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Origem das Mitocôndrias

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Essa hipótese já tinha sido apresentada por uns poucos biólogos, no início do século 20. Em 1918, o francês Paul Portier já dizia que as mitocôndrias eram originárias de bactérias simbióticas. Entretanto, a comunidade de biólogos simplesmente ignorou essa sugestão e só começou a levá-la a sério, com muita relutância, a partir dos trabalhos da bióloga americana Lynn Margulis, nos anos 70 e 80. Hoje em dia, pouca gente ainda duvida da veracidade dessa hipótese para a origem das mitocôndrias, embora existam modelos um pouco diferentes. A descrição que farei acompanha as idéias de Lynn Margulis, com simplificações inevitáveis em um espaço limitado como esse que disponho.
A vida na Terra surgiu a uns 4 bilhões de anos, ao que tudo indica. Já foram encontrados fósseis de seres microscópicos primitivos com mais de 3,8 bilhões de anos. Durante os primeiros bilhões de anos, só existiam seres monocelulares, como as bactérias. Talvez existissem também os vírus, mas, isso ninguém sabe ao certo pois vírus não deixam fósseis.
É provável que a grande maioria das bactérias existentes nesse passado distante fosse do tipo "anaeróbico". Tinha de ser, pois a atmosfera da Terra, nesse tempo, ainda não continha oxigênio. Bactérias anaeróbicas não precisam de oxigênio para viver e algumas delas podem até morrer na presença desse gás. O método favorito desse tipo de bactéria processar seus alimentos é a fermentação, isto é, essas bactérias adoram comer açúcar e defecar álcool. Mesmo sem haver oxigênio disponível na atmosfera da Terra primitiva, começaram a aparecer bactérias "aeróbicas", que usam oxigênio para processar seus alimentos. Eram minoria e tinham de retirar o oxigênio de onde ele era abundante, a água. Usando a energia da luz solar, essas precursoras já sabiam quebrar uma molécula de água em seus componentes, o hidrogênio e o oxigênio.
Acontece que a produção de energia através da respiração aeróbica é muito mais eficiente que a fermentação, como vamos ver em outra apostila. Por essa razão, os micróbios aeróbicos começaram a proliferar e a atmosfera da Terra começou, gradualmente, a se encher de oxigênio. Isso não era boa notícia para as bactérias anaeróbicas, para quem o oxigênio é um gás tóxico. Foi nessa época, uns dois bilhões de anos antes de nós, que se deram os improváveis processos descritos em minha parábola, a "endossimbiose" entre dois tipos diferentes de micróbios, um aeróbico e outro anaeróbico. O prefixo "endo" significa "interno", e distingue uma simbiose onde um simbionte passa a morar dentro do outro.
Ninguém sabe ao certo que micróbios simbiontes foram esses. Talvez até fossem de vários tipos, mas é provável que não. O micróbio invasor, certamente, era do tipo aeróbico, pois deu origem às mitocôndrias que "respiram" oxigênio para produzir energia. Uma provável candidata a esse papel de ancestral das mitocôndrias é a bactéria Rickettsia prowazekii, uma pilantrinha que causa o tifo, doença horrorosa que por pouco não me levou ao buraco, quando ainda não existiam os poderosos antibióticos de hoje. Tive febre altíssima, os cabelos caíram, delirei, mas escapei para contar essa história.
A principal razão para desconfiar que a Rickettsia foi a bactéria invasora na endossimbiose consiste na semelhança entre seus genes e os genes das mitocôndrias. O sueco Siv Andersson comparou os dois genomas e achou uma correspondência grande demais para ser só uma coincidência. Portanto, temos uma boa pista para associar a Rickettsia com a célula invasora que acabou virando serviçal da casa. E quanto à hospedeira patroa, quem era?
Lynn Margulis sugeriu que a bactéria que foi invadida poderia ter sido uma Thermoplasta. Essa bactéria é do tipo chamada de "archea", que significa "velha". (Meus netos adoram me chamar de árquea.) As archeas são procarióticas pois não têm núcleo e tem os cromossomos enrolados, como as outras bactérias. Mas, têm seu DNA envolvido em proteínas, como as eucarióticas atuais. Além disso, não têm uma parede dura e possuem uma espécie de citoesqueleto que permite que elas mudem de forma, facilitando a penetração de material em seu interior.
Para coletar uma amostra de archeas um biólogo tem de sujar mãos e pés, suportar mau cheiro e estragar as calças pois elas gostam de viver em pântanos, em águas quentes e ácidas e até em poços de petróleo. Os engenheiros petrolíferos não devem gostar delas pois produzem compostos sulfurosos que corroem os oleodutos.
Outra semelhança das archeas com as eucarióticas consiste na forma de envolver seus cromossomos em proteínas. Além disso, seus ribossomos, as fabriquetas de proteínas das células, parecem mais com os ribossomos das eucarióticas que com os ribossomos das bactérias. Um exemplo: o antibiótico clorafenicol, que cura o tifo e teria me poupado de muita desgraça, se fosse disponível na época, bloqueia a síntese de proteínas na Rickettsiamas não faz o mesmo nas archeas nem nas eucarióticas. Todas essas razões, e outras que não citei, levaram Lynn Margulis e outros pesquisadores a apontar a Thermoplasta como forte candidata a ser a célula hospedeira na endossimbiose.
Como eu disse antes, a teoria da endossimbiose para a origem das mitocôndrias só passou a ser aceita depois que as evidências se acumularam de tal jeito que até os mais reacionários tiveram de se render. Deixe-me sumarizar as mais eloquentes dessas evidências.
1) As mitocôndrias têm DNA próprio, com poucos genes que são diferentes dos genes da célula hospedeira.
2) Os genes das mitocôndrias ficam em cromossomos circulares, como nas bactérias. Os cromossomos do núcleo têm as pontas soltas.
3) A membrana interna das mitocôndrias é quimicamente mais parecida com as membranas das bactérias que com a membrana das células eucarióticas.
4) As mitocôndrias, como as bactérias, se reproduzem por divisão celular e essa divisão pode se dar independentemente da divisão da célula hospedeira.
O mais incrível é que o processo da endossimbiose foi visto em laboratório, em pleno século 20, pelo biólogo Kwang Jeon, um especialista em amebas. As amebas são seres interessantes (menos quando nos infestam). Elas são eucarióticas (têm núcleo) mas são unicelulares e anaeróbicas. Jeon observou que algumas de suas amebas tinham sido invadidas por outras bactérias, do tipo aeróbico. A grande maioria das amebas infectadas morreu, mas, algumas conseguiram sobreviver e logo ficaram novamente sadias. Examinando essas sobreviventes, ele descobriu que elas ainda continham um número enorme de bactérias invasoras. A ameba, portanto, passara a conviver pacificamente e com saúde, com uma verdadeira população de bactérias aeróbicas dentre de seu corpo monocelular. E tem mais: ficou dependente delas! Se o núcleo de uma ameba infectada sobrevivente fosse permutado pelo núcleo de outra ameba não infectada, ambas morriam. Isto é, o núcleo da ameba infectada não podia mais viver sem contar com as bactérias invasoras. E observe que toda a experiência não levou milhões de anos, apenas alguns meses. Isso mostra que a simbiose entre dois micróbios completamente diferentes, normalmente inimigos mortais, não é tão extravagante e rara como antes se pensava.
A seguir, vamos ver como as mitocôndrias, descendentes de bactérias aeróbicas, trabalham em nossas células para produzir a energia que usamos para viver.

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