder são travadas no seio da sociedade civil, de modo que o direito pressuposto é determinado pelo modo de Produção social e pela correlação das forças políticas. O direito pressuposto é determinado pelo modo de produção social e pela correlação das forças políticas. Explico-me com um exemplo. Ao tratar do tema do serviço público, quando pretendemos saber o que é e o que não é serviço público, torna-se necessário considerarmos a atuação das forças sociais. Quero dizer, de modo soft, que a definição do que seja ou não seja serviço público depende da atuação das forças sociais. Dizendo- o de modo hard, o que é e o que não é serviço público depende do estado da luta de classes. Analogamente, posso afirmar que em decorrência da atuação das forças sociais é que gradualmente será forjado o Direito pressuposto. Daí resulta evidente a insuficiência da visão positivista, dos que vêem o Direito como um jogo de vidrilhos que se olha contra o sol — um conjunto de formas, que se deve compor, coloridamente, de modo mais bonito ou de modo menos bonito. Por isso sustento ser necessária — e quero corrigir algo que eu disse há muito tempo — a construção de uma doutrina efetiva do Direito. Precisamos construir adoutrina "efetiva" do direito, fundada na observação das funções do Direito da sociedade. Quando eu era bem mais ignorante do que sou hoje, mas, ao mesmo tempo, tinha menos consciência ainda das coisas, eu dizia doutrina "real" do direito. Isso desejo agora corrigir: precisamos construir a doutrina "efetiva" do direito, fundada na observação das funções do Direito da sociedade. E é preciso fazermos isso desde a perspectiva do pensamento crítico, perspectiva cuja descrição é complexa. Um professor de Florianópolis escreveu um livro sobre a Crítica do Direito e, no capítulo em que trata da Crítica do Direito no Brasil, menciona a Crítica do Direito no Largo São Francisco, cuidando em conjunto de autores que não poderiam ser unidos porque adotam visões inteiramente distintas, entre si, do direito. Entre outros, lembra os que integram a Escola do Direito Processual, mas menciona também o professor Caffé, o professor Tercio; menciona o meu nome, mas indevidamente esquece o professor Aloísio Ferraz Pereira. Ora, quando faço alusão ao pensamento crítico, não estou me referindo a nenhuma escola, até porque não existe, entre nós, nenhuma escola como tal. Estou simplesmente afirmando ser preciso adotarmos a perspectiva não daquele que apenas descreve a realidade, mas daquele que pretende transformar a realidade. Cumpre compreendermos — e já me aproximo da parte final da minha exposição — que o Estado é uma instituição abstrata. Embora atue como ator no embate das forças políticas, no exercício do poder estatal, o Estado é, concomitantemente, o troféu da política, disputado por essas forças, interessadas na conquista desse mesmo poder, o poder estatal. O Estado é uma instituiçãoabstrata. É necessário ainda distinguirmos — o que não fazem os incautos e os apedeutas — Estado e o governo. Vejo freqüentemente alguns liberais tropeçarem nos próprios pés, investindo contra o Estado, quando na verdade desejariam, em suas singularidades sempre auto-exaltadas, apenas atacar o governo. Apedeutas, esses tipos são incapazes de separar, de um lado, o governo — e os que em determinado momento o ocupam —, de outro, o Estado. Por isso acabam investindo contra a própria idéia de Estado, o que é profundamente lamentável e desnuda sua pequenez intelectual. O que desejo afirmar é a necessidade de, além de distinguirmos um do outro, compreendermos que o modo de produção social capitalista elege como ratio fundamentalis do ordenamento político o lucro, colocando o Direito positivo a seu serviço. É isso que explica a estruturação do Direito posto pelo Estado moderno, que eu poderia descrever, enquanto modelo, como Direito posto, como Direito positivo, como Direito moderno, como Direito formal, como Direito burguês. Refiro-me a esta altura a Wieacker, a Tarello. Ao construirmos esses modelos, pretendemos demonstrar que o Direito praticado nos tribunais e estudado nas faculdades existe fundamentalmente para permitir a fluência da circulação mercantil e — vou usar um vocábulo muito utilizado por Habermas, o que não me deixa muito feliz — para tentar "domesticar" os determinismos econômicos. Ora se eu compreendo isso, sendo suficientemente frio para tanto — talvez o professor Celso Lafer dissesse "cínico..." olhando-me com esse ar... —, se eu compreender isso, desde aí poderei desdobrar fundamentos para a constituição da doutrina efetiva do direito. E, mais, nela e dela extrair desdobramentos. Primeiro, na compreensão de que na interpretação do Direito coloca-se um dos problemas mais densos da soberania. Já estava lá, no Código de Justiniano, que, se é dado ao imperador fazer as leis, apenas ele poderá interpretá-las. Jean Bodin nos Seis Livros da República, trata com maestria do tema. E segue a recorrência entre legislar e interpretar de modo quase curioso, visto que a coibição da interpretação pelo juiz não acaba com o ocaso das monarquias absolutas, sendo vigorosamente reafirmada na Revolução Francesa. Nessa altura surge a voz de um desconhecido jurista, mas percuciente, rigoroso, incisivo — muito pouco conhecido como jurista —, Maximilian Robespierre. Robespierre, no momento em que se discute na Assembléia Nacional a criação do Tribunal de Cassação, pronuncia um lindo discurso, que ilumina a compreensão de que a distinção entre interpretação e aplicação do Direito decorre do chamado silogismo subsuntivo. Pois ao juiz, esse que não pode participar da soberania, cabia única e exclusivamente cogitar da premissa menor do silogismo, tratar dos fatos, aplicar o Direito aos fatos. À Corte de Cassação, que passou a existir no âmbito do Poder Legislativo, é que caberia a interpretação do Direito, o cogitar sobre a premissa maior do silogismo. É interessante lembrarmos que os doutrinadores que examinaram o Código de Napoleão em regra escapam da análise do confronto entre as disposições contidas em seus arts. 4° — que proíbe o juiz de não decidir — e o art. 5° — que proíbe o juiz de interpretar. Desejo dizer a vocês, para encerrar, que, quando somos intelectualmente inquietos, terminamos por descobrir ser imperioso permanecermos inquietos, porque a vida é inquietude. O Direito faz parte dela, compõe a realidade. E a realidade não pára quieta. Quando somos intelectualmente inquietos, terminamos por descobrir ser imperioso permanecermos inquietos, porque a vida é inquietude. Disso se desdobra, na concepção de uma doutrina efetiva do direito, a compreensão da interpretação do Direito como trabalho de construção da norma jurídica. Norma e texto são coisas diversas. O que, por exemplo, poderia nos levar a discutir, como dizia Tarello, a validade do Direito em dois pontos, ou melhor, sob dois aspectos, o da validade do texto e o da validade da norma. Interpretar o Direito é caminhar de um ponto a outro, é caminhar do universal ao singular, através do particular. Insisto, parenteticamente, que a norma é produzida pelo intérprete. A alusão do professor Goffredo ao Brecheret confirma o que tenho sustentado já há alguns anos, no sentido de que o intérprete autêntico constrói a norma, produz a norma, mas na verdade não inventa nada: ele tira a norma de dentro do bloco de mármore; a norma já estava lá. É por aí que passa a minha teoria alográfica do direito. Meus caros amigos, esta é uma questão fundamental: compreender o que é interpretar o direito. Interpretar o Direito é caminhar de um ponto a outro, é caminhar do universal ao singular, através do particular — nesse ponto eu insistiria em que a leitura de Hegel faria muito bem; pelo menos tem feito muito bem a mim... Interpretar o Direito, repito, é caminhar de um ponto a outro, conferindo a carga de contingencialidade, de vida, de realidade que não pára quieta — a carga de contingencialidade que faltava para tornar plenamente contingencial o singular. O Direito é mais belo que a Vênus de Milo — diria Fernando Pessoa, se tivesse estudado Direito; o que há é pouca gente a dar com isso. Muito obrigado. 4 FILOSOFIA DO DIREITO E PRINCÍPIOS GERAIS: CONSIDERAÇÕES SOBRE A PERGUNTA "O QUE É A FILOSOFIA DO DIREITO?" Celso Lafer I Meu ponto de partida para responder à pergunta "O que é a Filosofia do Direito" é a distinção que faz Kant entre o pensar — voltado para a busca do significado — e o conhecer— ocupado com o rigor da cognição. Valho-me dessa distinção entre o pensar (Vernunfi) e o conhecer (Verstand), seguindo a orientação de Hannah Arendt mas dela me utilizando à maneira de Bobbio. Trata-se de uma dicotomia, mas não uma dicotomia do gênero excludente, tipo aut/ant — ora eu penso, ora eu conheço. É uma dicotomia que é o produto, como diria Miguel Reale, de uma dialética de mútua implicação e polaridade. Penso a partir daquilo que conheço e conheço levando em conta aquilo que penso. Conhecer, no nosso campo, é conhecer o Direito Positivo. É a dimensão técnica sobre a qual já se falou nesse evento. Pensar é parar para pensar o Direito Positivo. Eu creio que a tarefa da Filosofia do Direito é parar para pensar o que é o Direito Positivo. Por que se pára para pensar e quem pára para pensar? Quem pára para pensar são os juristas com interesses filosóficos em função dos problemas colocados pelo Direito Positivo — problemas que não encontram solução e encaminhamento no âmbito estrito do Direito Positivo. A Filosofia do Direito é, assim, o campo dos juristas com interesses filosóficos, instigados, na sua reflexão, pelos problemas para os quais não encontram solução no âmbito do Direito Positivo. Por isso a Filosofia do Direito é, como diz Bobbio, obra de juristas e não de filósofos stricto sensu. Os grandes nomes da Filosofia do Direito do século XX são uma comprovação dessa afirmação. Basta mencionar Kelsen. Penso a partir daquilo que conheço e conheço levando em conta aquilo que penso. Vejo, desse modo, a Filosofia do Direito como uma filosofia da experiência jurídica e quero, neste momento, realçar a importância epistemológica da experiência. Hannah Arendt diz na introdução a Entre o passado e o futuro que, numa época de universais fugidios, a única base para testar conceitos é a própria experiência. Realço, assim, no contexto desse nosso evento, a importância epistemológica que Miguel Reale atribui à experiência. A experiência resulta da interação entre o sujeito que conhece e o objeto que é conhecido. Tem a dimensão depôr à prova, de ensaiar, de testar. A Filosofia do Direito, como fruto da experiência jurídica, é precisamente esse pôr à prova, esse teste dos conceitos do Direito Positivo no jogo entre o pensar e o conhecer. A experiência resulta da interação entre o sujeito que conhece e o objeto que é conhecido. Tema dimensão de pôr à prova, de ensaiar, de testar. A amplitude do campo da Filosofia do Direito é maior ou menor diante da perspectiva organizadora do jusfilósofo, como diria Ortega y Gasset, que realçou a idéia da perspectiva como um ponto de vista sobre o mundo . Entendo que neste momento vale a pena relembrar, na medida em que não pudemos ter a presença dele hoje aqui, o significado, o alcance do tridimensionalismo jurídico de Miguel Reale — nosso grande mestre de Filosofia do Direito. Em síntese, Miguel Reale diz que é impossível lidar com a experiência jurídica sem lidar simultaneamente com os fatos sociais, com os valores e com as normas. Todas as exposições que foram feitas até agora justamente chamam a nossa atenção para os fatos, os valores e as normas como parte integranteda experiência jurídica. A interdependência existente entre fato, valor e norma permite pensar o Direito, seja pelo ângulo interno, seja pelo ângulo externo. Em outras palavras, permite lidar com o Direito como um sistema independente, estudando as normas e a sua inserção no ordenamento (ângulo interno), sem descurar que é um sistema dependente dos fatos sociais e dos valores (ângulo externo). O tridimensionalismo, como uma Filosofia do Direito baseada na experiência jurídica, contribui para dar um status epistemológico aos procedimentos intelectuais de que se vale o jurista para comprovar, aplicar e conciliar normas de Direito Positivo. Daí a sua importância para o entendimento da hermenêutica jurídica, cabendo lembrar que uma das características da Filosofia do Direito como campo de investigação é o aprofundamento da metodologia da interpretação. Foi, aliás, o que disseram o professor Eros e o professor Comparato e também o que realçou o professor Goffredo em seu texto. Uma das características da Filosofia do Direito como campo de investigação é o aprofundamento da metodologia da interpretação. O tema da interpretação é um dos grandes temas da reflexão sobre o Direito — do parar para pensar. Por isso, na discussão hermenêutica, por excelência, os temas da Filosofia do Direito se colocam diante dos problemas concretos suscitados pelo Direito Positivo. E é justamente isso que vou procurar sucintamente discutir hoje, com base na observação que os princípios gerais permeiam os textos constitucionais. É o caso da Constituição de 1988. Princípios são genéricos em contraste com as regras, que são específicas. E é precisamente na interpretação e exegese da aplicação dos princípios constitucionais, que não têm a especificidade das regras, que os grandes temas da Filosofia do Direito se colocam e que vêm sendo elaborados em função dos problemas colocados para os juristas à luz da experiência jurídica contemporânea. II Como professor de Direito Internacional que também sou, lembro que a discussão sobre o papel e a função dos princípios gerais se pôs em primeiro lugar no âmbito do Direito Internacional Público. Isso porque o estatuto da Corte Permanente de Justiça Internacional, ex vi do seu art. 38, considerou que são fontes do Direito Internacional não apenas as regras específicas dos tratados e dos costumes, mas os princípios gerais do Direito, reconhecidos pelas nações civilizadas. Aqui estou entrando num tema que o professor Fábio também mencionou, sobre quais são as fontes do Direito — é o poder, é a sociedade, em síntese, como é que se lida com as fontes do Direito. É claro que a introdução no Estatuto da Corte, depois da Primeira Guerra Mundial, de princípios gerais do Direito, representava uma contestação ao positivismo vigente. Na origem do Estatuto da Corte, dois dos seus elaboradores, Root e Phillimore, procuraram dar à Corte um certo poder de desenvolver e refinar os princípios da jurisprudência internacional. Foram, assim, contrários, para lembrar o que o professor Eros mencionou quando discutiu o Código de Napoleão, a distinção entre a obrigação do juiz de decidir e a concomitante proibição de interpretar. Pensaram os formuladores do Estatuto da Corte, em termos de princípios gerais aceitos, nos ordenamentos jurídicos nacionais dos Estados civilizados. E aí a idéia era a das analogias com o Direito e, sobretudo, com o Direito Privado Nacional. Vale dizer que na relação entre ordenamento internacional e os ordenamentos nacionais, caberia a possibilidade de uma heterointegração normativa. Nesse sentido os princípios gerais teriam, como lembra Bobbio, uma função de expansão não apenas lógica, mas axiológica do Direito Internacional. Essa função de expansão axiológica merece realce, pois é um dos aspectos importantes da interpretação dos princípios gerais, que também me permite apontar um tema que diz respeito à lógica jurídica, qual seja, a relação entre a analogia e o princípio geral do Direito. Trata-se, como lembra Bobbio, do mesmo tipo de argumentação. É o procedimento de subsunção de um caso particular a um princípio geral. No caso dos princípios gerais de Direito, é uma subsunção direta mediante recurso aos princípios gerais. No caso da analogia, é uma subsunção indireta por meio da semelhança relevante com outra situação jurídica que permite a construção de um princípio geral. Daí a distinção feita pelos antigos entre analogia júris (a dos princípios gerais) e analogia legis (analogia stricto sensu). Kelsen entende que a inferência por analogia está no campo do mais ou menos provável. Não é uma inferência lógica, mas um ato de vontade, criador de Direito novo, válido quando o juiz tem uma delegação do ordenamento para criar Direito novo num caso concreto. A analogia júris e a analogia legis tinham, como disse, no Estatuto da Corte, uma função integrativa e interpretativa do ordenamento jurídico internacional, e os princípios gerais do Direito representavam tanto a idéia de princípios aceitos pelas legislações internas quanto os princípios próprios da ordem jurídica internacional que não necessitavam, para a sua "afirmação, de regras específicas, derivadas dos tratados e dos costumes. Foi assim que se consolidaram princípios como: pacta sunt servanda; o do respeito aos direitos adquiridos; o da prescrição liberatória; o da reparação do dano; o do respeito à coisa julgada; o do estoppel; o princípio da continuidade do Estado, independentemente da mudança dos governos; a regra do esgotamento dos recursos internos, antes de se recorrer a instâncias internacionais. III Resumindo, para prosseguir: como disse, entendo a Filosofia do Direito como um campo elaborado por juristas com interesses filosóficos, instigados pelos problemas colocados pela experiência jurídica. Assim, da mesma maneira que o professor Eros se valeu da sua experiência no Direito Econômico, eu me vali da minha experiência do Direito Internacional. Este é relevante pois o Direito Internacional antecipa a grande discussão contemporânea sobre os princípios gerais desempenhando uma função de expansão não apenas lógica, mas axiológica do Direito. É o caso da Constituição de 1988 que, como outras constituições modernas, tem grande densidade material que se exprime por meio dos princípios. Os princípios não se caracterizam por serem mutuamente excludentes no plano abstrato, plano em que são compatíveis. Podem, no entanto, surgir antinomias em casos concretos, não solucionáveis pelos critérios clássicos de soluçãode antinomias do tipo lei superior, lei posterior, lei especial. Como é que se resolve esse tipo de situação? Esse é um tema para a Filosofia do Direito, como vou exemplificar baseado em minha experiência e que é fruto da relação entre pensar e conhecer, no trato do art. 4º da Constituição de 1988. Esta estabelece os princípios constitucionais do marco normativo que rege as relações internacionais do Brasil. Esses princípios são padrões de conduta. Têm como função tanto proibir e limitar quanto promover ou estimular, deixando espaço para o permitir. Na tradição constitucional brasileira cabe lembrar a Constituição de 1891 — que estabeleceu o princípio da proibição da guerra de conquista e o princípio do estímulo à arbitragem, ou seja, o da promoção da solução pacífica de controvérsias — como uma expressão da vocação pacífica da forma republicana de governo. Entendo a Filosofia do Direito como um campo elaborado por juristas com interesses filosóficos, instigados pelos problemas colocados pela experiência jurídica. Os princípios, como diz Alexy, são mandatos de otimização. Positivam valores. Os valores, como explica Miguel Reale, têm entre as suas características a realizabilidade, que é o suporte que tem na realidade e a inexauribilidade, que aponta para o seu significado de dever ser. Em função dessas duas características, os princípios são preceitos de intensidade' modulável a serem aplicados na medida do possível e com diferentes graus de efetivação. A sua aplicação é uma atividade contextualizada, leva em conta as circunstâncias (o ângulo externo) e requer a convivência e conciliação dos princípios, num jogo de complementações e restrições recíprocas (o ângulo interno). Tem, como ponto de partida para a elucidação do sentido, o texto e ao mesmo tempo é o texto o limite da atividade hermenêutica. Eu estou me referindo aos temas que o professor Eros mencionou, quando discutiu o Direito posto e o pressuposto. A Constituição de 1988, em contraste com as anteriores, fez uma significativa ampliação ratione materiae dos princípios que regem as relações internacionais. Vocês se lembram que no preâmbulo da Constituição há o compromisso, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica de controvérsias que é relevante na interpretação do artigo 4º que estipula que a República Federativa do Brasil rege-se, nas suas relações internacionais, pelos seguintes princípios: independência nacional; prevalência dos direitos humanos; autodeterminação dos povos; não-intervenção; igualdade entre os Estados; defesa da paz; solução pacífica de conflitos; repúdio ao terrorismo e ao racismo; cooperação entre os povos para o progresso da humanidade; concessão de asilo político. E no seu parágrafo único estabelece que a República Federativa buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando a formação de uma comunidade latino-americana de nações. Esses princípios em abstrato não são mutuamente excludentes. Em tese eles são conciliáveis. Alguns deles fluem do Direito Internacional Público. É o caso da codificação e do desenvolvimento progressivo, que levou, em 1970, à Declaração Relativa aos princípios do Direito Internacional, referente às relações de amizade e cooperação entre os Estados, em conformidade com a Carta da ONU. São eles: não recorrer ao uso da força de forma incompatível com os propósitos da Carta; solução pacífica de controvérsias para não colocar em perigo nem a paz, nem a segurança internacional, nem a justiça; não- intervenção em assuntos que são de jurisdição interna dos Estados em conformidade com a Carta; obrigação dos Estados de cooperarem entre si em conformidade com a Carta; igualdade de direitos e livre determinação dos povos; cumprimento de boa-fé das obrigações contraídas, em conformidade com a Carta. Por isso entendo que, sobretudo nesse campo dos princípios do art. 4º, há interpenetração e complementaridade entre o Direito Internacional Público e o Direito Constitucional. Por outro lado, é evidente que na interpretação desses princípios cabe relacioná-los com outros dispositivos constitucionais que é a vertente do ângulo interno, ou seja, da inserção da norma no ordenamento. Assim, por exemplo, a defesa da paz (art. 4º, VI) complementa-se com o art. 21, XXIII, que estabelece que toda atividade nuclear em território nacional somente será admitida para fins pacíficos, mediante aprovação do Congresso Nacional. Quem é que interpreta esses princípios de relações internacionais? Em tese eles estão sujeitos a um controle político e a uma fiscalização da sua aplicação pela sociedade e pelo Congresso, pois constituem o marco normativo da política externa, que é uma competência do Executivo. Em tese, comportam o controle jurídico pelo Judiciário, na medida em que ações de política externa se traduzem em normas suscetíveis de apreciação de constitucionalidade. Na prática, no dia-a-dia, quem interpreta e aplica esses princípios é o ministro das Relações Exteriores. IV Assim, vou discutir um pouco como, exercendo essas funções, em 1992 e em 2001-2002, interpretei esses princípios e a eles dei seqüência. Parto do exposto no prefácio que fiz ao livro de 1994 de Pedro Dallari sobre Constituição e relações internacionais, que é a sua tese de mestrado da qual fui orientador, no qual, com base na experiência, discuti esses princípios e a sua aplicação. Em 1992, em minha primeira experiência ministerial, interpretei o tema de defesa da paz e a idéia de que toda atividade nuclear somente seria admitida por fins pacíficos, promovendo a revisão do Tratado de Tlatelolco para permitir a sua efetividade, como o Tratado da Desnuclearização da América Latina. Subseqüentemente, no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, participei do processo decisório que levou à adesão ao Tratado de Não- Proliferação nuclear (TNP) e, como ministro, em 2001-2002, dei realce ao tema da reivindicação dos países não nucleares que aderiram ao TNP, de obter o cumprimento do compromisso de uma efetiva desnuclearização, assumido no Tratado pelos países nucleares. O princípio da prevalência dos direitos humanos (art. 4º, II) conjugado com o § 2º do art. 5º diz: direitos e garantias expressas na Constituição não excluem outros decorrentes de tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte, levou-me a conduzir, tanto em 1992 quanto em 2001-2002, uma política do direito. Esta foi a da adesão aos Tratados de Direitos Humanos e aos seus mecanismos de monitoramento. O art. 4º, VIII, que trata do repúdio ao racismo no plano internacional, deve ser interpretado em consonância com o art. 5º, XLII, que, no plano interno, trata da prática do racismo como um crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão nos termos da lei. Foi o que me levou, em 2001-2002, depois do 11 de setembro, a não aceitar nenhuma atitude a priori em relação à população da Tríplice Fronteira, porque me pareceu que isso seria uma forma inaceitável de lidar, no caso, com a indispensável conciliação na ordem interna e na ordem internacional dos princípios da Constituição de 1988. Da mesma forma, o art. 4º, VIII, repúdio ao terrorismo no plano internacional, deve ser interpretado em consonância com o art. 5º, XLIII, que, no plano interno, qualifica o terrorismo como um crime inafiançável, insusceptível de graça ou anistia. Foi esta a base jurídica da invocação, pelo Brasil, logo após o 11 de setembro, do Tratado Interamericano de Assistência Recíproca(o Tiar) que acabou criando uma moldura jurídica de cooperação, compatível com as resoluções da ONU e delimitadora dos nossos compromissos internacionais, em consonância com a Constituição de 1988. Nesses exemplos, os princípios foram interpretados e aplicados levando em conta fato, valor e norma, com apoio em outros dispositivos constitucionais. Entretanto, também podem ocorrer situações em que os princípios do art. 4º suscitam problemas mais complexos, levam a antinomias não solucionáveis pelos critérios clássicos de sua solução ou mediante recurso a outros dispositivos constitucionais. Aí cabe a ponderação e a hierarquia móvel. Exemplifico com base no peso do fato na interpretação dos princípios. O parágrafo único do art. 4º estimula o nosso país a promover a integração da América Latina. Em 1992, interpretei esse dispositivo como sendo a base jurídica para acelerar a construção do Mercosul. Daí o calendário de Las Lenas que conduziu a essa aceleração, que foi favorecida pelas circunstâncias econômicas da época. Em 2001 -2002 o problema era o da manutenção do Mercosul em meio a uma crise econômica séria da Argentina, que teve seus desdobramentos no Uruguai. Por outro lado, com a reunião de Brasília, de 2000, dos chefes de Estado da América do Sul — importante iniciativa do presi-dente Fernando Henrique Cardoso —, surgiu a ocasião para novas ações diplomáticas em relação à região. Daí a idéia-força da integração física da América do Sul. Assim, nos preparativos para a segunda reunião de cúpula realizada em Guayaquil em 2002, trabalhou-se muito nessa idéia de fazer a melhor economia da nossa geografia, que foi a interpretação dada ao parágrafo único do art. 4º, concebido tanto no caso do Mercosul como no da América do Sul, como etapas, à luz das circunstâncias, do processo de integração latino-americano. O valor da integração foi interpretado e aplicado levando-se em conta os fatos e as distintas possibilidades de atuação. O mesmo pode ser dito em relação ao inciso VI do art. 4º — defesa da paz. A paz é um valor; e, como todo valor, tem, como mencionado, componentes da realizabilidade e da inexauribilidade. A capacidade de atuar, para realizar o valor da paz, é maior para o Brasil na América Latina do que em outras regiões do mundo. O Brasil teve, por exemplo, na presidência de Fernando Henrique Cardoso, a capacidade de atuar positivamente no conflito entre o Peru e o Equador. Essa capacidade de atuar na defesa da paz na América do Sul é maior do que em outras regiões do mundo. Esse é um dado de fato distinto do que ocorre no conflito do Oriente Médio — Israel/ Palestinos —, ou na guerra do Iraque onde nossa capacidade de atuação é mais modesta. Deve-se, nesses casos, lidar com aquilo que o professor Goffredo falava, que é a noção de compreensão, de razoabilidade, de ponderação que leva em conta o adequado e o necessário. Podem, no entanto, surgir antinomias reais e complexas que colocam o tema da hierarquia móvel. Exemplifico. O art. 4º, IV, fala da não-intervenção, e o art . 4º, II, na prevalência dos direitos humanos. O atual governo, por exemplo, preferiu, recentemente, no caso de Cuba, fazer uma ponderação dando mais relevância ao princípio da não-intervenção do que ao princípio da prevalência dos direitos humanos. Acho essa ponderação discutível, mas não é o caso de examiná-la neste momento, pois cabe agora ir encaminhando as conclusões. O Brasil teve, por exemplo, na presidência de Fernando Henrique Cardoso, a capacidade de atuar positivamente no conflito entre o Peru e o Equador. Essa capacidade de atuar na defesa da paz na América do Sul é maior do que em outras regiões do mundo. V Os grandes temas da Filosofia do Direito aparecem na experiência jurídica e, muito especialmente, nos dias de hoje, na reflexão sobre a interpretação. Aparecem, por excelência, quando se discutem os princípios gerais. Os princípios gerais caracterizam uma Constituição como a nossa. Na interpretação e na aplicação dos princípios gerais, surgem problemas práticos, para voltar à minha discussão de que a Filosofia do Direito é o campo dos juristas com interesses filosóficos confrontados com esses problemas. Não se podem resolver os temas que surgem da aplicação desses princípios com base em uma visão estrita do ordenamento jurídico. É necessário levar em conta tanto o ângulo interno da norma e da sua inserção no ordenamento quanto o ângulo externo, ou seja, os fatos e os valores que exigem ponderação. Não se podem resolver os temas que surgem da aplicação desses princípios com base em uma visão estrita do ordenamento jurídico. E necessário levar em conta tanto o ângulo interno da norma e da sua inserção no ordenamento quanto o ângulo externo, ou seja, os fatos e os valores que exigem ponderação. A ponderação é um exercício de Filosofia do Direito; é um exercício prático de Filosofia do Direito e o que me permiti muito rapidamente fazer foi uma discussão de como ministro das Relações Exteriores — parando para pensar — procurei me desincumbir da responsabilidade de lidar com o art. 4º da Constituição. Esses princípios precisam ser ponderados e discutidos à luz da situação concreta. A sua hierarquia é móvel. Deve-se levar em conta a sistemática constitucional para correlacionar esses princípios com outros dispositivos da Constituição. Mas é igualmente indispensável ponderar a aplicação da norma, levando em conta os fatos e os valores, à luz da conjuntura internacional. Assim, por exemplo, em 1992, a conjuntura internacional, no imediato pós-Guerra Fria, era positiva e favorável à aplicação do inc. IX do art. 4° — cooperação entre os povos para o progresso da humanidade. É esse clima político que contribuiu para o sucesso da Conferência da ONU para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento — a Rio-92. Em 2001-2002 esse clima político era negativo, e é isto que explica as dificuldades da Conferência de Johanesburgo de 2002 — a Rio +10, apesar do nosso empenho em dar cumprimento ao inc. IX do art. 4º. É grande o desafio da analogia juris e da analogia legis, que são modalidades de subsunção semelhantes. Concluo com uma observação de lógica jurídica sobre as afinidades entre o juízo diplomático e o juízo jurídico no trato dos princípios gerais. Refiro-me ao procedimento de subsunção do caso concreto, seja no que diz respeito ao princípio geral, seja no que diz respeito à analogia, esta última, no caso do juízo diplomático, muito ligada aos antecedentes diplomáticos. É grande o desafio da analogia júris e da analogia legis, que são modalidades de subsunção semelhantes, como apontei, lembrando o ensinamento de Bobbio no início de minha exposição. Um grande estudioso das relações internacionais, que foi o ex-chanceler israelense Abba Eban, observa que há riscos na aplicação das analogias e dá alguns exemplos. Assim, Anthony Eden, na intervenção que conduziu como primeiro-ministro da Inglaterra no Egito por ocasião da nacionalização do Canal de Suez, em 1956, operou por analogia com aquilo que foi a posição, errada no entender dele, de Chamberlain em relação a Hitler em Munique, no final da década de 1930. Mas era uma analogia que não tinha uma conexão apropriada com a realidade, pois o nacionalismo árabe e a nacionalização do Canal de Suez empreendida por Nasser não tinham nada a ver com o expansionismo da Alemanha nazista tal como conduzido por Hitler. Também os americanos, na guerra do Vietnã, equivocadamente operaram em relação ao Vietnã como se fosse algo parecido com a guerra da Coréia. Da mesma maneira, Getúlio procedeu no seu
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